domingo, 28 de janeiro de 2024

A crise sistêmica - cap. 21 - A CATEGORIA MAIS-PODER

 

A CATEGORIA MAIS-PODER

 

O argentino Moreno defende que devemos escrever um o Capital da política. Para ele, assim como a obra de Marx é a lógica do objeto estudado, devemos fazer a lógica da política. Faz algum sentido, mas há exagero. Seu marxismo e sua corrente, da qual faço parte de modo crítico, foca nas relações de produção e na superestrutura, na sociologia, sabendo pouco da necessária base econômica. É o marxismo parcial e relacionalista, sociológico (aliás, Moreno focou seus estudos em sociologia). Se tal tarefa, que superaria o legado de Maquiavel, for possível, a categoria de “mais-poder” seria a chave conceitual real de tal empreitada, ponto de partida inevitável. Neste breve ensaio, exponho alguns de seus aspectos, longo de esgotá-los, mas com a profundidade suficiente e necessária.

 

FÁBRICA E DITADURA

Marx expõe em O capital I o despotismo fabril, além de nas minas etc., a ditadura do patrão e do acionista. No escravismo grego, a elogiada democracia dos homens livres acompanhava e tinha por base a ditadura nos campos de trabalho escravo e nos lares contra as mulheres. Ditadura e democracia podem conviver juntas, aquela sustentando esta. Mais: a necessidade de implementar um ditadura de Estado capitalista vem tantas vezes pela necessidade de manter em pé, contra a rebeldia operária, a ditadura nas empresas. A democracia das reuniões de acionistas na cúpula executiva da empresa está baseada na mão de ferro contra seus funcionários. Ou a democracia externa à porta da fábrica existe para manter intacta a ditadura do capital sobre o trabalho, dentro da empresa. Assim, unimos base econômica-social e superestrutura objetiva.

 

O MAIS-PODER

Temos a mais-valia, o mais-capital, o mais-trabalho, o mais-produto e o hipotético mais-de-gozar. Penso, eis a tese, que há o mais-poder. O poder geral da sociedade, algo desenvolvido, torna-se desigualmente distribuído. O poder maior da burguesia é um poder menor, menos-poder, da classe operária. Um jogo de soma zero: um perde na proporção em que o outro ganha. No entanto, de modo algum nos confundimos com os teóricos mercadológicos que buscam um conceito novo a cada instante, artificial e exótico, para ganhar mídia e espaço acadêmico. No mais, o poder é meio, não fim abstrato. Tal luta também é pessoal.

 

ACRÉSCIMO DE PODER

Nem tudo pode ser quantificado, por exemplo, o valor artístico, que deriva de seu trabalho útil, não cabe em números nem em seu preço. No entanto, torna-se possível perceber que o poder aumenta de modo geral. Ao desenvolver a técnica e a sociedade, o homem aumentou cada vez mais seu poder sobre a natureza (e, assim, sobre o próprio homem até aqui) – temos mais-poder em outro sentido, neste caso, de mais do poder sobre a natureza em relação ao poder em grau anterior (como sobre os homens em grau superior ao passado). Tal poder, até agora, ainda exclui sua má distribuição entre os homens, tratamo-lo como geral e abstrato.

O poder deriva também, por isso, de ferramentas e como elas estão distribuídas. O arranjo do capitalismo, como tudo está organizado, torna-se base do poder do capitalista, ou melhor, do capital. Hoje, para haver poder socialista, basta o rearranjo social – o que exige um Estado paralelo e radicalmente democrático.

Assim, o poder na história não permanece o que é, ou seja, estático ou permanente. Sua grandeza, se podemos dizer de tal modo, acresce ou reduz. Existir poder é condição de mais-poder; de modo relativo, este surge apenas quando aquele atinge certo valor acumulado.

 

MAIS-PODER E DEMOCRACIA

A democracia não é um acordo, ponto livremente aceito, mas algo imposto. É uma concessão forçada pelas circunstâncias. É, portanto, algo inerentemente instável e parte de uma luta permanente. Para haver qualquer tipo de democracia deve haver, também, todas as condições para ela. Dito isso, não havia democracia nos Estados “socialistas” do século XX porque não havia condições tanto para o socialismo quanto para sua democracia direta. A internet, por exemplo, exige e possibilita, enfim, a democracia socialista real.

A democracia grega foi forçada a surgir por causa da forte classe dos comerciantes, da urbanização, da quantidade enorme de homens livres urbanos etc. Fui fruto da matéria, não da ideia. Embora muitos quisessem uma ditadura, em especial na época de decadência do escravismo grego, a configuração da realidade obrigava a diluir um tanto o mais-poder, baseado na falta de poder do escravo, na sua coisificação não desejante aparente.

Quando o Brasil deixou a ditadura na década de 1980, o poder antes muito concentrado teve de ser diluído um tanto, fragmentado (num bom sentido). O povo passou a eleger seu presidente. Isso aconteceu para evitar uma guerra civil, teve-se de ceder ao poder real dos pés nas praças e ruas. A democracia é uma forma de os pobres não matarem os ricos – logo, uma falsa democracia que visa uma paz social artificial. Diante de uma realidade instável, uma nação pobre e com muita luta de classes parcial, o presidencialismo, concentrar o poder no chefe executivo, tornou-se uma necessidade. O parlamentarismo é para países urbanos mais estáveis, ou seja, mais ricos. Já nos países rurais é comum o bonapartismo, ou seja, ditaduras do executivo em geral militar que até permite a existência de 2 ou mais partidos.

A urbanidade é a casa da democracia: nela, as ideias circulam ao lado dos protestos. Torna-se mais difícil concentrar o poder e, logo, o mais-poder. Por isso, o fascismo ocorre em países mais urbanos, diferente do bonapartismo, pois tem de impor uma derrota fortíssima sobre o movimento operário e popular concentrado usando de métodos de guerra civil.

A ditadura concentra poder, logo um tanto mais de mais-poder em poucas mãos; a democracia dá algum poder maior, liberdade, aos trabalhadores. Mas não vale a pena iludir-se com tal conquista parcial, embora positiva. O poder nunca flutua no ar de modo estável e uniforme.

O mais-poder, enfim, nunca é apenas estatal, pois é um poder de classe, de uma classe social – os ricos de todas as épocas – contra outra.

Poder é garantir que tudo funciona de tal ou qual modo. Com a crise mundial de 2008, mais a precarização do trabalho (fim da classe média), o governo Obama nos EUA tentou tirar do povo o direito de ter armas sob a farsa de justificativas humanitárias. A razão de fundo é uma tentativa de antecipação da burguesia: destruir a possibilidade dos trabalhadores tomarem o poder, manter o poder estatal burguês, derrotar uma revolta futura de maneira antecipada. Assim, por causa de luta de classes, o governo tentou aumentar o mais-poder dos ricos e de seu Estado. As ditaduras “socialistas” também tiveram como base separar o povo das armas pesadas e formar um corpo especial de homens armados.

 

O MAIS-PODER E O MAIS-VALOR

O leitor marxista logo associa a questão do mais-poder com o mais-valor ou mais-valia. Claro: acumulação de valor na forma de dinheiro dá ao capitalista – e ao capital! – mais-poder em toda a sociedade. Somos jugados pelo que temos nos nossos bolsos.

Mas a coisa é mais sofisticada… O poder do valor também se faz sobre os burgueses, pois o que há de fato é a alienação. Há um poder do mundo das coisas sobre o mundo dos homens – o mais-poder, hoje, do capital. Porque a humanidade está dividida, porque lutamos uns contra os outros, surgem leis coisais que não foram decididas por ninguém, que surgem da desorganização da espécie humana. A legalidade apresenta-se, em nosso tempo, como dinheiro em busca de mais dinheiro um processo que não encontra limite, freio, bom-senso etc. – valor que se autovaloriza, valor como sujeito-substância. O valor torna-se a alma tarada das coisas.

 

MAIS-PODER E BUROCRACIA

O burocrata “vermelho” precisava impedir a democracia socialista, operária, para manter seu cargo, ou seja, seu emprego, ou seja, seu estilo de vida destacado. Trotsky dizia que, na falta de comida na guerra, alguém deveria organizar a fila dos alimentos; tal organizador comia primeiro e comia melhor. O burocrata, apesar disso, morria de medo dos operários, por isso fazia-lhes concessões diante de uma leve greve. É o preço a se pagar, o que desestabilizava aquela sociedade.

O irmão menor deles são os burocratas sindicais no capitalismo: fazem do sindicato o meio por onde engordam; até fazem assembleias para a greve, mas só enquanto sabem que será aprovado aquilo que já esperam ser aprovado. Eles precisam justificar à categoria seu cargo, que merecem estar na direção sindical. Quanto mais-poder tem o dirigente, menos-poder tem os representados.

No Brasil, a burguesia bruta e escravocrata pedia a Getúlio Vargas, o ditador, que destruísse o movimento sindical. Mas ele era um gênio: preferiu tornar os sindicatos um meio de corrupção dos líderes, sindicatos burgueses da classe operária. Assim, o número de dirigentes de um sindicato é limitado, apenar de haver uma base de representados enorme, o que concentra poder, mais-poder, na mão de poucos sindicalistas. Assim, o líder sindical pode tomar certas decisões sem consultar sua base.

 

MAIS-PODER E MORAL

Com sua inocência, inevitável em sua época, Rousseau afirma que nenhum homem deve ser tão pobre a ponto de ter que se vender, nenhum homem deve ser tão rico a ponto de poder comprar outros homens. O mais-poder é, inevitavelmente, imoral. Mas apenas na sociedade da abundância real, que começa seus primeiros passos na década de 1970, incluso abundância de tempo livre, a liberdade; o fim do mais-poder, do poder concentrado, torna-se possível, necessário e desejável. O reino desigual da inveja deve ruir, não me importarei se meu vizinho tem o que não tenho – ambos temos. O socialismo é poder acessar com facilidade os objetos necessários para o corpo e para o espírito, além de alguns caprichos sociais desejados.

 

MAIS-PODER E ARTE MILITAR

As ditaduras tendem a ter um exército mais burocrático, com os comandantes concentrando tudo o necessário. Os exércitos oficiais de países democráticos tendem a ter mais facilidade de dar iniciativa e autonomia aos grupos de base; isso tende a ser até uma necessidade da guerra, uma vantagem para quem dirige o aparelho. Esperar que o atarefado comandante do comandante tome uma decisão é impreciso (pois ele está longe), atrasa a ação etc. No entanto, a democracia não cabe em exércitos, mesmo nos revolucionários, como demostrou a revolução russa. É preciso seguir o dirigente que estudou e preparou-se na prática para bem dirigir: na hora do combate, não cabe debater decisões e votar. No entanto, outros organismos, como assembleias na cidade, devem eleger ou demitir tais comandantes.

 

MAIS-PODER E SOCIALISMO

O socialismo acaba com o mais-poder, pois o povo passa a decidir tudo o que é central em assembleias diretas, votações por internet etc. Mas o poder em si mesmo será maior, não menor, embora radicalmente democraticamente distribuído.

Trata-se de destruir o poder estatal e empresarial burguês por meio de um Estado paralelo, uma democracia superior, organismo de poder como assembleias, conselhos e comitês de fábrica.

Na revolução surgirá, por meio do poder na luta social, um poder real ao lado do poder oficial anterior e caduco. Chamamos tal regime de regime de duplo poder, o operário e o burguês. Ambos são irreconciliáveis, apenas um vencerá. Quem decide como e quando produzir? A vitória operária depende, em grande medida, de um racha nas forças armadas, quando ganhamos a parte mais pobre dela para nossas posições. Apenas o poder contra o poder. O poder é, então, abstrato, a realidade social em processo.

 

MAIS-PODER E FAMÍLIA

O mais-poder do homem baseou-se no fato de ele ter o poder econômico, sustentar a casa. Ou seja, ele tem meios de repressão e regulação. Quando a mulher começou a trabalhar fora do lar passou, também, a ruir tal poderio. No entanto, bem antes havia uma luta oculta na família. A mulher, sempre que podia, operava manobras para fazer valer sua vontade; às vezes, usando o sexo como ferramenta de barganha.

Com a crise da família monogâmica e isolados pais carentes, surgiram formas deformadas de disputa pelo poder. Temos, por exemplo, crianças mimadas, que manipulam os pais. Mas é de notar que a opressão sobre os filhos, já citada no Manifesto, nunca foi tema sério nos meios marxistas; afinal, eles são pais… Como os infantes ainda não são homens completos, deve haver autoridade e aconselhamento, mas a coisa toda nunca precisa ser despótica. Autoridade nem sempre é autoritarismo.

 

MAIS-PODER, HOBBES E MAQUIAVEL

No marxismo, refutamos uma teoria desenvolvendo ela mesmo até o limite, até extrapolá-la por dentro de si. A teoria de que o mundo era uma guerra civil animal e o estado vem para organizar tudo, preservar a vida, reduzindo a negativa liberdade (caos)., está errada – mas tem alguma verdade. Com a altíssima urbanização brasileira, veio a crise estrutural do Estado, logo este se demitiu de agir na periferia urbana. A guerra de gangues aí era permanente, morte sobre morte. Então o tráfico e a milícia impôs a ordem, proibiu assaltos na região, organizou a comunidade, faz festas e bailes, gerou empregos, ofereceu serviços e cobrou impostos ou taxas etc. Claro, tudo por lucro e oportunismo. Mas surgiu um quase-estado não paralelo, um poder e um mais-poder, em tais regiões.

Sobre o italiano, lembremos que sua ambição era unificar a fragmentada Itália. Para isso, pensou que um grande e sábio príncipe, concentrador de poder, mais-poder, deveria cumprir tal tarefa. Daí, por exemplo, o motivo de estudar a “arte da guerra”, com uma obra sua de mesmo nome.

 

MAIS-PODER E CRISE SISTÊMICA

É lei da decadência sistêmica pensar que a causa do mesmo declínio é o governo, o regime, o estado, às vezes, a moral – enfim, a superestrutura. Sócrates, Platão e Aristóteles foram dessa opinião, assim como o grande Maquiavel. Hoje, culpa-se um governo pela quebradeira econômica e deseja-se derrubá-lo por outro, como se fosse alguma solução, sendo solução alguma. O povo, hoje, ao ver que a democracia dos ricos não funciona, que esquerda e direta governam do mesmo modo, apostam na destruição, em figuras políticas desequilibradas e risíveis.

 

MAIS-PODER E TRANSIÇÃO

Na transição ao socialismo, nem todos os cidadãos terão armas: empresários, pequenos burgueses, dirigentes de Estado etc. serão proibidos de acessar armamento e ter treinamento. Apenas operários e assalariados terão tal direito, mas até aí haverá limites, pois apenas aqueles de saláio menor e médio obterão permissão. Ou seja, visa-se garantir a hegemonia dos trabalhadores na sociedade. Quando as classes sociais deixarem de esxistir ou diante de uma sociedade estável, todos terão acesso, mas será um hábito esportivo definhante. Armas serão desnecessárias, algo próprio de museus.

 

 

 

MAIS-PODER E MATÉRIA

Mais-poder é concentrar materiais como dinheiro, armas e humanos ao seu serviço – junto com seus arranjos contextuais e propriedades. Ter mais-matéria é, nesse caso, ter mais-poder se a materialidade está organizada e arranjada de tal ou qual modo.

 

MAIS-PODER: FORMA E CONTEÚDO

O conteúdo pode ter diferentes formas, eis a dialética. O mesmo poder abstrato e concreto que está no Estado burguês pode passar-se para o estado operário. O conteúdo disputado pelas formas, muda de forma.

 

MAIS-PODER: DIACRÔNICO E SINCRÔNICO

O mais-poder pode ser visto como, no limite, algo da estrutura, do arranjo, na relação imediata de exploração ou opressão etc. E pode, ao contrário, ser visto, no limite, no tempo, por exemplo, concentração de mais poder comparado ao passado ou o peso imenso do passado nas tradições que mantém, ajudam a manter, modos de poderio.

O mais-poder é limitado por si, ou melhor, breve tanto no sentido espacial quanto no temporal. Um pequeno susto de 5 mil anos na longa história da humanidade; e quase sempre minoritária, aliás.

A realidade e suas categorias objetivas são diassincrônicas, por assim dizer.

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