O FIM LATENTE DAS FRONTEIRAS NACIONAIS
A formação dos Estados nacionais, da
unificação territorial, é uma tarefa em si burguesa; o poder absolutista
feudal, ao concentrar forças na figura do rei, operava de modo “déspota
esclarecido” ao tomar medidas positivas ao desenvolvimento do capital no seio
de sua sociedade: a unificação monetária, impostos nacionais, unidade nacional
etc. Preparava-se, assim, o terreno para o domínio do capitalismo e a supressão
do feudalismo. Em nossa época, o capital precisa corroer os limites das
fronteiras nacionais, prover maior unidade internacional, preparando os
caminhos para o internacionalismo socialista.
Vejamos o caso mais avançado, a União
Europeia. A histórica disputa entre França e Alemanha pela região mineradora de
Alsácia-Lorena, localizada na área fronteiriça, fez com que Engels descobrisse, ao
fazer balanço da guerra franco-prussiana, o amadurecer de uma grande guerra
mundial. A região disputada garantiria meios de produção e maior autonomia para
a economia nacional. No entanto, a II Guerra elevou os EUA ao estatuto de
grande poder, impedindo qualquer possibilidade de disputa ao cargo de potência
dominante. Com sua derrota, a Alemanha perdeu a possibilidade de resolver a
contradição a seu favor. Os conflitos internacionais foram resolvidos de outro
modo quando ambas as nações, francesa e alemã, tornaram-se incapazes de impor
seus projetos. Quem hegemonizaria a Europa para conquistar o mundo deixava de
ser uma questão posta. Logo, um acordo de livre comércio a partir da área sob
disputa seria desejável e viável. A união avançou em vários aspectos até a
formação da moeda unificada, o Euro, e há novos projetos apresentados como o
exército europeu.
É dispendioso focar em todos os
tratados. O que nos cabe aqui é destacar o alto grau de integração dentro dos
limites e possibilidades capitalistas, além de afirmar o máximo avanço dos
transportes e comunicações. Veja-se que na atualidade empresas sentem-se à
vontade de mudar o país onde produzirá já que em outra nação pode explorar mais
a força de trabalho e tem condições de exportar em larga escala e em curta
duração. A necessidade de dar ao capital e à forma mercadoria um meio ambiente
onde possa fluir com maior facilidade possível, para enfrentar as crises de
superprodução e suas possibilidades, para lidar com a alta produtividade, é o
principal motor dos acordos. O capital produz um duplo movimento: positivo, na
medida em que prepara o terreno para a unidade global, e negativo, na medida em
que o faz em nome de mais lucro – nega o futuro socialista e, ao mesmo tempo,
encaminha suas bases e condições. Trotsky descobriu que uma das contradições da
fase imperialista é o fato de as forças produtivas não caberem nos limites
nacionais. Essa contradição, irresolvida, é encaminhada dentro das
possibilidades de avanço no capitalismo. Os acordos desde o fim da II guerra,
que desemborcaram na UE e no Euro, salvaram o capitalismo alemão, onde tal
contradição era mais intensa, permitindo o fluxo das mercadorias. Outra
expressão disso em destaque é o dólar alçado a substituto do ouro no comércio mundial.
Há várias expressões deformadas,
invertidas e mediadas da integração latente. Apenas na história contemporânea,
porque de fato encurtamos as distâncias, foi possível a formação e consolidação
relativa dos mais variados organismos internacionais, a maioria subordinada ao
imperialismo; isso expressa a necessidade de ligações internacionais e a
impossibilidade de consegui-las de maneira plena sob o capital. A Organização
mundial de Saúde, por exemplo, surge da necessidade de vigiar os riscos de
pandemias por causa da intensa inter-relação dos países. Outras demonstrações
são a unidade cultural enorme alcançado pelo mundo (o que tem seu lado negativo
evidente como com o imperialismo cultural), a comunicação mundial instantânea e
a informação global acessada pelos trabalhadores (ainda que seja por meio do
jornalismo burguês).
Por instabilidades e desenvolvimentos
atrasados, formado por colônias e semicolônias, a integração econômica e social
da América Latina[1] e da
África poderá alcançar os graus da União Europeia, ou mais avançado, apenas por
meio da integração socialista, da transição ao socialismo. Parecem forçados ao
salto. Antes, em algum nível de circulação sob base capitalista, podem antecipar
alguns aspectos da integração produtiva e social.
Sob o capitalismo, os acordos e uniões
são instáveis, possuem limites e subordinam algumas nações a outras. Um
superimperialismo com governo mundial também se demonstrou hipótese equivocada,
mas a consolidação de organismos internacionais na história recente,
subordinados aos Estados dominantes, já aparece como sintoma e latência da
futura unidade real e internacionalista do mundo. É no socialismo onde uma
articulação internacional e mundial poderá surgir de modo pleno e fraterno.
Sobre a integração mundial, leiamos o
que dizem Marx e Engels:
Essa “alienação” [Entfremdung] para
usarmos um termo compreensível aos filósofos, só pode ser superada,
evidentemente, sob dois pressupostos práticos. Para que ela se torne um poder
“insuportável”, quer dizer, um poder contra o qual se faz uma revolução, é
preciso que ela tenha produzido a massa da humanidade como absolutamente “sem
propriedade” e, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riqueza e de
cultura existente, condições que pressupõem um grande aumento da força
produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento – e, por outro lado, esse
desenvolvimento das forças produtivas (no qual já está contida, ao mesmo tempo,
a existência empírica humana, dada não no plano local, mas no plano
histórico-mundial) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem
ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos
gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria por se
restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças
produtivas é posto um intercâmbio universal dos homens e, com isso, é produzido
simultaneamente em todos os povos o fenômeno da massa “sem propriedade”
(concorrência universal), tornando cada um deles dependente das revoluções do
outro; e, finalmente, indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais,
são postos no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o comunismo poderia
existir apenas como fenômeno local; 2) as próprias forças do intercâmbio não
teriam podido se desenvolver como forças universais e, portanto, como forças
insuportáveis; elas teriam permanecido como “circunstâncias”
doméstico-supersticiosas; e 3) toda ampliação do intercâmbio superaria o
comunismo local. O comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação
“repentina” e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o
desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado
a esse desenvolvimento.
A integração mundial certamente atingiu
um grau elevadíssimo, muito acima da esperada pelos pais do socialismo
científico. O alto grau de interdependência dos países leva a que os destinos
de uns afete os caminhos dos demais, dito de outro modo, é mais fácil prover o
caráter planetário da revolução social. A base prática do internacionalismo
proletário, negação e superação do passado nacionalista, está dada dentro dos
limites do capital. Assemelha-se isso, se cabe aqui alguma comparação, com o
poder romano sobre larguíssimo território, sobre outros povos, antes eles
mesmos dominantes, como anúncio, no mundo antigo, da crise geral – não mais
local – do escravismo. Se todos os caminhos levavam à Roma, tornou-se
impossível ao Estado e ao exército lidar com o grande território de modo
estável. Os pequenos e fragmentados feudos e principados medievais tiveram de
ceder, na fase final do mundo feudal, às novas pulsões capitalistas, formando
um governo nacional.
A internet forçou a liberação do fluxo
de capitais, reação à crise. Mas o comércio já domina intensiva e
extensivamente o mundo todo, logo a crise se adia com maior exploração e com
protecionismos e afins para guardar mercados, o que aumenta ainda mais a
superprodução crônica latente de capitais e mercadorias. Senhores capitalistas,
não há saída! O mundo é redondo!
A espécie humana é a única que tende a
unificar-se como gênero globalmente, uma tendência própria do ser social, que
está intimamente ligada a outras duas, o aumento da produtividade do trabalho (veja-se,
mais uma vez, que tal aumento exige corroer os limites da nação) e o
afastamento das barreiras naturais
[1] Os
EUA tentaram avançar com a Alca, mas o projeto foi derrotado pela luta
anti-imperialista na América Latina. Isso deu alguma vantagem histórica à UE
(França e Alemanha) e manteve o investimento estrangeiro na China a todo vapor.
[2]
Isso significa, por causa dos três fatores, que a história humana é
teleológica, tem uma finalidade, qual seja, a entrada na verdadeira história
humana, depois da pré-história na qual ainda nos encontramos. Tal afirmação
contraria parte dos lukacsianos, porém derivada de sua própria elaboração
comum; são as tendências imanentes do ser social. Em outra nota de rodapé,
também debateremos a situação teleológica inconsciente até aqui, que avança
como se pelas costas dos homens, e não determinista (assim como um homem pode
falhar na tentativa fazer um machado antes planejado atentamente, a humanidade
pode falhar em seu destino, pode ser extinta ou quase extinta com o fim da
civilização.)
No ser biológico, Kant
afirmou que impera um “propósito sem propósito”, além de, segundo ele,
inexistir aí leis ou teorizações como na física; Hegel segue, ao seu modo, o
mesmo caminho. Porém Darwin os refutou com toda sua maestria. Ao debater A
Origem das Espécies, Engels afirma a Marx, por meio de uma carta, que tal
grande obra da biologia havia enterrado as concepções teleológicas sobre a
vida. Já na obra Ontologia do ser social, Lukács observa que a modalidade do
ser biológico tem a tendência de afastar-se das barreiras ambientais,
especialmente as do inorgânico; o desenvolvimento do Ser que se reproduz é
tornar-se cada vez mais capaz de lidar com o externo, com o exterior, com cada
vez mais habilidade de apreender os dados do real e modificá-lo; visto de modo
amplo, isso alcança uma etapa onde aparece o cérebro, logo surge a macrotendência
de cérebros cada vez mais capazes e cada vez maiores relativo ao tamanho de
seus corpos. Em resumo: o ser biológico realiza tendencialmente sua teleologia
por meio de outro ser, o social, ou seja, ocorre uma transcendência. O ser
humano é a realização – em boa parte, por sua constituição física, pelas mãos,
pelo polegar opositor etc. – de uma tendência da vida desde quando esta surgiu.
O ser biológico tem uma finalidade; resta saber, então, se o ser inorgânico
também a tem – seria ir-se de si a si próprio por meio e através de seu
autodesenvolvimento? Lançamos aqui a hipótese em forma de pergunta para abrir o
debate e contar com o avanço posterior da ciência e da filosofia. Ao tema, fica
evidenciado isto: entre os fatores comuns nas três modalidades do Ser,
destacamos que todos eles, não apenas o ser vivo, são energia em busca de mais
energia (para tornar mais clara a afirmação: 1) o ser social: o homem
apropria-se da energia humana no trabalho, aperfeiçoa a agricultura e busca
mais e melhores fontes de energia em seu desenvolvimento – como a máquina a
vapor, a eletricidade de hidrelétricas, a fissão nuclear, a fusão nuclear, o
hélio 3 da Lua etc.; 2) o ser inorgânico: a energia-massa curva o tecido
espaço-tempo atraindo, produzindo gravidade).
Há ainda outra questão
sobre teleologia na história humana: as etapas de evolução do modo de produção
– visto em geral: primitivismo, escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo
– são necessárias ou o histórico poderia ser completamente outro? Basta ver, de
começo, que é impossível saltar do primitivismo ao socialismo com robótica sem
transição. A questão resolve-se ao observarmos que a terra é desigual, nunca
uniforme, tem diferentes fertilidades, características e climas, o que leva,
aqui, a desenvolver o escravismo e, ali, a prosperar o modo de produção
asiático. Suponhamos, apenas para clarear o raciocínio, que existam humanos em
outro planeta habitável. Eles também têm de lidar com tais desigualdades – de
fertilidade etc. – se (e para que) a vida muito complexa for capaz de se
desenvolver em seu mundo (diferente de mundos quase totalmente congelados, por
exemplo). Eles também viveriam os diferentes sistemas antes de chegar ao
igualitarismo da abundância.
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