A CRISE DO DINHEIRO
A FORMA
MATERIAL DO DINHEIRO
Há certas
polêmicas quanto ao dinheiro sobre os quais trataremos de maneira apenas
indireta. Alguns, por exemplo, afirmam que tal forma social nunca precisou de
fato do ouro; outros consideram sua forma vigente sem valor ou apenas fictício.
Apresentaremos em diante algumas teses sobre o ser enigmático e cobiçado.
***
A
característica física do dinheiro mundial segue o mesmo caminho do dinheiro
nacional, mas em um ritmo mais lento. Quando a equivalente geral nacional
expressa-se pelo o ouro (ou prata) em especifico, o comércio internacional
adota o escambo ou uma mercadoria “falha”[1].
Assim, a lei mantém-se enquanto tendência: quando o dinheiro nacional começa a
expressar-se por meio do papel-moeda e do cobre lastreados em ouro (séc. XVIII,
XIX), o dinheiro mundial segue atrasado, ou seja, é ainda o próprio ouro
enquanto dinheiro mundial. Quando o dinheiro nacional deixa de lastrear-se em
ouro, a sua versão internacional – ao seu modo, a libra inglesa, primeiro; o
dólar, depois e até 1971 –, ao contrário e correndo atrás, continua ainda
lastreado em ouro, em equivalência. Depois, o padrão dólar-ouro é rompido, mas
continua a correr tendencialmente atrás do dinheiro nacional, pois a última
começa um passo novo: a digitalização por meio, em especial, dos cartões de
débito e crédito[2].
Abstração necessária à análise, Carcanholo desenvolveu
com maestria a tendência à desmaterialização do dinheiro. Disponibilizamos
trechos do artigo-réplica “Sobre a Natureza do Dinheiro em Marx”:
Esse processo progressivo de domínio do valor sobre
o valor-de-uso, no interior da unidade contraditória chamada mercadoria,
constitui o que chamamos “desmaterialização progressista da riqueza
capitalista”. Isso, por uma razão muito simples. O valor-de-uso é o conteúdo material das mercadorias e fica determinado
pelas características (conteúdo e forma) materiais de cada uma delas. O valor é
sua dimensão social. O domínio deste sobre aquele implica a desmaterialização
do conceito riqueza capitalista, desmaterialização da mercadoria.
[…] É justamente no dinheiro, e posteriormente
no capital, em que se manifesta de maneira mais aguda e evidente o processo de
desmaterialização, […] o dinheiro apresenta-se desprovido completamente desprovido
de todo valor-de-uso. […] Mas, desde muito antes, desde a sua gênese, nos
princípios da forma de equivalente, já se apresenta o processo de
desmaterialização. Por exemplo, já na forma geral do valor, Marx afirma que o
valor da mercadoria distingue-se não só do seu próprio valor-de-uso, mas de
todo valor-de-uso, inclusive naquele próprio da mercadoria, ao aceitar o
equivalente em troca da sua, não está interessado no valor-de-uso deste.
A desmaterialização continua no dinheiro (ouro),
mas ainda a materialidade-ouro continua ali. O processo fica muito mais
evidente quando mais avançado, no dinheiro de curso forçoso e no dinheiro de
crédito (que são as formas que conhecemos atualmente e que são estudadas por
mais no livro III d’O Capital).
[…]
Por mais Impressionante que seja a
desmaterialização já alcançada do dinheiro, ela ainda não chegou ao fim. Ela
prossegue seu curso e, com certeza, a desmaterialização total, embora
ansiosamente buscada pela lógica do capital, jamais poderá ser alcançada.
[nota 4] As agudas crises fmaterialidainanceiras
dos nossos dias são a manifestação mais cabal dessa contradição do sistema: o
desejo incontido do capital pela desmaterialização e sua impossibilidade
completa.
A que se
deve isto? A questão que se nos apresenta é: por que destas duas leis,
desmaterialização e ritmos desiguais entre dinheiro nacional e mundial? Ora, o
capítulo I d’O Capital I demonstra o valor e a construção da “mercadoria das
mercadorias” por um caminho: a relação conteúdo-forma: quanto mais tipos, mais
fluxo e mais troca de mercadorias (conteúdo) existentes – quanto mais complexo
e ativo o movimento delas – cada vez faz mais necessário destacar um elemento
específico do conteúdo, elevá-lo, para que sirva de equivalente geral ou forma.
Assim surge alguma mercadoria como meio de troca; depois, ouro; em seguida, o
dinheiro-papel. O conteúdo, o mundo das mercadorias, possui características
inerentes, quais sejam: tendência ao movimento, à instabilidade, à mudança, ao
novo, à não-conservação. Por outro lado, fruto da contradição interna do
conteúdo, a forma também possui singularidades: tende a conservar, à
estabilidade e constância. Como o conteúdo, a forma tem duplo caráter:
progressivo na medida em que conserva conquistas, consolida etapas; regressivo
na medida em que tende ao conservadorismo, à estabilidade, a entrar em
importante contradição com as necessidades novas do conteúdo. Portanto, pode haver
contradição ente o conteúdo e a forma, que é superada cedo ou tarde a favor
conteúdo, fazendo surgir uma forma nova.
O dinheiro
em geral, seja qual for sua forma física, ainda possui lastro, que não é mais a
mercadoria-ouro, mas o conjunto das mercadorias. Assim, o dinheiro recebido
representa idealmente o possível acesso a outras mercadorias, e mede-se assim.
O valor expresso no dinheiro é determinado por sua capacidade de prover acesso
a outros objetos. Ou seja, mede-se o lastro por sua proporção com essa
substância geral, com o conjunto do valor por meio da possibilidade de acesso a
outros valores de uso. Quando o dinheiro passou a se expressar no papel-moeda,
ainda podia-se trocar pela mercadoria específica ouro; esta capacidade de troca
pela mercadoria dourada já fazia surgir de modo latente a possibilidade de
lastro com o conjunto das mercadorias, pela troca por outros produtos dotados
de valor e preço.[3]
Porque na
forma de expressão autônoma, separada, do valor-trabalho o lastro torna-se indireto,
no lugar de direto à mercadoria específica ouro, ocorre com o dinheiro processo
de maior autonomia relativa (abstração) e torna-se “dinheiro fictício”, segundo
expressão feliz de Eleutério Prado
O dinheiro
mundial também é lastreado pelo conjunto das mercadorias ou, mais exatamente,
pelo conjunto do valor. O fato de este ser o dólar expressa um fator histórico:
os EUA produzem e consomem parte significativa das mercadorias de todo o mundo;
natural, por conseguinte, que o lastro-valor agarre-se a esta moeda – o domínio
militar garantidor desta ordem é consequência, que adquire aspectos de causa[4]. O
controle da Alemanha sobre o Euro possui o mesmo motivo. A industrialização e
urbanização da China, pela mesma razão, coloca em decadência esta realidade.
Como percebemos, o equivalente geral expressa a realidade em sua forma física.
O melhor exemplo do lastro é a mercadoria mais importante e cobiçada do mundo,
o petróleo, na medida em que o império americano há muito garante, com
diplomacia e ameaça, a compra internacional de ouro negro apenas por meio de
sua moeda, processo batizado “petrodólares”[5]. Aqui
já observamos o erro de Marx ao considerar, em sua época, que o dinheiro
adquire sua forma típica em ouro no mercado mundial, isto é, chegou a uma
conclusão estática e incapaz de ver o desenvolvimento da forma material.
Outro modo
de demonstrar o lastro do dólar percebe-se quando os EUA emitem moeda para
"compensar" seu déficit na balança comercial, mantendo o nível de
consumo interno. Assim, ao emitir de maneira artificial a moeda, o Banco
Central força, de fato, o lastro-mercadoria.
Já o dinheiro virtual é lastreado, por enquanto, na
cédula e similares. Tal lastro é garantido informalmente por 1) cálculo dos
bancos do quanto lhes será exigido de dinheiro físico e quanto pode fazer
circular em bits; 2) depósito compulsório que as instituições financeiras são
obrigas prover ao banco central. Quando se paga no cartão de crédito supõe-se
que esse pagamento é substituível por papel pintado ou que os bits são
transformáveis em dinheiro-papel tão logo o suporte-cartão entre em contato com
o banco ou caixa-eletrônico.
De acordo com o debatido sobre a desmaterialização,
o dinheiro virtualizado também tende a perder seu lastro imediato, tende a
desprender-se do dinheiro-papel. Neste sentido aponta a matéria a seguir, sobre
a moeda da Suécia:
“Dinheiro [em papel] pode sair de
circulação na Suécia até 2030”
“O fim do dinheiro de papel já é
uma morte anunciada na Suécia: até 2030, as cédulas e moedas deverão
virtualmente desaparecer no país, que lidera a tendência global em direção à
chamada “sociedade sem dinheiro”. A projeção é do Banco Central Sueco.”
“É o prenuncio de uma nova era,
dizem especialistas. A previsão é de que, no futuro, as economias modernas
serão dominadas pelo uso do cartão e da moeda eletrônica em escala mundial.”
“Na Suécia a transformação é
visível […]”
“Novos dados do Banco Central indicam que as transações em dinheiro
representam, atualmente, apenas 2% do valor de todos os pagamentos realizados
na Suécia – contra a média de 7% no restante da Europa.”
[…]
“’A Suécia continua à frente do
resto da Europa em relação à redução do uso do dinheiro do papel. E
principalmente dos Estados Unidos, onde cerca de 47% dos pagamentos ainda são
feitos em dinheiro”, acrescenta Nilervail, que destaca os avanços dos vizinhos
nórdicos, Noruega e Dinamarca, na mesma direção.”
[…]
“Até nos quiosque de flores do
bairro de Odenplan, no centro da capital, um aviso foi colado: “Preferência
para pagamentos em cartão”. Feirantes e ambulantes também se adaptam à
tendência e trabalham equipados com leitores portáteis de cartões.”
Como repetição histórica, sabe-se que o dinheiro em
ouro era constantemente roubado, e por isso passou a ser guardado e substituído
por um papel que o representava; assim hoje, a atividade econômica “roubo”
estimula e acelera o processo de desmaterialização do dinheiro, como aponta
também a matéria:
“Ladrões de banco vão se tornado,
assim, personagens do passado. O número de roubos em agências bancárias vem
atingindo o índice mais baixo dos últimos 30 anos, segundo a Associação de
Bancos Sueca.”
[…]
“Em 1661, as primeiras cédulas de
papel da Europa foram introduzidas pelo Stockholms Banco, o embrião do Banco
Central da Suécia. Agora, ironicamente, os suecos vão se tornando os primeiros
do mundo a desprezar o dinheiro vivo.”(Idem)
O lastro do
dinheiro virtual em relação ao “físico” tende a se perder, além dos fatores
expostos, pelos seguintes movimentos:
1. A demanda
por dinheiro leva aos bancos a tenderem a negligenciar o lastro informal, a
relação entre bits e a possibilidade de saques desse dinheiro em forma física;
2. O próprio
banco central tende a reduzir a proporção de lastro – quando deve ser guardado
em conta do BC – para socorrer os bancos diante das crises.
Destes,
agregamos:
3.
Intensificação do processo de circulação;
4. Menor
custo de produção, transporte e armazenagem do dinheiro virtual relativo ao
físico – assim como ocorreu com o dinheiro em papel em relação ao ouro.
São as
imediatas, visíveis, consequências capitalistas da digitalização do dinheiro:
1)
Maior
controle social do capital financeiro sobre a circulação – e o conjunto da
sociedade;
2)
Lucro por
juros nos meros processos de compra-venda;
3)
Garantias à
circulação: contra cheques sem fundo, calotes[6]
etc.
Retomemos a
história.
Pela
quantidade e intensificação, o ouro foi necessário como equivalente geral,
expressão do valor, por suas características físicas e por seu valor em uma
etapa específica de complexidade, do fluxo de mercadorias. Mas pela mesma razão
– as características físicas – tornou-se uma forma atrasada, lenta, para poder
seguir o conteúdo, a evolução do capitalismo, ou seja, o cada vez mais
intensivo e extensivo mercado. Esta é a explicação geral para a lei da tendência
à desmaterialização. O dinheiro adquire “massa” no seu processo de aceleração e
ampliação histórica para, em diante, pelas mesmas razões, tender à
desmaterialização.
Karl Marx,
embora não tenha percebido isto com clareza, presenteia-nos ele mesmo com a
tese:
Título de ouro e substância de ouro, conteúdo
nominal e conteúdo real iniciam seu processo de separação. […] Se o próprio
curso do dinheiro separa o conteúdo real da moeda de seu conteúdo nominal, sua
existência metálica de sua existência funcional, ele traz consigo, de modo
latente, a possibilidade de substituir o dinheiro metálico por moedas de outro
material ou por símbolos. A dificuldades de cunhagem de moedas muito pequenas
de ouro ou prata e a circunstância de que metais inferiores foram originalmente
usados como medida de valor no lugar dos metais de maior valor – prata em vez
de ouro, cobre em vez de prata – e desse modo, circulam até ser destronados
pelos metais mais preciosos, esclarecem historicamente o papel das moedas de
prata e cobre como substituta das moedas de ouro. Tais metais substituem ouro
naquelas esferas da circulação das mercadorias em que a moeda circula com mais
rapidez e, por isso, inutiliza-se de modo mais rápido, isto é, onde as compras
e as vendas se dão continuamente de modo mais rápido, isto é, onde as compras e
as vendas se dão continuamente numa escala muito pequena.
E completa: “Para
impedir que estes metais satélites tomem definitivamente [! – exclamação nossa]
o lugar do ouro, determinam-se por lei as proporções muito ínfimas em que eles
podem ser usados no lugar desse metal.” (Idem.)
Percebemos
que o Estado intervinha contra a tendência ao desprendimento do equivalente
geral do ouro. O ritmo poderia – e conjunturalmente deveria – ser mediado pela
equivalência, porém, mais ou menos dia, o dinheiro estava destinado a abrir mão
do lastro em metal precioso. A causa é a fluidez das mercadorias e, por
consequência, do equivalente geral.
Por outro
modo de abstração, entre o ouro como dinheiro e o papel-moeda sem lastro direto
tivemos uma secular transição por meio do dinheiro lastreado em ouro. Na
prática e pela extensa duração, fora muito mais que mera forma transitória,
pois o lastro era necessário para o nível de complexidade da circulação
mercantil naquele e daquele momento histórico, sendo cada vez menos necessário
a equivalência do ponto de vista do conteúdo-mercadoria.
O suporte, a
forma do equivalente geral, precisa, portanto, ser matéria capaz de acompanhar
a velocidade e o fluxo das mercadorias. Essa é uma das razões da necessidade de
expressar o valor cada vez mais tendencialmente desmaterializado – embora esta
lei nunca se realize em plena forma-pura – durante o desenvolvimento do reino
das mercadorias, cada vez maior, extenso, e cada vez mais intenso.
Sigamos a
aceleração capitalista. As revoluções na produção produzem mais mercadorias,
mais tipos e vendem-se em maior quantidade de espaços, distâncias e em menor
tempo; logo, o dinheiro deverá expressar a agitação festiva do conteúdo:
mudanças incluem a mercadoria dinheiro. Quando as revoluções do valor fazem
surgir novas tecnologias – máquina a vapor, eletricidade, a digitalização, a
automação, etc. – as técnicas novas fazem surgir, portanto, mercadorias novas
e, principalmente, quantidade nova de mercadorias no comércio. As inovações
técnicas renovadoras das mercadorias têm de renovar, também, a mercadoria-mor,
o equivalente geral, o dinheiro; mais uma vez, a forma do dinheiro expressa a
própria realidade em sua estrutura física, isto é, expressa o desenvolver das
forças de produção em forma corpórea. No início, isso se dá por meio do
crédito; quando a economia se aquece, oferendo mais mercadorias e mais
possibilidades de produção, o banqueiro não pode esperar a entrada de ouro em
seus cofres (primeira e segunda eras) ou de dinheiro-papel (hoje), bastando dar
ao desejante de crédito um símbolo representativo da riqueza entesourada, em
papel ou bits. Exemplo: as novas tecnologias criaram quantidade maior de
mercadorias e necessidade de impor uma realidade onde elas circulem tão bem
quanto possível; o mesmo desenvolvimento permitiu a digitalização da moeda como
possibilidade e, com o evolver do sistema, necessidade. Adiantamos, no entanto,
que esta base produtiva é importantíssima, mas o processo de mudança também se
dá por mudanças na circulação e com certa autonomia relativa em relação à
produção de mercadorias.
Percebamos:
dinheiro = ouro representa e é típico do mercantilismo, do capitalismo
mercantil (século XVI ao XVIII); dinheiro = moeda com lastro em ouro ou prata
deriva do ciclo de era industrial do capitalismo, da revolução industrial
(século XVIII ao final do XIX) – ainda que o papel-moeda tenha sua origem e
inicial desenvolvimento na Europa tempos antes; dinheiro = lastro no conjunto
das mercadorias representa a fase do capitalismo imperialista, financeiro;
digitalização = quarta era do capital, III revolução da indústria, a partir de
1973. Basta-nos observar alguns fatos: o lastro em ouro fora rompido nas moedas
nacionais com a I Guerra Mundial, anjo anunciador da imperialismo; desde então,
o lastro foi descartado e as tentativas de retorná-lo foram teórico e
empiricamente abandonados. No mesmo sentido, por dificuldade em manter quantias
de metais em circulação (guerras, escassez do metal, alta circulação de
mercadorias, hiperinflação, etc.), em meados do século XVIII, Estados e bancos
utilizaram moedas em papel ou em metal não-nobre para representar quantias em
estoque possíveis de acumular – antes, estas formas conversíveis eram
embrionárias.
As eras do
capital determinam o modo como o dinheiro encarna-se no mundo. Claro também
está que não é uma determinação mecânica, mas é uma determinação ainda; a
desigualdade evolutiva e certos zigue-zagues acidentais apenas demonstram o
quanto cada um desses quatro momentos históricos do capitalismo acaba impondo-se.
No entanto,
as formas-suportes passadas do dinheiro não podem ser superadas em absoluto –
guardam alguma utilidade, alguma função. Quando o capitalismo emperra e sofre
por gastrite da superprodução, da crise, o ouro e a prata passam a ter um papel
um pouco mais relevante (transferência de investimentos em ações para estas
commoditys, comércios específicos, custeio em conflitos miliares, etc.) ou o
escambo (mercadoria por mercadoria); mas nunca passarão de um papel auxiliar já
que não representam em absoluto as necessidades do valor e da intensa
circulação de mercadorias. Para ilustrar, basta tomar nota de que as reservas
são feitas nos títulos de países com juros negativos, isto é, mesmo perdendo
dinheiro, pois são títulos seguros e há possibilidade de conseguir lucro futuro
no mercado de câmbio (abstração).
Em resumo, um
fator fundamental atua na mudança da forma material do dinheiro, a quantidade
das trocas (principalmente quando simultâneas). É elemento da circulação de
mercadorias, não da produção, embora esta dê a base material. Por isso, por
crescentes trocas particulares, na China do século XIII pôde-se adotar o
papel-moeda antes dos europeus, que usavam ainda ouro
Se é
necessário ser mais claro, sejamos. O dinheiro mundial muda-se de matéria de
modo mais lento que o dinheiro nacional, pelo menos até o advento do dinheiro
virtualizado, porque a quantidade de trocas é menor – e evolui mais lentamente
– em relação às tantas, pequenas e grandes, trocas dentro de um país. O
mistério “O que eu tenho no bolso?” está resolvido.
Este
capítulo teve sua primeira versão em 2015; desde lá, o preocupante caso da
Venezuela – que, diga-se de passagem, é capitalista e precisa de uma revolução
social urgente – reforçou empiricamente a teoria aqui elaborada como caso
singular. Naquele país, houve a “doença holandesa”, ou seja, neste caso, o
preço de mercado do petróleo manteve-se altíssimo por anos, levando
prosperidade aos venezuelanos, grandes produtores de tal mercadoria. Com dólar
entrando em massa, ficou mais barato importar mercadorias do que produzi-las,
então a produção industrial não petroleira, em geral, definhou. Mas tudo produz
seu contrário. Os preços altos atraem investimentos em busca de grandes lucros,
faz compensar extrair o óleo em poços mais profundos, mais custosos, e obriga a
busca de alternativas energéticas, além de gerar crise em outros setores por
alto custo da matéria-prima, o que derruba a demanda; enfim, após a euforia, com
grande oferta mundial, os preços do petróleo desabaram e também desabaram feito
uma bomba atômica sobre a Venezuela, dependente de produzir uma grande
mercadoria. O resulto é conhecido: a bruta deflação do bem exportado gerou seu
oposto, hiperinflação dos necessários importados… Aqui começa nossas
observações. Os EUA, visando controlar o ouro negro da região, aproveitaram o
desespero da crise, tentaram estrangular financeiramente o país. O governo
reagiu com muita criatividade: após fracassos sucessivos de suas medidas,
fundou o Petro, sua moeda digital, criptomoeda, lastreada no petróleo – um
acerto, pois o dinheiro é lastreado nas mercadorias e na mercadoria central,
como demonstramos. Teve-se de ir além. Faltando de tudo naquela nação, o custo
de produzir dinheiro, algo ainda mais demandado com a hiperinflação, ficou
imensamente acima do valor nominal do próprio dinheiro produzido! Logo, a
governança teve de estimular a digitalização de sua moeda oficial em
substituição ao papel-moeda – neste caso, vale a pena destacar, mais uma vez,
que o desenvolvimento tecnológico cria a possibilidade de substituição da
matéria do dinheiro, tornando-se possibilidade
crescente, cada vez mais necessário. Vejamos, agora, o terceiro elemento: a
desvalorização da sua moeda tem relação direta com a desindustrialização do
país, baseado no boom de consumo geral de importados baratos. Por último, o
dólar tem sido cada vez mais usado como moeda em seu território; isso é uma
forma deformada e indireta de expressar a tendência, mas apenas a tendência,
superada e suprassumida pelo socialismo, de maior unificação monetária. Se o
Brasil tivesse “vocação” para ser um imperialismo do tipo menor, poderia
oferecer o Real como opção de moeda, mediante acordos especiais, durante as
crises “monetárias” na América Latina, mas sobre suas costas há a pata firme do
monstro imperialista. De qualquer modo, a revolução socialista latino-americana
permitirá a unificação monetária do subcontinente antes de quase extinguir o
dinheiro como o mediador das relações sociais.
***
Marx e
Engels consideram o dinheiro, em essência, ouro; e isto para eles se revelava
no mercado mundial. Por isso, consideravam a matéria-ouro um limite em si do
sistema. Este erro confunde a forma física e natural com seu uso conjuntural e
histórico. O equivalente geral é, antes de tudo, parte de uma relação social
específica, tem caráter social: quanto mais geral, social e consolidado –
aparentemente natural – o sistema menos precisa justificar-se, em sua forma
ímpar, diretamente naquela mercadoria. Quanto mais natural parecer o sistema
capitalista, menos precisa de uma forma natural, o ouro, para disfarçar sua
natureza social, ou seja, sua natureza transitória, histórica e instável.
O dinheiro
revela o nível de alienação das relações sociais capitalistas. Em nossa era,
atinge a forma mais reificada, mais fetichista ao parecer, aparência, independe
das relações materiais onde opera – o lastro torna-se cada vez mais indireto
(abstração). Por isso o trabalho científico de rastrear as ligações íntimas do
dinheiro virtual e impresso, dólar-petróleo, do dinheiro com o conjunto das
mercadorias etc. A tendência à moeda em total virtual, apontando níveis
altíssimos de produtividade, perdendo seu lastro atual, mostra-se sintoma de um
sistema próximo a desmanchar-se.
Desde a
origem da civilização, a história do dinheiro descreve a tendência ao fim
deste: de materialidades frágeis – boi, sal etc. – ao ganho de materialidade –
cobre, metais não nobres – até a forma material elevada – prata e ouro – para,
em seguida, perder materialidade – ouro por cobre, por papel-moeda, por bits.
Da imaterialidade à, cada vez mais, materialidade e, em diante, à
imaterialidade (abstração). É uma tendência à inexistência, ao desaparecimento.
Demonstra e expressa tanto o desenvolvimento da relação social de valor quanto,
em diante, sua tendência à autossupressão. O dinheiro digital, virtual, é,
assim, a forma material última.
Toda moeda
tem dois lados, mas quatro dimensões.
Tempo é dinheiro: o capital reduz o tempo de
trabalho, o tempo de reprodução, o tempo de circulação, enfim, seu fundamento
abstrato. A tendência à moeda unificada visa acelerar as rotações do capital,
reduzir o tempo e o custo de circulação, facilitar o movimento do dinheiro e da
mercadoria. Doutro modo, sem maior unidade interfronteiras e monetária, as
crises seriam mais duras econômica e politicamente, as barreiras à produção
capitalista seriam sentidas com maior abalo.
O tema do
dinheiro leva-nos ao seu destino sob o socialismo. Um progresso contínuo e
desigual de deflação, aumento da produtividade do trabalho, fará o caminho da
extinção daquela forma mercantil; quando surge a possibilidade produtiva de uma
oferta tal que os preços fiquem abaixo dos custos de produção, então será a
hora de encerrar a forma do valor de troca na distribuição de parte
considerável dos produtos – há um salto. Com algum atraso, a forma de
distribuição será mudada. N’O Capital II, Marx conclui:
Não entra em cogitação na produção socializada o capital-dinheiro.
A sociedade reparte a força de trabalho e os meios de produção nos diferentes
ramos de atividade. Os produtores poderão, digamos, receber um vale que o
habilita a retirar dos estoques sociais de consumo uma quantidade
correspondente a seu tempo de trabalho. Esses não são dinheiro. Não circulam.
Na transição
ao socialismo, os cartões de débito e crédito, suportes do dinheiro
digitalizado na revolução informacional, permitirão absorção muito mais exata
dos dados sobre consumo, demanda, necessidades sociais e fluxos na distribuição
de produtos. Um banco único estatal com dinheiro virtualizado, encaminhando o
fim dessa forma enquanto forma do dinheiro, o permitirá. Tais cartões (ou mesmo
o uso de celulares) deixarão de ser suportes do meio de circulação e endividamento.
O desenvolvimento técnico aí pede nova forma social[7].
Percebemos, logo, o limite determinado historicamente sobre o maior crítico e,
ao mesmo tempo, maior teórico do capitalismo: dos vales permitíveis das I e II
revoluções industriais, com seus limites inerentes, à contabilidade geral
científica, rápida e precisa, na produção e na distribuição, possível desde a
III revolução tecnológica. Lenin afirmou que o controle financeiro sobre a
produção oferecia bases ao socialismo, ao planejamento geral; o controle também
sobre a distribuição, os processos de troca, conclui a tarefa histórica.
MEIO DE
PAGAMENTO
A relação credor-devedor
generalizou-se no capitalismo contemporâneo. Para manter a rotação do capital,
unidade de produção e circulação, o capitalismo endividou os assalariados, as
empresas e o Estado.
Quando o
dinheiro é meio de pagamento, o comprador recebe o valor de uso antes de dar,
em troca, o valor da compra. A generalização do meio de pagamento ao mesmo
tempo esconde e revela que as relações sociais podem prescindir das relações de
distribuição burguesas, da mediação do mercado, isto é, dos preços. O endividamento
geral da sociedade é mecanismo de retardo de explosão na forma de crises
cíclicas mais duras, portanto retardo também da possibilidade de socialismo. A
superprodução crônica latente é base da abundância socialista, mas, sob as
relações atuais, é dado um estímulo ao consumo por meio da dívida (demanda
fictícia). As forças produtivas evoluíram, mas as relações de produção
mantêm-se: a contradição toma forma de uma relação jurídica entre credor e
devedor.
A não
mediação imediata do dinheiro na troca, como meio de pagamento, generaliza-se
como realidade invertida da futura não mediação do dinheiro na sociedade. Em
momentos históricos muito diferentes, houve também processos transitórios para
novos modos sociais a partir da luta de classes entre devedor e credor:
A luta de classes no mundo antigo, por exemplo,
apresenta-se fundamentalmente sob a forma de uma luta entre credores e
devedores e conclui-se, em Roma, com a ruína do devedor plebeu, que é
substituído pelo escravo. Na Idade Média, a luta tem fim com a derrocada do
devedor feudal, que perde seu poder político juntamente com sua base econômica.
Entretanto, a forma-dinheiro – e a relação entre credor e devedor possui a
forma de uma relação monetária – reflete aqui apenas o antagonismo entre
condições econômicas de existência mais profundas.
A
distribuição como distribuição apenas de valor de uso está latente. A forma
jurídica, a forma da dívida, esconde a possibilidade posta. Surge, então, no
horizonte a necessidade de exigir o cancelamento total e irrestrito das dívidas
dos trabalhadores e pequenos empresários como parte de um programa de transição
em nossa época.
O alto
endividamento dos Estados, frequentemente para lidar com as crises do sistema,
é um fator da crise latente do aparelho estatal capitalista, junto a outros
fatores que visam dar fôlego à lógica do lucro (privatizações; grandes empresas
militares, de produção de armas e componentes até mercenários etc.). Nas
empresas, conseguiu-se o desenvolvimento máximo por meio de dívidas impagáveis,
o que coloca a falência e o maior controle financeiro sempre diante de si, em uma
fuga constante para frente. Marx já observava a relação em que uma fábrica
adianta (ou seja, dá o valor de uso antes de receber o valor em dinheiro) seu
produto, matéria-prima, para outra fábrica, que por sua vez também adianta suas
mercadorias ao comerciante, que, enfim, adianta a mercadoria ao consumidor, que
somente paga após certo prazo… O alto grau desse processo hoje é o que
demonstra a relação de valor e de preço prestes a desabar, sendo substituído
pela distribuição planejada dos valores de uso.
A concepção
errônea de que o dinheiro é uma convenção social, não uma necessidade imposta
"inconscientemente" pelo grau e tipo de desenvolvimento social
específico e histórico, tem ganhado força porque tem alguma verdade em si, pois
o avanço da humanidade já pode fazer do dinheiro mera convenção social, ou seja, pode descartá-lo na lata de lixo da
história ou como peça curiosa de museu, onde estará escrito: por este pedaço de
papel, os homens matavam uns aos outros.
A VARIAÇÃO
DA TAXA DE JUROS
Como
debatemos em outro capítulo, a taxa de juros responde, no sentido de
balizar-se, à taxa de lucro; aquele é uma parte deste e o juro é uma parte do
lucro total. Mas a variação da taxa de juros deve-se, de modo geral, à demanda
por dinheiro. Marx faz tais afirmações nos manuscritos d’O Capital III são
manuscritos, faltando revisões e aprofundamentos. Neste e no próximo
subcapítulos, regataremos Marx para polemizar com o reformismo teórico e, no
necessário, pôr algumas atualizações.
A elevação
ou a queda dos juros são duas táticas burguesas para o enriquecimento, sem
distinção, por isso a burguesia e seu Estado atuam à revelia das teorizações em
que defendem um ou outro mecanismo; usa ora um e ora outro. Por quê? Porque a
tendência – à elevação ou queda[8] –
transforma-se em sua negação, seu inverso. Vejamos um exemplo típico. A
elevação de juros aumenta o lucro dos bancos, leva à falência as empresas “em
excesso”, aumenta o desemprego, o que rebaixa salários e eleva a disciplina dos
assalariados (quebra as greves), permite fusões de investimentos, atrai
investimento especulativo influenciando o câmbio (importações mais baratas)
A taxa de
juros tendendo a orbitar em torno a um valor médio próximo de zero em vários
países mantém tal tendência de flutuação, embora de maneira tão sintomática
quanto ao fim do sistema capitalista. Há menor margem de manobra dos governos
com a limitação ferramental dos juros desde sua queda para os atuais níveis.
Fica cada vez mais difícil o governo estadunidense manter a meta de 2% de
inflação anual com objetivo de pleno emprego assim como há dificuldade de o
Brasil manter a meta de inflação de 4,5%. Tais metas, aliás, não são obra de
uma economia supostamente pura, são uma resposta à luta de classes; algum nível
de estabilidade prolongada faz-se necessário para o funcionamento do capital. Há
ainda outro detalhe de época. Se um governo força por mais tempo que o
necessário a queda da taxa de juros, como no caso das medidas anticíclicas do
governo brasileiro desde 2008, ou, ao contrário, força seu aumento por maior
período, logo mais intenso será, depois, a ação oposta a qual o Estado estará
forçado a promover; assim, o aumento da taxa de juros no Brasil a partir de
2015 foi explosivo, algo como uma compensação relativo ao período anterior.
Descobre-se
que a tendência geral de elevação ou queda dos juros depende de fatores
objetivos e endógenos. Mas, em si mesma, uma decisão singular do banco central
sobre a taxa de juros é subjetiva e exógena (hoje, abstração). Uma sequência de
medidas, que respondem a fatores materiais em geral, pode até ir contra as tendências
e exigências da realidade, porém então fomenta condições, também políticas,
para que a macrotendência econômica imponha-se. A oposição entre a
endogeneidade ou exogeneidade da taxa de juros tem sua resolução proposta, pois
medidas “em si” determinadas pelo governo ou Banco Central representam, com
acidentes, já que o fator exógeno tem margem de ação, uma legalidade quando
vistas em conjunto. Vejamos um caso reconhecidamente extremo. O governo
brasileiro elevou a taxa de juros para os estratosféricos 68,91% (!) em 1994;
tal decisão foi em si determinada de forma exógena, foi uma decisão política.
Mas qual motivo justifica tal ação? Algo forçou a subjetividade a pensar
medidas do tipo? A resposta: sim: por mais de uma década vivia-se uma situação
de hiperinflação com pleno emprego dos fatores de produção, greves duras e
longas, crescimento radical da esquerda, instabilidade econômica e política
constantes. Então foi necessário tal medida para atrair capital especulativo,
dólar, e forçar a valorização do câmbio para em torno de 1 real equivalente a 1
dólar, ou seja, explodiu a entrada de importados baratos, empresas nacionais
quebraram diante dos juros e da concorrência, isso gerou um desemprego que – junto
com mercadorias de baixo preço – encerrou o longo período de grandes lutas
sociais. Em diante, a partir dessa nova base de referência, a taxa de juros
passou por seus ciclos de queda para, em alternância, o período oposto, de
elevação, até chegar ao histórico 2% em 2020. Logo, a determinação dos juros é
e não é exógena e ao mesmo tempo é e não é endógena.
Vale dizer
que, sob o capitalismo, a variação da taxa de juros pode ser em parte
substituída pela mudança dos preços de energia (elétrica, gasolina etc.)
regulados pelo governo. Tais mercadorias afetam as demais e a demanda e a
oferta, o rumo do dinheiro etc.
A ASSIM
CHAMADA “TEORIA MONETÁRIA MODERNA”
No
desenvolvimento do capitalismo no século XX e início deste século, inflou-se
uma base social que deve ser considerada pela teoria das classes: o setor médio
do assalariado servidor público, uma parte da pequena burguesia, entre o
operário e o burguês. Com a ampliação
numérica do número de membros deste grupo social e certa precarização do seu
trabalho, houve uma esquerdização destes, expresso, por exemplo, na adoção dos
métodos proletários de luta, como a greve. É natural, portanto, que surjam
teorias que representem este setor. Assim, teóricos afins defendem o
fortalecimento do estado burguês, os serviços públicos, contra as privatizações
e pela adoção da política econômica keynesiana. Recentemente, a assim
autoproclamada Teoria Monetária Moderna (MMT) busca destacar-se em meio ao
reformismo político de esquerda. Dada a
moda teórica recente de tal concepção, vamos aqui discordar de algumas de suas
conclusões indo ao núcleo de sua natureza.
A pergunta
universal do nosso artigo é se Marx estava correto ao afirmar que o capitalismo
tem contradições inerentes ou, ao contrário, podemos encontrar algum nível de
estabilidade interna por dentro do sistema vigente; ou seja: se o reformismo e
o centrismo (que está entre a reforma e a revolução) ou o marxismo tem razão.
A MMT
afirma: 1) é o Estado a fonte do dinheiro; 2) os impostos sevem apenas para
retirar excesso de moeda e nunca para fins de financiamento estatal; 3) então, o
Estado pode criar dinheiro “do nada” ao ponto de produzir permanente pleno
emprego. Vamos aos elementos que impedem a proposta de realizar-se.
1. O Estado
A MMT tem
por premissa o Estado abstrato, sem classe; o aparato estatal é, nesta visão,
apenas o ente racional e bastam boas propostas para tudo dar certo… O caráter
de classe da principal superestrutura burguesa é tema que passa longe dos
teóricos da corrente aqui criticada. Adota-se a concepção de parte da classe
média, a dos servidores públicos em especial: o Estado é mais ou menos em si
neutro e disputável, pode ser ganho para esta ou aquela concepção. A luta de
classes pode, em tal visão de mundo, ser mesmo útil para pressionar e gerar
algum equilíbrio de forças opostas (veremos como isso é inviável).
A MMT ignora
que a principal instituição estatal são as forças armadas e que, para garantir
as regras do capital, a força objetiva das armas, além de toda burocracia
interna, pode ser usada para garantir que tudo ocorra tal como espera a classe
dominante. Um governo “progressivo” é incapaz de mudar qualitativamente a
natureza do Estado; isso é provado pelos tantos golpes contra governanças de
esquerda, mesmo quando fizeram tão pouco. A lógica da realidade atual impõe-se
nem que seja por meio da bala e do fuzil.
O centro de
uma produção teórica é descobrir porque as coisas são como são e não de outra
forma, porque algo se faz necessário; distanciamo-nos do “como deveria ser”
para entender como de fato o mundo é e os seus motivos. A mera consideração da
natureza do Estado, independente do tipo de governo, já põe abaixo a defesa de
políticas baseadas na MMT. A realidade tem mecanismos internos para impor suas
leis. O mais absurdo é que toda a história humana é negada pela teoria citada
já que, segundo seus teóricos, apenas faltou aos governantes a teoria correta
cuja origem é tão recente… Se as propostas da MMT fossem corretas e viáveis, se
garantisse a prosperidade do capital, os governos teriam pressa em
implementá-las.
2. O pleno
emprego
Este é o
ponto mais decisivo da compreensão e o mais importante deste comentário.
Observemos como o equilíbrio entre as classes é inviável, o que torna o uso
prático da “moderna” teoria monetária um desejo utópico por um capitalismo mais
humano.
Para a MMT,
o máximo do dinheiro “criado do nada” sem inflação é alcançar o pleno emprego
dos fatores de produção cuja medida central é empregar toda a força de trabalho
nacional. Aqui o reformismo fica mais evidente ao deixar de compreender que ao
capital é inerentemente insuportável por muito tempo uma situação de emprego
pleno. Vejamos os motivos.
1. O pleno
emprego, como força de lei objetiva – já que o medo de desemprego quase que
desaparece –, leva necessariamente à onda de greves cada vez mais duras e
confiantes, às paralizações longas, aos ganhos reais de salário; enfim, ao
aumento do custo unitário do trabalho, ou seja, uma parte do que seria lucro
empresarial torna-se salário e custo com direitos sociais. Os trabalhadores
tomam, assim, a ofensiva até mesmo na política
Observamos
tal fenômeno ocorrer até o pico de 2016 no Brasil, antes do efeito do aumento
vertiginoso da taxa de desemprego como política econômica burguesa. A partir da
premissa equivocada de que a crise de 2008 seria apenas um abalo conjuntural, o
governo do PT, esperando a normalização internacional, tomou medidas
anticíclicas como a redução dos juros (em parte permitida pela entrada de
capital especulativo no país, que saída dos países centrais em busca de
melhores rendimentos contra a crise), investimentos estatais, aumento real do
salário mínimo, etc. Observemos os dados a partir de 2013. A quantidade de greves
explodiu:
GRÁFICO 8
Fonte:
(Dieese, 2020)
O número de
horas paradas também – desde 2009:
GRÁFICO 9
Fonte: (Dieese,
2020)
Aqui, temos
de retomar a dialética. A realidade total nunca é como certa máquina ou relógio
ou computador com sua causalidade mecânica; o real é um sistema orgânico, um
organismo, por isso a causa, o (quase) pleno emprego em nosso caso, apenas de
modo atrasado tem efeito nas mobilizações dos trabalhadores; pela mesma lógica
da materialidade, o processo de fim do emprego pleno atrasadamente passa a
reduzir a onda de paralizações. Como razão, o baixo desemprego correspondeu ao
aumento das lutas:
GRÁFICO 10
Fonte: (IBGE,
2020)
GRÁFICO 11
Fonte: (idem,
2021)
Veja-se que
o governo petista[9]
adiou, não impediu, a forma destrutiva da crise por anos, com ações
anticíclicas que fundamentaram um conflito distributivo de longa duração, que
começa a ser revertido apenas com a entrada de vez do desemprego, com o processo
de fim do pleno emprego:
GRÁFICO 12
Fonte: (IBGE, 2020)
2. O pleno
emprego tem como base o aumento do número de empresas concorrendo pelas
parcelas do valor global. O que isso significa? Com maior oferta, os preços
tendem a cair (e o patrão já está perdendo lucro com o ponto 1, a força dos
trabalhadores confiantes com o baixo desemprego). Eis outro problema, por isso
a quebra econômica é bom para algumas empresas e ao capital em conjunto.
3. No
aquecimento da economia, as empresas crescem e podem pagar suas dívidas, o que
reduz os juros. Mas o consumo aumentado e os investimentos a todo vapor leva a
uma demanda maior por dinheiro, o que por sua vez aumenta os juros – por mais
um meio, o burguês "produtivo" é sugado cada vez mais, dessa vez
pelos bancos.
4. Com o
aquecimento da economia, as empresas de monopólio sugam parte do valor global,
que reduz a apreensão de valor em outras empresas, com preços artificialmente
altos. Mas há aqui ainda, aqui, outro caso típico. Pleno emprego dos fatores de
produção, cuja medida é o uso de quase toda a força de trabalho disponível, é
diferente de equilíbrio; enquanto a maioria dos setores está obrigada a
rebaixar os preços, algumas empresas possuem oferta menor que a demanda, o que
obriga aí à elevação dos preços, a sugar valor para si, aumentando os custos
para outros (com matéria prima, etc.), e leva algum tempo para que surjam novas
empresas que aumentem a oferta.
Enfim: o
pleno emprego é crise ou, adotando o raciocínio dialético, o primeiro sinal da
crise por meio de seu oposto – e crise é solução do ponto de vista do capital.
O governo será pressionado a adotar a política econômica correspondente como
foi o caso do governo Dilma II (um golpe de Estado apoiado pela maior parte da
burguesia impôs a política econômica que o governo tinha dificuldade de
assumir, pois havia perdido base social com as medidas do ministro da fazenda
Levy). A crise é uma necessidade do capital.
Se queremos
o pleno emprego, temos de aprender a “política econômica” marxista, o programa
de transição. No lugar da utopia de apenas fazer o Estado forçar o pleno
emprego por emissão de moeda e gasto público, exijamos algo classista, o que
mobiliza as massas quando o desespero as alcança: escala móvel de tempo de
trabalho, ou seja, redução da jornada de trabalho, com o mesmo salário, na
proporção que produza desemprego zero; isto é dividir todo o trabalho disposto na
sociedade entre toda a força de trabalho disposta. Mas é mais fácil o
capitalismo cair do que tal proposta ser aceita, especialmente durante a crise,
e esta é exatamente sua grande força: empurra para uma luta “reformista” pelo o
fim do sistema. É uma política superior à noção de Keynes, muito. Há uma taxa
social, não natural, de desemprego exigido pela própria lógica do sistema
capitalista, portanto quebrar uma de suas leis leva à revolução social. Para
isso, o caminho não é o voto em partidos “progressivos” ou dar bons conselhos
ao capital sobre como é supostamente bom uma economia capitalista a todo vapor,
mas elevar o nível de organização dos trabalhadores.
3. A
desvalorização do dinheiro
É evidente
que o governo pode aumentar a quantidade de dinheiro, acima da arrecadação. Mas
isso é quantitativo, não qualitativo, isto é, deve lastrear seus gastos nos
impostos[10],
lucro de estatais e em empréstimos.
Um
incremento massivo de dinheiro em curto tempo tende a gerar inflação, mesmo que
seja dos ativos financeiros, como temos observado desde 2008. Assim, uma
quantidade maior de dinheiro, acima do necessário à circulação e ao
entesouramento, tende à desvalorização da moeda. Isso é verificável, em
especial desde o fim do lastro direto ao ouro (produzindo, segundo José
Martins, inflação fictícia):
GRÁFICO 13
Assim, uma
política baseada na MMT pode gerar, sob certas circunstâncias e proporções,
fenômenos como a estagflação
O ESTADO E A
CRISE MONETÁRIA
Observamos
que o governo, digamos, sente os sinais de que deve elevar ou reduzir os juros
– e sua ação tem importância vital (a taxa de juros começa endógena e,
permanecendo assim, torna-se cada vez mais exógena – abstração, crise de
abstração! – por bancos centrais e por dinheiro artificial; A=A e… Não-A).
Também soubemos que o dinheiro virtualizado torna-se, em certa medida, artificial
(abstração), tornando também artificial e formal, em alguma medida, o sistema
de arrecadação de impostos e de gastos (ver a última nota de rodapé). Enfim, em
certo grau, a existência e a lógica do sistema é, hoje, garantida
artificialmente pelo Estado, que garante uma regulação capitalista “normal”.
Isso é um sinal negativo, invertido, na artificialidade do sistema, de que uma
ferramenta estatal – desta vez, baseada na democracia participativa e direta,
socialista – é necessária para um verdadeiro planejamento econômico finalmente
possível. Além disso, denuncia que os limites do capitalismo expressam-se
dentro dele próprio. Em nota anterior, dissemos: “Vários marxistas e
economistas perceberam que o Estado, de modo artificial (garantindo o funcionamento
do sistema artificialmente – o que em si merece reconhecimento teórico) impediu
que poderosas empresas fechassem as portas…” Eis uma conclusão inescapável.
Isso é um dos modos de contradição entre a necessidade de desenvolvimento das
forças de produção, exigindo novo modo de vida, e as relações de produção e
superestruturais vigentes.
O Estado e
os bancos mantém e criam o dinheiro de modo artificial (abstração), ou seja,
contradição, uma vez mais, entre forças produtivas e relações de
produção-superestruturas. A aparência de dinheiro sem lastro é real, levada a
sério, o que mina sua essência existencial; eis o contraditório. O dinheiro
perde a medida, torna-se desmedido, um sem medida. A vã tentativa de salvar o
sistema por criação hoje fácil e vulgar de moeda apenas adia e torna mais
explosiva a catástrofe. O dinheiro é, em nosso tempo, um nada que ainda é tudo;
eis o paradoxo. A facilidade atual de criar ou destruir moeda é o sinal de seu
fim, de sua dispensabilidade. Carcanholo pensa a desmaterializacão da forma
dinheiro como uma afirmação do valor, que tende a ser puro conceito – não vê
sua crise como expressão da crise do dinheiro e do valor. No polo oposto, Kurz
uniletariza ao pensar o dinheiro como sem valor, sem ver o lastro oculto na
mercadoria, ou melhor, no seu valor. A “impressão” desregulada de dinheiro é o
quantitativo subordinado tentar dominar o qualitativo dominante; mas, assim, o
quantitativo tende a negar-se em sua autoafirmação arbitrária. Veja-se que o
presidente Biden dos EUA adotou a tática da MMT, criou dinheiro tanto quanto a
política permitiu. Após o início da crise de 2008, a base monetária, saltou de
1 trilhão para 2 trilhões de dólares. Depois, saltou para 4 trilhões. Enfim,
para 9 trilhões! Dinheiro solto, o que nos dá outro exemplo empírico para
demonstrar “pleno emprego é crise”.
GRÁFICO 14
(Fonte: na
imagem)
Mas a
inflação que surgiu com o pleno emprego não é em exato por conta do excesso de
moeda na praça, pois a circulação de dinheiro desabou naquele país:
GRÁFICO 15
Fonte:
Assim, na
Europa e no EUA deram-se todos os sintomas da nova crise mundial após a quebra
de 2008, isto é: desemprego baixo, aumento dos salários, aumento das greves,
aumento do preço das matérias-primas (incapazes de acompanhar como seria melhor
o aumento da demanda industrial, caso dos chips em falta), aumento dos juros etc.
A MMT faliu e envelheceu mal, pois pleno emprego é gerar instabilidade ao
capital e ao capitalismo.
[1] Iniciamos a abstração pelo século XVI,
pelas grandes navegações; portanto, o dinheiro antes e em outros sistemas não
nos interessa aqui. Fumo, conchas, aguardente, açúcar, etc. foram usados como
dinheiro no triângulo comercial Portugal-Brasil-África. Ademais, o comércio
começou como troca entre diferentes povos, iniciando pela troca
mercadoria-mercadoria (escambo), para depois ser uma realidade interna destes.
[2] Essa desigualdade (temporal) da forma dos
dinheiros nacionais e mundial, o ritmo descompassado de suas mudanças, é
tendencialmente reduzida quanto mais evoluído está o capitalismo.
[3]
Durante minha pesquisa, encontrei por acaso, por exposição de um militante, uma
citação creditada a Hitler: "Nós não éramos imbecis ao ponto de tentar
fazer uma moeda [lastreada em] ouro, do qual nada possuíamos, mas para cada
marco que era emitido nós exigíamos um marco de valor de trabalho feito ou de
bens produzidos... Nós ríamos das ocasiões em que nossos financistas nacionais
apregoavam que o valor de uma moeda é regulado pelo ouro e pelos títulos do
tesouro jazendo nos cofres de um banco estatal." Não encontrei nenhuma
prova da veracidade dessas palavras, porém elas expressam muito bem o espírito
das ideias sobre o dinheiro que aqui apresentamos, infelizmente talvez pela
boca de um dos piores homens que a humanidade produziu.
[4]
Esta consequência desenvolve ares de causa. Este caráter duplo relaciona-se com
a decadência do império norteamericano. O dólar como dinheiro e reserva
internacionais, além de manter o nível consumo sustentado no deficit comercial,
permite manter seu poderoso aparato militar em todo o mundo. Por isso,
interessantíssimo o fato de algo tornar-se sua própria negação: a produtividade
e consumo nos EUA permitiu sua moeda torna-se a forma do dinheiro mundial; mas
isso abriu caminho para a desindustrialização futura e entrada facilitada do
capital-mercadoria, com o nível de consumo controlando a luta de classes
interna.
[5] Desde a Guerra do Iraque, é quase uma
sabedoria popular a importância do petróleo para o capitalismo, fonte de
energia e matéria-prima para a indústria (plástico, etc.). Seu preço tem
repercussão vital sobre os demais preços.
[6] Exemplo:
dedução automática da parcela de um empréstimo no salário; este último recebido
pelo trabalhador num – por meio do – banco, não mais em escritório específico
da empresa, como era até a década de 1980.
[7]
Antes, o novo Estado concluirá a digitalização da moeda, como observa Paul
Cockshott: “Remover todo o dinheiro em papel e moeda, substituir por cartões de
crédito eletrônicos.”
[8]
Abstrairemos as pequenas flutuações e focaremos nas “ondas longas”. Além disso,
a teoria que expomos aqui é ainda mais condizente nos EUA; o Fed (banco
central) deste país afeta as taxas de juros nas demais nações ao alterar suas
próprias taxas. Assim, se lá aumentam-se os juros, logo atrai capital para si,
para os títulos de dívida estadunidenses, tirando dólar e investimento de
outros países, que são, em regra, forçados ou pelo menos “estimulados” a
compensar também elevando os juros, para voltar a atrair capital.
[9]
Exato na época de grandes greves, entre 2013 e 2016, um setor da esquerda e de
seus intelectuais, muitos petistas e muitos outros formalmente comunistas,
defenderam a tese antimarxista de que havia no país uma “onda conservadora”.
Tal “onda” pairava no ar, não se sabendo como surgiu nem de onde vinha, e
entrava na consciência de todo o povo… Mas a empiria os desmentiu: se há onda
grevista, logo há aí uma expressão da realidade esquerdizando a massa de
assalariados. Eis tudo. Despois, a moda intelectual e reformista caiu em
desuso, sem o devido balanço ou autocrítica. Daí se observa vários problemas,
entre eles o fato de a intelectualidade acadêmica dita marxista viver em um
mundo paralelo, mais próximo da classe média em seus apartamentos vizinhos, que
entre trabalhadores de fato ou na periferia; isso também se expressa em que, em
geral, estudam e pesquisam o que bem querem, não necessariamente o que o
movimento revolucionário necessita, mesmo que por mediações e no próprio tempo
da teoria, caindo por vezes em discussões alienadas, bizarras por vezes, das
pressas da conjuntura ou da estrutura.
Outro erro naquela
conjuntura, que ainda persiste na esquerda, ocorreu quando caracterizaram a
situação politica, pelo menos a partir de 2013, como pré-revolucionária. Nossas
observações refutam tal análise. O crescimento das lutas foi causado não por
destruição econômica, mas por certa marcha forçada de crescimento, permitido
pelo boom da venda de commodities ao estrangeiro a preços elevados,
especialmente à China (que também adiou a forma destrutiva da crise – a
superprodução de capitais no mundo – em seu território com incentivos
estatais). Logo antes de uma crise propriamente dita, o desemprego cai, os
salários sobem e as lutas crescem; por isso, a situação política era não
revolucionária, mas aí entra outra categoria, momento, tratada em outro capítulo, útil para perceber que
estávamos, por causa de circunstâncias combinadas, em um momento ofensivo, não
defensivo. Com o golpe jurídico-parlamentar contra o governo Dilma (na
aparência, pois, na essência, visava acelerar os ataques contra os
trabalhadores que a governança do PT já não era capaz de aprofundar ao perder
apoio dos assalariados), a situação tornou-se reacionária – e o momento
tornou-se defensivo – porque combinou destruição econômica, perda de direitos,
redução das greves e das lutas, classe média voltada à direita, burguesia
unificada e governos reacionários.
[10] A
MMT afirma que o arrecadado via impostos é destruído, como dados que são, e o
Estado cria, posteriormente, dinheiro de todo novo ao gastar. Assim, a “teoria”
seria correta por ser mera descrição empírica do que ocorre. Ora, se o dinheiro
é destruído em uma ponta do processo, ele passa a existir idealmente na contabilidade estatal, muda de forma, ou seja, é, no
segundo momento, apenas fisicamente (papel, bits) substituído por matéria nova,
que passa a representar em diante aquilo recolhido legalmente. Os teóricos da
MMT separam em absoluto de modo artificial os dois momentos e ignoram a
transição de um para o outro. Descobrimos que os gastos são, portanto,
lastreados, não arbitrários.
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