A CRISE DAS CLASSES
A
conhecida conclusão de Marx sobre a crise final dos sistemas econômicos,
contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de
produção existentes, pode ser interpretada de duas maneiras: 1) As relações de
produção impedem a continuidade dos desenvolvimento das forças de produção
(técnica, ciência, natureza, homem, etc.), logo precisam ser duramente
substituídas; 2) As forças produtivas avançam enquanto as relações de produção
permanecem, gerando crise sistêmica. Na realidade, ambos os casos ocorrem e até
misturam-se. Há ainda um terceiro caso, combinado aos demais: as forças
produtivas avançam e mudam apenas relativamente as relações de produção (casos
deste capitulo) como sintoma, por mediação ou por deformação, da tendência à
mudança completa dessas relações. Na crise do escravismo, tentou-se usar
colonos no lugar de escravos, que eram insuficientes com as invasões à Roma,
mas logo revelou-se limitado, apenas sintoma da necessidade de mudança completa
das relações de produção, para o feudalismo com o senhor e o servo. O
desenvolvimento das forças produtivas afeta as relações de produção, ainda que
não as mude completamente de imediato.
Há
ainda uma segunda observação para introduzir as conclusões deste capítulo.
Também aqui, o texto entra em sincronia com a concepção de “crise categorial”
trabalhada por pensadores como Kurz. No método dialético, as categorias nada
têm de eternas, fixas e a-históricas; elas são transitórias, mudam-se, têm fim.
A crise das categorias – crise da categoria valor, etc. – ocorre porque elas
são reais, nunca meras palavras ou invenções artificiais do cientista, etc.
Afinal, o método científico superior jamais parte das categorias ou conceitos
enquanto modelos prévios, formas onde encaixar forçadamente os dados do real –
jamais ao menos nos primeiros momentos das conclusões. A realidade pode exigir
atualizações categoriais necessárias. No kantismo, os dados adaptam-se aos,
encaixam-se nos, conceitos; na dialética, ao contrário, os conceitos
modificam-se para que caibam nos dados. Os marxistas formais, no entanto,
costumam usar o método dedutivo, por exemplo, encaixar este ou aquele grupo de
assalariados numa noção categorial por meio de critérios prévios; assim,
professores seriam do proletariado, do operariado quem sabe, porque vivem de
salário, vendem sua força de trabalho, não dominam os meios de produção, etc.
Pouco entendem que uma avaliação correta iria para “depois” da aparência e da
forma do salário rumo ao conteúdo e à essência, ou seja, o “ponto de vista” do
valor, que é, de fato, materialmente, a arché (arkhé) da sociedade capitalista
(qual a água ou o ar a foram do cosmos para os pré-socráticos); como o
princípio é o princípio, ele, o valor, aliás, começa a obra O Capital – assim
como o Ser-nada-devir inicia tanto o mundo quanto a filosofia e, por isso,
também a Lógica de Hegel.
O SETOR
DE SERVIÇOS
Guiados
pelo debate até aqui, observemos estes dados que nos servirão de exemplo:
TABELA
1
Fonte:
Os
números acima, ainda que reativos, revelam uma tenência à perda de mão de obra
na indústria e na agricultura e ganho no setor de serviços. Precisamos tirar
algumas conclusões adicionais ao movimento descrito.
O
setor de serviços é produtivo de lucro, não de valor. É improdutivo do ponto de
vista da produção como produção de mais-valor. Isso significa que seu inchaço,
em parte por baixo uso de tecnologia, extrai parte do valor global para si de
modo, por assim dizer, parasitário. Constitui-se como elemento para a crise do
sistema.
O
desenvolvimento do capitalismo promoveu a ascenção do setor médio ligado aos
serviços. Exigiu a inflação de fatores do tipo:
1) Serviço de autônomo como reação o
desemprego ou trabalho precário;
2) Serviços exigidos ao Estado para prover
as condições básicas do funcionamento do capitalismo;
3) Especialização de tarefas improdutivas
nas empresas via terceirização (exemplo: empresa de call center cuida, com
custo unitário menor, do atendimento em nome de empresas contratantes);
4) Urbanização produz demandas sociais que
podem gerar lucro (igrejas, etc.).
Por
vezes, o setor de serviços pode ser tanto fonte de lucro ou apenas um custo
social posto como necessário, na empresa ou na sociedade. O professor pode dar
aula numa universidade pública ou particular; das duas maneiras suga do valor
social ou como fluxo dos impostos ou, no outro caso, com mensalidades do
cliente. Na medida em que cai a taxa de lucro, a classe dominante busca novas
fontes lucrativas e as encontra, por vezes, tornando um trabalho improdutivo em
fonte de extração de valor. O que mina a própria lucratividade.
Reafirmamos
o que dizemos em outro capítulo. Na medida em que o maquinário substitui o
trabalho manual na produção, elevando o trabalho intelectual – controle,
gestão, etc. – ao patamar de trabalho por excelência, o atual setor de serviços
em parte deixará de existir e, noutra parte, será redefinida para fins
socialistas. As “formas sociais puras”, que não são trabalho enquanto relação
homem-natureza, serão a importante ocupação dos cidadãos. A hiperinflação dos
serviços é sinal de que o fim da pré-história da humanidade aproxima-se,
tornando-nos mais sociais.
Há
polêmica sobre se os assalariados fora das fábricas, minas e terras, etc. são
parte do proletariado. Tal discussão é datada na história, pois são recentes
certos fatores: várias categorias cresceram em número e passaram pela
precarização das relações de trabalho. O professor era parte de uma
aristocracia, formava-se já com bom salário; a política de Estado por aumentar
a quantidade de formados concorrendo por uma vaga e o crescimento do número de
escolas públicas sem o correspondente aumento de verba precarizaram a profissão
levando à formação de sindicatos, ou seja, ocorreu a esquerdização desse setor.
Os bancários passam por processo semelhante com a introdução dos caixas
eletrônicos.
A
questão sobre a classe dos setores de serviço revela uma nova tendência:
setores não operários podem protagonizar revoltas sociais ou servirem de vital
apoio às mobilizações. Daí o problema teórico um tanto instintivo sobre a
nomenclatura.
Neste
livro, consideramos os membros o setor de serviços classe média, setores
médios. Porém o mais indispensável é perceber tanto a história desses setores,
o processo de precarização (que é confundido com o conceito proletarização) e
ampliação, quanto o papel que antes não tinham na sociedade e na luta por outro
mundo.
AFASTAMENTO
DAS CLASSES OPOSTAS DA PRODUÇÃO
Encontramos
a seguinte conclusão do Livro III d’O Capital: a burguesia produtiva tende a
ser de todo improdutiva, quer seja, afasta-se da gestão fabril, contrata
executivos em troca de bons salários para as tarefas de controle geral. Podem
assumir cargos artificiais e figurativos, mas vivem do mais-valor gerado sem
relação direta, pessoal, com o trabalho intelectual neste setor; e isto é tanto
mais quanto mais é o capitalista coletivo – portadores das ações das empresas,
dos títulos de propriedade – quem domina. A burguesia toma a forma parasita.
Transformação do capitalista realmente
ativo em mero dirigente, administrador do capital alheio, e dos proprietários
de capital em puros proprietários, simples capitalistas financeiros Mesmo quando os dividendos que recebem
englobam o juro e o lucro do empresário, isto é, o lucro total (pois a
remuneração do dirigente é ou deveria ser mero salário para certa espécie de
trabalho qualificado, com preço regulado pelo mercado como qualquer outro
trabalho), esse lucro é percebido tão-só na forma de juro
Rastreemos
o desenvolvimento das relações de produção por meio das era do capital: 1)
capitalismo mercantil: a burguesia da produção cumpre tarefas de comando
direto, trabalho intelectual, sobre os artesãos; 2) capitalismo industrial: o burguês
dirige os dirigentes, uma rede interna hierárquica de comando; 3) capitalismo
financeiro: a burguesia afasta-se do comando direto, contratando responsáveis
para as tarefas de trabalho intelectual; 4) capital fictício: a burguesia infla
seu caráter parasitário e perde identidade imediata para com as empresas – a
classe dominante é, assim, uma classe que já não é uma classe.
Expressando
o próprio capital, sendo capital encarnado, vemos um movimento geral de
alienação da burguesia em relação ao capital produtivo em si. Isso ocorre
interligado à globalização capitalista, com a despatriação do capital, onde
este internacionalismo burguês do sujeito valor-capital desenvolve a mobilidade
do capitalista e o lucro enquanto único objetivo pátrio. A produção ocorre, em
muitos casos, na China; a administração geral da empresa, nos EUA; os
acionistas vivem suas vidas parasitantes em qualquer lugar do mundo onde lhes
proporcione prazeres incomuns e possam obter consultas de seus dados via
internet. O trabalhador sabe quem é seu
supervisor ou gerente, mas desconhece o patrão porque, exceção de empresas
menos avançadas, ele ao modo clássico inexiste. Há a empresa impessoal.
Após
a exposição deste parágrafo e de quase a totalidade do livro, tive bom contato
com a palestra
Há
polêmica sobre a qual setor pertencem políticos, executivos etc. Localizamo-los
na burocracia capitalista, a burocracia burguesa – nem tudo são classes. Seus
privilégios lhes dão espaço para enriquecer de outros modos (empresas, ações
etc.) tornando-os ligados orgânicos a mais de um setor privilegiado. A palavra
“burocracia” tende a passar apenas o sentido parasitário, mas também se refere
a funções de comando, administrativo etc.[1]
Tomemos
por novo ângulo e ponto de partida na produção. No fim do feudalismo:
ARTESÃO
– funções: Produz
Estoca
Planeja
Contabiliza
Vende
Controla
Na
medida em que o capitalismo desenvolve-se, tais funções são divididas e
especializadas: o trabalhador coletivo produtivo cumpre a função do trabalhador
produtivo individual exercendo controle sobre o alienado produtor de valor.
Produz –
operário
Estoca –
assalariado auxiliar
Planeja
– burguês ou gerente
Contabiliza
– gerente, contabilista, economista
Vende –
burguês, administrador, empregado improdutivo designado a esta tarefa
Controla
– capataz, gerente de diferentes níveis
Ocorre
divisão, alienação do trabalho produtivo – separação entre manual e
intelectual. Sob outra forma, o socialismo superará as especializações acima
postas. O afastamento parasitário da grande burguesia da produção (e
realização) de valor corresponde, na outra ponta, ao afastamento do trabalhador
produtivo, com vantagens a um e desvantagens a outro. A III revolução
industrial é o máximo estágio do afastamento do operário da produção. O desenvolvimento
das forças produtivas, portanto, induz à futura mudança das relações
produtivas, hoje sob a forma de desemprego crônico e financeirização.
A
própria redução numérica da quantidade de donos do mundo, cujo poder é enorme
ao concentrar em poucas mãos a riqueza social, uma vantagem imediata, uma
redução em si quantitativa – de uma miríade de milionários para um punhado de
bilionários (algo em torno de 3000) de fato dominantes –, produz as condições
da mudança qualitativa, o fim da classe dominante, a redução numérica total, e
é seu sintoma (assim como o afastamento da relação direta com a empresa é
sintoma do seu futuro afastamento absoluto). A matéria abaixo ajuda-nos a ver:
As grandes fortunas do mundo nunca
tiveram tanto dinheiro como neste início de 2020. O ano de 2019 terminou num
recorde histórico para as 500 pessoas mais ricas do planeta, que acrescentaram
1,2 trilhão de dólares (equivalente a 60% do PIB do Brasil), aumentando em 25%
o seu patrimônio coletivo, que chega a 5,9 trilhões de dólares, segundo o
índice da Bloomberg.
Em
principal nas fábricas, surge uma ampla hierarquia de comando e funções
(gerente, capataz, serviço de inteligência, etc.) que cresceu com o
desenvolvimento do capitalismo. Surge assim o acréscimo sugador parasitário de
valor dos falsos custos de produção
Na
sociedade, por causa de a crise sistêmica aprofundar-se, a tendência é aumento
dos custos improdutivos, como com segurança. Na produção, a automação-robótica
tem uma vantagem e estímulo como menor custo de vigilância, mas é uma redução
parcial e limitada.
O
DESCABER NOS CONCEITOS
O
desemprego crônico fruto da alta produtividade sob o capital é expressão,
inversa, da possibilidade de maior tempo livre no socialismo, aqui expresso no
tempo ocioso e desesperado. Vejamos o crescimento:
TABELA
2
Fonte:
Os
dados são, ainda que claros, limitados. O trabalho estatístico comumente ignora
o subemprego, os que desistiram de procurar trabalho e os autônomos como parte
do grande número daqueles fora das relações empregatícias formais. Após a crise
de 2008, certamente os dados são mais duros, apesar das oscilações conjunturais
do nível de emprego. A tabela acima, apesar de faltar informações mais atuais,
demonstra bem uma tendência contínua ao aumento da taxa de desemprego.
A
solução para esse problema social será reduzir a jornada de trabalho de modo a
garantir desemprego zero, usar toda força de trabalho disponível, pleno
emprego. Uma escala móvel de tempo de trabalho pode surgir como a nova lei
social contra a lei capitalista do exército industrial de reserva.
Trotsky
falou na década de 1930 em subclasse de
desempregados
Outra
das formas transitórias, comum em nosso tempo, ocorre quando é comum permear
mais de uma classe. Um operário, porque de vida precária, tem uma pequena
quitanda em sua casa ou a família trabalha em pequena propriedade; um petroleiro,
operário aristocrático, pode ter ações na própria empresa; o empresário, tão
logo tenha capital em forma monetária sobrante, tem investimentos tanto na
produção quanto na área financeira (dívida pública, etc.)[3].
Dizer a qual classe ou setor pertencem fica mais difícil, pois se encontram
menos dentro do conceito.
A
MISÉRIA RELATIVA
O
capitalismo tirou enormes grupos humanos de relações arcaicas e os colocou em
relações monetárias. Assim a miséria absoluta foi reduzida, com a monetarização
do modo de vida. Mas este avanço é contraditório, negativo e positivo, pois
aumenta os fatores estressantes da maioria, o que é base para a acentuação da
luta de classes. Veja-se que em São Paulo um assalariado pode perder até 5
horas de seu dia com o tempo de transporte público; além do mais, convive com a
poluição visual, sonora e do ar. A forma salário quando cresce a remuneração
pode esconder precarizações não medíveis por esta via com a intensificação do
trabalho, a privatização dos espaços de lazer, etc.
Os
comerciários do século XIX eram bem pagos assim como os bancários há poucas
décadas. A queda da qualidade de vida desses setores não operários é fator
importante para a revolução, pois tende a afastar tais tipos da direita com
maior facilidade. Ademais, inúmeros fatores não sindicais, para além e com as
relações trabalhistas, afetam nossas vidas.
A
acentuação da miséria relativa, os fatores estressantes de diferentes origens
que se combinam, tende a unificar grandes massas humanas por melhorias. O
aumento da miséria relativa é mais sintomático para a revolução social que a
miséria absoluta, pois, neste último caso, a situação é de tal modo deteriorada
que impede uma luta comum.
DUAS
TENDÊNCIAS RELATIVAS
A
crise sistêmica, sua fenomenologia, parece apontar dois caminhos antes do
socialismo ou da extinção. O primeiro, a lumpenização das diferentes classes:
classes médias, operariado, assalariados e burguesia. A classe dominante
torna-se vagabunda. O operário não encontra emprego. A classe média volta-se ao
prazer desmedido. Empregos lupens como trabalhar no tráfico ou na prostituição
ampliam-se. A polícia degenera como nunca antes. Os políticos tornam-se vadios.
Lembramos que rejeitamos o tom depreciativo de “lupem” usado pelo estalisnismo,
infelizmente também pelo trostskismo em sua maioria, como um problema de todo moral,
digna do desprezo total humano. Não é, em exato ou sob este ângulo, o caso. O
lupemproletariado é formado, na sua forma comum, nos diferentes sistemas, pelos
ladrões, prostitutas, mendigos, vadios, indisciplinados crônicos até etc. Os
excluídos dos excluídos. Mas amplia-se nesta época, torna-se uma miríade de
casos e de contaminação sobre outros setores e classes sociais.
Segundo,
há e haverá uma pressão por aumentar casos de escravidão não assalariada. Isso
é incompatível com o sistema baseado no dinheiro, mas o sistema tem a honra de
entrar em contradição consigo próprio… Nossa proposta é, então, por exemplo,
que os trabalhadores resgatados de tal condição tornem-se donos, sob gestão
operária, da empresa aonde foram superexplorados. O empresário e a empresa
prosperaram a partir do suor de seus funcionários escravizados: nada mais justo
que lhes dar o que deveria ser deles.
UMA
TESE OUSADA
Neste
livro, nas partes de economia, costumamos citar Eleutério Prado, um mestre, sem
colocá-lo no mesmo altar dos teóricos de outros países. Mas ele é um gigante
discreto. Como esta obra tem pretensão de totalidade, embora não de tudo,
devemos citar sua conclusão recente. Em resumo: com a financeirização (sociedade
por ações etc.), o capitalista individual foi substituído pelo capitalista
coletivo[4];
ora, antes o individual tinha riscos individuais, porém, agora, o coletivo
trata de riscos coletivos, para toda a classe – e, portanto, prejuízos gerais são
agora inaceitáveis
[1] Entre
comunistas, falamos sobre atuação nos sindicatos e no Estado Operário: “podemos
e devemos ser burocratas sem estarmos burocratizados”. Burocracia e (burocracia
em) burocratização são categorias diferentes, estando íntimas.
[2]
Para evitar falsa citação: de Mészàros retiro “falsos custos de produção”,
enquanto contribuo com o fator do aumento de tais custos.
[3]
Nesse tipo de burguês, ocorre uma cisão em sua personalidade pública, uma dupla
personalidade, com exigências políticas e econômicas tanto financistas quanto
produtivas, ainda que opostas.
[4]
Engels afirma que é a superação da propriedade privada por dentro da
propriedade privada, dentro dos limites do capital. Com a automação, o capital
encerra a exploração do homem pelo homem, mas apenas dentro dos limites
estreitos do próprio capital.
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