O DESPOTISMO ESCLARECIDO BURGUÊS
[…] robustece o domínio do capital, amplia-lhe a base e permite-lhe
recrutar sempre novas forças das camadas inferiores da sociedade. O mesmo
ocorria na Idade Média: a Igreja Católica formava sua hierarquia com as
melhores cabeças do povo, pondo de lado posição, nascimento e fortuna, o que
era um dos principais meios de fortalecer o domínio do clero e de subjugar os
leigos. Quanto mais uma classe dominante é capaz de acolher em seus quadros os
homens mais valiosos das classes dominadas, tanto mais sólido e perigoso é seu
domínio.
As épocas de
decadência possuem suas excentricidades, suas combinações improváveis, suas
falsas mediações. Neste capítulo, daremos exemplos de como, diante da
época vigente e da possibilidade do socialismo, o mundo do capital procura
ser o “tirano esclarecido”. Demostraremos a percepção universal por meio de
suas particularidades e singularidades. Vamos às observações:
1. O século
XX inaugurou a formação de grandes partidos de esquerda, mas, na medida em que
negavam, clara ou ocultamente, o marxismo, fundaram o que o centrismo
estalinista nomeou frentes populares, uma unidade governamental das
organizações de esquerda com a burguesia “progressista”, “democrática”. Em
geral, os governos de frente popular surgem quando há intensa luta de classes,
quando beira a possibilidade de um conflito decisivo. Assim, este tipo de
governo produz uma ilusão social, como se os trabalhadores já estivessem representados
no poder. A presença dos chamados “partidos operários” na gestão do Estado
burguês é uma das formas mais claras de despotismo esclarecido.
Ocorre a
generalização da frente popular, ou seja, de governos burgueses com
participação – majoritária ou minoritária – de organismos de luta social e de
esquerda. Mesmo governos diretamente dirigidos por organizações burguesas
agregam sindicatos ou pequenos partidos de esquerda em sua órbita[1] –
dito de outra maneira: algum nível de frente populismo costuma estar presente
ao administrar o Estado. Essa nova
normalidade possui um exemplo intenso no PSUV de Chavez com sua
retórica “socialista” e medidas governamentais na Venezuela, onde um partido
patronal com programa semi-bonapartista[2]
agrega o grosso do movimento de massas; o verniz vermelho do governo é reação à
revolução incompleta naquele país, modo de adquirir apoio das massas
radicalizadas. Evo da Bolívia, também com vestimentas “socialistas”, e Syriza
da Grécia são exemplos. No mesmo sentido, inúmeros partidos burgueses usam o
termo socialismo em suas propagandas. Diante dos efeitos do período iniciado
com a crise de 2008, a eleição presidencial nos EUA (2016, 2020) tornou-se
simbólica ao ter um pré-candidato do Partido Democrata, Bernie Sanders,
verbalmente radicalizado pela esquerda.
Apenas para
vermos a ilusão comum, o centrista e chavista PC da Venezuela, toma tardia
nota:
Onde estava o socialismo neste governo?
“Em nenhum lugar, porque este governo não é socialista
e em nosso país o socialismo nunca foi alcançado, sua construção nem começou. É
verdade que na propaganda oficial se utilizam os clichês de “socialismo”,
“revolução”, “governo operário”, mas na realidade as políticas econômicas e
trabalhistas, sobretudo a partir de 2018, têm uma orientação claramente
neoliberal, ou seja, impõem a tirania do “livre mercado” e criam condições para
o lucro capitalista máximo, tendendo a reduzir o papel regulador do Estado na
economia. Ao mesmo tempo, sacrifica os trabalhadores com a destruição dos
salários, o desmantelamento dos acordos coletivos e a extrema precarização do
emprego, impondo uma desregulamentação selvagem e flexibilidade laboral”.
“Desta forma, o governo presidido por Nicolás
Maduro administra a crise e as “sanções” criminosas imperialistas, apresentando
como “vantagens comparativas” o capital estrangeiro e a burguesia parasitária
local (erroneamente chamada de “burguesia revolucionária”), a isenção de
impostos e a mão de obra mais barata do continente e talvez do mundo.
Outro caso
merece destaque: a esquerdização da Igreja Católica com o Papa Francisco após a
renúncia do ultraconservador Bento XVI. A Igreja precisou relocalizar-se diante
da crise mundial de modo, de um lado, a atrair novos fieis e, de outro, servir
ao capital como contenção ao crescimento da esquerda marxista, desviando o
ativismo para a instituição no lugar de irem ao partido revolucionário. Por
isso pensaram uma figura pública sob medida com o ineditismo de ser um
latino-americano e um franciscano; suas vestes simples e seu discurso são uma
peça de propaganda central.
Ingressa em
tal lista o uso de figuras públicas que supostamente encarnam setores oprimidos
(negros, mulheres, operários, etc.) em cargos de destaque. Eis outra armadilha
que se combina com o conceito aparentemente progressivo de empoderamento. A
função política é também psicológica, pois visa causar empatia dos setores
populares com o suposto representante. A escolha do partido Democrata nos EUA
do candidato e presidente Obama é apenas o caso mais famoso, por ser no centro
do império, como reação burguesa à crise de 2008, de um inimigo da classe
trabalhadora que simula identidade com as minorias e a maioria da população.
Ainda neste
ponto, devemos incluir a ditadura na China. O PC chinês só tem de comunista o
seu nome, pois é formado por burocratas estatais que precisam de cargos e da
negação da democracia socialista, ou mesmo a burguesa, para manter seus
privilégios. Uma organização oportunista nunca é comunista mesmo quando dirige
um Estado que, até a década de 1970, tinha elementos socialistas. Após
restaurar o capitalismo, o PC tenta manter o controle do movimento de massas
com uso da simbologia de esquerda – uma farsa após a tragédia. Lembremos que a
ditadura militar no Brasil permitiu a existência de dois partidos oficiais com
eleições enquanto a ditadura na China faz, p. ex., uma assembleia que nada de
fato decide. O poder real, o poder das armas incluso, está sob domínio do capitalista
PCC.
2. Com a
alta concentração urbana somada à precarização, a democracia burguesa é o
regime principal com longa duração em muitos países. Não raro, a classe
dominante prefere golpes “institucionais” a militares ou fascistas (embora não
descarte as diferentes táticas).
O ideal burguês e seu projeto originário é a
democracia grega da qual faziam parte a classe dominante e homens livres. As
circunstâncias históricas levaram os donos da propriedade privada a ceder, tão
devagar quanto possível, o voto aos trabalhadores e às mulheres. O voto
universal é um resultado da luta de classes e, ao mesmo tempo, uma forma de
disfarçar a guerra na sociedade.
Como o
imperialismo está em decadência enquanto expressão da decadência do sistema,
pensa-se duas vezes hoje se o império apoiará ou não um golpe para implementar
uma ditadura. Vários regimes fechados têm enfrentado a decadência social
interna em seus países com realinhamento na geopolítica mundial ou, ao menos,
com alguma autonomia maior, retardando ou amortecendo suas crises e preservando
o governo, o regime e o Estado – isso é possível porque os regimes são mais
estáveis, incluso com maior autonomia em relação às classes, incluindo a
burguesia mundial. Em democracias burguesas pode-se manipular com mais
facilidade as lideranças, trocá-las, etc. Daí os golpes “leves”, que não mudam totalmente
a organização estatal.
Outro fator
é o tema da corrupção. O imperialismo e a burguesia têm usado tal pauta
necessária e correta para manipulações em disputas políticas e comerciais.
Vazam-se escândalos tanto reais quanto fictícios para ganhar a subjetividade da
população, implementar projetos, golpes brandos, privatizações, destruir – ao
menos a imagem de – empresas concorrentes, etc. A guerra de informação ganhou
muito relevo em nosso tempo.
3. O imperialismo “apoia” revoluções temendo que
cresçam por demasiado, tirem novas conclusões, implementem o socialismo; enfim,
teme a independente reorganização revolucionária da classe, da vanguarda e da
sociedade. O império sabe da inevitabilidade das revoltas, então tenta
desviá-las para a democracia burguesa, para a direção com líderes duvidosos,
etc.
4. Há o que
Trotsky nomeia bonapartismo Sui Generis nos países atrasados quando um governo
como o de Perón na Argentina coloca-se contra um imperialismo, ainda que seja
submisso a outro império, e, para manter-se no poder, usa o movimento de massas
ativo de modo “progressista”. O bonapartismo Sui Generis, ao ganhar autonomia
relativa e ao colocar-se formalmente acima das classes, usa o movimento de massas
para pressionar as classes proprietárias.
5. Foram
introduzidos métodos como participação nos lucros e resultados, estímulo aos
funcionários a obterem pequenas ações da corporação onde trabalham, eleição de
representantes ao comitê executivo da empresa, concursos internos para subir de
cargos, etc. Outro exemplo: o grande capital estimula a formação de empresas
cooperativas de trabalhadores para comprar peças ou dispor de serviços. No
Estado, surgiram iniciativas como o orçamento popular.
6. Sindicatos
e partidos de esquerda estão altamente institucionalizados, adaptados,
integrados ao Estado burguês. São organismos burgueses da classe trabalhadora,
organismos frente populistas. Sindicatos são convidados a participarem de conselhos,
comissões e organismos patronais, participam na gestão de empresas e do Estado.
Muitas empresas obrigam seus funcionários a se filiarem às suas representações
sindicais. Portanto, a tarefa é tanto ganhar sindicatos como, na primeira
oportunidade, modificá-los[3].
Em situações revolucionárias, parte significativa destes, em geral a maioria, além
dos partidos de esquerda, estará do outro lado da trincheira.
Leiamos
sobre:
A partir daí, os capitalistas japoneses
desencadearam uma feroz repressão ao movimento sindical combativo e impuseram
uma estrutura sindical totalmente controlada e atrelada às empresas: sindicatos
por local de trabalho, que participam da gestão das empresas num regime de
colaboração, partindo do princípio de que cada empresa é, antes de mais nada,
uma família…
Na crise
mundial de 2008, o governo dos EUA salvou as empresas da falência e deu aos
sindicatos parte do controle acionário adquirido.
A revolução
de 1918 na Alemanha fez com que o governo frente populista da social democracia
alemã estatizasse os nascentes conselhos (soviets) operários naquele país para
tirá-los o caráter de poder alternativo. A mesma tática foi usada pelo chavismo
na Venezuela quando a revolução formou as comunas. Se houver condições, será
uma manobra usual contra embriões de poder socialista durante as próximas
revoluções sociais.
7.O
despotismo esclarecido burguês teve grande impulso improvável nas ditaduras
burocráticas nos países “socialistas”. O aparato falava aos quatro ventos de
Marx e de Lenin como propaganda para gerar passividade entre as massas
trabalhadoras, enquanto os membros do poder engordavam por menor trabalho e por
privilégios garantidos com a falta de democracia operária dentro da nação. A
burocracia era o polo burguês daquelas sociedades transicionais. Enquanto isso,
a literatura de fato socialista era censurada, parcial ou completamente, os
manuais substituíram a crítica ampla. Enfim, o despotismo burguês se revelou
nas medidas de restauração do capitalismo como a substituição da empresa
nacional única por cooperativas “independentes” de trabalhadores, separadas,
restaurando o caos da concorrência e do não planejamento central.
Esses são os
fatores importantes observados; não há dúvida de que existem outros[4] na
realidade ou ainda por surgir (orçamento participativo, etc.). Podemos extrair deles
uma primeira conclusão sobre o futuro: apresenta-se lei histórica antecipar
certas tendências de nova organização social de modo invertido e mediador da
luta de classes. Assim, o escravismo romano em decadência fundou a Igreja
Católica ao abraçar a religiosidade dos escravos; o feudalismo conheceu o
despotismo esclarecido diante do crescimento das bases burguesas da sociedade e
o capitalismo, por sua vez, antecipa a gestão dos trabalhadores nas empresas e
no Estado, a democracia socialista, mas de modo a negar o futuro latente. Para
fins de analogia, algo semelhante aconteceu na escravidão brasileira quando
leis artificiais e falsas na prática antecipavam a abolição e expressavam sua
tendência embora fossem formas de negar o abolicionismo. Em resumo, o
despotismo esclarecido antecipa, por falsificação, uma tendência real.
O aspecto geral do despotismo
esclarecido burguês pode ser assim resumido: envolvimento da não-burguesia nas
superestruturas objetivas (Estado, direção de empresas, pequenas ações
financeiras, partido, sindicatos etc.) e ações sobre os sentidos da
superestrutura subjetiva (valores, moral, percepção da sociedade etc.), com
dois objetivos: 1) estimular a passividade frente ao poder burguês; 2)
estimular a produtividade. O despotismo esclarecido atual forma uma ficção social. A burguesia pode não
reconhecer uma luta geral latente, mas por muito percebe a constância das lutas
parciais, que representam um transtorno em si ao capital e são manifestações
inconstantes de processos em gestação.
O despotismo esclarecido burguês faz
parecer com que o Estado e as demais relações de poder tenham um duplo caráter,
burguês e operário, capitalista e socialista. Mas é de todo falso. Diferente
das transições sistêmicas anteriores, a revolução socialista trata de destruir
o Estado e demais superestruturas enquanto ferramentas de poder de uma classe
sobre outra; precisa, então, de uma ferramenta paralela, outro aparato estatal
capaz de expressar a nova sociedade e, com seu avanço, definhar-se[5].
Se os operários podem hoje eleger um membro para o executivo de uma empresa[6],
amanhã exigirão a eleição de toda a diretoria com salários limitados e cargos
revogáveis a qualquer momento por meio de assembleias gerais regulares onde a
base tratará dos assuntos centrais da gestão.
[1] Interessante observar que no Brasil, logo
após a redemocratização, o presidente de direita Collor de Melo impulsionou a
“Força Sindical”.
[2] A
incompreensão quanto à natureza do chavismo não se deve sempre ou apenas à
baixa formação teórica. Após o processo revolucionário desprovido de
organização política revolucionária; apoiado nas forças armadas e usando
mecanismos de democracia burguesa – à semelhança do Luís Bonaparte de Marx, 18 Brumário –, o regime de Estado
liderado por Chavez, bonapartismo semiparlamentar, parte de um bonapartismo em
país atrasado, não imperial, e durante a decadência do capitalismo, quando o
socialismo é possibilidade oculta e latente. A LIT e, depois, a UIT foram
praticamente as únicas organizações a perceber a essência do fenômeno e a
denunciar a farsa.
[3] Vale recordar que os bolcheviques tinham
baixo peso nos sindicatos durante a revolução de outubro; os mencheviques eram
maioria nesses organismos. Ou seja, o calor dos fatos pedirá organismos novos e
alternativos de luta e poder, que podem ser impulsionados, mas não criados
artificialmente pelos revolucionários. A revolução boliviana (1952) pôde
quebrar esta lógica mais do que qualquer outro país, por ter naquele momento um
movimento sindical novo, ainda não estatizado, baixo peso do estalinismo,
concentrada classe operária e relativamente nova, além do impulso trotskista à
COB, central sindical, operária e popular daquele país.
Enfim, o processo
revolucionário exige, entre outras coisas, enfretamento físico contra a
burocracia sindical, o pelego, e de outro, o erguimento de novos organismos
sindicais independentes (não se trata, porém, de sindicatos vermelhos), junto à
renovação dos existentes, e por fora do Estado Operário – como um dos
mecanismos antiburocratização deste.
[4]
Exemplo: “No México, os sindicatos
transformaram-se por lei em instituições semi-estatais e assumiram, por isso,
um caráter semitotalitário. Segundo os legisladores, a estatização dos
sindicatos fez-se em benefício dos interesses dos operários, para lhes assegurar
certa influência na vida econômica e governamental. Mas enquanto o imperialismo
estrangeiro dominar o estado nacional e puder, com a ajuda de forças
reacionárias internas, derrubar a instável democracia e substituí-la por uma
ditadura fascista declarada, a legislação sindical pode transformar-se
facilmente numa ferramenta da ditadura imperialista.” […] “A nacionalização das estradas de ferro e dos campos petrolíferos no
México não tem, certamente, nada a ver com o socialismo. É uma medida de
capitalismo de estado, num país atrasado, que busca desse modo defender-se, por
um lado do imperialismo estrangeiro e por outro de seu próprio proletariado. A administração das estradas de ferro,
campos petrolíferos etc., sob controle das organizações operárias, não tem nada
a ver com o controle operário da indústria, porque em última instância a
administração se faz por meio da burocracia trabalhista, que é independente dos
operários, mas que depende totalmente do estado burguês. Essa medida tem,
por parte da classe dominante, o objetivo de disciplinar a classe operária
fazendo-a trabalhar mais a serviço dos "interesses comuns" do Estado,
que superficialmente parecem coincidir com os da própria classe operaria. Na
realidade, a tarefa da burguesia consiste em liquidar os sindicatos como
organismos da luta de classes e substituí-los pela burocracia, como organismos
de dominação dos operários pelo estado burguês. Em tais condições, a tarefa da
vanguarda revolucionária consiste em empreender a luta pela total independência
dos sindicatos e pela criação de um verdadeiro controle operário sobre a atual
burocracia sindical, que foi transformada em administração das estradas de
ferro, das empresas petrolíferas e outras.” (Trotsky,
Os Sindicatos na Época da Decadência Imperialista, grifos nossos.)
[5]
Dissemos em outro capítulo que o Estado garante, hoje, artificialmente a
existência do capitalismo. Em certa medida, inclui o despotismo esclarecido
burguês. Cumpre notar, quanto ao tema da artificialidade, que deve ser
diferenciado, embora possam estar misturados aqui e ali: 1) a aceleração do
desenvolvimento capitalista pelo Estado – como a construção de hidrelétricas ou
grandes investimentos arriscados e custosos que a burguesia é incapaz de
promover logo; 2) a manutenção sistêmica forçada – aqui entra projetos como o
de renda mínima (bolsa família, etc.), que retardam a explosão social e a dissolução desta
sociedade.
[6] Em
casos especiais, em estatais principalmente, pode haver eleições de toda
diretoria por meio do voto dos funcionários. Em possíveis casos como esses, que
serão exceção, os comunistas devem afirmar que a democracia representativa, ao
modo da democracia burguesa, a eleição periódica de representantes, é
insuficiente, logo exigimos a democracia operária, direta e participativa na
gestão da empresa.
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