CRISE DA URBANIZAÇÃO
“Um
desenvolvimento das forças produtivas que diminuísse o número absoluto de
trabalhadores, isto é, capacitasse realmente a nação inteira a efetuar toda a
produção em menor espaço de tempo, acarretaria revolução, pois tornaria
marginal a maior parte da população.”
A
transição do capítulo anterior para este (que é também transição, da esfera da
infraestrutura para a estrutura) é o que se segue. Embora a centralidade da
produção, a circulação maior, a maior quantidade de trocas, em especial se
simultâneas, é importante base para as mudanças materiais da forma-dinheiro. A
urbanidade crescente, portanto, ao ser o cenário central de tais eventos, deve
ser melhor tratada.
A
tendência à urbanização surge de modo embrionário desde a fixação do homem ao
solo, cultivo e criação. Nas sociedades escravista e feudal, baseados na
agricultura, a necessidade de organizar o Estado, com suas forças
administrativas e repressivas, fazia surgir centros urbanos cada vez mais
inflados. A própria concentração urbana, ao deslocar massas humanas para fora
do trabalho sobre a terra, fez surgir também o comércio e, com este, o comércio
de dinheiro. Ao lado do setor produtivo por excelência, uma gama de ofícios estatais
e não – centros de ensino, etc. –, serviço, e artesanais aumentavam em número.
No entanto, apenas o capitalismo faz surgir um modo de produzir cujo centro de
gravidade está não na relação imediata com a natureza, mas na fabricação, na
fábrica, que pode e instala-se nas cidades. É necessário uma população
concentrada e disponível para trabalhar com salários baixos, concorrendo uns
contra os outros tal qualquer mercadoria; e é preciso, com o grau de
produtividade cada vez mais elevado, concentração e aumento do número de
consumidores. A urbanidade é típica do capitalismo; a tendência à urbanização
crescente, cujo impulso primeiro é econômico, é uma lei desta sociedade. A
expulsão do camponês das terras, pela concentração e centralização de capitais,
ao lado da própria atração causada pelo espaço urbano, servem de estímulos
constantes[1].
Podemos
trabalhar três fatores centrais de interinfluência. Em primeiro e ponto de
partida, o desenvolvimento da produção, seu aumento de escala, exige aumento e
desenvolvimento de produção na indústria de insumos, que no campo necessita de
pouca mão de obra para gigantescas propriedades. Em segundo, a própria
urbanização exige aumento da capacidade produtiva, do desenvolvimento técnico,
para suprir novas demandas, novos consumidores. Em terceiro, citado antes, o
processo de queda dos preços das mercadorias e certas vantagens do mundo urbano
exercem atração e possibilidade de fuga dos desesperos pessoais e familiares
por um salário qualquer, o que expressa a desigualdade, a ser resolvida, entre
cidade e campo.
Para
demonstrar o caráter histórico da questão populacional, enumeraremos como a
crise sistêmica desenvolveu-se nos diferentes modos de produção classistas.
Demonstremos o aspecto de alocação e crescimento populacionais:
2. Sistema escravista. A concentração de escravos em campos
de trabalho tornou-se enorme, facilitando revoltas. Por isso, era preciso
contratar mais capatazes e administradores para poder gerir os campos, que
estavam maiores; contraditoriamente, retirava do senhor de escravos os
rendimentos da exploração, já que aumentava as despesas. O aumento de revoltas,
do território e da necessidade de guerra para capturar mais humanos, fazia
necessário mais usar e ampliar o Estado e, para isso, retirar mais dos frutos
do próprio trabalho escravista. Surge a greve de soldado. A crise romana tem
como uma das causas o aumento e concentração populacional enorme de
subalternos. No fim do império, já na antessala do feudalismo, limitaram-se as
conquistas militares, logo o número de escravos passou a cair, o que em si
colocava uma crise, uma contradição, em questão.
3. Sistema feudal. Com técnica e modo de trabalho mais
avançados que o escravista, a reprodução humana permitiu o inchaço populacional
nos feudos. Tornou-se um problema ao suserano, querendo evitar motins e
desejando acumular para si os rendimentos da produção campesina. A classe
dominante da época contou com a ajuda sagrada da Igreja Católica: esta
excomungava servos para justificar, sob a acusação de infidelidade a Deus, a
expulsão de homens daquelas terras. Os últimos tornavam-se comerciantes e
judeus, principalmente. Assim, com excedente de produção e população no campo
e, por consequência, o renascimento do comércio, surgem os embriões do capitalismo,
dos bancos, o renascimento das cidades, etc. Como reação, formam-se Estados
absolutistas feudais e, por efeito, nova larga camada de funcionários e
funções, além de impostos. À decadência feudal corresponde à inflação do Estado
e a corrosão de seu caráter original de classe por meio das dívidas públicas e
dos ganhos, em impostos e poder econômico, com o avanço das relações mercantis.
Junto a isso, o aumento populacional campesino – e também o na urbanidade –
gerou base numérica para revoltas sociais e revoluções burguesas.
4. Sistema capitalista. Centros urbanos concentradíssimos,
megalópoles. Em todos os países com algum peso na economia mundial, a
urbanidade e superurbanidade é a regra. Concentração urbana de operários,
desempregados, assalariados de classe média precária e a pequena burguesia
empobrecida – portanto: capacidade explosiva e de unidade maiores. A terceira
revolução industrial, e mesmo o desenvolvimento da técnica produtiva anterior a
tal base, torna crônico o desemprego. Campo dominado por monopólios e
oligopólios, com altíssima tecnologia e proletarizando o camponês, além de
expulsá-lo para o mundo urbano. A densidade relativa eleva-se por meio da
internet – encurtamento das distâncias relativas, não físicas. O Estado é
imprensado entre ser fonte de lucro para a classe dominante (dívidas públicas,
etc.) e garantir, ao mesmo tempo, um aparato, uma superestrutura, para gerir a
sociedade, incluso e em enorme medida por sua dinâmica populacional e urbana[2].
Engels,
como se, ao final, falasse de nossa época e percebendo as tendências gerais:
[A
revolução industrial] desenvolveu por toda a parte o proletariado na mesma
medida em que desenvolveu a burguesia. Na proporção em que os burgueses se
tornavam mais ricos, tornavam-se os proletários mais numerosos. Uma vez que os
proletários somente por meio do capital podem ter emprego e o capital só se
multiplica quando emprega trabalho, a multiplicação do proletariado avança
precisamente ao mesmo passo que a multiplicação do capital. Ao mesmo tempo, concentra tanto os
burgueses como os proletários em grandes cidades, nas quais se torna mais
vantajoso explorar a indústria, e com esta concentração de grandes massas num
mesmo lugar dá ao proletariado a consciência da sua força. Além disso,
quanto mais [a revolução industrial] se desenvolve, quanto mais se inventam novas máquinas que suplantam o trabalho manual, tanto
mais, como já dissemos, a grande
indústria reduz os salários ao seu mínimo e torna, por esse facto, a situação
do proletariado cada vez mais insuportável. Deste modo, ela prepara, por um
lado, com o descontentamento crescente e, por outro lado, com o poder crescente
do proletariado, uma revolução da sociedade pelo proletariado. (Engels, Princípios Básicos do Comunismo, 2006,
grifos nossos)
Como
parte das crises sistêmicas, a destinação improdutiva do mais-trabalho e
mais-produto (sob o capital, mais-valor) e sua extração para outros setores
ganha expressão particular no capitalismo na medida em que
Há os bens industriais, para os quais o
crescimento da produtividade tem sido mais rápido do que a média da economia,
de modo que seus preços têm ficado abaixo da média. […] Por fim, há os
serviços, para os quais o crescimento da produtividade tem sido, de modo geral,
fraco (até nulo em certos casos, o que explica por que esse setor tende a
absorver uma proporção cada vez maior da mão de obra) e para os quais os preços
aumentaram mais do que a média.
Ou seja, o
sistema de preços, a sua mediação social, faz com que os serviços suguem parte maior
do valor global sem produzir, em troca, novo valor. O preço de um tendendo a
cair e do outro tendendo a ficar acima da média em muitos casos faz com que
esta sucção seja crônica.
Alguns
destaques da urbanização ainda precisam ser feitos.
1)
A
concentração humana é mais decisiva para o destino da humanidade do que seu tamanho
absoluto, que também tem importância real
em si. Se os oprimidos são três vezes maiores em quantidade, mas muito mais
dispersos, ou seja, pouco urbanizados e com nível de desenvolvimento das
comunicações e transportes baixíssimo, então tem-se uma perda de força social,
efetiva e potencial. Ao contrário, se a população absoluta diminui, por baixa
natalidade, etc., Mas reúne-se, temos, por isso, a base material do explosivo
histórico potencializado, ao cubo.
2)
O setor de
transportes, um setor bastante específico do capital industrial, que cresceu de
importância com a urbanização e com o comércio no mundo, pode impor uma greve
geral ainda que muitas categorias não paralisem. A velocidade da comunicação e
do transporte diminui também a necessidade de estoques, logo uma paralização da
circulação – que também pode ser feita por setores não operários como com
bloqueio de vias, estradas, etc. por movimentos populares – tem grande impacto
na economia e na política.
3)
A própria
urbanização elevada, elevando a demanda, per se gera necessidade de ampliação,
maior complexidade e generalização de serviços. Utilizemos o exemplo da saúde:
antes, o médico formado atendia pacientes em suas casas e desenvolvia relações
sociais com os clientes; hoje – diante da proporção urbanitária –, há relação
formal, objetiva e impessoal ligado à dinâmica adquirida por este trabalho,
pelos centros médicos e hospitalares – fenômeno relativamente novo na história
da medicina.
Sobre este
destino improdutivo de valor, Kurz complementa:
O capitalismo (…) também estabeleceu uma estrutura
de condições sociais institucionalizadas sem as quais seria inconcebível uma
grande produção cooperada voltada ao mercado mundial (…) compreende (…) uma
infraestrutura social, como, por exemplo, um sistema de transportes e de
comunicação amplo e ramificado, fornecimento de energia, regulação (…) e, não
menos importante, um sistema de ciência e educação amplo e integrado. (…) Todas essas condições de infraestrutura
social custam trabalho e absorvem uma parte historicamente crescente dos
recursos sociais da força de trabalho.
(…) Em relação ao processo de criação de valor, ele permanecem, por
conseguinte, improdutivos.
O
impulso constante do valor-capital de transformar tudo em mercadoria transforma
em relações mercantis produtos que não guardam em si valor, isto é, cria base de
sua crise, pois sugam parte do valor criado na produção. É o exemplo do preço
do solo (capital fictício), que infla seu preço com a urbanização[3].
A
enorme urbanização eleva as necessidades e, por conseguinte, as demandas
sociais. O Estado teve de ampliar-se por endividamento, atraindo empréstimos
dos capitalistas no lugar de lhes tomar parte maior do mais-valor via impostos,
dadas as proporções aumentadas dos elementos e custos para manter num patamar
aceitável as condições sócio-ambientais para o processo de reprodução do
capital (PRADO, 2018). As necessidades coletivas crescem; temos, então, todo
tipo de questões a se resolver e acumuladas: transporte e mobilidade,
salubridade, qualidade ambiental, violência, aluguéis e habitação, necessidade
de espaços para estudo e lazer, acesso à água tratada, energia, etc. As coisas
por se fazer juntam-se a todas as pautas de classe, como a salarial e tempo de
trabalho; tendem ao acúmulo de tensões e stress socais. No Rio +20 (2012), patrocinado pela ONU, foi elaborada uma carta cujos
alguns trechos são úteis:
Cerca
de metade da humanidade vive hoje em cidades. Populações urbanas cresceram de
cerca de 750 milhões em 1950 para 3,6 bilhões em 2011. Até 2030, quase 60% da
população mundial viverá em áreas urbanas.
O
crescimento das cidades significa que elas serão responsáveis por prestar
serviços a um número sem precedentes de pessoas. Isso inclui educação e
habitação acessíveis, água potável e comida, ar limpo, um ambiente livre do
crime e transporte eficiente.
Nas
próximas décadas, 95% do crescimento da população urbana mundial ocorrerá em
países em desenvolvimento. Espera-se que a população urbana da África cresça de
414 milhões para mais de 1,2 bilhão até 2050, enquanto a Ásia vai crescer de
1,9 bilhão para 3,3 bilhões. Essas regiões juntas vão contabilizar 86% do
crescimento total da população urbana mundial.
[…]
828 milhões de pessoas vivem em favelas hoje e o número continua a crescer.
Os
maiores aumentos populacionais urbanos de 2010 a 2050 são esperados na Índia,
China, Nigéria, Estados Unidos e Indonésia. Índia terá um adicional de 497
milhões à sua população urbana; China – 341 milhões; Nigéria – 200 milhões;
Estados Unidos – 103 milhões; e Indonésia – 92 milhões.
Este
gráfico da ONU expressa a tendência geral de altíssima urbanidade e, por outro,
estagnação da população rural:
GRÁFICO 16
Fonte:
Apesar
de a urbanização alta ser um fato evidente, dispomos alguns dados de 2020 para
fins de exemplificação, de sentir o peso social: Bélgica é 98,1% urbana; Japão,
91,8%; Brasil, 87,1%; EUA, 82,7%; Reino Unido, 83,9% França 81%, Alemanha 77,5%,
China, 61,4%. São números extraídos da
CIA World Factbook. Destacamos que em alguns países o Estado atua para manter o
pequeno agricultor artificialmente por meio de subsídios contra a concorrência
internacional.
Observado
o fator urbano, ainda que instintivamente, as correntes operárias
revolucionárias tendem a atualizar a clássica palavra de ordem “Poder operário
e camponês!” para “Poder operário e popular!” ou “Poder operário, popular e
camponês!”
A AL
[América Latina] é hoje uma das regiões mais urbanizadas do mundo, com cerca de
80% de sua população vivendo em cidades. O número de cidades com mais de um
milhão de habitantes passou de oito em 1950 para 56 em 2010.
(…)
Existe um deslocamento no potencial revolucionário dos setores sociais que
podem ser hegemonizados pelo proletariado industrial. Antes o bloco social que
podia ser hegemonizado pelo proletariado industrial incluía prioritariamente o
campesinato. Hoje o campesinato segue tendo importância, mas o maior potencial
revolucionário se deslocou para os setores populares urbanos.
São
sinais da crise sistêmica atual a superurbanidade e a concentração proletária,
assalariada e precária. Todo sistema econômico-social gera os elementos da
destruição própria. A concentração humana citadina – dos burgos medievos até
nossos dias – amadureceu para a revolução comunista, facilitando, inclusive!, a
democracia socialista.
Este
subcapítulo será devidamente atualizado e incrementado em debate específico no
capítulo posterior sobre a China. Apenas antecipamos, para tratar adiante sobre
revolução social e sujeito revolucionário, que a produção tende a ir, em nossa
época, para cidades menores e países não centrais, pois assim é reduzida a luta
de classes (menos necessidades pressionando os salários, menor concentração
humana, menor preço de custo ao solo, mais facilidade de deslocamento, etc.).
ASPECTOS DA
POPULAÇÃO
Faremos quatro destaques sobre a questão da
população.
Há o esgotamento da superpopulação latente, aquela
que vem do campo, em inúmeros países por alto nível de urbanização e o
consolidar da produção mecanizada em grandes terras. A lei da urbanidade
crescente consolida-se e o capital deixa de contar com a fonte interiorana da
força de trabalho.
Por outro lado, há na cidade uma queda de
natalidade. O aumento da cultura geral, os filhos enquanto longa despesa, os
métodos anticoncepcionais modernos, a precarização e elementos como a ainda
inexplicável queda da produção de esperma no ocidente são dos fatores que
colaboram para tal mudança historicamente recente de perfil.
Os dois fatores dispostos nos parágrafos anteriores
servem de estímulo à automação nas fábricas e em outros setores. Ou seja:
ocorre pressão para formar uma superpopulação relativa artificial por meio do
avanço técnico a fim de reduzir os custos com força de trabalho. A alta
urbanização da Europa foi fator de luta de classes para gerar superpopulação
artificial substituindo trabalhadores por máquinas. Em países de pouco
território, tendência a menor número absoluto de camponeses, como Japão e
Alemanha ocidental, a produção de uma população urbana supérflua artificial se
fez necessária por meio do avanço técnico.
O quarto aspecto destacável da questão da população
é seu efeito sobre pautas sociais. Como meras mudanças quantitativas geram
mudanças qualitativas, a concentração urbana e o mero aumento numérico, permitiu
um novo estágio nas pautas contra as opressões: facilitou organização, encontro
e revoltas. A rebelião de Stonewall e os Panteras Negras nos EUA são exemplos
paradigmáticos. Por último, reduziu-se o controle social direto dos hábitos. A
grande concentração urbana foi acompanhada por um relativo isolamento, o que
permitiu mais independência nos perfis pessoais.
Ainda há que se debater pelo menos o aspecto geral
da população no socialismo. Como sabemos, Malthus errou ao supor que a
população cresceria muito mais do que a capacidade da produção de alimentos; a
fome hoje se deve à desigualdade social, ao desperdício e ao não uso de métodos
melhores, não devido à escassez ou subprodução. De qualquer modo, para garantir
abundância geral e a devida proteção do
meio ambiente, algo central aqui, o poder socialista terá de estimular, em
longa campanha, a redução da natalidade e da população mundial (que já é uma
tendência futura sob o capitalismo) por meio da educação dos jovens, acesso a
métodos contraceptivos, legalização do aborto, melhoria da vida em geral, etc.
O simples fato de que dois trabalhadores ganharão, nas duas primeiras fases do
sistema socialista, de acordo com seu trabalho, não de acordo com sua
necessidade, será desestímulo a ter filhos (na prática, quem terá, por exemplo,
3 filhos ganhará menos em relação àquele que não terá algum). Também a miséria,
por baixa erudição e por alto estresse, tem sido a causa de grande prole; isso
acabará numa sociedade igualitária.[4]
A URBANIDADE NO SOCIALISMO
Marx evitou
explicar como será a sociedade socialista e limitava-se a comentários mais gerais.
Tratar do tema tornou-se um tabu tanto mais forte quanto mais se tentava supor
detalhes, que são de fato imprevisíveis. No entanto, o alto desenvolvimento do
capitalismo permite-nos prover antecipações ideais, pois a sociedade
revolucionada necessitará de propostas práticas.
Espaço é
poder (Lefebvre). A forma de organizar a cidade é tudo menos arbitrária ou
neutra. Se Bonaparte fez uma reforma urbana para dificultar as revoltas dos de
baixo
De imediato,
o poder socialista acabará com a especulação imobiliária e o lucro por mero
direito de propriedade da terra. A reforma urbana, como primeiro passo,
garantirá abrigo a todos com o que já está disposto na sociedade. Resolver-se-á
a contradição capitalista de haver casa sem gente e, ao mesmo tempo, gente sem
casa.
Resolvidos
os problemas mais imediatos, projetos pilotos deverão entrar em prática em
bairros e pequenas cidades. Debatamos as características organizativas. Cada
bairro terá um centro onde estarão localizados os serviços estatais – escola,
posto de saúde, biblioteca, organismos, etc. –, o espaço de lazer (cinema,
etc.) e a praça, restaurantes públicos, o auditório das assembleias dos
conselhos de poder, etc. Ao redor deste, formando um círculo, as casas serão
substituídas por prédios onde habitarão os cidadãos. Sob o capitalismo, a
moradia tende, em principal pelo aumento de seu custo com a urbanização, com a
demanda, à redução relativa de tamanho e de materialidade[5]
que observamos em outras mercadorias e em outro capítulo. Sob o socialismo, ao
contrário, os apartamentos serão amplos e espaçosos, semelhantes ao que hoje é
luxo. A verticalização da cidade, que já é tendência sob o capital, será
consolidada sob nova forma.
Quando se
iniciou a água por encanamento, deixou de ser necessário o trabalho de carregar
o líquido para as casas; na Espanha, por exemplo, há locais onde o lixo é posto
numa tubulação subterrânea que leva os dejetos até a área de tratamento – é o
tipo de projeto que tem bons fins socialistas já que suplanta parte do trabalho
e melhora a salubridade.
A mobilidade
urbana também será central. É impossível manter o paradigma do carro como
objeto de consumo. De imediato, o transporte público deverá ser melhorado,
incluso com a emergente direção automática, antes de pensarmos projetos
futuristas. Aqui, uma revolução energética – como as usinas de fusão nuclear,
que estão em fase inicial[6] –
dará também sua contribuição, reduzindo a poluição do ar.
Como sabem de
cor os marxistas, o possível futuro fará a fusão da cidade e do campo, com o
melhor de cada polo aproveitado. Ao verticalizar bairros da cidade em torno de
um centro comunitário, haverá maior espaço livre para plantações, parques e
reflorestamento.
[1] Elemento em parte exógeno, os problemas
ambientais também atuam nesse sentido (vide secas periódicas no nordeste
brasileiro por influência do el niño); no mais, o capital tem enorme talento
para gerar problemas ao meio ambiente.
[2] “A
intervenção estatal não é nova. Em 100 anos, o tamanho do Estado moderno se
expandiu de menos de 20% da renda nacional na década de 1920 para cerca de
metade hoje. Os gastos dos governos da União Europeia atingiram em média 51,5%
do PIB em 2021. Tem sido assim há muitas décadas, embora com flutuações e com
alguns países, como Bélgica, França e Alemanha, mais altos e Reino Unido e
Irlanda mais baixos.”
[3]
Além do preço de aluguel de terreno, o preço do solo tende a crescer, como
percebeu Marx, porque a taxa de juros tende a ficar baixa com a queda histórica
da taxa de lucro aos níveis atuais.
[4]
Marx teria nomeado fantasia completa afirmar que, algumas décadas depois de sua
morte, o homem iria à Lua. Tal exemplo visa tornar quase palpável a
possibilidade de, no futuro, com os avanços científicos, sermos potencialmente
imortais ou, ao menos, com longevidade muita acima do normal hoje. Tratar-se-á
de um afastamento relativo das barreiras naturais. Do ponto de vista de nossa
época, em nossa limitação, isso será, junto a outras mudanças, um processo de
deificação do homem – não de uma classe ou casta como pensa Yuval Harari – após
o fim da alienação social. Assim, a alienação religiosa faz de Deus uma visão
impressionista daquilo que o homem tende a ser, um “além-do-homem” (Nietzsche)
que se inicia com o homem de fato livre e completo, desalienado, pois ainda não
somos sequer homens propriamente.
[5]
“Em Hong Kong, uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, 49% da
população vive de moradia social. E, de acordo com a Sociedade para Organização
Comunitária, um grupo chinês de direitos humanos, mais de 100 mil trabalhadores
vivem em imóveis de 3,72 metros quadrados, como mostra o site Architizer. Em
apenas um cômodo funcionam cozinha, sala e quarto e, muitas vezes, mora mais de
uma pessoa. O espaço é tão minúsculo que só mesmo fotografando do alto para
conseguir ter um ângulo.”
[6]
Para ao menos tocar o tema, destacamos que cada era do capital tende a uma
própria relação na produção de energia. Vejamos. Era mercantil: força humana,
animais, moinhos de água e vento; era industrial: máquina a vapor; era
financeira: eletricidade, hidrelétricas, petróleo, etc.; era fictícia: o mesmo
da anterior, como um salto para si, com a consolidação, após os anos 1950, da
fissão nuclear, e o uso recente de energias solar, eólica e maremotriz cada vez
mais aperfeiçoadas (nesta era, prepara-se o caminho técnico-científico da
próxima revolução energética, que inclui a fusão nuclear). Vale notar, de
acordo com nossa ontologia lógica, que será tema tratada mais à frente, que a
capacidade de lidar com a energia está na escala de Kardashev. Provavelmente
inspirando-se no marxismo, por o proponente ser soviético, na concepção de que
ainda estamos na pré-história, ele elabora níveis de civilização. A tipo 1 usa
bem a energia disponível no planeta; a tipo 2 consegue usar sua estrela, no
caso, o Sol; a tipo 3 usa bem a energia da galáxia. Nós estamos na civilização
tipo 0 (zero) ainda, ou melhor, 0,75. A história mal começou.
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