domingo, 28 de janeiro de 2024

A crise sistêmica - cap. 25 - CRÍTICA AO REGIME LENINISTA PROPOSTO POR MORENO

 

CRÍTICA AO REGIME LENINISTA PROPOSTO POR MORENO

“A história de nossa corrente é a história de seus erros.”

N. Moreno

 

“Não podemos aprender a resolver os problemas de hoje pelos novos métodos se a experiência de ontem não nos abriu os olhos para ver onde foi que estavam errados os antigos métodos.”

Lenin

 

“Devemos recuperar a liberdade de crítica e de criatividade. Devemos devolver a honestidade, a sinceridade e a verdade aos seus postos legítimos. Devemos devolver a independência, a dignidade e a confiança ao pensamento revolucionário.”

Trotsky

 

“Disciplina é liberdade.”

Renato Russo

 

 

Como organizamos a democracia e o centralismo partidários em cada conjuntura? Como estes dois elementos existem em cada momento político? Estas são as indagações presentes nas entrelinhas deste capítulo. Aqui, dividiremos com o leitor uma critica à concepção morenista de regime bolchevique, contrapondo-a à de Leon Trotsky no fundamental.

Para que se desarme, de já, qualquer desconfiança, sugerimos as seguintes conclusões preliminares: a) como explanaremos, Moreno ao mesmo tempo acertou e errou; b) elaborou um regime partidário conjuntural, temporário, sem atentar-se para as mudanças possíveis; c) o autor deste artigo é morenista e absorve deste revolucionário, o maior trotskista depois de Trotsky, um princípio: d)  nunca dogmatizar os mestres e  o marxismo. Em resumo, a máxima leninista esquecida: o primeiro dever de todo revolucionário é criticar seus dirigentes.

 

A REALIDADE DE NAHUEL MORENO

O primeiro passo é contextualizar a situação. No pós-II Guerra o trotskismo era um movimento marginal sob a ameaça constante de degeneração ou, pior, de desaparecer. Ao contrário daquilo que Trotsky prognosticara, o stalinismo tornou-se uma potência no movimento de massas mundial. Deste período, mesmo as novas revoluções socialistas atrapalhavam um trabalho de fato comunista; vejamos: a) a base social dessas revoluções era camponesa, enquanto o trotskismo é uma corrente tipicamente operária; b) desde o princípio, surgiram sob a mão repressora, antidemocracia operária, das burocracias estatais. Estes elementos pendiam objetivamente para o desaparecimento completo do trotskismo. Martín Hernandez, veterano trosko-morenista, relata:

 

Lembro-me quando, em 1968, entrei no PRT – La Verdad da Argentina, que era dirigido por Nahuel Moreno, o maior dirigente trotskista do pós-guerra. O partido, após 25 anos de atuação e depois de ter sido protagonista de grandes acontecimentos da luta de classes, como ter dirigido a grande greve metalúrgica de Buenos Aires, tinha somente 200 militantes.

Da mesma forma, no Peru, apesar de ter dirigido a revolução agrária na década de 1960 e de ter em nossas fileiras Hugo Blanco, o maior dirigente de massas do trotskismo da época, nosso partido nunca teve mais do que 30 militantes.

Nunca me esqueço do informe que recebi, poucos meses após ter começado a militar, sobre as forças da IV Internacional. Nosso partido era um dos maiores. Na França, tínhamos 30 militantes; na Espanha e em Portugal, nenhum. No Brasil e na Venezuela, tínhamos alguns contatos; na Colômbia e na América Central, nada.

E, em 1976 (após a derrota do imperialismo no Vietnã), na Itália, ganhamos para a tendência bolchevique um grupo de estudantes secundaristas. E me lembro, como se fosse hoje, da dura discussão que Moreno teve com aqueles jovens, pois eles queriam ir militar na classe operária italiana e Moreno, que sempre teve a obsessão de inserir nossos partidos e grupos na classe operária, após longas discussões, convenceu-os a não irem para o movimento operário. Seu argumento foi muito simples: “Vocês ainda são muito débeis e se forem para a classe operária o stalinismo vai acabar com vocês.” O PC italiano tinha, naquela época, um milhão de filiados e controlava, com mão de ferro, todo o movimento operário. (Hernández, 2015)

 

A duríssima dificuldade exposta é chave para compreendermos a atualização do regime partidário proposta por Moreno. Um projeto partidário, com sua forma organizativa, sendo uma superestrutura, deve ser explicada a partir da realidade que a forma. Para isso, precisamos recordar que, com a revolução cubana, o imperialismo patrocinou ditaduras militares por toda a América Latina, tradicional base territorial do trotskismo bárbaro (morenismo). Inevitavelmente, agregou-se mais um importante elemento impeditivo. Este tipo hostil de situação alimenta características exóticas, de seitas, nos partidos – e voltam-se para dentro de si. Segundo Cannon, relatando a clandestinidade vivida pelo PC americano:

 

O movimento permaneceu ilegal desde 1919 até o começo de 1922 depois que o primeiro choque das perseguições passou e os grupos e células se acostumaram a sua existência ilegal, os elementos na direção que tendiam ao irrealismo ganharam força, tanto e quanto o movimento estava então completamente isolado da vida pública e das organizações operárias do país.

Então, eu, por minha parte, me dei conta pela primeira vez do completo mau da enfermidade do ultra-esquerdismo. Parece ser uma lei peculiar que quanto maior é o isolamento de um partido da vida do movimento operário, quanto menor é o contato que tem com o movimento de massas, e quanto menor é a correção que este pode exercer sobre o partido, tanto mais radicais se tornam suas formulações, seus programas, etc. (…) Vocês vêm, não custava nada ser ultra-radical porque de qualquer maneira ninguém lhe prestava atenção. Não tínhamos reuniões públicas, não tínhamos que falar aos operários ou ver quais eram suas reações à nossas consignas. Assim, os que gritavam mais forte em nossas reuniões fechadas se converteram em mais e mais dominantes na direção do movimento. A fraseologia do "radicalismo" teve seu dia de festa. Os anos iniciais do movimento comunista neste país estiveram mais que consagrados ao ultra-esquerdismo.

[…]

O movimento teve uma vida interna muito intensa, até porque estava isolado e voltado para si mesmo. As disputas fracionais eram ferozes e largamente extenuantes. (Cannon, 2006, grifo nosso)

 

 

COMO MORENO REAGIU

O que apresentamos levou Moreno a precaver-se das tendências degenerativas nos partidos. No fundamental, propôs: a) proibir a possibilidade de frações e tendências em períodos não pré-congressuais; b) legalizar a possibilidade de fracionamento para meses antes do congresso partidário. Podemos deduzir que a fórmula proposta pelo argentino é útil para partidos clandestinos e muito minoritários ao girar a organização para fora de si; porém, esta é uma verdade em parte. Queremos demonstrar ao leitor o caráter antidialético da proposta deste marxista. Por isso, finalmente, vamos à defesa dele, nas “Teses Para Atualização do Programa de Transição”:

 

Não pode existir democracia sem direitos para as tendências e as frações. Mas este é um direito excepcional porque o surgimento de tendências e fracções é uma desgraça para um partido centralizado para a ação. A discussão permanente em todos os órgãos partidários é a mais grande ferramenta de elaboração política para um partido trotskista. O partido deve viver discutindo sistematicamente. Tem que confrontar experiências individuais ou de organismos distintos e setores de trabalho distintos para que através do choque e da discussão surja una linha correta, a melhor resultante. Porém esta virtude da discussão permanente se transforma no oposto quando um partido vive discutindo permanentemente desde grupos organizados em frações e tendências, e muito mais ainda se estas sobrevivem através do tempo (aqui notamos a real origem de sua preocupação – comentário do autor). Quando isto ocorre, as frações deixam de sê-lo para converter-se em camarilhas. O partido deixa de atuar em forma unitária para e rumo ao movimento de massas para voltar-se para dentro, se paralisa, cria um ambiente parlamentário de polémica permanente e inevitavelmente deixa de atuar de forma unitária e passa a ter como atividade principal a discussão, isto é, deixa de atuar principalmente no movimento de massas. A discussão é um meio fundamental e decisivo para nossa atividade, mas: só um meio. A existência de frações e tendências permanentes transformam a discussão num fim em si e não num meio do centralismo e da ação unida frente ao movimento de massas. (Moreno, TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro partido y de nuestra internacional, 2001, grifos nossos)

 

Nahuel Moreno inverteu a causalidade. A origem do fracionamento permanente era, como nos indicaram as citações de Cannon e Martín, a permanente tendência à marginalização, a fragilidade interna – não o direito estatutário de fracionamento. Ainda assim, o argumento da Tese encontraria algum acordo em Trotsky? Não. Para este, a simples possibilidade de existir tendências e frações era, em si, uma necessária forma de pressão e controle da base sobre a direção e, por consequência, um mecanismo antiburocrático. Diz Leon:

 

Naturalmente, grupos, assim como diferenças de opinião são um mal. Mas esse mal é uma parte necessária do desenvolvimento dialético do partido, assim como as toxinas o são na vida do organismo humano.

A transformação dos grupos em frações organizadas e fechadas é um mal muito maior. A arte de dirigir o partido consiste precisamente em prevenir tal desenvolvimento. É impossível chegar a tal ponto pela mera proibição.

[…]

Porque a tarefa não consiste em proibir frações, mas em evitá-las. (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010, p. 202, grifo nosso)

 

Como lemos, para Trotsky é o inverso. A contradição apresenta-se como parte inerente da realidade, incluso a de um partido revolucionário. Negar a contradição apenas muda ou camufla seu caráter. A possibilidade de um corpo dirigente sofrer reclamações da base, de perder a direção, de se desmoralizar é – por si mesma – um recurso democrático, um controle, um estado de alerta; além de abrir espaço para que políticas erradas e irrealistas possam ser corrigidas. Sequer precisa uma luta interna existir de fato: basta existir o mecanismo, o meio, uma pressão subjetiva sobre os dirigentes. Porém Moreno enfraquece a democracia vertical, da base para direção, e mantém a horizontal, dentro dos organismos.

 

 

A DIALÉTICA DO REGIME

Ao mesmo tempo, há um acerto no erro de Moreno. Precisou adaptar o regime partidário às duríssimas condições em que militara. Ou seja, a proposta dele seria correta apenas conjunturalmente, nunca em permanência. Com o regime partidário que propunha, ocorreu exato o que ele temia: “Assim evitaremos o grave perigo de criar movimentos trotskistas com influência de massas que, chegado o momento da ação, vejam-se anárquicos e incapazes de atuar com a centralização e disciplina de um exército revolucionário.” (Moreno, TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro partido y de nuestra internacional, 2001) Entretanto, foi isso de fato o que ocorreu com o MAS da Argentina, criado por Nahuel, após adquirir influência de massas. Tal conclusão também desconsidera a histórica do partido bolchevique, que teve frações e verdadeiras rebeliões internas ao longo do processo revolucionário iniciado em 1917.

A tendência geral da matéria é ir do simples ao complexo. Complexidade é, necessariamente e inclusive, acúmulo maior de contradições e de diferenças internas. Assim também acontece com partidos. Quando são marginais e sob ditaduras, precisam de uma forma do regime; quando estão sob democracia burguesa, quando possuem influência de massas ou de vanguarda, quando são inexperientes, etc. precisam mudar a forma de se organizar, senão estagnam ou implodem. Podemos formular, regra geral, o seguinte: quando a realidade e o partido estão mais complexos, então o regime partidário deverá, também, tornar-se mais complexo.

De modo sugestivo, Moreno descreve a realidade para justificar o afrouxamento da democracia interna nos partidos:

 

Todos os nossos partidos e nossa Internacional em seu conjunto reivindicam orgulhosos, como seu exemplo, a estrutura do Partido Bolchevique. Isso significa que consideramos que nosso partido tem que estar formado por revolucionários professionais por um lado e que deve ter um regime centralista democrático por o outro. Reivindicamos mais que nunca o centralismo como a obrigação número um de todo partido trotskista. Em esta época revolucionária o trotskismo é perseguido implacavelmente, não só pelo estado burguês, os partidos burgueses e os bandos fascistas, senão também pelos partidos oportunistas, os quais com toda razão nos consideram seus inimigos mortais. Além do mais, nossos partidos se constroem para levar a cabo a luta armada pela tomada do poder, a insurreição. Este supremo objetivo só poderemos alcançar com uma rígida disciplina, cuja única garantia é o centralismo e uma dedicação que só pode ter os militantes profissionais. (Idem, grifo nosso.)

 

O curioso é que Stalin usou exato o mesmo argumento (Broué, 2014) para justificar o fim das lutas fracionais no partido e na terceira internacional quando tomou o poder. Mais uma vez, citaremos Trotsky contra Nahuel Moreno. Ao afirmar o caráter temporário e excepcional, quando na fase final da guerra civil na URSS, da proibição de frações no partido Bolchevique; o fundador do Exército Vermelho explica:

 

Mas a decisão do X Congresso do partido sobre frações ou grupos, que mesmo então precisava de interpretação e aplicação jurídica, não é em caso algum um princípio absoluto que está acima de todas as necessidades do desenvolvimento partidário, independente do país, da situação e do momento. (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010)

 

E critica o stalinismo, que impôs sua fórmula a todos os partidos da IC:

 

Um partido novo representando um organismo político em completo estágio embrionário, sem nenhum contato real com as massas, sem experiência de direção revolucionária, sem formação teórica, já foi dos pés à cabeça com todos os atributos da “ordem revolucionária”, ficando parecido com um menino de seis anos de idade que usa a armadura de cavaleiro do pai.

[…] Sem uma verdadeira liberdade na vida partidária, liberdade de discussão e liberdade de estabelecer seu rumo coletivamente, através de agrupamentos, esses partidos nunca se tornarão uma força revolucionária decisiva. (Idem, p. 206, 207, grifo nosso.)

 

Centralismo e democracia são polos internos, necessários, opostos, complementares e deve-se evitar o distanciamento um do outro ou um excessivo domínio contraditório de um sobre o outro, e vice-versa. No partido, o centralismo é uma reação à barbárie capitalista e necessidade de enfrentá-la; a democracia representa a necessidade do futuro, da desalienação e seu desejo, um leve sintoma do comunismo. O capitalismo costuma empurrar-nos mais para a tendência centralista, com a burocratização; no socialismo, a organização partidária, por outro lado, será cada vez mais democrática, frouxa, aberta, pois tenderá ao completo desparecimento em uma sociedade comunista; por hoje, ambos são completamente necessários, sendo a democracia partidária o polo determinante.

Os fins justificam os meios, mas nem todo meio é válido (ou não em todas as situações). A democracia partidária não é nem pode ser uma concessão da direção para sua base, senão, do contrário, tratar-se-á de um “estalinismo esclarecido”, uma forma de falsa democracia partidária. Todos os partidos estalinistas adotam o centralismo; apenas partidos revolucionários procuram preservar em suas organizações a superioridade da democracia interna bolchevique, polo determinante do centralismo-democrático[1].

Assim:

 

Centralismo burocrático = supremacia do centralismo, resquícios e aparência de democracia como aplicação do centralismo. È proibido a formação de frações, tendências e grupos de opinião; os dirigentes não são eleitos pela base, desde uma disputa política, com cargos revogáveis.

Burocratismo não centralista = estabelece-se uma direção partidária dotada de privilégios (parlamentares, audiência, recursos, etc.) enquanto as estruturas de base fragmentam-se em democratismos, liberdade individual sobre a coletiva, indisciplina, lutas fracionais permanentes, organismos de base para intermináveis debates, etc.

Centralismo democrático = supremacia da democracia, centralismo como aplicação da democracia. Frações, tendências e grupos de opinião temporários para fins de disputa política e de cargos; dirigentes eleitos pela base com cargos revogáveis.

 

O centralismo democrático evita cair nos dois polos de um mesmo erro. Hoje, um dos sentidos de burocracia é esta, sob o capitalismo: regras impessoais e fixas que focam no resultado máximo seja quais foram os custos e perfis humanos e, em central, ignorando-os. Aqui, Moreno cedeu à moral administrativa burguesa, que ignora o contexto e suas variações etc.

 

CONSEQUÊNCIAS

De forma preliminar, queremos escandir algumas consequências. Na medida em que um partido torna permanente a proposta morenista, ocorre:

1.      Com a escassez de polêmica, atrasa-se a formação dos militantes e quadros;

2.      À medida em que a organização cresce, organismo dirigente tende a ter autonomia, desloca-se em relação a sua base;

3.      A partir do segundo ponto, é mais difícil a base controlar a direção;

4.      Torna-se difícil perceber os erros e suas consequências na medida em que faltam meios para expressar polêmicas;

6.      As contradições inevitavelmente acumulam-se, tomando forma fracional;

7.      Via de regra, por causa da proibição, as frações/tendências já surgem deformadas: na forma de disputas por cargos, frações de direção, grupos de amigos-militantes, reuniões informais, frações secretas;

8.      No campo psicológico, os militantes movem-se por fé, não por confiar na democracia interna; teme-se polêmicas; consideram toda diferença como divisão do partido; a direção desenvolve arrogância e desconfia da base;

9.     Surge a tendência a cometer mais erros políticos, com dificuldade de corrigi-los;

10.  Ao impedir a existência de válvulas de escape, ocorrem rupturas, à esquerda e à direita, por indivíduos e por grupos, em relação à posição oficial.

 

Em síntese, o partido vive um permanente ciclo crescimento-crise-ruptura. Por isso, tende a estagnar em um tamanho estável. Em 2014, o congresso da LIT, fundada por Moreno nesta concepção estática de centralismo democrático, reconheceu uma lei de seus partidos: frágil relação, em ciclos, de crescimento-crise-ruptura das suas organizações. Percebeu-se uma “lei”, mas a direção da internacional foi incapaz de saber o motivo, que parte do problema é a concepção de regime limitada[2].

Para guiarmos os pontos acima; Leon Trotsky explica que, nos momentos mais decisivos, a direção é sempre muito mais vacilante que a base:

 

“As bases do partido proletário são, por sua própria natureza, muito menos suscetíveis à pressão da opinião pública burguesa. Mas certos membros do topo e camadas médias do partido irão infalivelmente sucumbir em maior ou menor medida ao terror material e ideológico da burguesia no momento decisivo. Não levar a sério esse perigo é não saber lidar com ele. Não há, é claro, fórmula mágica contra isso que sirva em todos os casos. Mas o primeiro passo necessário para lutar contra um perigo é entender sua origem e sua natureza” (Idem, p. 163).

 

Apresentamos ao leitor algumas perguntas. Se há possibilidade de agrupamentos internos apenas próximo aos congressos, então como os grupos conseguirão formar-se já que estes disporão de pouquíssimo tempo para reunir membros e amadurecer ideias? Como a base efetuará algum controle sobre os dirigentes? Como, em caso de grave erro, militantes conseguirão acionar 1/3 das regionais para convocação de um congresso extraordinário? Como evitarão que a direção adie congressos? Em partidos pequenos estas perguntas/contradições podem ser resolvidas com alguma facilidade, mas a situação muda quando crescem.

Ao mesmo tempo, precisa-se evitar fracionalismos de todos os tipos. Um partido pequeníssimo – constituído de uma única regional com 20 ou 30 membros – suporta, por exemplo, boletins individuais com opiniões e propostas vindas da base. Porém, o mesmo não serve a um partido com 3.000 membros, pois este viraria um clube de debate e papéis; neste caso, a possibilidade de agrupamentos é a alternativa saudável (deve-se negar proibir documentos individuais, pode-se estimular a formação de grupos; pois é sinal de problema imensamente mais profundo, acumulado por longo período no subterrâneo, que surja um mar de boletins internos antes de um congresso). Já em um partido com influência de massas como o Bolchevique a partir de 1917/8, pode-se, como ocorreu, publicitar polêmicas e propostas em espaços específicos da imprensa partidária. São exemplificações para nos guiar a reflexão. Se, por outro lado, um partido de vanguarda tem alta contradição interna, caso de uma luta fracional prolongada, pode adotar aspectos de um partido grande ao divulgar suas polêmicas aos simpatizantes.

O nível teórico da base, a experiência prática geral, a cultura nacional, a conjuntura, o tamanho do território onde existe, a composição de classe dos membros[3], etc.: todos estes elementos ajudam ou atrapalham, consciente ou inconscientemente. Para perceber e corrigir, uma compreensão correta, dialética, do regime leninista faz total diferença[4].

No entanto, o risco da liberdade de fracionamento a qualquer instante é a direção preservar-se por meio do autoelogio, criar uma imagem idealizada de seus membros na base, evitar autocríticas ou fazê-las apenas para nada mudar, além de manobras de exclusão dos membros “espertos demais”.

É necessário cultivar, em permanência, a tolerância cultural às disputas. É famoso, embora pouco seguido, o fato de o PC Alemão ter expulsado um membro da direção do partido por ele ter feito críticas corretíssimas, mas públicas; Lênin fez o possível para que o partido alemão voltasse atrás, reintegrasse os direitos do antigo membro. O trotskysmo põe como grande exemplo o fato de um militante, com altíssimo talento teórico e prático, elogiado por Trotsky, ter sido expulso do SWP americano após dirigir uma poderosa e vitoriosa greve de caminhoneiros, mas sem estar centralizado no partido (lembremos que ele provavelmente abriu mão de uma grande carreira intelectual para ser proletário). Ora, esse não é o espírito do leninismo, que medeia tanto quanto for possível. Quando o SWP americano entrou em duríssima luta fracional, sobre defender ou não a URSS, Trotsky propôs que os debates fossem públicos para dar toda a ideia a todo o partido de que, em situações limites, a organização era a mais democrática possível, injustificando rupturas (algo que, por exemplo, o trotskista PSTU do Brasil não fez na dura história recente, quando necessário); vale votar, em tal momento, Trotsky comentou que tendências estalinistas, autoritárias, estavam afetando o bolchevismo da própria IV Internacional, inclusive nas direções majoritárias dos partidos membros. Vejamos o caso limite, situação revolucionária na Rússia em 1917; às vésperas da tomada do poder, kamenev e Zinoviev denunciam na impressa o plano de “golpe” de seu partido; Lenin desespera-se e exige a expulsão imediata deles, mas o partido votou contra, o que é uma lição (logo a tolerância deve ser ainda maior sobre militantes de menor cargo). No mais, nesse mesmo período crítico Lenin dispôs-se inúmeras vezes a quebrar a disciplina do partido em nome do que concluiu como correto. O nome centralismo democrático pode ser, assim, substituído por democracia centralista.

 

A INTERNACIONAL

Em 1971, no congresso da IV Internacional, Mandel acusou Moreno de proibir grupos internos. Este, sem demora, percebendo a tentativa de desmoralização, respondeu aquilo que expomos: pode-se nos períodos pré-congressuais. Independente disso, o fundador da LIT explica sobre o regime do partido mundial e suas seções:

 

Nós estamos construindo a mais formidável arma organizativa revolucionária que tem conhecido a historia: um partido mundial bolchevique. Em este processo de construção do partido se impõe, para esta etapa, fortificar o polo democrático e não centralista, justamente porque nossas direções, tanto nacionais como internacionais, todavia não tem ganhado um grande prestígio político ante as bases de nossas sessões por seus êxitos na direção do movimento de massas. Só esse prestígio poderia fortalecer o polo centralista e disciplinado; portanto, deve primar o aspecto democrático. (Moreno, ¿Partido mandelista o partido leninista?, 2001)

 

A citação acima poderia ser muito bem usada para afirmar que o regime de partido tal qual Moreno propõe vai contra as necessidades partidárias. Se o polo democrático deve ser o mais forte, então o estatuto da organização deve corresponder à observação.

Também encontramos uma singularidade. No texto há a valorização do aspecto psicológico, subjetivo, do regime: o centralismo será maior quanto maior for a moral da direção; e o mesmo ao contrário. Porém, sendo importante, este elemento é relativo, auxiliar. Se o prestígio facilita o caminho, a democracia interna é uma necessidade absoluta tanto quanto o centralismo.  Ou seja, claras garantias – mesmo aparenciais, estatutárias – de democracia são vitais; do contrário, congressos, reuniões, boletins, debates e autocríticas serão nada mais que manobras para dar algum verniz não-estalinista aos dirigentes. Incluso em nível internacional, uma direção mundial qualificada e testada deve permitir às direções nacionais produzir suas próprias políticas e testá-las na prática, pois apenas assim ocorrerá o amadurecimento de equipes dignas de situações revolucionárias.

Exemplifiquemos com a própria história de Moreno. Por suas posições minoritárias, sua corrente ficaria fora da IV Internacional quando do início de sua atuação, após a II Guerra; mas uma nova proposta do SWP criou os partidos simpatizantes ao lado dos partidos oficiais do mesmo país, no caso, da Argentina. Em seguida, Pablo, principal dirigente, tenta fechar o regime interno e organizar uma fração secreta contra o SWP, sua oposição interna; a reação desta corrente, ao lado de Moreno, permite uma luta fracional que desemborca em ruptura – e isto preserva o acúmulo programático, prático e teórico da corrente. Após a revolução cubana, há uma reunificação das correntes trotskystas; Moreno participa do processo para não ficar isolado internacionalmente, a partir das garantias de sua existência política como tendência – tendo organizado, em seguida, rebeliões internas. Sua experiência em tendências e frações até aqui se lhe revelou novos problemas e novos acúmulos. A capitulação final do principal dirigente do SU, Secretariado Unificado, Ernest Mandel, expressando seu centrismo ao colocar-se contra a defesa da brigada trotskysta Simón Bolivar, na Nicarágua, gera uma ruptura internacional. Isto abre caminho para a Fração Trotskysta, de Nahuel Moreno, tornar-se a LIT. O que percebemos, como balanço geral: a possibilidade de Nahuel Moreno, desde o princípio, organizar-se em tendências e frações, permitiu: 1) manutenção da democracia interna, do debate; 2) ruptura e reorganização caso houvesse degeneração; 3) educação acelerada; 4) evitar o isolamento. Não teria avançado se o regime da IV fosse igual ao regime que propunha aos partidos de sua fração e as internacionais que dirigiu. Este balançou faltou-lhe.

Das afirmações concluímos a defesa de um regime semelhante em um partido mundial, com um adendo: por razões de convivência e espaço, parece mais difícil a articulação de frações e tendências internacionais. Ter em conta esta dificuldade já nos ajuda. Por isso, torna-se ainda mais necessário um regime que permita frações, tendências e grupos de opinião (e estudo) a qualquer momento no partido internacional. Além disso, a sede da Internacional deve ir para outro país, um pobre de preferência, que não a nação do partido “mãe”, assim diminuindo suas pressões enormes sobre a direção internacional; Lenin, ciente disso, queria que a III Internacional funcionasse na Alemanha, não na URSS.

 

O PARTIDO E O SOCIALISMO

A revolução socialista deverá fundar uma democracia superior à democracia burguesa. O pluripartidarismo, a organização de apartidários e a formação de correntes por pautas setoriais (meio ambiente, transporte, etc.) farão parte das disputas dentro do novo poder. Entretanto, ainda que surja a possibilidade de frentes revolucionárias, como a dos Bolcheviques com os Socialistas Revolucionários de Esquerda em 1917, a tendência é um grande partido comunista ser a direção reconhecida das massas para a tomada de poder. Surge, então, a pergunta: como evitar a fusão – prematura, antes do comunismo – do partido e do Estado?

O debate apresentado será foco de outro capítulo; aqui discutimos a questão partidária dentro do tema. Uma organização com influência de massas no socialismo manter-se-á viva do ponto de vista organizativo se permitir a formação temporária e a qualquer instante de partidos dentro do partido na forma de tendências, frações, grupos de opinião e debates públicos. Assim, a democracia partidária reforçará a nova democracia estatal; eventualmente, as polêmicas serão base para rupturas e formação de novas organizações. Mais uma vez, percebemos os limites de proposta fixa, à revelia de inúmeros fatores, do regime leninista proposto por Moreno.

 

 

PROPOSTA DE INSTITUIÇÃO INTERNA: COMITÊ DE CRÍTICA E PROPOSIÇÃO

Com o avanço do movimento, tornou-se necessário formar nos partidos uma comissão de controle, comissão de moral, com tarefas jurídicas e totalmente independente do comitê central e do organismo político do partido. Com o mesmo princípio, como passagem para o próximo capítulo, fazemos uma proposta: um colateral, uma quase fração permanente.

Deve ser fundado um organismo de três membros quadros e de perfil autônomo para elaborar, de maneira independente, propostas políticas para os organismos de direção, fazer críticas “externas”, propor sobre o jornal e a organização partidária etc. Seu trabalho é intelectual, crítico e propositivo – mas seu cotidiano deve ser próximo ao movimento operário, morar em bairro operário se possível.

Os membros de tal organismo estarão proibidos de serem eleitos para direção no próximo congresso, formar frações ou tendências. Terão o direito, no congresso seguinte, de apresentar um documento próprio, tão grande quanto o documento político da direção, além de documentos individuais de cada membro, dos três presentes no organismo, um documento individual por membro.

Assim, mesmo que partido proíba, de modo correto, fracionamento permanente, pode-se criar mediação – um organismo “paralelo“, parcial. Isso ajuda a enriquecer o partido de propostas e alternativas, além de facilitar ver seus erros, pois o guia de propostas do organismo é a máxima ousadia, que deve ser aprovada ou não pelos organismos oficiais. Também ajuda ao combater a tendência de monolitismo, consenso permamente, pensamento único etc. Pode ser nomeado “comitê de crítica”, independente dos organismos de direção e dos organismos do movimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]             Apesar de seus erros na aplicação e teorização do centralismo democrático, Moreno soube perceber que a grande diferença dos reais comunistas para com resto da esquerda é a defesa intransigente da democracia operária nos sindicatos, nos partidos operários e nos Estados operários.

[2] Para que se evite pensar o problema do regime interno como causa única e mãe de todas as soluções, destacamos, em nossa avaliação, uma das razões: os partidos da LIT são formados por estudantes e setores médios (funcionários públicos, etc.), crescendo dentro de tais camadas sociais, gerando permanente desencaixe entre programa e perfil social dos seus membros.

Um regime correto, ao menos formalmente, nunca impediu por si, sozinho, a degeneração de partidos.

[3]             Parte desse debate inclui a presença de militantes que trabalham para os sindicatos ou o partido e mandatos parlamentares. Não há espaço para debatermos este ponto como se deveria. Parte da degeneração de organizações, esses funcionários dos aparatos têm seu nível de vida e emprego – e mesmo seu prestígio pessoal – dependente se o partido no qual militam dirige ou não aquele sindicato, onde trabalha, se o parlamentar revolucionário (no terreno do inimigo) se reelege ou não etc. Vemos que é um setor, por mais honesta sua intenção, tendente a degenerar-se e degenerar uma organização comunista em centrismo ou reformismo. Vetar que tenha direitos a cargos dirigentes e de direção política e também acima das direções intermediárias, além de três anos de aspirância (com deveres, mas sem direitos, como a de voto interno) são contrapressões mínimas necessárias.  Retomaremos brevemente este assunto no próximo capítulo.

[4] Para este subcapítulo, por analogia, fiquemos com a observação Dialética de Hegel em sua grande Lógica: "Assim também estados obtém um caráter qualitativamente diverso pela sua diferença de grandeza, se se assume que o restante fica igual. Leis e constituição se tornam algo outro, se a extensão do Estado e o valor numérico dos cidadãos se ampliam. O Estado tem uma medida de sua grandeza, [e uma vez que é] levado para além dela, ele inevitavelmente se destrói sob a mesma constituição que constituiria sua sorte e sua força em uma extensão apenas diferente." (Hegel G. W., 2016, pp. 399, 400) Logo, o aumento de membros, por exemplo, exige adaptações nas regras de um partido, anulando a fixidez de Moreno sobre o regime partidário, explicando em parte as crises dos partidos morenistas quando crescem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário