domingo, 28 de janeiro de 2024

A crise sistêmica - Cap. 8. - O sujeito revolucionário hoje

 

O SUJEITO REVOLUCIONÁRIO HOJE

 

Em capítulo anterior, apresentamos estes dados:

 

TABELA 1

Fonte: (Pikett, 2014, p. 112)

 

Por meio dos dois países centrais acima, percebemos que a classe camponesa e o operariado do campo foram substituídos pelos trabalhadores de serviços – uma numerosíssima massa humana. Como meras mudanças de quantidade promovem mudanças de qualidade, levemos em conta que a maior parte dessa nova camada é cada vez mais precarizada, concentrada num mesmo espaço, a cidade, e forte em número. Ao mesmo tempo, a classe operária passou por mudanças, entre as quais:

1)      Como mostram os exemplos da tabela 1, a classe operária foi reduzida percentualmente e em número numa quantidade destacada de países, em principal nas nações centrais para a revolução mundial (países imperialistas, Brasil, etc.);

2)      Muitas das fábricas foram transferidas para cidades menores ou para outros países na intenção de reduzir a luta de classes;

3)       A produção de certas mercadorias – um carro, etc. – pode ser em parte subdivida em fábricas menores e auxiliares, o que fragmenta relativamente os produtores.

4)      Há a aristocracia operária cuja qualidade de vida a torna de mentalidade pequeno burguesa, logo a distancia de fervores revolucionários;

5)      A III revolução industrial funda fábricas desprovidas de operários.

Essas observações significam a necessidade de atualizar as teses da revolução permanente. Chegamos, portanto, às conclusões a seguir:

 

 

A)                     Considerados os fatores elencados, a classe operária está mais dispersa, desconcentrada e, em alguns casos, reduzida. Isso significa que, para ser protagonista em uma revolução, os produtores de mercadorias precisam necessariamente de um elemento compensador, que são estes: um partido operário bolchevique e organismos de poder operário;

 

B)                     Uma revolução de base operária, com apoio popular, será necessariamente socialista, pois precisa de seus próprios organismos revolucionários;

 

C)                      Por causa do elemento exposto no ponto A, as revoluções têm sido, em geral, desde a década de 1980, de caráter popular-urbano com apoio popular do campo (Bolívia, 2003; Peru, 2000; Argentina, 2001[1]; Tunísia, 2010; Egito, 2011; etc.), ou seja, sem centralidade do operariado;

 

D)                    As chamadas “revoluções democráticas” (Moreno), que derrubam um regime ditatorial mas não o capitalismo, observadas nas últimas décadas, são frutos, também, da concentração urbana;

 

E)                     As classes oprimidas não-operárias tendem a ver sua força no número, no voto, já que são “concentrados, porém descentralizados”;

 

F)                       A superurbanidade é a casa da democracia operária e do fascismo. A democracia burguesa é, portanto, uma falsa mediação para controlar o concentrado movimento de massas;

 

G)                    As classes oprimidas urbanas não produtoras tendem a explodir antes mesmo de o operariado amadurecer – isso ocorre pela alta concentração na cidade, descentralização no trabalho e precariedade. Por isso, a tendência mais provável, em países sob ditaduras, é o avanço permanente de uma revolução democrática-popular para uma socialista-operária;

 

H)                    A China é, talvez, a única a poder seguir o seguinte modelo: a classe operária avançar, com apoio dos camponeses, de uma revolução democrática até a uma socialista. Isto tende a acontecer pela alta concentração proletária e humana;

 

I)                       Após uma primeira revolução operária-socialista vitoriosa, a revolução permanente dará um novo giro: como no pós-II Guerra, as classes não operárias oprimidas e, desta vez, urbanas poderão ser a base social de novas revoluções socialistas sem protagonismo operário[2]. A existência de um Estado operário revolucionário impulsionará as revoltas sociais para uma perspectiva;

 

J)                        Diferente das revoluções de base camponesa, as possíveis revoluções socialistas urbanas-populares terão vantagens significativas: 1. Concentração humana facilitando a democracia socialista; 2. Indústrias automatizadas que poderão ser estatizadas pelo organismo revolucionário de poder para garantir a satisfação das necessidades sociais e iniciar o avanço técnico geral; 3. Atual interligação e interdependência dos países e do mundo facilitando a internacionalização da revolução e da economia planejada; 4. Maior nível cultural médio da sociedade e maior possibilidade instrução;

 

K)                    Portanto, porque precisa de um impulso social, uma revolução socialista popular-urbana antes de uma revolução operária com apoio popular é uma hipótese improvável – embora não impossível;

 

L)                      De imediato, as revoluções de outubro, socialistas conscientes, tendem a ser de base operária com apoio popular-urbano e com um partido democrático-centralista. As de fevereiro, as democráticas, as socialistas inconscientes são e serão de base popular urbana;

 

M)                    O campesinato perde força, pois há o assalariamento do camponês; a industrialização do campo tende a colocar a fome como o último dos problemas imediatos da transição ao socialismo; porém, essa classe ainda tem sua importância – maior ou menor a depender do país;

 

N)                    As revoluções nos países atrasados mais avançados, mais contraditórios e mais latentes, por serem os iniciais (China, Brasil, Turquia, México, Índia, África do Sul, etc.), e os nas nações avançadas, por serem a consolidação da tendência, necessitarão de partidos revolucionários. Apenas após tais circunstâncias das vitórias – de modo análogo, mas inverso ao pós-guerra – partidos da revolução serão relativamente dispensáveis, pois o processo geral facilitará, ainda com enormes dificuldades, processos em nações atrasadas, que usarão do exemplo externo, comporão organismos de poder integrados aos de igual natureza nos Estados operários com os quais cooperarão e surgirão.

 

Comparemos, a partir do empírico imediato, com o exemplo do Brasil. O operariado fabril na Rússia de 1917, que liderou a revolução de outubro, única revolução socialista de força operária vitoriosa do século XX, era menor relativo ao proletariado brasileiro. Porém a constatação é limitada. Na Rússia, era urbano; no Brasil, tende-se a ir às pequenas cidades e ao campo. Num, concentrado em enormes fábricas; noutro, a produção de um produto fragmenta-se em fábricas auxiliares e menores. Naquele, apenas os ferroviários poderiam com certeza ser chamados aristocracia operária; neste, petroleiros, metalúrgico, mineradores e setores outros pertencem a tal “subcategoria”. Lá, a burocracia sindical era irrisória, diferente de aqui. A Rússia era um país interiorano povoado por camponeses dispersos em enorme território nacional enquanto aqui grande massa de assalariados não operários e demais setores precários concentram-se na urbanidade. A economia russa passava por forte processo de industrialização; nós passamos por processo forte de desindustrialização e parte da indústria aqui vigente adota a produção automatizada. O “pós-fordismo” gera alta rotatividade dos trabalhadores, que deixam de criar laços pessoais, sociais e políticos nos locais de trabalho. Se no Brasil a revolução socialista terá liderança operária ou popular, depende de circunstâncias nacionais e internacionais: se há outras revoluções vitoriosas estimulando, se os comunistas estão ligados ao operariado não aristocrático, etc. O peso social das favelas, formadas pelos pauperizados, aqueles fora da relação fabril, onde há grande peso de empregadas domésticas, pequenos comerciantes, ambulantes, autônomos, desempregados e demais áreas de serviços cujo trabalho é precário serve-nos de exemplo latente do barril de pólvora popular, isto é, sobre quando o morro descer para o asfalto e não for carnaval.

Resolvemos, assim, a polêmica marxista se a revolução pede poder operário ou poder popular, revolução via operariado ou multidões populares. A oposição surge porque de fato surgem tendências novas na realidade. O operariado ainda pode cumprir função de liderança por estar diretamente ligada à produção material. Por outro lado, surge uma massa concentrada de precários. Se os camponeses, com todas as dificuldades, como a dispersão territorial, foram base de revolucionamentos no século XX, tanto mais força latente têm os oprimidos urbanos. Fica apenas esta tendência: a revolução de liderança operária, primeiro, dá condições maiores para revoluções sem sua liderança.

 

A QUESTÃO DO PARTIDO

A teoria da revolução permanente afirma que apenas com a ajuda de um partido revolucionário a classe operária pode tomar o poder. A hipótese de avanço ao socialismo via partidos não revolucionários era considerada por Trotsky, mas como variante improvável. As revoluções sociais do século XX, no entanto, atualizam a conclusão porque foram lideradas por partidos centristas burocráticos (adotavam o centralismo burocrático). As contradições empurraram as direções pequeno burguesas a irem mais longe do que pretendiam.

Também foi o caso da Comuna de Paris:

 

Os membros da Comuna dividiam-se numa maioria, os blanquistas, que também tinham predominado no Comité Central da Guarda Nacional, e numa minoria: os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, predominantemente seguidores da escola socialista de Proudhon. Os blanquistas, na grande massa, eram então socialistas só por instinto revolucionário, proletário; só uns poucos tinham chegado a uma maior clareza de princípios, através de Vaillant, que conhecia o socialismo científico alemão. Assim se compreende que, no aspecto económico, não tenha sido feito muito daquilo que, segundo a nossa concepção de hoje, a Comuna tinha de ter feito. O mais difícil de compreender é, certamente, o sagrado respeito com que se ficou reverenciosamente parado às portas do Banco de França. Foi também um grave erro político. O Banco nas mãos da Comuna — isso valia mais do que dez mil reféns. Significava a pressão de toda a burguesia francesa sobre o governo de Versalhes, no interesse da paz com a Comuna. Mas foi mais prodigioso ainda o muito de correcto que, apesar de tudo, foi feito pela Comuna, composta que era por blanquistas e proudhonianos. Naturalmente, os proudhonianos são responsáveis em primeira linha pelos decretos económicos da Comuna, pelos seus lados gloriosos como pelos não gloriosos, assim como os blanquistas pelos seus actos e omissões de carácter político. E quis em ambos os casos a ironia da história — como de costume, quando doutrinários chegam ao leme — que uns e outros fizessem o contrário do que lhes prescrevia a sua doutrina de escola. (Engels, A Guerra Civil em França, 2008, grifo nosso)

 

 

Os proudhonianos eram contra a associação no campo da economia e os blanquistas eram contra o poder controlado pelas massas com armamento popular. Mas fizeram o contrário de suas teorias e perfis. Em meio à revolução, tiveram na prática de superar seus programas.

Se está correta nossa caracterização de que as próximas três ou quatro décadas serão as mais decisivas da humanidade, a pressão objetiva de uma realidade em crise pode forçar a que organizações centristas de esquerda sejam lideranças na substituição de sistema social. E isso será tanto mais fácil e provável quanto mais houver países iniciando a transição ao socialismo.

Tal possibilidade deve ser considerada contanto evitada como guia para o futuro. A história pode fazer uso de partidos impróprios para impor suas necessidades, porém nada autoriza correr tal risco – uma vez que há ameaça de fim da civilização – e deixar de construir partidos revolucionários nos diferentes países e um partido mundial da revolução.

 

A QUESTÃO DA LIDERANÇA

Trotsky afirmou que a revolução russa só foi vitoriosa graças à liderança insistente e qualificada de Lenin. Isso sugere um peso enorme dos fatores subjetivos quando os fatores objetivos da revolução estão maduros. Isaac Deutscher polemiza contra o primeiro ao afirmar que, ao contrário, aconteceram revoluções vitoriosas lideradas por figuras menores e limitadas.

Apresentemos uma proposta de resolução da polêmica.

A imposição histórica de um grau de objetivismo apenas pode acorrer após a imposição de uma tendência, ou seja, após ação subjetiva – classes, partidos, líderes etc. – sobre a realidade. Exemplo: não fosse o acerto político do partido bolchevique, corrigido por Lenin, de fazer a revolução russa, onde pesaram a decisão e o perfil do indivíduo na história, a revolução cubana não seria uma imposição histórica, muito apesar de seus dirigentes de inspiração democrático-liberal – não haveria um necessário ponto de apoio continental à ilha. Outro: no século XIX, na Alemanha, a “via prussiana”, ir do feudalismo ao capitalismo por reformas e pelo alto, apenas pôde se impor longe da revolução burguesa, por meio do bismarkismo, porque o capitalismo se consolidou na Europa e no mundo, depois de duras revoluções e conflitos. Mesmo havendo possibilidade de “objetivismo” numa etapa histórica, este continuará como certo grau relativo, isto é, subordinado, na luta geral, à relação dialética, aos resultados, entre o objetivo e o subjetivo.

As primeiras vitórias são ainda mais dependentes de decisões e perfis subjetivos, como o gênio de Lenin na Rússia ou as primeiras revoluções sociais do século XXI. Tais conquistas produzem uma pressão histórica positiva para o revolucionamento social, tornando os próximos processos mais, de modo algum absoluto, objetivistas, menor dependência de homens e mulheres singulares (se e enquanto suas condições não tenham caído em decomposição, o adiamento da revolução social torna o processo futuro relativamente mais objetivo e menos subjetivo). De qualquer modo, o subjetivo e a individualidade cumpriram e cumprirão um importante papel, para a conquista ou a derrota, ainda que sob condições melhores para a transformação radical do modo de vida.

Engels diz que a história sempre encontra os homens necessários, no nível exigido, às suas tarefas. Isso é um engano parcial. A história cria as condições apenas relativas para isso, uma pressão não determinista para que tais figuras surjam. A crise sistêmica ajuda a formar militantes e partidos capazes, dispensando em parte a manobra histórica do uso de grupos impróprios, mas nada substitui o talento e a decisão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]             Neste país, chegou a haver uma tendência viva, possibilidade, ao protagonismo operário por razão do peso histórico do trotskysmo argentino.

[2]             1) inclui-se avanço em permanência de fevereiro à outubro, de revolução democrática à socialista – ou, também, diretamente socialista;

                2) Entre os explorados e oprimidos não operários, os assalariados do comércio, serviços, do estado, etc., e os desempregados, tenderão a ser liderança dos demais setores não burgueses por razão numérica e condição laboral. Para parte do marxismo estes setores são proletariado não operário; e, apesar de não concordarmos com esta caracterização, revela pelo menos na teoria e na semântica a tendência à substituição possível do sujeito social;

                3) Mesmo essas revoluções, na medida em que tendem a implantar a democracia socialista, necessitarão de um partido bolchevique, ou uma frente de partidos revolucionários e semirevolucionários. Apenas após a vitória nos principais países, tornando a transição ao socialismo predominante, partidos da revolução serão relativamente desnecessários, as revoluções serão mais fáceis (ainda com seus riscos) e, em alguns casos, organismos de poder revolucionários sem liderança partidária comunista serão vitoriosos por iniciarem cooperação com outros Estados Operários.

                4) Revoluções de protagonismo operário continuarão a ocorrer e serão motores das revoluções socialistas-populares.

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