domingo, 28 de janeiro de 2024

A crise sistêmica - capi 14 - risco de pandemias

 

RISCO DE PANDEMIAS

 

A primeira versão deste texto foi produzida em 2016. Estou reescrevendo o material em plena quarentena por razão do coronavírus, que torna mais evidente este capítulo. Convido o leitor à imaginação do quanto era difícil sentir o peso destas elaborações antes da crise sanitária global e quantos muitos aspectos se tornaram conhecimento comum após o fato histórico. O que fica suspenso no ar é a relação entre epidemias e pandemias com a crise sistêmica, portanto nossa tarefa é levar em conta tal aspecto.

Antes de irmos ao conteúdo deste capítulo, façamos um breve balanço da pandemia de 2020. O problema sanitário do coronavírus, embora seja expressão da crise sistêmica, atrapalhou a luta pelo socialismo ao contrário do que pensam muitos intelectuais. No mesmo período da reclusão social, uma crise de natureza puramente econômica mundial surgiu com potência superior à de 2008, porém deu-se, por coincidência temporal, a impressão de que o recuo da economia teve fator central e apenas natural… Se os trabalhadores tivessem uma experiência pura com a crise do capitalismo, sua consciência teria avançado enormemente desde o balanço prático da crise cíclica anterior. Ademais, a lutas recuaram por causa da contaminação. O capitalismo ganhou, assim, certo fôlego histórico apesar de o problema pandêmico ativar alguma intuição sobre fins civilizacionais, em principal entre a vanguarda. Pandemias atrapalham o funcionamento “normal” do capital como também a luta antissistema.

***

O apogeu do império romano (marcado pelo início de sua decadência com o fim da república no século 1 a.C.) levou à urbanização e a laços comerciais e populacionais; todos os caminhos levavam à Roma. Ocorreram, entre o apogeu e a decadência, 11 grandes epidemias e pandemias em seu grande território, como a peste de galeno no ano de 164 com um quarto da população dizimada e  a peste de Cipriano em 250.

A peste negra atuou para a queda do feudalismo. Com o crescimento do comércio medieval e das cidades, dada a maior produtividade, base da transição para outro sistema, as ligações virais também cresceram e um terço da população europeia foi vítima da doença.

A tese deste capítulo é que as condições do capitalismo hoje colocam, de modo mais intenso que outras fases do sistema, a possibilidade de epidemias e pandemias[1]. Vamos aos fatores que produzem tal conclusão:

 

1.    Diferenças entre ricos e pobres geram problemas alimentares, de higiene, de acesso à informação, de hábitos, de salubridade – há acesso desigual ao moderno. O aumento da miséria relativa desde 1970 e, em destaque, desde 2008 colabora no sentido do adoecimento.

2.    A atual urbanidade, que alcançou altíssimo desenvolvimento, baseada na desigualdade de classe, reúne uma enorme massa urbana, facilitando a contaminação geral.

3.    O fluxo humano e de mercadorias por todo o mundo interliga-nos também do ponto de vista viral. Lembremos que a aviação comercial é recentíssimo na história.

Aqui entra mais uma vez o debate do acesso desigual ao futuro, ao moderno. A aviação global ocorre combinado com o ainda uso, por exemplo, de camelos no Oriente Médio, animais que tem fortes chances de passar vírus aos humanos. É o fruto do desenvolvimento desigual e combinado: o moderníssimo transporte mais, mas, pobreza ou vida arcaica.

4.    Com a automação da produção, alta capacidade produtiva, a indústria farmacêutica necessita criar demanda e bloqueia ou atrasa pesquisas cujo objetivo é a cura.

Richard J. Roberts, Prêmio Nobel de Medicina, denuncia em entrevista:

 

Eu verifiquei a forma como, em alguns casos, os investigadores dependentes de fundos privados descobriram medicamentos muito eficazes que teriam acabado completamente com uma doença ...

[…] Porque as empresas farmacêuticas muitas vezes não estão tão interessadas em curar as pessoas como em sacar-lhes dinheiro e, por isso, a investigação, de repente, é desviada para a descoberta de medicamentos que não curam totalmente, mas que tornam crónica a doença e fazem sentir uma melhoria que desaparece quando se deixa de tomar a medicação.

[…]

Mas é habitual que as farmacêuticas estejam interessadas em linhas de investigação não para curar, mas sim para tornar crónicas as doenças com medicamentos cronificadores muito mais rentáveis que os que curam de uma vez por todas. E não tem de fazer mais que seguir a análise financeira da indústria farmacêutica para comprovar o que eu digo.

[…] Ao capital só interessa multiplicar-se. Quase todos os políticos, e eu sei do que falo, dependem descaradamente dessas multinacionais farmacêuticas que financiam as campanhas deles. O resto são palavras… (Roberts R. J., 2011)

 

5.    A crise do meio ambiente (alta concentração de carbono no ar, por exemplo) por si faz surgir novas doenças, além de tornar mais frequentes as que existem. Muitos cientistas afirmam que o aquecimento global, ao derreter as calotas polares, liberará antigos patógenos.

6.    Há esgotamento do atual método de combate às doenças virais e bacterianas:

 

De acordo com especialistas, as superbactérias, que se desenvolvem por causa do uso em excesso de antibióticos em humanos e na produção agropecuária, são uma das maiores ameaças para a Humanidade. Cepas de bactérias resistentes aos mais potentes medicamentos existentes já foram identificados em diversos países, incluindo o Brasil. Estimativas apontam que, sem combate, esses micro-ogranismos podem matar 10 milhões de pessoas por ano a partir de 2050.

— É irônico que uma coisa tão pequena provoque tamanha ameaça pública — disse Jeffrey LeJeune, pesquisador da Universidade Estadual de Ohio, nos EUA, em entrevista ao “Guardian”. — Mas ela é uma ameaça global à saúde que precisa de uma resposta global. (Globo O. , 2016)

 

As bactérias resistentes a antibióticos também ocorrem na criação de animais para consumo. É um risco latente de infecção tanto desses seres quanto de humanos. A ciência pode resolver este problema em específico sem a necessidade de uma revolução social, mas ainda continua uma possibilidade não resolvida.

7.    Invadimos o habitat natural de modo desenfreado, o que tira do isolamento doenças presentes na natureza.

O pesquisador francês Serge Morand resume a questão:

 

Certamente, observamos um crescimento constante do número de epidemias de moléstias infecciosas desde os anos 1920. Após a segunda guerra mundial, um conjunto de vírus, bactérias e parasitas emergiu, notadamente o tifo e as rickettsioses, doenças infecciosas transmitidas ao homem por artrópodes (piolhos, pulgas, carrapatos). Mais recentemente, foram detectados mais novos agentes patogênicos provindos da fauna selvagem.

[…] Minha hipótese de trabalho consiste em afirmar que a multiplicação das epidemias resulta das modificações dos contatos entre a fauna selvagem e o homem. Devido à intensificação da produção animal e como consequência, o aumento do número dos animais de criação e da superfície das terras agrícolas para nutri-los, a fauna selvagem vê seu território se reduzir. Obrigada a se locomover, ela tem mais contatos com os animais domésticos. Esta aproximação entre animais domésticos e fauna selvagem é condição propícia para a emergência das doenças infecciosas. Um micróbio ou uma bactéria pode viver num hospedeiro durante milhares de anos sem provocar problema algum, mas, ao mudar de hospedeiro, tornar-se patogênico. (Morand, 2020)

 

8.    O processo de separação do valor de uso do suporte e o valor de uso “poético”, sob a forma capitalista, geram: 1) produtos com baixo valor nutritivo (exemplo de um suco artificial e barato); 2) estimula a adoção de substâncias nociva à saúde humana (para dar cheiro, cor, gosto etc.).

9.                  A saúde privada negligencia custos em nome do lucro. Exemplo: as vacinas que perdem potencial por problema de aquecimento são prontamente substituídas no serviço público enquanto no setor privado tende-se a evitar tal medida, que gera nova despesa.

10.         As armas biológicas são um recurso latente nos conflitos globais militares.

 

Surge a necessidade de um sistema mundial público e gratuito de saúde – no socialismo. Tal empreendimento social tratará tanto de prevenção e atendimento quanto das medidas de produção (medicação, nutrientes em alimentos, etc.) e sociais.

Destacamos, por fim, que certa regularidade de epidemias e formas pandêmicas tem efeitos tendenciais sobre a estrutura social. Como as máquinas não paralisam por si mesmas nem adoecem, as crises de saúde pública tendem para a automação, digitalização e robotização – na produção em especial. As bases para a economia socialista têm mais um fator de estímulo ao seu desenvolvimento durante a e por causa da crise sistêmica, que se expressa, ademais, também em crises sanitárias.

 

PARTE 4

CRISE SISTÊMICA E MENTALIDADE (IDEOLOGIA, CIÊNCIA, ÉTICA MARXISTA, PSICOLOGIA MARXISTA)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Ao que nos parece, o advento da AIDS foi o selo rompido de tal apocalipse, um aviso sobre nossa época. Tal mudança se expressa também na arte. Os filmes e jogos de terror-ação deixaram de tratar zumbis como criaturas místicas ou demoníacas e passaram a tratá-los como frutos de efeitos virais, de fungos, etc. mais próximo do materialismo e de nosso tempo.

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