A
TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO
Ela virá. A
revolução conquistará a todos o direito não apenas ao pão mas, também, à
poesia.
Trotsky.
Enquanto aos relativamente
escassos adversários da revolução soviética, se pode confiar no gênio inventivo
dos norte-americanos. Por exemplo, poderiam mandar a todos os vossos
milionários não convencidos a alguma ilha pinturesca, com uma renda para toda a
vida, e que fiquem ali fazendo o que lhes agradem.
Trotsky, Se os EUA
se tornarem socialistas.
O AMANHÃ
Falamos sobre a necessidade de um
sistema mundial de saúde, o espaço pós-capitalista como fusão superante do
melhor da urbanidade com o melhor do campo, a tendência das características dos
produtos, etc.; agora adentraremos um pouco mais em outros aspectos da produção
em si e o regime de Estado. Os marxistas do século XXI precisam recuperar a
paixão e curiosidade por entender a ciência e a técnica; em última instância, o
futuro depende disso, em especial após resolvermos as pendências imediatas da
luta de classes. Um marxismo focado apenas nas dinâmicas dialéticas das classes
e dos Estados é um marxismo amputado.
O socialismo será a superação do
paradigma fábrica, no sentido de casa do trabalho manual. Em todos os modos de
produção a classe dominante afirmava-se por dominar o trabalho intelectual
contra o trabalho manual da ferramenta falante. Se alcançarmos o igualitarismo,
toda a humanidade será a “classe” dominante, pois divisões serão inexistes,
pois todos os indivíduos serão senhores do trabalho intelectual, diferente e
emancipado, que será a forma de trabalho dominante em geral. Quem, por isso,
“pegará no pesado”? As máquinas, maquinário automatizado, robôs e outras
invenções desta sociedade pós-industrial. Em nossa época, isso se mostra em
modo embrionário, larval, por exemplo, nas impressoras 3D.
A fábrica está para o capitalismo como
o feudo está para o feudalismo. A fábrica expressa em si a etapa da humanidade,
capitalista, da histórica luta da espécie humana: ser social, mais do que
natural[1].
Enquanto o escravismo e o feudalismo tinham na relação imediata com o solo e a
natureza sua base econômica mais avançada, as “casas de ferro” da produção sob
o capital representam um salto para frente, embora de modo invertido, na
humanização da humanidade e da natureza. A revolução social conclui tal
objetivo em médio prazo histórico.
Guiados pela questão técnica e pelos
clássicos, deduzimos o socialismo como uma evolução de três etapas[2]:
1.
A
transição ao socialismo;
São implementadas, na medida do
possível, políticas socialistas por meio de um novo Estado com democracia
socialista.
A necessidade de etapa preliminar é
informalmente percebida por Lenin e Trotsky no calor da revolução Russa. Porém,
pode-se afirmar que eles, em termos hegelianos, “conheceram, mas não
reconheceram” esse fato. Nesta obra, apresentamos de forma direta e clara a
conclusão.
2.
Socialismo;
O poder socialista consolida-se em
nível internacional e o Estado começa a definhar-se. Ainda há classes, mas a
diferenciação é superada de modo progressivo.
3.
Comunismo.
A organização geral é apenas sobre as
coisas, não sobre as pessoas. As organizações classistas – partidos, sindicatos,
etc. – deixam de existir com o fim das classes.
O altíssimo amadurecimento do
capitalismo ao mesmo tempo exige e possibilita tentarmos antecipar os aspectos
gerais da transição ao socialismo. Arriscaremos, nos limites de um modelo
exemplificativo, antecipar os aspectos da sociedade futura. Os iluministas,
como Montesquieu, deram-se a tarefa de pensar aspectos de uma sociabilidade
capitalista plena; a tarefa agora é pensar, tornar imaginável, o resultado da
revolução social.
A TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO
A revolução mundial terá um inicio
destrutivo, pois serão guerras civis por todo o mundo; ao mesmo tempo,
erguer-se-á a partir das bases econômicas e culturais herdadas do capitalismo.
Assim, a fase de transição terá como tarefa consolidar a nova sociedade em
nível planetário rumo ao avanço estável. Aqui, elementos do sistema anterior
estarão temporariamente em presença, definhantes; o Estado operário
revolucionário e a quantidade de organizações, por outro lado e por isso,
aumentar-se-ão. Já que corresponde uma luta interfronteiras, trata-se de um
processo que pode durar décadas, mas não é secular.
Teórico marxista admirável, Iván
Mészaros opina em entrevista:
[Entrevistador]
Como se dariam essas mudanças estruturais e qual estrutura social o senhor
vislumbra a partir delas?
O imperativo de se ir para além do
capital como controle sociometabólico, com suas dificuldades quase proibitivas,
é a condição compartilhada pela humanidade como um todo, pois o sistema do
capital, por sua própria natureza, é um modo de controle global e universalista
que não pode ser historicamente superado, exceto por uma alternativa
sociometabólica igualmente abrangente. Assim, toda tentativa de superar os
limites de um estágio historicamente determinado do capitalismo - nos
parâmetros estruturais necessariamente orientados para a expansão e propensos à
crise do sistema do capital - está destinada mais cedo ou mais tarde ao
fracasso, independentemente de quanto sejam "avançados" ou
"subdesenvolvidos" os países que tentarem fazê-lo. A ideia de que,
uma vez que a relação de forças entre os países capitalistas e os
pós-capitalistas tenha mudado em favor dos últimos, a via da humanidade para o
socialismo será uma jornada tranquila é, na melhor das hipóteses, ingênua.
Pode-se avaliar a magnitude das
dificuldades a serem superadas ao nos lembrarmos da maneira como o processo de
produção foi sendo constituído durante um período muito longo, bem antes da
emergência e do triunfo do capitalismo. A transformação radical necessária para
o bom funcionamento de um processo sociometabólico baseado numa verdadeira
igualdade envolve a superação da força negativa das estruturas hierárquicas
discriminatórias e das correspondentes relações interpessoais da "economia
individual" iniciada há milhares de anos.
[Entrevistador] O que isso significa?
Significa avançar radicalmente para
além do capital, ou não chegar absolutamente a lugar algum, como na verdade
aconteceu - tanto com o socialismo democrático do Estado de bem-estar social do
capitalismo ocidental como com todas as reformas permitidas pelas determinações
autoritárias do sistema do capital pós-capitalista. Como a história trágica da
era Stalin, as quatro longas décadas subsequentes demonstraram conclusivamente
que as personificações do capital poderiam trocar de pele, mas não poderiam
eliminar os antagonismos do sistema do capital, nem remover os dilemas que
confrontavam o trabalho. Nem a desintegração dos partidos social-democratas e
comunistas poderia realmente resolver a crise estrutural do "capitalismo
avançado". Apesar das falsas aparências em contrário, hoje mais do que
nunca, a dura alternativa de Marx confronta o trabalho como o antagonista
estrutural do capital, clamando pela rearticulação radical do movimento
socialista que, em suas formas conhecidas de articulação defensiva, não pode
corresponder à magnitude do desafio histórico.
Assim, a chave para que ocorram
mudanças significativas na complexidade da reprodução sociometabólica é a
superação radical da determinação antagônica e conflitante do processo de
trabalho, tanto se tivermos em mente a extração de trabalho excedente
primordialmente econômica do capitalismo como a forma politicamente dirigida do
pós-capitalismo. Nenhum socialista poderia nem desejaria defender o
estabelecimento de uma ordem sociometabólica que não satisfizesse as
necessidades dos indivíduos como resultado da abordagem simplista das tarefas e
dificuldades encontradas.
Tenho esperança na transformação
radical de um sistema autossuficiente de poder político que controla o todo da
sociedade em um órgão autossuperável, que transfira completamente as múltiplas
funções de controle político para o próprio corpo social, permitindo, assim, a
emergência daquela livre associação de homens e mulheres sem a qual o processo
vital da sociedade permanece sob a dominação de forças estranhas.
Lido com atenção, percebemos que o
entrevistado tem dificuldade de dar uma resposta à questão levantada. Assim
como György Lukács, seu mestre, faz uma crítica teoricista e, por isso,
idealista da transição ao comunismo[3].
Como comum entre marxistas não militantes, esquece que a política e a prática
revolucionária são o reino da mediação, e estão entre o real e o ideal. De modo
abstrato, suas observações são corretíssimas, mas o papel de uma revolução é
inaugurar uma nova época de reformas: o papel da transição ao socialismo,
antessala da transição ao comunismo, é promover o definhamento gradual do
valor, do capital e da alienação – mas, para isso, o Estado, por exemplo, de
imediato crescerá no lugar de definhar. No mundo concreto, o socialismo puro
não surgirá um dia após a declaração de fim da guerra civil revolucionária.
A prova mais direta de que o Estado
será ampliado está numa conclusão simples, desde a revolução russa: para
defender-se de ameaças externas, será preciso o exército regular. O programa
das “milícias operárias” em substituição ao exército teve de ser mudado e
atualizado. O Exército Vermelho oferecia alguns princípios: 1) dirigentes
militares eleitos pelos trabalhadores via seus organismos; 2) hierarquia
simples e direta: um dirigente por grupo de combate; 3) eleição de um dirigente
político para acompanhar o batalhão, propor, informar etc. sem impor-se sobre
as decisões militares do dirigente responsável; 4) prioridade à formação de
quadros, do núcleo duro, vindos da classe operária; 5) os soldados enquanto tais
não poderiam revogar a qualquer momento o mandato de seus comandantes, pois a
indisciplina nos momentos defensivos geraria problemas.
Para melhor percebermos o peso da
transição inicial, demonstração da revolução russa: após a tomada do poder, os
bolcheviques focaram na paz, rearticulação da economia e ampliação do poder dos
conselhos operários, consolidação da reforma agrária, criação de comitês
operários nas fábricas, redução da jornada de trabalho, etc., não defendiam de
imediato o controle da grande produção nas mãos do Estado soviético, pois
desejam preparar o terreno; mas foram forçados a isso antes das condições
almejadas, em 1918, diante do boicote dos patrões em favor da contrarrevolução
e invasão estrangeira.
Temos em conta que a transição estimula
a consolidação de tendências vivas no capital, por exemplo:
1) Concentração e centralização de
capitais – formando única propriedade social;
No proceder do avanço ao socialismo o
controle social da produção, que é muito mais do que mera estatização, se dará
sobre as maiores e mais vitais empresas dos países – a miríade de pequenas e
médias fica em geral fora de uma relação direta –, aquelas determinantes do
metabolismo econômico e social. A revolução húngara de 1919, por exemplo, na
esteira da russa, entre outros erros que a levaram à derrota, tentou ser “mais
bolchevique que os bolcheviques” e passou ao controle de toda propriedade, no
lugar de apenas as centrais, faltando condições de gestão, de controle e de plano
geral.
2)
Deflação
– ao elevar a produtividade, rumo ao fim do preço e do comércio;
3)
Substituição
do capital variável por capital fixo – investimento intensivo em pesquisas para
automação produtiva;
4)
Sistema
único de finanças, banco único, contabilidade geral;
5)
Queda da
taxa de lucro;
6) Expropriação dos próprios capitalistas,
antes operada pela concorrência entre capitais;
7)
Integração
socioeconômica internacional: dissolução das fronteiras nacionais por meio da
associação, com autonomia e solidariedade.
Haverá também processo de substituição
da forma salário. Parte do processo se dará por serviços públicos gratuitos e
de qualidade (educação, saúde, transporte, etc.) que, por escala, diminuem o
custo social total e deixam de pesar ao trabalhador. Outro dos modos será o
aumento de resistência dos valores de uso, ainda boa parte mercadoria no
primeiro momento (enquanto a deflação e o aumento da produtividade ocorrem),
descontos por devolução de materiais desgastados, autonomia energética dos
produtos, etc. Em parte, poderá haver formas transitórias iniciais, como,
confirmado responsabilidade do indivíduo para com o estudo ou o trabalho,
estando apto e a sociedade lhe oferecendo meios, uma parte do ganho virá em
forma de algo como vales magnéticos (o substituto do cartão de débito e
crédito, pois aí não haverá circulação, por isso deixará de ser dinheiro) e
outra na forma monetária.[4]
Além do mais, a forma dinheiro será
necessariamente superada, mas, por muito tempo, não totalmente. Um dinheiro
mundial unificado e virtual – que já é tendência sob o capitalismo por causa da
alta produtividade e necessidade de escoar mercadorias – poderá surgir para as
poucas e paralelas atividades mercantis da sociedade socialista.
***
A fase de transição pede a construção
dos seguintes mecanismos mínimos:
1)
Economia
democrática e centralmente planejada[5];
2)
Grande
propriedade estatal;
3)
Controle
do comércio exterior
4)
Controle
democrático dos trabalhadores e setores populares sobre o regime de Estado,
democracia socialista.
A falta de qualquer um desses fatores
significaria devolver ao “sujeito automático”, a relação baseada no valor, sua
força social. O controle do mundo dos homens sobre o mundo das coisas precisa
de instituições, de organização, de tomadas conscientes e organizadas de decisões.
Nenhuma força “natural” ou “autogerida” substitui a administração da existência
coletiva, enfim possível no socialismo pelo seu nível de liberdade, nas
primeiras etapas, significando Estado. O justo desejo anarquista de avançar
diretamente para o fim do aparelho de Estado, seja capitalista ou socialista,
seja democrático formal ou democrático real, das classes, da rede de
organizações, das fronteiras ainda que parciais, quer seja, o salto ao
comunismo, emperra nos limites materiais da realidade, exigente de transição e
medidas construtoras.
A necessidade de uma transição, antes
do socialismo e do comunismo, tem os seguintes motivos:
1)
As
revoluções vitoriosas tendem a ocorrer, em primeiro, nos países atrasados
porque são socialmente mais contraditórios;
2)
A maior
parte das revoluções tende à guerra civil, à destruição;
3)
É
impossível, sob risco de dar passo maior que o possível, implementar todo um
programa transicional com um só golpe;
4)
Avançar
ao socialismo só é viável se avançando para a revolução internacional, o que
leva algum tempo, com avanços e recuos.
***
São mecanismos possibilitadores da
democracia operária, socialista:
1) Acesso popular às armas[6][7];
2)
A
concentração humana na urbanidade;
3)
Experiência
prévia com democracia burguesa – fator não obrigatório;
4)
Impacto
da revolução vitoriosa sobre a cultura e a consciência[8];
5)
Fim do
desemprego, na medida em que permite contato humano e segurança para
defender-se (basta observar a quantidade de greves quando o desemprego é baixo
sob o capitalismo);
6)
Tempo
livre para dedicar-se às tarefas sociais e políticas;
7)
Reformas
que deem qualidade de vida, necessidade de defendê-las e a percepção de que o
ato revolucionário tem por fruto melhorias, não frustrações;
8)
Luta de
frações, de ideias, de organizações impedindo o controle de uma única via
organizacional[9];
9) Investimento intensivo em capacidade
cultural de gestão superando a atual forma despótica de gerência;
10) Organismos de luta fora e ao lado do
poder (sindicatos etc.);
11) Na URSS, a quantidade de cargos burocráticos
e intermediários nas empresas incharam de modo desproporcional e parasita, logo
devemos limitar o número de membros na direção central das empresas e nos
cargos intermediários;
12) Integração socialista internacional.
O sistema de sovietes da URSS nos
primeiros anos é o esqueleto geral dos pontos acima, por isso cumpre retomar
temas antes aparentemente superados. Primeiro: o estatuto dos sovietes da
Rússia erra ao exigir sindicalização para ter direito a voto – ao menos hoje
soa absurdo –, pois devemos estimular máxima participação da base, ainda que no
dia a dia os representantes eleitos cuidem dos aspectos constantes a partir de
um controle dos representados. Segundo: que a eleição de representantes será por
votos de variados pesos – igual quantidade elege mais representantes segundo
categorias, bairros, classes, etc. Terceiro: durante conflitos duros de
guerras, inevitavelmente o regime – aqui acerta Moreno contra Mandel – terá de
passar por mudanças parciais, com maior liberdade aos grupos “pelo retorno ao
capitalismo” nos momentos de paz e menor nos momentos de tensão física. Quarto:
ainda que os mandatos sejam revogáveis a qualquer momento, a experiência com a
burocracia nos leva à necessidade de manter, ao lado, referendos de datação
regular quanto a manter a composição do governo ou iniciar votações gerais.
Quinto: no destaque de avaliação das necessárias tendências à constituição do
Estado socialista, parece-nos justo apontar a rotatividade formal dos mandatos,
ou seja, dirigentes com tempo máximo de permanência em determinado cargo e
tempo mínimo obrigatório de ausência naquelas funções mais gerais cujo controle
da base, mais ampla, pede mais mediação.
Assim como a democracia representativa,
burguesa, a democracia direta e participativa, operária, apenas pode existir se
as condições materiais da sociedade estão maduras. Automação (abundância e
gestão científica), concentração urbana, integração mundial, internet etc. são
os mecanismos permitidores de tal forma democrática superior, antes inviável.
São meios da democracia operária,
socialista[10]:
1) Revogabilidade permanente dos mandatos[11];
2) Salário dos dirigentes políticos e
cargos centrais igual à média nacional ou referência próxima;
3)
Fusão, por
substituição, dos três poderes num único;
4)
Assembleias
e congressos regulares, de temporalidade formal (quinzenais, diários, anuais,
bianuais etc.);
5)
Meios de
comunicação à disposição dos debates, polêmicas e organizações: internet,
rádios, programas e canais de TV etc.;
6) Mecanismos de votação direta em casos
de assuntos cujo longo debate prévio é desnecessário – e mesmo em muito desses
casos, em plebiscitos e referendos: votações on line etc.
7)
Fim do
voto secreto por parte dos representantes;
8)
Fim da
diplomacia secreta;
9) Criação de um centro legislativo
formado por cientistas bem-remunerados e de mentalidade autônoma cujas decisões
serão aprovadas ou não pelo poder dos trabalhadores;
Essa
proposta exige maiores explicações. Ela foi primeiro elaborada por Trotsky.
Lenin a princípio a rejeitou, em seguida a assumiu por sua para combater o
processo de burocratização do Estado soviético:
Também
penso em propor ao Congresso que dentro de certas condições se dê caráter
legislativo às discussões da Gosplan, coincidindo neste sentido com o camarada
Trotsky, até certo ponto e em certas condições.
A Gosplan (Comissão do Plano Geral do
Estado) foi o grupo de trabalho responsável pela planificação e centralização
da economia, criada em 1921. Lenin continua:
Esta
idéia foi sugerida pelo camarada Trotsky, me parece, já faz tempo. Eu me
manifestei contra, porque estimava que, em tal caso, se produziria uma falta de
concordância fundamental no sistema de nossas instituições legislativas. Porém
um exame atento do problema me leva à conclusão de que, no fundo, há aqui uma
sã idéia: a Gosplan tem agido às margens de nossas instituições legislativas,
apesar de que, como conjunto de pessoas competentes, especialistas, de homens
da ciência e da técnica, se encontra, no fundo, nas melhores condições para
emitir juízos acertados. […] Tenho advertido que certos camaradas nossos,
capazes de influir decisivamente na orientação dos assuntos públicos, exageram
o aspecto administrativo, no qual, naturalmente, é necessário em seu tempo e
lugar, mas que não se deve confundir com o aspecto científico, com a ampla
compreensão da realidade, com a capacidade de se atrair pessoas, etc. […] Concebo
este passo de tal maneira que as decisões da Gosplan não possam ser rechaçadas
segundo o procedimento corrente nos organismo soviéticos, senão que para
modificá-las condicione-se um procedimento especial; por exemplo, levá-las à
reunião do CEC de toda a Rússia, preparar o assunto cuja decisão deva ser
modificada segundo instruções especiais, relatando-se, segundo regras
especiais, informes por escrito com objetivo de ponderar se dita decisão da
Gosplan deve ser anulada; marcar enfim, prazos especiais para modificar as
decisões da Gosplan, etc. […] Este trabalho duplo, de controle científico e de
gestão puramente administrativa, deveria ser o ideal dos dirigentes da Gosplan
em nossa República.
Um governo técnico é impossível numa
sociedade dividida em classes, sendo apenas manobra afirmação de tal tipo
quanto ao Estado burguês. O mesmo vale às primeiras fases do socialismo, onde
ainda há classes – operários, camponeses, funcionários públicos, pequenos
empresários, etc. – e diversos extratos. A tarefa socialista é, então,
desenvolver mediações de transição ao futuro e ao verdadeiro governo técnico,
do comunismo, onde classes sociais e seus partidos serão inexistentes.
O senado moderno surge no Estado
absolutista, onde legislavam representantes feudais, reacionários. O papel mais
conservador relativo à câmara dos deputados foi aproveitado no capitalismo por
meio de uma instituição cuja elegibilidade é dificultada (idade mínima alta,
poucas vagas, etc.), filtrando os tipos de membros. No socialismo ocorrerá o
inverso: uma câmara científica terá efeito progressivo sobre a gestão do
Estado. Pode-se argumentar que aqui há algo platônico ao abarcar a visão de que
os filósofos deveriam governar o Estado. De fato. A boa filosofia deve mais do
que apenas negar as produções passadas, deve refazer velhas ideias de modo
atualizado, aproveitando-as e modificando-as tanto quanto possível. Ademais,
cria-se mecanismo de controle social de suas decisões.
10) Representatividade proporcional ao
número e peso social. Exemplo: operários de uma fábrica com dez mil
trabalhadores elegem mais representantes do que a assembleia da associação
municipal dos pequenos comerciantes, pelo peso social e numérico, qualitativo e
quantitativo.
11) Os organismos de poder direto surgirão
nos locais de trabalho, moradia, cidades, vilarejos, estados e nação.
Um dos teóricos-base desta obra,
Mészaros parece não ter conhecido o método do programa de transição. As
questões levantadas e não resolvidas por ele pertencem a esta lacuna teórica,
viva quase que apenas no meio trotskysta, no marxismo ortodoxo. Muito além de
palavras de ordem, o programa transicional, sintetizado pela primeira vez por
Trotsky, apresenta uma lógica interna para a ruptura histórica nos campos da
economia e Estado, desde a luta de classes. Leitura atenta e comparada da
literatura sobre Programa de Transição[12]
e o capítulo IV, Política Radical e Transição Para o Socialismo: Reflexões do
Centenário de Marx, do livro A Crise Estrutural do Capital, de Mészàros,
clareia as dificuldades do marxismo contemporâneo de se atualizar e saber com
quais clássicos contar enquanto pontos de partida para suas tarefas.
Uma última observação. Na medida em que
o comércio e a cooperação artesanal evoluíam, o Estado feudal adquiria duplo
caráter, feudal e burguês[13].
Como a revolução socialista trata-se de destruição da história das classes
dominantes, o Estado burguês não suporta ter duplo caráter, além do despotismo
esclarecido. No entanto, diferente e ao
inverso do caráter duplo na URSS e China[14],
o Estado Operário de transição será socialista e burguês, definhando esta
duplicidade, medida a medida, na proporção em que a realidade o permitir.
Como transição para o próximo capítulo,
vejamos a passagem possível do capitalismo para o socialismo. Sob o capital,
temos a desordem, a desorganização e, ou seja, o caos; sob a bandeira vermelha,
teremos a ordem, a previsão e, o que é o mesmo, a organização. Na desordem, há
dentro de si a ordem enquanto lei, como tendência, como lei tendencial ao seu
oposto, isto é, tornar-se ordem por meio de sua autointeração caótica e seu evolver
– a desordem não suporta a si própria, por isso se autossupera; já a ordem tem,
por seu lado, dentro de si como se aquele caos por meio de uma realidade ainda
e sempre dinâmica[15][16].
[1] Como
debatemos em outras notas, o ser orgânico realiza tendencialmente sua
teleologia com o ser social, com outro ser, de modo cada vez mais aproximado
nesta realização. O trabalho, principalmente o "manual", é comum
entre animais, não sendo uma particularidade humana (alguns casos sabe-se que
têm pensamento complexo, como primatas, golfinhos e corvos – mas não a
estrutura corporal especial do homo sapiens, como a mão sendo a primeira
ferramenta do cérebro, como a capacidade de falar, como o andar bípede, etc.).
O trabalho é categoria fundante do ser social como desenvolvimento e realização
em outro do ser biológico. O trabalho manual da humanidade é o que há de ainda
natural, historicamente modificado, no social. O socialismo é uma ruptura com a
natureza, como diz Zizek. Por isso, a nova sociedade superará nossa
pré-história com o fim aproximado, não absoluto, do trabalho (manual). É o
afastamento das barreiras naturais; afastamento este nunca total, mas crescente.
Como dissemos, há uma
tendência – onde o meio tem o fim em si mesmo, onde o fim vai-se realizando –
da humanidade para o comunismo. As classes dominantes de todas as épocas são a
expressão deformada e alienada da tendência à abundância comunista, ao tempo
livre do futuro, à dedicação ao trabalho intelectual sobre o manual para o
conjunto da humanidade, etc.
[2] Ao
longo dos três tomos de O Capital, Marx aproveitou as oportunidades dadas pela
teorização da economia capitalista para supor aspectos gerais da próxima
sociedade. Em outros textos também assim procede (Crítica ao programa de Gotha,
etc.). Há no marxismo boa dose de idealismo calibrado e dimensionado pelo
materialismo. Isso é típico do latente: o processo de fundação da atual
sociabilidade precisou de pensadores capazes de fantasiar como deveria ser o
futuro; a necessidade de derrubar o poder absoluto do monarca feudal fez a
criatividade solucionar idealmente o problema do poder pela divisão do Estado
em três poderes complementares e interelacionados – o executivo, o legislativo
e o judiciário. Testes, adaptações, correções ou substituições ocorrem na
prática, na aplicação. Se os marxistas desejam voltar ao subversivo, à
imaginação, a enfrentar tabus de modo construtivo, o caminho está antecipado
pela última fase do sistema ao nos permitir melhor visualizarmos as
possibilidades.
[3]
Tomo tal reflexão de uma palestra de José Paulo Netto.
[4] Ainda
haverá classes no começo da transição ao socialismo, logo salários desiguais
(médicos ganharão melhor, etc.), o que pede mediação.
[5] Complementamos
com citação pouco lembrada do Capital II: “Imaginemos que a sociedade, em vez
de capitalista, fosse comunista: antes de mais nada, desaparece o
capital-dinheiro e por conseguinte, os véus com que disfarça as operações. E
tudo fica reduzido ao seguinte: a sociedade tem de calcular previamente a
quantidade de trabalho, meios de produção e meios de subsistência que, sem
prejuízo, pode aplicar em empreendimentos que, como construção de ferrovias
etc., por longo tempo, um ano ou mais, não fornecem meios de produção, meios de
subsistência nem qualquer efeito útil, mas retiram da produção global do ano
trabalho, meios de produção e de subsistência. Mas, na sociedade capitalista,
onde o senso social só se impõe depois do fato consumado, podem ocorrer e
ocorrem necessária e constantemente grandes perturbações.” (O Capital II,
Civilização Brasileira, p. 357, 358.)
[6] Citemos
forte exemplo. No Chile, o governo de frente popular de Allende, ou seja, contrarrevolucionário
(impedir a revolução por meio de um falso governo operário no Estado burguês),
teve de ceder às ocupações de fábrica, pois o movimento foi fortíssimo. Depois,
percebendo a inevitabilidade da revolução agrária, antecipou fazendo a reforma
no campo, atrasando a revolução social. Após a moral alta – a paciência das
massas se esgotando e período de cansaço (momento defensivo na situação
revolucionária) –, com a confusão e esperança causada nas massas e na esquerda,
abriu-se a possibilidade clara de um golpe de Estado. Nas ruas, os
trabalhadores pediram armas para impedir a contrarrevolução: mas o presidente
em pessoa as negou, pedindo aplausos ao “antigolpista” e general Pinochet. Um
governo burguês, seja qual for o tipo, é capaz de tudo, menos permitir as
massas organizadas em armas, já que isto é Estado. A tentativa “bondosa” de
Obama, nos EUA, de restringir o histórico acesso dos trabalhadores às armas –
desde sua revolução burguesa – é exemplo da decadência após 2008, do medo de
uma revolução social interna.
[7]
“Somente o mau governante teme seu povo em armas”
[8] Na
luta de classes, as vitórias são muito mais educativas que as derrotas.
[9] De
modo geral, tratando dos diferentes elementos da vida humana: no capitalismo, a
concorrência domina a cooperação; no socialismo, a cooperação domina a
concorrência.
[10] Os
únicos governos e regimes de Estado apoiados pelos comunistas – mesmo quando
criticamente – são os baseados no princípio da democracia socialista.
[11] A
instabilidade dos cargos gera a estabilidade, pois a) permite a seleção dos
melhores, b) gera pressão contínua para o bom trabalho, c) premia os melhores e
pune o mau trabalho.
[12] Indicamos
para primeiro contato: O Programa de Transição, de Trotsky; Introduccion al
Programa de Transicion
[13]
Como dissemos em outro momento: a polêmica, a oposição, sobre se o Estado
feudal em seu fim era apenas feudalista ou tinha duplo caráter, também
capitalista, é resolvido pela observação de que no caráter duplo um polo é o
determinante, neste caso, o polo do feudalismo.
[14] Estas
sociedades elevavam-se por meio da elevação do trabalho abstrato – na produção,
onde surge o mais-trabalho e o mais-valor –, não por um processo de sua
destruição contínua.
[15]
Lembremos que a lei da entropia não é, como afirmam certos manuais introdutórios,
medida de desordem. Ademais, aqui tratamos de uma instância diferente do real.
[16]
Ambos são duplicados dentro de si e, no processo que os unifica, são
diferentes, opostos, e ao mesmo tempo o mesmo (embora esta forma de exposição
seja imprópria). O caos absoluto como liberdade absoluta é a negação da
liberdade real – é liberdade negativa. Por isso, Marx diz, de um lado, que o
socialismo é uma economia planejada central e democraticamente, e, de outro,
que é uma livre associação, ou seja,
uma ordem com evolver, verdade e unidade de tais categorias.
Há, ainda, três
observações: 1) diferente do mero acaso, a categoria caos diz de si que é um sistema, porém não sistemático; 2) se,
nossa hipótese, a unidade de ordem e caos cai-se na probabilidade (diferente da
possibilidade); 3) na coisa, a ordem coisal é preenchida pelo caótico, e esta
mesma coisa tem um lado ordenado e um lado mais suscetível ao caos (mas são um,
misturados sem barreira entre elas, na coisa); 4) tal relação categorial
passa-se para o concreto-abstrato a seguir.
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