CRÍTICA
AO REGIME LENINISTA PROPOSTO POR MORENO
“A história de nossa corrente é a história de
seus erros.”
N. Moreno
“Não podemos aprender a resolver os problemas
de hoje pelos novos métodos se a experiência de ontem não nos abriu os olhos
para ver onde foi que estavam errados os antigos métodos.”
Lenin
“Devemos recuperar a liberdade de crítica e de criatividade. Devemos
devolver a honestidade, a sinceridade e a verdade aos seus postos legítimos.
Devemos devolver a independência, a dignidade e a confiança ao pensamento
revolucionário.”
Trotsky
“Disciplina é liberdade.”
Renato Russo
Como
organizamos a democracia e o centralismo partidários em cada conjuntura? Como
estes dois elementos existem em cada momento político? Estas são as indagações
presentes nas entrelinhas deste capítulo. Aqui, dividiremos com o leitor uma
critica à concepção morenista de regime bolchevique, contrapondo-a à de Leon
Trotsky no fundamental.
Para que se
desarme, de já, qualquer desconfiança, sugerimos as seguintes conclusões
preliminares: a) como explanaremos, Moreno ao mesmo tempo acertou e errou; b)
elaborou um regime partidário conjuntural, temporário, sem atentar-se para as
mudanças possíveis; c) o autor deste artigo é morenista e absorve deste
revolucionário, o maior trotskista depois de Trotsky, um princípio: d)
nunca dogmatizar os mestres e o marxismo. Em resumo, a máxima leninista
esquecida: o primeiro dever de todo revolucionário é criticar seus dirigentes.
A REALIDADE
DE NAHUEL MORENO
O primeiro
passo é contextualizar a situação. No pós-II Guerra o trotskismo era um
movimento marginal sob a ameaça constante de degeneração ou, pior, de
desaparecer. Ao contrário daquilo que Trotsky prognosticara, o stalinismo
tornou-se uma potência no movimento de massas mundial. Deste período, mesmo as
novas revoluções socialistas atrapalhavam um trabalho de fato comunista;
vejamos: a) a base social dessas revoluções era camponesa, enquanto o
trotskismo é uma corrente tipicamente operária; b) desde o princípio, surgiram
sob a mão repressora, antidemocracia operária, das burocracias estatais. Estes
elementos pendiam objetivamente para o desaparecimento
completo do trotskismo. Martín Hernandez, veterano trosko-morenista, relata:
Lembro-me quando, em
1968, entrei no PRT – La Verdad da Argentina, que era dirigido por Nahuel
Moreno, o maior dirigente trotskista do pós-guerra. O partido, após 25 anos de
atuação e depois de ter sido protagonista de grandes acontecimentos da luta de
classes, como ter dirigido a grande greve metalúrgica de Buenos Aires, tinha
somente 200 militantes.
Da mesma forma, no Peru,
apesar de ter dirigido a revolução agrária na década de 1960 e de ter em nossas
fileiras Hugo Blanco, o maior dirigente de massas do trotskismo da época, nosso
partido nunca teve mais do que 30 militantes.
Nunca me esqueço do
informe que recebi, poucos meses após ter começado a militar, sobre as forças
da IV Internacional. Nosso partido era um dos maiores. Na França, tínhamos 30
militantes; na Espanha e em Portugal, nenhum. No Brasil e na Venezuela,
tínhamos alguns contatos; na Colômbia e na América Central, nada.
E, em 1976 (após a
derrota do imperialismo no Vietnã), na Itália, ganhamos para a tendência
bolchevique um grupo de estudantes secundaristas. E me lembro, como se fosse
hoje, da dura discussão que Moreno teve com aqueles jovens, pois eles queriam
ir militar na classe operária italiana e Moreno, que sempre teve a obsessão de
inserir nossos partidos e grupos na classe operária, após longas discussões,
convenceu-os a não irem para o movimento operário. Seu argumento foi muito
simples: “Vocês ainda são muito débeis e se forem para a classe operária o
stalinismo vai acabar com vocês.” O PC italiano tinha, naquela época, um milhão
de filiados e controlava, com mão de ferro, todo o movimento operário.
A duríssima dificuldade
exposta é chave para compreendermos a atualização do regime partidário proposta
por Moreno. Um projeto partidário, com sua forma organizativa, sendo uma
superestrutura, deve ser explicada a partir da realidade que a forma. Para
isso, precisamos recordar que, com a revolução cubana, o imperialismo
patrocinou ditaduras militares por toda a América Latina, tradicional base
territorial do trotskismo bárbaro (morenismo). Inevitavelmente, agregou-se mais
um importante elemento impeditivo. Este tipo hostil de situação alimenta
características exóticas, de seitas, nos partidos – e voltam-se para dentro de
si. Segundo Cannon, relatando a clandestinidade vivida pelo PC americano:
“O
movimento permaneceu ilegal desde 1919 até o começo de 1922 depois que o primeiro
choque das perseguições passou e os grupos e células se acostumaram a sua
existência ilegal, os elementos na direção que tendiam ao irrealismo ganharam
força, tanto e quanto o movimento estava então completamente isolado da vida
pública e das organizações operárias do país.
Então, eu, por minha
parte, me dei conta pela primeira vez do completo mau da enfermidade do
ultra-esquerdismo. Parece ser uma lei peculiar que quanto maior é o
isolamento de um partido da vida do movimento operário, quanto menor é o
contato que tem com o movimento de massas, e quanto menor é a
correção que este pode exercer sobre o partido, tanto mais radicais se tornam
suas formulações, seus programas, etc. (…) Vocês vêm, não custava nada
ser ultra-radical porque de qualquer maneira ninguém lhe prestava atenção. Não
tínhamos reuniões públicas, não tínhamos que falar aos operários ou ver quais
eram suas reações à nossas consignas. Assim, os que gritavam mais forte em
nossas reuniões fechadas se converteram em mais e mais dominantes na direção do
movimento. A fraseologia do "radicalismo" teve seu dia de festa. Os
anos iniciais do movimento comunista neste país estiveram mais que consagrados
ao ultra-esquerdismo.
[…]
O movimento teve uma
vida interna muito intensa, até porque estava isolado e voltado para si mesmo.
As disputas fracionais eram ferozes e largamente extenuantes.” (Cannon, 2006,
grifo nosso)
COMO MORENO
REAGIU
O que
apresentamos levou Moreno a precaver-se das tendências degenerativas nos
partidos. No fundamental, propôs: a) proibir a possibilidade de
frações e tendências em períodos não pré-congressuais; b) legalizar a possibilidade de
fracionamento para meses antes do congresso partidário. Podemos deduzir que a
fórmula proposta pelo argentino é útil para partidos clandestinos e muito
minoritários ao girar a organização para fora de si; porém, esta é uma verdade
em parte. Queremos demonstrar ao leitor o caráter antidialético da proposta
deste marxista. Por isso, finalmente, vamos à defesa dele, nas “Teses Para Atualização
do Programa de Transição”:
Não pode existir
democracia sem direitos para as tendências e as frações. Mas este é um
direito excepcional porque o surgimento de tendências e fracções é uma
desgraça para um partido centralizado para a ação. A discussão permanente em
todos os órgãos partidários é a mais grande ferramenta de elaboração política
para um partido trotskista. O partido deve viver discutindo sistematicamente.
Tem que confrontar experiências individuais ou de organismos distintos e
setores de trabalho distintos para que através do choque e da discussão surja
una linha correta, a melhor resultante. Porém esta virtude da discussão
permanente se transforma no oposto quando um partido vive discutindo
permanentemente desde grupos organizados em frações e tendências, e muito mais
ainda se estas sobrevivem através do tempo (aqui
notamos a real origem de sua preocupação – comentário do autor). Quando isto ocorre, as frações deixam de
sê-lo para converter-se em camarilhas. O partido deixa de atuar em forma
unitária para e rumo ao movimento de massas para voltar-se para dentro, se
paralisa, cria um ambiente parlamentário de polémica permanente e
inevitavelmente deixa de atuar de forma unitária e passa a ter como atividade
principal a discussão, isto é, deixa de atuar principalmente no movimento de
massas. A discussão é um meio fundamental e decisivo para nossa atividade,
mas: só um meio. A existência de frações e tendências permanentes
transformam a discussão num fim em si e não num meio do centralismo e da ação
unida frente ao movimento de massas. (Moreno, TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro
partido y de nuestra internacional, 2001, grifos nossos)
Nahuel Moreno
inverteu a causalidade. A origem do fracionamento permanente era, como nos
indicaram as citações de Cannon e Martín, a permanente tendência à
marginalização, a fragilidade interna – não o direito estatutário de
fracionamento. Ainda assim, o argumento da Tese encontraria
algum acordo em Trotsky? Não. Para este, a simples possibilidade de
existir tendências e frações era, em si, uma necessária forma de pressão e
controle da base sobre a direção e, por consequência, um mecanismo
antiburocrático. Diz Leon:
Naturalmente, grupos,
assim como diferenças de opinião são um mal. Mas esse mal é uma parte
necessária do desenvolvimento dialético do partido, assim como as toxinas o são
na vida do organismo humano.
A transformação dos
grupos em frações organizadas e fechadas é um mal muito maior. A arte
de dirigir o partido consiste precisamente em prevenir tal desenvolvimento. É
impossível chegar a tal ponto pela mera proibição.
[…]
Porque a tarefa não consiste em proibir frações, mas em evitá-las. (Trotsky,
Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010, p. 202, grifo nosso)
Como lemos,
para Trotsky é o inverso. A contradição apresenta-se como parte inerente da
realidade, incluso a de um partido revolucionário. Negar a contradição apenas
muda ou camufla seu caráter. A possibilidade de um corpo
dirigente sofrer reclamações da base, de perder a direção, de se desmoralizar é
– por si mesma – um recurso democrático, um controle, um estado de alerta; além
de abrir espaço para que políticas erradas e irrealistas possam ser corrigidas.
Sequer precisa uma luta interna existir de fato: basta existir o mecanismo, o
meio, uma pressão subjetiva sobre os dirigentes. Porém Moreno enfraquece a
democracia vertical, da base para direção, e mantém a horizontal, dentro dos
organismos.
A DIALÉTICA
DO REGIME
Ao mesmo
tempo, há um acerto no erro de Moreno. Precisou adaptar o regime partidário às
duríssimas condições em que militara. Ou seja, a proposta dele seria correta
apenas conjunturalmente, nunca em permanência. Com o regime
partidário que propunha, ocorreu exato o que ele temia: “Assim
evitaremos o grave perigo de criar movimentos trotskistas com influência de
massas que, chegado o momento da ação, vejam-se anárquicos e incapazes de atuar
com a centralização e disciplina de um exército revolucionário.”
A tendência
geral da matéria é ir do simples ao complexo. Complexidade é,
necessariamente e inclusive, acúmulo maior de contradições e de diferenças
internas. Assim também acontece com partidos. Quando são marginais e sob
ditaduras, precisam de uma forma do regime; quando estão sob democracia
burguesa, quando possuem influência de massas ou de vanguarda, quando são
inexperientes, etc. precisam mudar a forma de se organizar, senão estagnam ou
implodem. Podemos formular, regra geral, o seguinte: quando a realidade e o
partido estão mais complexos, então o regime partidário deverá, também,
tornar-se mais complexo.
De modo
sugestivo, Moreno descreve a realidade para justificar o afrouxamento da
democracia interna nos partidos:
Todos os nossos partidos
e nossa Internacional em seu conjunto reivindicam orgulhosos, como seu exemplo,
a estrutura do Partido Bolchevique. Isso significa que consideramos que nosso
partido tem que estar formado por revolucionários professionais por um lado e
que deve ter um regime centralista democrático por o outro. Reivindicamos mais
que nunca o centralismo como a obrigação número um de todo partido
trotskista. Em esta época revolucionária o trotskismo é perseguido
implacavelmente, não só pelo estado burguês, os partidos burgueses e os bandos
fascistas, senão também pelos partidos oportunistas, os quais com toda razão
nos consideram seus inimigos mortais. Além do mais, nossos partidos se
constroem para levar a cabo a luta armada pela tomada do poder, a insurreição.
Este supremo objetivo só poderemos alcançar com uma rígida disciplina, cuja
única garantia é o centralismo e uma dedicação que só pode ter os militantes
profissionais. (Idem, grifo nosso.)
O curioso é
que Stalin usou exato o mesmo argumento
Mas a decisão do X
Congresso do partido sobre frações ou grupos, que mesmo então precisava de
interpretação e aplicação jurídica, não é em caso algum um princípio absoluto
que está acima de todas as necessidades do desenvolvimento partidário,
independente do país, da situação e do momento.
E critica o
stalinismo, que impôs sua fórmula a todos os partidos da IC:
Um partido novo
representando um organismo político em completo estágio embrionário, sem nenhum
contato real com as massas, sem experiência de direção revolucionária, sem
formação teórica, já foi dos pés à cabeça com todos os atributos da “ordem
revolucionária”, ficando parecido com um menino de seis anos de idade que usa a
armadura de cavaleiro do pai.
[…] Sem uma verdadeira liberdade na vida partidária, liberdade de discussão
e liberdade de estabelecer seu rumo coletivamente, através de agrupamentos, esses partidos nunca se
tornarão uma força revolucionária decisiva. (Idem, p. 206, 207, grifo nosso.)
Centralismo e democracia são polos internos,
necessários, opostos, complementares e deve-se evitar o distanciamento um do
outro ou um excessivo domínio contraditório de um sobre o outro, e vice-versa.
No partido, o centralismo é uma reação à barbárie capitalista e necessidade de
enfrentá-la; a democracia representa a necessidade do futuro, da desalienação e
seu desejo, um leve sintoma do comunismo. O capitalismo costuma empurrar-nos
mais para a tendência centralista, com a burocratização; no socialismo, a
organização partidária, por outro lado, será cada vez mais democrática, frouxa,
aberta, pois tenderá ao completo desparecimento em uma sociedade comunista; por
hoje, ambos são completamente necessários, sendo a democracia partidária o polo
determinante.
Os fins justificam os meios, mas nem todo meio é
válido (ou não em todas as situações). A democracia partidária não é nem pode
ser uma concessão da direção para sua base, senão, do contrário, tratar-se-á de
um “estalinismo esclarecido”, uma forma de falsa democracia partidária. Todos
os partidos estalinistas adotam o centralismo; apenas partidos revolucionários
procuram preservar em suas organizações a superioridade da democracia interna
bolchevique, polo determinante do centralismo-democrático[1].
Assim:
Centralismo burocrático = supremacia do
centralismo, resquícios e aparência de democracia como aplicação do
centralismo. È proibido a formação de frações, tendências e grupos de opinião;
os dirigentes não são eleitos pela base, desde uma disputa política, com cargos
revogáveis.
Burocratismo não centralista = estabelece-se uma
direção partidária dotada de privilégios (parlamentares, audiência, recursos,
etc.) enquanto as estruturas de base fragmentam-se em democratismos, liberdade
individual sobre a coletiva, indisciplina, lutas fracionais permanentes,
organismos de base para intermináveis debates, etc.
Centralismo democrático = supremacia da democracia,
centralismo como aplicação da democracia. Frações, tendências e grupos de
opinião temporários para fins de disputa política e de cargos; dirigentes
eleitos pela base com cargos revogáveis.
O
centralismo democrático evita cair nos dois polos de um mesmo erro. Hoje, um
dos sentidos de burocracia é esta, sob o capitalismo: regras impessoais e fixas
que focam no resultado máximo seja quais foram os custos e perfis humanos e, em
central, ignorando-os. Aqui, Moreno cedeu à moral administrativa burguesa, que
ignora o contexto e suas variações etc.
CONSEQUÊNCIAS
De forma
preliminar, queremos escandir algumas consequências. Na medida em que um
partido torna permanente a proposta morenista, ocorre:
1. Com
a escassez de polêmica, atrasa-se a formação dos militantes e quadros;
2. À
medida em que a organização cresce, organismo dirigente tende a ter autonomia,
desloca-se em relação a sua base;
3. A
partir do segundo ponto, é mais difícil a base controlar a direção;
4. Torna-se
difícil perceber os erros e suas consequências na medida em que faltam meios
para expressar polêmicas;
6. As
contradições inevitavelmente acumulam-se, tomando forma fracional;
7. Via
de regra, por causa da proibição, as frações/tendências já surgem deformadas:
na forma de disputas por cargos, frações de direção, grupos de
amigos-militantes, reuniões informais, frações secretas;
8. No
campo psicológico, os militantes movem-se por fé, não por confiar na democracia
interna; teme-se polêmicas; consideram toda diferença como divisão do partido;
a direção desenvolve arrogância e desconfia da base;
9. Surge a tendência a cometer mais erros
políticos, com dificuldade de corrigi-los;
10. Ao
impedir a existência de válvulas de escape, ocorrem rupturas, à esquerda e à
direita, por indivíduos e por grupos, em relação à posição oficial.
Em síntese,
o partido vive um permanente ciclo crescimento-crise-ruptura. Por isso, tende a
estagnar em um tamanho estável. Em 2014, o congresso da LIT, fundada por Moreno
nesta concepção estática de centralismo democrático, reconheceu uma lei de seus
partidos: frágil relação, em ciclos, de crescimento-crise-ruptura das suas
organizações. Percebeu-se uma “lei”, mas a direção da internacional foi incapaz
de saber o motivo, que parte do problema é a concepção de regime limitada[2].
Para
guiarmos os pontos acima; Leon Trotsky explica que, nos momentos mais decisivos,
a direção é sempre muito mais vacilante que a base:
“As bases do partido
proletário são, por sua própria natureza, muito menos suscetíveis à pressão da
opinião pública burguesa. Mas certos membros do topo e camadas médias do partido
irão infalivelmente sucumbir em maior ou menor medida ao terror material e
ideológico da burguesia no momento decisivo. Não levar a sério esse perigo é
não saber lidar com ele. Não há, é claro, fórmula mágica contra isso que sirva
em todos os casos. Mas o primeiro passo necessário para lutar contra um perigo
é entender sua origem e sua natureza” (Idem, p. 163).
Apresentamos
ao leitor algumas perguntas. Se há possibilidade de agrupamentos internos
apenas próximo aos congressos, então como os grupos conseguirão formar-se já
que estes disporão de pouquíssimo tempo para reunir membros e amadurecer
ideias? Como a base efetuará algum controle sobre os dirigentes? Como, em caso
de grave erro, militantes conseguirão acionar 1/3 das regionais para convocação
de um congresso extraordinário? Como evitarão que a direção adie congressos? Em
partidos pequenos estas perguntas/contradições podem ser resolvidas com alguma
facilidade, mas a situação muda quando crescem.
Ao mesmo
tempo, precisa-se evitar fracionalismos de todos os tipos. Um partido
pequeníssimo – constituído de uma única regional com 20 ou 30 membros –
suporta, por exemplo, boletins individuais com opiniões e propostas vindas da
base. Porém, o mesmo não serve a um partido com 3.000 membros, pois este viraria
um clube de debate e papéis; neste caso, a possibilidade de
agrupamentos é a alternativa saudável (deve-se negar proibir documentos
individuais, pode-se estimular a formação de grupos; pois é sinal de problema
imensamente mais profundo, acumulado por longo período no subterrâneo, que
surja um mar de boletins internos antes de um congresso). Já em um partido
com influência de massas como o Bolchevique a partir de 1917/8, pode-se, como
ocorreu, publicitar polêmicas e propostas em espaços específicos da imprensa
partidária. São exemplificações para nos guiar a reflexão. Se, por outro lado,
um partido de vanguarda tem alta contradição interna, caso de uma luta
fracional prolongada, pode adotar aspectos de um partido grande ao divulgar suas
polêmicas aos simpatizantes.
O nível
teórico da base, a experiência prática geral, a cultura nacional, a conjuntura,
o tamanho do território onde existe, a composição de classe dos membros[3],
etc.: todos estes elementos ajudam ou atrapalham, consciente ou inconscientemente.
Para perceber e corrigir, uma compreensão correta, dialética, do regime
leninista faz total diferença[4].
No entanto,
o risco da liberdade de fracionamento a qualquer instante é a direção
preservar-se por meio do autoelogio, criar uma imagem idealizada de seus
membros na base, evitar autocríticas ou fazê-las apenas para nada mudar, além
de manobras de exclusão dos membros “espertos demais”.
É necessário
cultivar, em permanência, a tolerância cultural às disputas. É famoso, embora
pouco seguido, o fato de o PC Alemão ter expulsado um membro da direção do
partido por ele ter feito críticas corretíssimas, mas públicas; Lênin fez o
possível para que o partido alemão voltasse atrás, reintegrasse os direitos do
antigo membro. O trotskysmo põe como grande exemplo o fato de um militante, com
altíssimo talento teórico e prático, elogiado por Trotsky, ter sido expulso do
SWP americano após dirigir uma poderosa e vitoriosa greve de caminhoneiros, mas
sem estar centralizado no partido (lembremos que ele provavelmente abriu mão de
uma grande carreira intelectual para ser proletário). Ora, esse não é o
espírito do leninismo, que medeia tanto quanto for possível. Quando o SWP
americano entrou em duríssima luta fracional, sobre defender ou não a URSS, Trotsky
propôs que os debates fossem públicos para dar toda a ideia a todo o partido de
que, em situações limites, a organização era a mais democrática possível,
injustificando rupturas (algo que, por exemplo, o trotskista PSTU do Brasil não
fez na dura história recente, quando necessário); vale votar, em tal momento,
Trotsky comentou que tendências estalinistas, autoritárias, estavam afetando o
bolchevismo da própria IV Internacional, inclusive nas direções majoritárias
dos partidos membros. Vejamos o caso limite, situação revolucionária na Rússia
em 1917; às vésperas da tomada do poder, kamenev e Zinoviev denunciam na
impressa o plano de “golpe” de seu partido; Lenin desespera-se e exige a
expulsão imediata deles, mas o partido votou contra, o que é uma lição (logo a
tolerância deve ser ainda maior sobre militantes de menor cargo). No mais,
nesse mesmo período crítico Lenin dispôs-se inúmeras vezes a quebrar a
disciplina do partido em nome do que concluiu como correto. O nome centralismo
democrático pode ser, assim, substituído por democracia centralista.
A
INTERNACIONAL
Em 1971, no
congresso da IV Internacional, Mandel acusou Moreno de proibir grupos internos.
Este, sem demora, percebendo a tentativa de desmoralização, respondeu aquilo
que expomos: pode-se nos períodos pré-congressuais. Independente disso, o
fundador da LIT explica sobre o regime do partido mundial e suas seções:
Nós estamos construindo
a mais formidável arma organizativa revolucionária que tem conhecido a
historia: um partido mundial bolchevique. Em este processo de construção do
partido se impõe, para esta etapa, fortificar o polo democrático e não
centralista, justamente porque nossas direções, tanto nacionais como
internacionais, todavia não tem ganhado um grande prestígio político ante as
bases de nossas sessões por seus êxitos na direção do movimento de massas. Só
esse prestígio poderia fortalecer o polo centralista e disciplinado; portanto,
deve primar o aspecto democrático.
A citação
acima poderia ser muito bem usada para afirmar que o regime de partido tal qual
Moreno propõe vai contra as necessidades partidárias. Se o polo democrático
deve ser o mais forte, então o estatuto da organização deve corresponder à
observação.
Também
encontramos uma singularidade. No texto há a valorização do aspecto
psicológico, subjetivo, do regime: o centralismo será maior quanto maior for a
moral da direção; e o mesmo ao contrário. Porém, sendo importante, este
elemento é relativo, auxiliar. Se o prestígio facilita o caminho, a democracia
interna é uma necessidade absoluta tanto quanto o centralismo. Ou seja,
claras garantias – mesmo aparenciais, estatutárias – de democracia são vitais;
do contrário, congressos, reuniões, boletins, debates e autocríticas serão nada
mais que manobras para dar algum verniz não-estalinista aos dirigentes. Incluso
em nível internacional, uma direção mundial qualificada e testada deve permitir
às direções nacionais produzir suas próprias políticas e testá-las na prática,
pois apenas assim ocorrerá o amadurecimento de equipes dignas de situações
revolucionárias.
Exemplifiquemos
com a própria história de Moreno. Por suas posições minoritárias, sua corrente
ficaria fora da IV Internacional quando do início de sua atuação, após a II
Guerra; mas uma nova proposta do SWP criou os partidos simpatizantes ao lado
dos partidos oficiais do mesmo país, no caso, da Argentina. Em seguida, Pablo,
principal dirigente, tenta fechar o regime interno e organizar uma fração
secreta contra o SWP, sua oposição interna; a reação desta corrente, ao lado de
Moreno, permite uma luta fracional que desemborca em ruptura – e isto preserva
o acúmulo programático, prático e teórico da corrente. Após a revolução cubana,
há uma reunificação das correntes trotskystas; Moreno participa do processo
para não ficar isolado internacionalmente, a partir das garantias de sua
existência política como tendência – tendo organizado, em seguida, rebeliões
internas. Sua experiência em tendências e frações até aqui se lhe revelou novos
problemas e novos acúmulos. A capitulação final do principal dirigente do SU,
Secretariado Unificado, Ernest Mandel, expressando seu centrismo ao colocar-se
contra a defesa da brigada trotskysta Simón Bolivar, na Nicarágua, gera uma
ruptura internacional. Isto abre caminho para a Fração Trotskysta, de Nahuel
Moreno, tornar-se a LIT. O que percebemos, como balanço geral: a possibilidade
de Nahuel Moreno, desde o princípio, organizar-se em tendências e frações,
permitiu: 1) manutenção da democracia interna, do debate; 2) ruptura e
reorganização caso houvesse degeneração; 3) educação acelerada; 4) evitar o
isolamento. Não teria avançado se o regime da IV fosse igual ao regime que
propunha aos partidos de sua fração e as internacionais que dirigiu. Este
balançou faltou-lhe.
Das
afirmações concluímos a defesa de um regime semelhante em um partido mundial,
com um adendo: por razões de convivência e espaço, parece mais difícil a
articulação de frações e tendências internacionais. Ter em conta esta
dificuldade já nos ajuda. Por isso, torna-se ainda mais necessário um regime que
permita frações, tendências e grupos de opinião (e estudo) a qualquer momento
no partido internacional. Além disso, a sede da Internacional deve ir para
outro país, um pobre de preferência, que não a nação do partido “mãe”, assim
diminuindo suas pressões enormes sobre a direção internacional; Lenin, ciente
disso, queria que a III Internacional funcionasse na Alemanha, não na URSS.
O PARTIDO E
O SOCIALISMO
A revolução
socialista deverá fundar uma democracia superior à democracia burguesa. O
pluripartidarismo, a organização de apartidários e a formação de correntes por
pautas setoriais (meio ambiente, transporte, etc.) farão parte das disputas
dentro do novo poder. Entretanto, ainda que surja a possibilidade de frentes
revolucionárias, como a dos Bolcheviques com os Socialistas Revolucionários de
Esquerda em 1917, a tendência é um grande partido comunista ser a direção
reconhecida das massas para a tomada de poder. Surge, então, a pergunta: como
evitar a fusão – prematura, antes do comunismo – do partido e do Estado?
O debate
apresentado será foco de outro capítulo; aqui discutimos a questão partidária
dentro do tema. Uma organização com influência de massas no socialismo
manter-se-á viva do ponto de vista organizativo se permitir a formação
temporária e a qualquer instante de partidos dentro do partido na forma de
tendências, frações, grupos de opinião e debates públicos. Assim, a democracia
partidária reforçará a nova democracia estatal; eventualmente, as polêmicas
serão base para rupturas e formação de novas organizações. Mais uma vez,
percebemos os limites de proposta fixa, à revelia de inúmeros fatores, do
regime leninista proposto por Moreno.
PROPOSTA DE INSTITUIÇÃO INTERNA: COMITÊ DE CRÍTICA
E PROPOSIÇÃO
Com o avanço
do movimento, tornou-se necessário formar nos partidos uma comissão de
controle, comissão de moral, com tarefas jurídicas e totalmente independente do
comitê central e do organismo político do partido. Com o mesmo princípio, como
passagem para o próximo capítulo, fazemos uma proposta: um colateral, uma quase
fração permanente.
Deve ser
fundado um organismo de três membros quadros e de perfil autônomo para
elaborar, de maneira independente, propostas políticas para os organismos de
direção, fazer críticas “externas”, propor sobre o jornal e a organização
partidária etc. Seu trabalho é intelectual, crítico e propositivo – mas seu
cotidiano deve ser próximo ao movimento operário, morar em bairro operário se
possível.
Os membros
de tal organismo estarão proibidos de serem eleitos para direção no próximo
congresso, formar frações ou tendências. Terão o direito, no congresso
seguinte, de apresentar um documento próprio, tão grande quanto o documento
político da direção, além de documentos individuais de cada membro, dos três
presentes no organismo, um documento individual por membro.
Assim, mesmo
que partido proíba, de modo correto, fracionamento permanente, pode-se criar
mediação – um organismo “paralelo“, parcial. Isso ajuda a enriquecer o partido
de propostas e alternativas, além de facilitar ver seus erros, pois o guia de
propostas do organismo é a máxima ousadia, que deve ser aprovada ou não pelos
organismos oficiais. Também ajuda ao combater a tendência de monolitismo,
consenso permamente, pensamento único etc. Pode ser nomeado “comitê de
crítica”, independente dos organismos de direção e dos organismos do movimento.
[1] Apesar
de seus erros na aplicação e teorização do centralismo democrático, Moreno
soube perceber que a grande diferença dos reais comunistas para com resto da
esquerda é a defesa intransigente da democracia operária nos sindicatos, nos
partidos operários e nos Estados operários.
[2]
Para que se evite pensar o problema do regime interno como causa única e mãe de
todas as soluções, destacamos, em nossa avaliação, uma das razões: os partidos
da LIT são formados por estudantes e setores médios (funcionários públicos,
etc.), crescendo dentro de tais camadas sociais, gerando permanente desencaixe
entre programa e perfil social dos seus membros.
Um regime correto, ao menos
formalmente, nunca impediu por si, sozinho, a degeneração de partidos.
[3] Parte
desse debate inclui a presença de militantes que trabalham para os sindicatos
ou o partido e mandatos parlamentares. Não há espaço para debatermos este ponto
como se deveria. Parte da degeneração de organizações, esses funcionários dos
aparatos têm seu nível de vida e emprego – e mesmo seu prestígio pessoal –
dependente se o partido no qual militam dirige ou não aquele sindicato, onde
trabalha, se o parlamentar revolucionário (no terreno do inimigo) se reelege ou
não etc. Vemos que é um setor, por mais honesta sua intenção, tendente a
degenerar-se e degenerar uma organização comunista em centrismo ou reformismo.
Vetar que tenha direitos a cargos dirigentes e de direção política e também
acima das direções intermediárias, além de três anos de aspirância (com
deveres, mas sem direitos, como a de voto interno) são contrapressões mínimas
necessárias. Retomaremos brevemente este
assunto no próximo capítulo.
[4]
Para este subcapítulo, por analogia, fiquemos com a observação Dialética de
Hegel em sua grande Lógica: "Assim também estados obtém um caráter
qualitativamente diverso pela sua diferença de grandeza, se se assume que o
restante fica igual. Leis e constituição se tornam algo outro, se a extensão do
Estado e o valor numérico dos cidadãos se ampliam. O Estado tem uma medida de
sua grandeza, [e uma vez que é] levado para além dela, ele inevitavelmente se
destrói sob a mesma constituição que constituiria sua sorte e sua força em uma
extensão apenas diferente."
Nenhum comentário:
Postar um comentário