domingo, 28 de janeiro de 2024

a crise sistêmica - cap. 36 - AS PAUTAS DEMOCRÁTICAS

AS PAUTAS DEMOCRÁTICAS

 

“Não adianta derrubar o príncipe e manter o princípio.”
Torquato Neto

 

As pautas democráticas são importantíssimas, ainda que em si burguesas. Se combinadas com as propostas em si socialistas, principalmente as transicionais, podem somar forças para fins revolucionários. Há, portanto, dois erros a serem evitados: primeiro, focar em demasia em exigências democráticas e desconsiderar as palavras de ordem de transição; segundo, esquecer a importância das propostas democráticas. Observemos que a revolução de outubro na Rússia teve as exigências de paz e terra, em si apenas democráticas, como parte das palavras de ordem centrais.

Diante da queda da taxa de lucro, o capital tem de tentar novas formas de lucratividade. Daí que as pautas democráticas dos direitos do indivíduo (na aparência) ganham mais forças entre setores burgueses. A legalização da maconha, por exemplo, gera novos lucros e receitas ao Estado. Ao mesmo tempo e pela mesma razão de fundo, a queda da lucratividade, tende-se a corroer e mesmo a suprimir os direitos democráticos mais coletivos. Após a crise de 2008, quando ficou claro aos burocratas da burguesia que a luta de classes entrava em pauta, o governo Obama fez campanha pela anulação de uma enorme conquista democrática dos trabalhadores estadunidenses, o direito ao armamento pessoal; o medo das lutas sociais e da guerra civil revolucionária é o motivo oculto da tentativa de proibição ou limitação do acesso às armas nos EUA; a resistência instintiva dos trabalhadores ao projeto somou-se à ação da indústria de armamentos em defesa de seus lucros.

O próprio Estado pode liberar certos direitos individuais para desviar revoltas ou reduzir a tensão das lutas sociais, além de produzir nova fonte de lucro como o direito ao aborto na área de saúde. O desenvolvimento de uma ampla camada de assalariados, operários e classes médias modernas, e sua concentração na urbanidade pressiona a que certos direitos individuais sejam cedidos. No Brasil, é comum que, ao entrar em pauta algo econômico, algum ataque aos direitos básicos, o judiciário promova alguma farsa de “apoio” a algum setor oprimido, mulher, LGBTs, etc. Tal tipo de manobra tenderá a fazer escola pelo mundo.

O critério das pautas democráticas é o lucro[1]. A tendência secular de queda da natalidade, redução de nova prole dos assalariados, pressiona para limitação progressiva do direito ao aborto, por exemplo. Quanto às pautas da democracia burguesa, levemos em conta o debate anterior de que vivemos o período de declínio da última curva de desenvolvimento do capitalismo, ou seja, tendência a crises longas e profundas entremeadas por crescimentos curtos e anêmicos. Isso significa que a base da forma capitalista de democracia, como os direitos sociais, tende a ruir, o que empurra para o fechamento do regime (incluso formas híbridas como o semibonapartismo). Já, ao contrário, pelas mesmas causas, os países com ditaduras serão tensionados para a revolução social e, na aparência, política, para a queda do regime. Neste caso, a tarefa dos socialistas é fazer avançar em curto tempo a revolução das tarefas democráticas para o socialismo, para a democracia socialista. O fato de que nem a democracia burguesa nem o regime ditatorial possam solucionar os problemas econômicos empurra para a possibilidade comunista. Os comunistas devem ser os mais dedicados aos direitos democráticos e, ao mesmo tempo, cientes de que apenas ligando-os ao programa de transição e à estratégia socialista as conquistas sociais poderão ser garantidas.

A pluralidade de regimes políticos no tempo durante o capitalismo é expressão de seu caráter transitório, de transição, logo instável. De qualquer modo, o declínio da última curva de desenvolvimento, período de duras crises, tenderá ou a tentativas de golpes, reacionários ou contrarrevolucionários, ou a solução socialista, a democracia operária e direta.

 

O PROBLEMA DAS PAUTAS DE MOCRÁTICAS

Vamos entrar em uma questão datada, conjuntural. Na Europa, os partidos comunistas – ou seja, trotskistas – reagiram à crise de 2008 com um programa democrático (Romper com a Euro e a União europeia, não pagamento da dívida, etc.). Mas: nos países desenvolvidos é ainda mais necessário as propostas do tipo transicionais como a ausente exigência redução da jornada de trabalho, com o mesmo salário, na proporção que produza pleno emprego. É assim, com propostas de fato socialistas, que o socialismo pode ser uma possibilidade real e as próprias exigências democráticas ganham força extra. Apesar do crescimento dos partidos marxistas na Europa, seus balanços são negativos por não levantarem propostas transicionais durante a crise. O desemprego na Espanha bateu o recorde absurdo de 27,16%, cifra ainda maior entre os jovens, que são a vanguarda nas lutas, mas a Corriente Roja, partido trotskysta daquele país, nunca fez uma campanha insistente e geral pela escala móvel de tempo de trabalho, pela redução da jornada de trabalho na proporção em que produza desemprego zero.

No Brasil ocorre o mesmo erro. No lugar de programa transicional como centro numa crise, foca-se nos pontos democráticos de modo unilateral. Assim, as exigências foram sempre “Fora o governo” de plantão (Fora Dilma ou eleições gerais antecipadas, Fora Temer, Fora Bolsonaro); precisa-se, neste ciclo vicioso, derrubar quantos governos seguidos para chegar ao poder operário? O contra o pagamento de dívida, em si correto, também retorna ao jogo político, mas, infelizmente, sem estar ligado a propostas transicionais. Na Argentina e no Chile os trotskistas abraçam a exigência de Assembleia Constituinte que tem por função real, uma vez que as consignas transicionais estão fora da agitação política, desviar a luta para a legalidade burguesa, desarmar os trabalhadores em luta (são, ademais, exemplos de países sem ditaduras ou sob controle direto de um império). É fato que as pautas democráticas têm mais peso nos países atrasados, porém a combinação do mais avançado com o mais atrasado exige combinação das exigências.

 

Os países coloniais e semicoloniais, por sua própria natureza, países atrasados. Mas esses países atrasados vivem em condições do domínio mundial do imperialismo. Por isso que seu desenvolvimento tem um caráter combinado: reúne em si as formas econômicas mais primitivas e a última palavra de técnica e da civilização capitalista. É isto que determina a política do proletariado dos países atrasados: ele é obrigado a combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial. Nessa luta, as palavras de ordem democráticas, as reivindicações transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas em épocas históricas distintas, mas decorrem umas das outras. Apenas havia iniciado a organização de sindicatos, o proletariado chinês foi obrigado a pensar nos conselhos. É neste sentido que o presente programa é plenamente aplicável aos países coloniais e semicoloniais; pelo menos àqueles onde o proletariado já é capaz de possuir uma política independente. (Trotsky, O Programa de Transição)

 

Uma das razões, além da baixa formação teórica de seus membros, é que os partidos vermelhos são formados por estudantes, membros da classe média, servidores públicos com estabilidade empregatícia, operários aristocráticos e dirigentes sindicais a muito afastados do chão da fábrica. Nas direções partidárias, o peso de tais setores tende a ser ainda maior já que possuem tempo livre extra para “prosperarem” como militantes. O grande problema do desemprego no Brasil, por exemplo, não pressiona a cabeça de professores bem pagos das universidades públicas. Como vemos, os setores médios tendem a focar nas pautas democráticas por sua própria forma de vida.

Outro motivo destacável é a pressão empirista ao deixar de perceber que a possibilidade de uma revolução socialista está se gestando em seus países e no mundo desde 2008. No fundo, embora não reconheçam sequer às vezes para si, pensam que a revolução social é algo mais ou menos distante e difuso, que pouco tem a ver com as preparações da atual conjuntura. Mas as mudanças, que demoram muito tempo, explodem rápido quando chega a hora.

A burguesia aprendeu com a revolução russa e demais revoluções parcialmente sociais. Em 1917, o Estado burguês russo, o governo provisório da Duma, demorou muito para fazer a constituinte e a reforma agrária, duas pautas democráticas, não em si socialistas. Isso levou a maioria do país ao bolchevismo. A revolução de 1952 na Bolívia evitou tal equivoco distribuindo terras aos camponeses, dificultando a saída socialista da nação. No Chile, Allende atrasou e evitou a revolução social também com reforma agrária, entre outras medidas. Hoje, a alta urbanização, a moderna grande propriedade rural e a própria crise sistêmica dificultam tais manobras, porém é preciso que os socialistas aprendam e acertem.

Enfim, observamos que a pauta da reforma agrária foi superada tanto nos países avançados quanto em parte significativa dos atrasados. A reforma agrária é uma pauta da revolução burguesa, imprópria para estes tempos de revolução socialista. Devemos exigir a estatização sob gestão dos trabalhadores das grandes empresas no campo como em qualquer fábrica, não a repartição fragmentária da terra. O Estado operário, ainda em nível nacional, fará alguma reforma agrária secundária, enquanto estimulará a produção cooperada, porém o grosso do agronegócio permanecerá grande propriedade, desta vez pública, para financiar as necessárias exportações e para ter escala produtiva. Uma parte das grandes terras deixará de produzir para o mercado externo e abastecerá o mercado interno, encerrando a época da fome.



[1] Os movimentos por questões democráticas (feminismo, etc.) têm cometido o erro de tentar ganhar direitos de modo vanguardista, sente ganhar, antes, o apoio ou a tolerância da maioria. Por exemplo: a legalização da maconha deve acontecer se houver ação prática dos interessados para ganhar a consciência dos assalariados quanto ao tema. Nada menos que isso. O vanguardismo casa-se aí coma ilusão de que o Estado é um ente racional, acima da realidade concreta.A crise sitêmica  

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