domingo, 28 de janeiro de 2024

A crise sitêmica - cap. 38 - A TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO

 

A TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO

 

Ela virá. A revolução conquistará a todos o direito não apenas ao pão mas, também, à poesia.

Trotsky.

 

Enquanto aos relativamente escassos adversários da revolução soviética, se pode confiar no gênio inventivo dos norte-americanos. Por exemplo, poderiam mandar a todos os vossos milionários não convencidos a alguma ilha pinturesca, com uma renda para toda a vida, e que fiquem ali fazendo o que lhes agradem.

Trotsky, Se os EUA se tornarem socialistas.

 

O AMANHÃ

Falamos sobre a necessidade de um sistema mundial de saúde, o espaço pós-capitalista como fusão superante do melhor da urbanidade com o melhor do campo, a tendência das características dos produtos, etc.; agora adentraremos um pouco mais em outros aspectos da produção em si e o regime de Estado. Os marxistas do século XXI precisam recuperar a paixão e curiosidade por entender a ciência e a técnica; em última instância, o futuro depende disso, em especial após resolvermos as pendências imediatas da luta de classes. Um marxismo focado apenas nas dinâmicas dialéticas das classes e dos Estados é um marxismo amputado.

O socialismo será a superação do paradigma fábrica, no sentido de casa do trabalho manual. Em todos os modos de produção a classe dominante afirmava-se por dominar o trabalho intelectual contra o trabalho manual da ferramenta falante. Se alcançarmos o igualitarismo, toda a humanidade será a “classe” dominante, pois divisões serão inexistes, pois todos os indivíduos serão senhores do trabalho intelectual, diferente e emancipado, que será a forma de trabalho dominante em geral. Quem, por isso, “pegará no pesado”? As máquinas, maquinário automatizado, robôs e outras invenções desta sociedade pós-industrial. Em nossa época, isso se mostra em modo embrionário, larval, por exemplo, nas impressoras 3D.

A fábrica está para o capitalismo como o feudo está para o feudalismo. A fábrica expressa em si a etapa da humanidade, capitalista, da histórica luta da espécie humana: ser social, mais do que natural[1]. Enquanto o escravismo e o feudalismo tinham na relação imediata com o solo e a natureza sua base econômica mais avançada, as “casas de ferro” da produção sob o capital representam um salto para frente, embora de modo invertido, na humanização da humanidade e da natureza. A revolução social conclui tal objetivo em médio prazo histórico.

Guiados pela questão técnica e pelos clássicos, deduzimos o socialismo como uma evolução de três etapas[2]:

1.      A transição ao socialismo;

São implementadas, na medida do possível, políticas socialistas por meio de um novo Estado com democracia socialista.

A necessidade de etapa preliminar é informalmente percebida por Lenin e Trotsky no calor da revolução Russa. Porém, pode-se afirmar que eles, em termos hegelianos, “conheceram, mas não reconheceram” esse fato. Nesta obra, apresentamos de forma direta e clara a conclusão.

2.      Socialismo;

O poder socialista consolida-se em nível internacional e o Estado começa a definhar-se. Ainda há classes, mas a diferenciação é superada de modo progressivo.

3.      Comunismo.

A organização geral é apenas sobre as coisas, não sobre as pessoas. As organizações classistas – partidos, sindicatos, etc. – deixam de existir com o fim das classes.

 

O altíssimo amadurecimento do capitalismo ao mesmo tempo exige e possibilita tentarmos antecipar os aspectos gerais da transição ao socialismo. Arriscaremos, nos limites de um modelo exemplificativo, antecipar os aspectos da sociedade futura. Os iluministas, como Montesquieu, deram-se a tarefa de pensar aspectos de uma sociabilidade capitalista plena; a tarefa agora é pensar, tornar imaginável, o resultado da revolução social.

 

A TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO

A revolução mundial terá um inicio destrutivo, pois serão guerras civis por todo o mundo; ao mesmo tempo, erguer-se-á a partir das bases econômicas e culturais herdadas do capitalismo. Assim, a fase de transição terá como tarefa consolidar a nova sociedade em nível planetário rumo ao avanço estável. Aqui, elementos do sistema anterior estarão temporariamente em presença, definhantes; o Estado operário revolucionário e a quantidade de organizações, por outro lado e por isso, aumentar-se-ão. Já que corresponde uma luta interfronteiras, trata-se de um processo que pode durar décadas, mas não é secular.

Teórico marxista admirável, Iván Mészaros opina em entrevista:

 

[Entrevistador] Como se dariam essas mudanças estruturais e qual estrutura social o senhor vislumbra a partir delas?

O imperativo de se ir para além do capital como controle sociometabólico, com suas dificuldades quase proibitivas, é a condição compartilhada pela humanidade como um todo, pois o sistema do capital, por sua própria natureza, é um modo de controle global e universalista que não pode ser historicamente superado, exceto por uma alternativa sociometabólica igualmente abrangente. Assim, toda tentativa de superar os limites de um estágio historicamente determinado do capitalismo - nos parâmetros estruturais necessariamente orientados para a expansão e propensos à crise do sistema do capital - está destinada mais cedo ou mais tarde ao fracasso, independentemente de quanto sejam "avançados" ou "subdesenvolvidos" os países que tentarem fazê-lo. A ideia de que, uma vez que a relação de forças entre os países capitalistas e os pós-capitalistas tenha mudado em favor dos últimos, a via da humanidade para o socialismo será uma jornada tranquila é, na melhor das hipóteses, ingênua.

Pode-se avaliar a magnitude das dificuldades a serem superadas ao nos lembrarmos da maneira como o processo de produção foi sendo constituído durante um período muito longo, bem antes da emergência e do triunfo do capitalismo. A transformação radical necessária para o bom funcionamento de um processo sociometabólico baseado numa verdadeira igualdade envolve a superação da força negativa das estruturas hierárquicas discriminatórias e das correspondentes relações interpessoais da "economia individual" iniciada há milhares de anos.

[Entrevistador] O que isso significa?

Significa avançar radicalmente para além do capital, ou não chegar absolutamente a lugar algum, como na verdade aconteceu - tanto com o socialismo democrático do Estado de bem-estar social do capitalismo ocidental como com todas as reformas permitidas pelas determinações autoritárias do sistema do capital pós-capitalista. Como a história trágica da era Stalin, as quatro longas décadas subsequentes demonstraram conclusivamente que as personificações do capital poderiam trocar de pele, mas não poderiam eliminar os antagonismos do sistema do capital, nem remover os dilemas que confrontavam o trabalho. Nem a desintegração dos partidos social-democratas e comunistas poderia realmente resolver a crise estrutural do "capitalismo avançado". Apesar das falsas aparências em contrário, hoje mais do que nunca, a dura alternativa de Marx confronta o trabalho como o antagonista estrutural do capital, clamando pela rearticulação radical do movimento socialista que, em suas formas conhecidas de articulação defensiva, não pode corresponder à magnitude do desafio histórico.

Assim, a chave para que ocorram mudanças significativas na complexidade da reprodução sociometabólica é a superação radical da determinação antagônica e conflitante do processo de trabalho, tanto se tivermos em mente a extração de trabalho excedente primordialmente econômica do capitalismo como a forma politicamente dirigida do pós-capitalismo. Nenhum socialista poderia nem desejaria defender o estabelecimento de uma ordem sociometabólica que não satisfizesse as necessidades dos indivíduos como resultado da abordagem simplista das tarefas e dificuldades encontradas.

Tenho esperança na transformação radical de um sistema autossuficiente de poder político que controla o todo da sociedade em um órgão autossuperável, que transfira completamente as múltiplas funções de controle político para o próprio corpo social, permitindo, assim, a emergência daquela livre associação de homens e mulheres sem a qual o processo vital da sociedade permanece sob a dominação de forças estranhas. (Mészáros , O Marxismo de István Mészáros, 2011)

 

Lido com atenção, percebemos que o entrevistado tem dificuldade de dar uma resposta à questão levantada. Assim como György Lukács, seu mestre, faz uma crítica teoricista e, por isso, idealista da transição ao comunismo[3]. Como comum entre marxistas não militantes, esquece que a política e a prática revolucionária são o reino da mediação, e estão entre o real e o ideal. De modo abstrato, suas observações são corretíssimas, mas o papel de uma revolução é inaugurar uma nova época de reformas: o papel da transição ao socialismo, antessala da transição ao comunismo, é promover o definhamento gradual do valor, do capital e da alienação – mas, para isso, o Estado, por exemplo, de imediato crescerá no lugar de definhar. No mundo concreto, o socialismo puro não surgirá um dia após a declaração de fim da guerra civil revolucionária.

A prova mais direta de que o Estado será ampliado está numa conclusão simples, desde a revolução russa: para defender-se de ameaças externas, será preciso o exército regular. O programa das “milícias operárias” em substituição ao exército teve de ser mudado e atualizado. O Exército Vermelho oferecia alguns princípios: 1) dirigentes militares eleitos pelos trabalhadores via seus organismos; 2) hierarquia simples e direta: um dirigente por grupo de combate; 3) eleição de um dirigente político para acompanhar o batalhão, propor, informar etc. sem impor-se sobre as decisões militares do dirigente responsável; 4) prioridade à formação de quadros, do núcleo duro, vindos da classe operária; 5) os soldados enquanto tais não poderiam revogar a qualquer momento o mandato de seus comandantes, pois a indisciplina nos momentos defensivos geraria problemas.

Para melhor percebermos o peso da transição inicial, demonstração da revolução russa: após a tomada do poder, os bolcheviques focaram na paz, rearticulação da economia e ampliação do poder dos conselhos operários, consolidação da reforma agrária, criação de comitês operários nas fábricas, redução da jornada de trabalho, etc., não defendiam de imediato o controle da grande produção nas mãos do Estado soviético, pois desejam preparar o terreno; mas foram forçados a isso antes das condições almejadas, em 1918, diante do boicote dos patrões em favor da contrarrevolução e invasão estrangeira.

Temos em conta que a transição estimula a consolidação de tendências vivas no capital, por exemplo:

1)       Concentração e centralização de capitais – formando única propriedade social;

No proceder do avanço ao socialismo o controle social da produção, que é muito mais do que mera estatização, se dará sobre as maiores e mais vitais empresas dos países – a miríade de pequenas e médias fica em geral fora de uma relação direta –, aquelas determinantes do metabolismo econômico e social. A revolução húngara de 1919, por exemplo, na esteira da russa, entre outros erros que a levaram à derrota, tentou ser “mais bolchevique que os bolcheviques” e passou ao controle de toda propriedade, no lugar de apenas as centrais, faltando condições de gestão, de controle e de plano geral.

2)      Deflação – ao elevar a produtividade, rumo ao fim do preço e do comércio;

3)      Substituição do capital variável por capital fixo – investimento intensivo em pesquisas para automação produtiva;

4)      Sistema único de finanças, banco único, contabilidade geral;

5)      Queda da taxa de lucro;

6)       Expropriação dos próprios capitalistas, antes operada pela concorrência entre capitais;

7)      Integração socioeconômica internacional: dissolução das fronteiras nacionais por meio da associação, com autonomia e solidariedade.

 

Haverá também processo de substituição da forma salário. Parte do processo se dará por serviços públicos gratuitos e de qualidade (educação, saúde, transporte, etc.) que, por escala, diminuem o custo social total e deixam de pesar ao trabalhador. Outro dos modos será o aumento de resistência dos valores de uso, ainda boa parte mercadoria no primeiro momento (enquanto a deflação e o aumento da produtividade ocorrem), descontos por devolução de materiais desgastados, autonomia energética dos produtos, etc. Em parte, poderá haver formas transitórias iniciais, como, confirmado responsabilidade do indivíduo para com o estudo ou o trabalho, estando apto e a sociedade lhe oferecendo meios, uma parte do ganho virá em forma de algo como vales magnéticos (o substituto do cartão de débito e crédito, pois aí não haverá circulação, por isso deixará de ser dinheiro) e outra na forma monetária.[4]

Além do mais, a forma dinheiro será necessariamente superada, mas, por muito tempo, não totalmente. Um dinheiro mundial unificado e virtual – que já é tendência sob o capitalismo por causa da alta produtividade e necessidade de escoar mercadorias – poderá surgir para as poucas e paralelas atividades mercantis da sociedade socialista.

***

A fase de transição pede a construção dos seguintes mecanismos mínimos:

1)      Economia democrática e centralmente planejada[5];

2)      Grande propriedade estatal;

3)      Controle do comércio exterior (Herrnandez, 2008);

4)      Controle democrático dos trabalhadores e setores populares sobre o regime de Estado, democracia socialista.

 

A falta de qualquer um desses fatores significaria devolver ao “sujeito automático”, a relação baseada no valor, sua força social. O controle do mundo dos homens sobre o mundo das coisas precisa de instituições, de organização, de tomadas conscientes e organizadas de decisões. Nenhuma força “natural” ou “autogerida” substitui a administração da existência coletiva, enfim possível no socialismo pelo seu nível de liberdade, nas primeiras etapas, significando Estado. O justo desejo anarquista de avançar diretamente para o fim do aparelho de Estado, seja capitalista ou socialista, seja democrático formal ou democrático real, das classes, da rede de organizações, das fronteiras ainda que parciais, quer seja, o salto ao comunismo, emperra nos limites materiais da realidade, exigente de transição e medidas construtoras.

A necessidade de uma transição, antes do socialismo e do comunismo, tem os seguintes motivos:

1)      As revoluções vitoriosas tendem a ocorrer, em primeiro, nos países atrasados porque são socialmente mais contraditórios;

2)      A maior parte das revoluções tende à guerra civil, à destruição;

3)      É impossível, sob risco de dar passo maior que o possível, implementar todo um programa transicional com um só golpe;

4)      Avançar ao socialismo só é viável se avançando para a revolução internacional, o que leva algum tempo, com avanços e recuos.

***

São mecanismos possibilitadores da democracia operária, socialista:

1)       Acesso popular às armas[6][7];

2)      A concentração humana na urbanidade;

3)      Experiência prévia com democracia burguesa – fator não obrigatório;

4)      Impacto da revolução vitoriosa sobre a cultura e a consciência[8];

5)      Fim do desemprego, na medida em que permite contato humano e segurança para defender-se (basta observar a quantidade de greves quando o desemprego é baixo sob o capitalismo);

6)      Tempo livre para dedicar-se às tarefas sociais e políticas;

7)      Reformas que deem qualidade de vida, necessidade de defendê-las e a percepção de que o ato revolucionário tem por fruto melhorias, não frustrações;

8)      Luta de frações, de ideias, de organizações impedindo o controle de uma única via organizacional[9];

9)       Investimento intensivo em capacidade cultural de gestão superando a atual forma despótica de gerência;

10)   Organismos de luta fora e ao lado do poder (sindicatos etc.);

11)   Na URSS, a quantidade de cargos burocráticos e intermediários nas empresas incharam de modo desproporcional e parasita, logo devemos limitar o número de membros na direção central das empresas e nos cargos intermediários;

12)  Integração socialista internacional.

 

O sistema de sovietes da URSS nos primeiros anos é o esqueleto geral dos pontos acima, por isso cumpre retomar temas antes aparentemente superados. Primeiro: o estatuto dos sovietes da Rússia erra ao exigir sindicalização para ter direito a voto – ao menos hoje soa absurdo –, pois devemos estimular máxima participação da base, ainda que no dia a dia os representantes eleitos cuidem dos aspectos constantes a partir de um controle dos representados. Segundo: que a eleição de representantes será por votos de variados pesos – igual quantidade elege mais representantes segundo categorias, bairros, classes, etc. Terceiro: durante conflitos duros de guerras, inevitavelmente o regime – aqui acerta Moreno contra Mandel – terá de passar por mudanças parciais, com maior liberdade aos grupos “pelo retorno ao capitalismo” nos momentos de paz e menor nos momentos de tensão física. Quarto: ainda que os mandatos sejam revogáveis a qualquer momento, a experiência com a burocracia nos leva à necessidade de manter, ao lado, referendos de datação regular quanto a manter a composição do governo ou iniciar votações gerais. Quinto: no destaque de avaliação das necessárias tendências à constituição do Estado socialista, parece-nos justo apontar a rotatividade formal dos mandatos, ou seja, dirigentes com tempo máximo de permanência em determinado cargo e tempo mínimo obrigatório de ausência naquelas funções mais gerais cujo controle da base, mais ampla, pede mais mediação.

Assim como a democracia representativa, burguesa, a democracia direta e participativa, operária, apenas pode existir se as condições materiais da sociedade estão maduras. Automação (abundância e gestão científica), concentração urbana, integração mundial, internet etc. são os mecanismos permitidores de tal forma democrática superior, antes inviável.

São meios da democracia operária, socialista[10]:

1)       Revogabilidade permanente dos mandatos[11];

2)       Salário dos dirigentes políticos e cargos centrais igual à média nacional ou referência próxima;

3)      Fusão, por substituição, dos três poderes num único;

4)      Assembleias e congressos regulares, de temporalidade formal (quinzenais, diários, anuais, bianuais etc.);

5)      Meios de comunicação à disposição dos debates, polêmicas e organizações: internet, rádios, programas e canais de TV etc.;

6)       Mecanismos de votação direta em casos de assuntos cujo longo debate prévio é desnecessário – e mesmo em muito desses casos, em plebiscitos e referendos: votações on line etc.

7)      Fim do voto secreto por parte dos representantes;

8)      Fim da diplomacia secreta;

9)       Criação de um centro legislativo formado por cientistas bem-remunerados e de mentalidade autônoma cujas decisões serão aprovadas ou não pelo poder dos trabalhadores;

Essa proposta exige maiores explicações. Ela foi primeiro elaborada por Trotsky. Lenin a princípio a rejeitou, em seguida a assumiu por sua para combater o processo de burocratização do Estado soviético:

 

Também penso em propor ao Congresso que dentro de certas condições se dê caráter legislativo às discussões da Gosplan, coincidindo neste sentido com o camarada Trotsky, até certo ponto e em certas condições.

 

A Gosplan (Comissão do Plano Geral do Estado) foi o grupo de trabalho responsável pela planificação e centralização da economia, criada em 1921. Lenin continua:

 

Esta idéia foi sugerida pelo camarada Trotsky, me parece, já faz tempo. Eu me manifestei contra, porque estimava que, em tal caso, se produziria uma falta de concordância fundamental no sistema de nossas instituições legislativas. Porém um exame atento do problema me leva à conclusão de que, no fundo, há aqui uma sã idéia: a Gosplan tem agido às margens de nossas instituições legislativas, apesar de que, como conjunto de pessoas competentes, especialistas, de homens da ciência e da técnica, se encontra, no fundo, nas melhores condições para emitir juízos acertados. […] Tenho advertido que certos camaradas nossos, capazes de influir decisivamente na orientação dos assuntos públicos, exageram o aspecto administrativo, no qual, naturalmente, é necessário em seu tempo e lugar, mas que não se deve confundir com o aspecto científico, com a ampla compreensão da realidade, com a capacidade de se atrair pessoas, etc. […] Concebo este passo de tal maneira que as decisões da Gosplan não possam ser rechaçadas segundo o procedimento corrente nos organismo soviéticos, senão que para modificá-las condicione-se um procedimento especial; por exemplo, levá-las à reunião do CEC de toda a Rússia, preparar o assunto cuja decisão deva ser modificada segundo instruções especiais, relatando-se, segundo regras especiais, informes por escrito com objetivo de ponderar se dita decisão da Gosplan deve ser anulada; marcar enfim, prazos especiais para modificar as decisões da Gosplan, etc. […] Este trabalho duplo, de controle científico e de gestão puramente administrativa, deveria ser o ideal dos dirigentes da Gosplan em nossa República. (Lenin V. , 2006)

 

Um governo técnico é impossível numa sociedade dividida em classes, sendo apenas manobra afirmação de tal tipo quanto ao Estado burguês. O mesmo vale às primeiras fases do socialismo, onde ainda há classes – operários, camponeses, funcionários públicos, pequenos empresários, etc. – e diversos extratos. A tarefa socialista é, então, desenvolver mediações de transição ao futuro e ao verdadeiro governo técnico, do comunismo, onde classes sociais e seus partidos serão inexistentes.

O senado moderno surge no Estado absolutista, onde legislavam representantes feudais, reacionários. O papel mais conservador relativo à câmara dos deputados foi aproveitado no capitalismo por meio de uma instituição cuja elegibilidade é dificultada (idade mínima alta, poucas vagas, etc.), filtrando os tipos de membros. No socialismo ocorrerá o inverso: uma câmara científica terá efeito progressivo sobre a gestão do Estado. Pode-se argumentar que aqui há algo platônico ao abarcar a visão de que os filósofos deveriam governar o Estado. De fato. A boa filosofia deve mais do que apenas negar as produções passadas, deve refazer velhas ideias de modo atualizado, aproveitando-as e modificando-as tanto quanto possível. Ademais, cria-se mecanismo de controle social de suas decisões.

10)  Representatividade proporcional ao número e peso social. Exemplo: operários de uma fábrica com dez mil trabalhadores elegem mais representantes do que a assembleia da associação municipal dos pequenos comerciantes, pelo peso social e numérico, qualitativo e quantitativo.

11)   Os organismos de poder direto surgirão nos locais de trabalho, moradia, cidades, vilarejos, estados e nação.

 

Um dos teóricos-base desta obra, Mészaros parece não ter conhecido o método do programa de transição. As questões levantadas e não resolvidas por ele pertencem a esta lacuna teórica, viva quase que apenas no meio trotskysta, no marxismo ortodoxo. Muito além de palavras de ordem, o programa transicional, sintetizado pela primeira vez por Trotsky, apresenta uma lógica interna para a ruptura histórica nos campos da economia e Estado, desde a luta de classes. Leitura atenta e comparada da literatura sobre Programa de Transição[12] e o capítulo IV, Política Radical e Transição Para o Socialismo: Reflexões do Centenário de Marx, do livro A Crise Estrutural do Capital, de Mészàros, clareia as dificuldades do marxismo contemporâneo de se atualizar e saber com quais clássicos contar enquanto pontos de partida para suas tarefas.

Uma última observação. Na medida em que o comércio e a cooperação artesanal evoluíam, o Estado feudal adquiria duplo caráter, feudal e burguês[13]. Como a revolução socialista trata-se de destruição da história das classes dominantes, o Estado burguês não suporta ter duplo caráter, além do despotismo esclarecido.  No entanto, diferente e ao inverso do caráter duplo na URSS e China[14], o Estado Operário de transição será socialista e burguês, definhando esta duplicidade, medida a medida, na proporção em que a realidade o permitir.

Como transição para o próximo capítulo, vejamos a passagem possível do capitalismo para o socialismo. Sob o capital, temos a desordem, a desorganização e, ou seja, o caos; sob a bandeira vermelha, teremos a ordem, a previsão e, o que é o mesmo, a organização. Na desordem, há dentro de si a ordem enquanto lei, como tendência, como lei tendencial ao seu oposto, isto é, tornar-se ordem por meio de sua autointeração caótica e seu evolver – a desordem não suporta a si própria, por isso se autossupera; já a ordem tem, por seu lado, dentro de si como se aquele caos por meio de uma realidade ainda e sempre dinâmica[15][16].



[1] Como debatemos em outras notas, o ser orgânico realiza tendencialmente sua teleologia com o ser social, com outro ser, de modo cada vez mais aproximado nesta realização. O trabalho, principalmente o "manual", é comum entre animais, não sendo uma particularidade humana (alguns casos sabe-se que têm pensamento complexo, como primatas, golfinhos e corvos – mas não a estrutura corporal especial do homo sapiens, como a mão sendo a primeira ferramenta do cérebro, como a capacidade de falar, como o andar bípede, etc.). O trabalho é categoria fundante do ser social como desenvolvimento e realização em outro do ser biológico. O trabalho manual da humanidade é o que há de ainda natural, historicamente modificado, no social. O socialismo é uma ruptura com a natureza, como diz Zizek. Por isso, a nova sociedade superará nossa pré-história com o fim aproximado, não absoluto, do trabalho (manual). É o afastamento das barreiras naturais; afastamento este nunca total, mas crescente.

Como dissemos, há uma tendência – onde o meio tem o fim em si mesmo, onde o fim vai-se realizando – da humanidade para o comunismo. As classes dominantes de todas as épocas são a expressão deformada e alienada da tendência à abundância comunista, ao tempo livre do futuro, à dedicação ao trabalho intelectual sobre o manual para o conjunto da humanidade, etc.

[2]             Ao longo dos três tomos de O Capital, Marx aproveitou as oportunidades dadas pela teorização da economia capitalista para supor aspectos gerais da próxima sociedade. Em outros textos também assim procede (Crítica ao programa de Gotha, etc.). Há no marxismo boa dose de idealismo calibrado e dimensionado pelo materialismo. Isso é típico do latente: o processo de fundação da atual sociabilidade precisou de pensadores capazes de fantasiar como deveria ser o futuro; a necessidade de derrubar o poder absoluto do monarca feudal fez a criatividade solucionar idealmente o problema do poder pela divisão do Estado em três poderes complementares e interelacionados – o executivo, o legislativo e o judiciário. Testes, adaptações, correções ou substituições ocorrem na prática, na aplicação. Se os marxistas desejam voltar ao subversivo, à imaginação, a enfrentar tabus de modo construtivo, o caminho está antecipado pela última fase do sistema ao nos permitir melhor visualizarmos as possibilidades.

[3] Tomo tal reflexão de uma palestra de José Paulo Netto.

[4]             Ainda haverá classes no começo da transição ao socialismo, logo salários desiguais (médicos ganharão melhor, etc.), o que pede mediação.

[5]             Complementamos com citação pouco lembrada do Capital II: “Imaginemos que a sociedade, em vez de capitalista, fosse comunista: antes de mais nada, desaparece o capital-dinheiro e por conseguinte, os véus com que disfarça as operações. E tudo fica reduzido ao seguinte: a sociedade tem de calcular previamente a quantidade de trabalho, meios de produção e meios de subsistência que, sem prejuízo, pode aplicar em empreendimentos que, como construção de ferrovias etc., por longo tempo, um ano ou mais, não fornecem meios de produção, meios de subsistência nem qualquer efeito útil, mas retiram da produção global do ano trabalho, meios de produção e de subsistência. Mas, na sociedade capitalista, onde o senso social só se impõe depois do fato consumado, podem ocorrer e ocorrem necessária e constantemente grandes perturbações.” (O Capital II, Civilização Brasileira, p. 357, 358.)

[6]             Citemos forte exemplo. No Chile, o governo de frente popular de Allende, ou seja, contrarrevolucionário (impedir a revolução por meio de um falso governo operário no Estado burguês), teve de ceder às ocupações de fábrica, pois o movimento foi fortíssimo. Depois, percebendo a inevitabilidade da revolução agrária, antecipou fazendo a reforma no campo, atrasando a revolução social. Após a moral alta – a paciência das massas se esgotando e período de cansaço (momento defensivo na situação revolucionária) –, com a confusão e esperança causada nas massas e na esquerda, abriu-se a possibilidade clara de um golpe de Estado. Nas ruas, os trabalhadores pediram armas para impedir a contrarrevolução: mas o presidente em pessoa as negou, pedindo aplausos ao “antigolpista” e general Pinochet. Um governo burguês, seja qual for o tipo, é capaz de tudo, menos permitir as massas organizadas em armas, já que isto é Estado. A tentativa “bondosa” de Obama, nos EUA, de restringir o histórico acesso dos trabalhadores às armas – desde sua revolução burguesa – é exemplo da decadência após 2008, do medo de uma revolução social interna.

[7] “Somente o mau governante teme seu povo em armas” (Maquiavel, 2013).

[8] Na luta de classes, as vitórias são muito mais educativas que as derrotas.

[9] De modo geral, tratando dos diferentes elementos da vida humana: no capitalismo, a concorrência domina a cooperação; no socialismo, a cooperação domina a concorrência.

[10]           Os únicos governos e regimes de Estado apoiados pelos comunistas – mesmo quando criticamente – são os baseados no princípio da democracia socialista.

[11]           A instabilidade dos cargos gera a estabilidade, pois a) permite a seleção dos melhores, b) gera pressão contínua para o bom trabalho, c) premia os melhores e pune o mau trabalho.

[12]           Indicamos para primeiro contato: O Programa de Transição, de Trotsky; Introduccion al Programa de Transicion (Hansen & Novack, 1978); O Partido e a Revolução, de Nahuel Moreno; este capítulo e o conjunto da obra.

[13] Como dissemos em outro momento: a polêmica, a oposição, sobre se o Estado feudal em seu fim era apenas feudalista ou tinha duplo caráter, também capitalista, é resolvido pela observação de que no caráter duplo um polo é o determinante, neste caso, o polo do feudalismo.

[14]           Estas sociedades elevavam-se por meio da elevação do trabalho abstrato – na produção, onde surge o mais-trabalho e o mais-valor –, não por um processo de sua destruição contínua.

[15] Lembremos que a lei da entropia não é, como afirmam certos manuais introdutórios, medida de desordem. Ademais, aqui tratamos de uma instância diferente do real.

[16] Ambos são duplicados dentro de si e, no processo que os unifica, são diferentes, opostos, e ao mesmo tempo o mesmo (embora esta forma de exposição seja imprópria). O caos absoluto como liberdade absoluta é a negação da liberdade real – é liberdade negativa. Por isso, Marx diz, de um lado, que o socialismo é uma economia planejada central e democraticamente, e, de outro, que é uma livre associação, ou seja, uma ordem com evolver, verdade e unidade de tais categorias.

Há, ainda, três observações: 1) diferente do mero acaso, a categoria caos diz de si que é um sistema, porém não sistemático; 2) se, nossa hipótese, a unidade de ordem e caos cai-se na probabilidade (diferente da possibilidade); 3) na coisa, a ordem coisal é preenchida pelo caótico, e esta mesma coisa tem um lado ordenado e um lado mais suscetível ao caos (mas são um, misturados sem barreira entre elas, na coisa); 4) tal relação categorial passa-se para o concreto-abstrato a seguir.

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