APRESENTAÇÃO
Esta obra é fruto de algo em torno de
15 anos de estudo. Sua produção partiu do fato de que uma resposta geral sobre
o mundo contemporâneo era necessária. Ademais, valeria a pena escrever um novo
livro, ainda que com conclusões iniciais e gerais, apenas se oferecesse
respostas qualitativamente novas. As teses as quais cheguei parecem autorizar
tal empreitada.
O método utilizado foi o dialético: ir
ao conjunto do material necessário e, então, rastrear seu nexo interno. Em
momento algum partiu-se de hipóteses ou postulados. Pode-se dizer, em linguagem
menor, que se usou procedimento empírico-dedutivo ao procurar nos dados, a
partir destes, aquilo que não é dado, a verdade impalpável.
Como somos frutos de nossa realidade,
deve-se destacar aqui o papel do perfil nacional. Diferente do que ocorre na
literatura brasileira, focada provincialmente em sua terra própria, os
marxistas nacionais absorvem com voracidade toda a produção mundial no campo
teórico. Forma-se um meio cultural propenso à renovação das ideias. Apenas aqui
autores como Mèszáros, Kurz, Lukács, Moreno etc. fazem tanto sucesso nos meios
intelectuais de esquerda. Apesar disso, tem-se o vício de abraçar alguma
importante conclusão como se fosse uma bandeira que exclui previamente outras
interpretações e atualizações. Há ainda outra característica no meio
brasileiro: a sua divisão entre os práticos, concentrados no resgate dos
clássicos quase inquestionáveis, tendendo ao dogmatismo; e os teóricos, como
erro oposto, mais ativos na renovação das ideias, tendendo ao impressionismo,
ao revisionismo, ao jogo de palavras etc.
(Tal divisão expressa, além de ser mais do que apenas análoga, a diferença levantada por
Marx, em suas famosas Teses contra, do materialismo que foi, até ele, passivo e
“fixo” contra o idealismo que foi ativo e “solto”; veja-se que o jogo de
palavras etc. deriva do modo de vida intelectual que somente lê demais, fala
demais nas aulas etc. com ações quase que apenas ligadas à palavra; pensam
fazer muito ao palestrar sobre um autor europeu….). Este livro pretende,
portanto, superar o sectarismo intelectual e almeja oferecer uma primeira
resposta unificada sobre os temas mais caros ao marxismo. Como cenário para tal
tarefa, o Brasil, talvez, é, hoje, o país mais dialético ideal e materialmente.
Há, portanto, o risco do qual fala o
poeta Fernando Pessoa:
Se eu, portanto, fizesse um estudo
sobre o catolicismo, onde forçosamente teria que dizer mal e bem, que apontar vantagens
misturadas com desvantagens, que indicar defeitos aliviados por virtudes, que
me sucederia? Não me escutariam os católicos, que não aceitariam o que eu
dissesse de mal do catolicismo. Não me escutariam os anti-católicos, que não
aceitariam o que eu lhes dissesse de bem. Não me escutariam os indiferentes,
para quem todo o assunto não passaria de uma maçadoria ilegível. Assim
resultaria inútil esse meu estudo, por cuidado e escrupuloso que fosse — direi,
até, tanto mais inútil, porque tanto menos aceitável ao público, quanto mais
fosse cuidado e escrupuloso. Seria, quando muito, apreciado por um ou outro
indivíduo de índole semelhante à minha, raciocinador sem tradições nem ideais,
analisador sem preconceitos, liberal porque liberto e não porque servo da ideia
inaplicada da liberdade. A esse, porém, que teria eu que ensinar?
Não se trata de somar diferentes
contribuições, costurando retalhos, mas descobrir, desde o empírico, o terceiro
excluído, que supera as oposições teóricas. Às vezes, tal terceiro foi de um
ir-se do x ao… não-x, de algo para seu oposto, como exporemos em nossa
dialética própria. Uma pesquisa científica sistemática é, também, crítica e
desenvolvimento do método científico, pois põe sob suspeita premissas,
conceitos, postulados, verdades “naturais”, concepções, métodos etc. Uma teoria
correta deve: 1) ser sistemática, 2) responder por que as teorias anteriores
acertaram aonde acertaram, 3) responder por que as teorias anteriores erraram
aonde erraram, 4) explicar a origem das demais teorias, 5) responder novas
perguntas, 6) responder velhas perguntas já respondidas (de modo correto ou errado),
7) explicar a origem de anteriores duras polêmicas aparentemente insolúveis e o
motivo de os teóricos terem sido incapazes de uma solução plena, 8) apresentar
novo modo de perceber o mundo. O leitor verá se este é o caso, como propomos.
Minha tarefa logo foi, por tal ponto de
vista, muito mais simples. Na medida em que as polêmicas caíam em oposições –
se há crise do valor ou seu maior domínio, se há estagnação secular ou crises
cíclicas, se a essência humana é natural ou histórica etc. –, deram as bases da
própria superação dos problemas, ofereciam caminho para a descoberta da resolução
dos opostos. Em geral, bastou abordar o objeto do debate de modo histórico para
encontrar a solução; A=A e… não-A. Tratou-se, portanto, de descobrir o grau de
verdade das diferentes produções, na medida em que estavam fincadas na
realidade, mais do que apenas perceber erros e limites. Por outro lado, serve
de mérito particular da obra reunir em um todo artístico, em totalidade, o que
havia sido tratado antes apenas de modo monográfico, separado. Por isso também
foi um trabalho um pouco mais fácil, embora amplo.
Esta obra trata da crise sistêmica do
capitalismo. Tal como o escravismo e o feudalismo encontraram o limite
histórico, o capital também o alcança. Assim, seja por qual ângulo observado, o
sistema atual encontrou sua crise derradeira – contradição entre o grau de
desenvolvimento das forças de produção e as relações de produção (e
superestruturais) existentes. Mais: oferece em si próprio os elementos da
primeira fase da próxima sociabilidade. Este é o primeiro sentido de transição:
estamos na época de passagem possível e necessária para o modo de produção
socialista. Também focamos na transição no sentido de primeira fase do
socialismo: debatemos as revoluções do século XX, os aspectos gerais da
transição social no regime etc. De um lado, fazemos balanço do passado e, de
outro, tentamos esboçar possíveis aspectos do futuro.
No decorrer do livro, uma categoria
destaca-se: a ficção, o falso. As categorias avançam para categorias fictícias.
Vários autores focaram este ou aquele caráter ficcional do capitalismo
contemporâneo, mas lhes faltou uma visão geral, unificada e categorial
consciente. Aos teóricos, vale notar que a categoria trabalho esteve clara ou
de maneira lastreada presente até nos estudos psicológicos etc.; mas momento
algum eu havia elegido tal categoria como premissa para uso, para método etc.,
ela surgiu natural e necessariamente, como deve ser.
Na produção deste livro, surgiu como
necessário partir da economia para, em seguida, as classes, depois a
subjetividade (superestrutura subjetiva) e, então, para as organizações
(superestrutura objetiva). Do contrário, teria de maneira constante de
antecipar conteúdos, de remeter a outros assuntos, no lugar de uma absorção e
uma exposição que avançasse e progredisse. É, enfim, o mesmo proceder de uma
análise de conjuntura em uma “análise de estrutura” e assim é porque a
realidade social, que é histórica, tem tal hierarquia. A dialética
estrutura-conjuntura também se faz presente de maneira natural e, além de
formar oposição e contradição das categorias, forma principalmente a unidade
entre elas, embora esta costume estar implícita no texto.
A ideia de compor este livro começou
quando soube que minha antiga organização política internacional, a LIT-QI,
havia aprovado um debate de atualização programática; mais do que levantar novas
palavras de ordem, isso significa chegar a uma concepção do que o mundo é hoje.
Tal empreitada motivou o autor dessas páginas a publicar alguns de seus esboços
na internet, porém, quanto mais pesquisava, mais precisei ir a fundo, aos
fundamentos. Embora reivindique o partido político citado, mas não sua
representação nacional, o processo de minha expulsão partidária, em base a uma
dura luta de frações, foi bastante traumático e me impediu de ter qualquer
participação nos debates internos. Anos depois, espero ter concluído o central
da tarefa ao qual me propus, ou seja, dar uma explicação geral e unificada,
ainda que sempre incompleta, do mundo.
A pesquisa foi feita de modo
independente, com todos os desafios e as dificuldades que isso representa. Um
professor universitário tem bom salário, algum tempo livre, recursos para obter
muitas obras. Com um pesquisador independente, tudo ocorre de modo outro.
Várias vezes, tive de apertar os cintos para comprar livros e ter tempo livre
para estudar e pensar. Em outro parágrafo, foi dito que a tarefa tornou-se mais
fácil também uma vez baseada em outras pesquisas; mas, por outro lado, foi de
fato dificílima dada a condição do autor. Isso fez com que fosse impossível
esgotar a bibliografia sobre os temas tratados; também porque o assunto é amplo
e profundo, porque faltam recursos, porque – e isso tem máxima importância – o
tempo da política e da crise mundial impedem adiamentos. Uma pesquisa completa
demoraria pelo menos mais dez anos de dedicação exclusiva, algo inviável ao
escritor. Pode haver, portanto, neste ou naquele ponto, algum plágio
inconsciente que deverá ser reconhecido em caso afirmativo. O temor maior era
de que as ideais pulassem como piolhos para a cabeça de outros, daí outro
motivo de lançar este livro com o material estável, amadurecido, em forma de
teses. Nos casos em que descobri a
posteriori que outros já haviam chegado às conclusões, refiz o material
adicionando citações. Em algumas partes de economia desta obra, minhas teses
foram semelhantes às de Giovani Arrigh.
O mérito primeiro é dele, embora eu tenha chegado às conclusões de modo
independente. Ele tratou de eras do capital de modo outro e particular. Agora
que tenho acesso à sua obra, devo fazer aqui referência ao autor. Como proposta
de teoria geral e unificada do marxismo de nosso tempo, suas decobertas devem
ser incluídas e lembradas. Não apenas nego sua teoria com outras interpretações
dos mesmos fatos, pois deve-se levar em conta que ele primeiro alcançou os
fatos, embora a má ou parcial interpretação; também, também aqui, guardo-supero
suas produções. No geral, todos os teóricos citados ou mencionados são
suprasumidos, com novas interpretações e conclusões dos eventos por eles
destacados. Seus limites estão, entre outros aspectos, em não focar na
totalidade, não a buscar desde a investigação de suas partes inerentes – mas a
prossuporam via de regra. Em tempo: retirado de Trotsky, Mandel também pensou,
primeiro, o socialismo como três, não duas, fases.
Outro problema é o ambiente acadêmico.
Seguindo programas de pesquisa de universidades, teria todo o trabalho
deformado e limitado pelas regras das academias atuais. Há excessiva
especialização como há montanha de pesquisas fictícias, pois ver a realidade a
fundo obriga chegar a conclusões socialistas. A burocracia universitária
consolidou regras conservadoras que impedem o exercício de livre pensamento. Para
garantir o doutorado e evitar a desmoralização, os membros da academia evitam
riscos teóricos reais. Nas humanidades, por exemplo, a pós-modernidade e outras
quase ciências imperam, sufocando a verdadeira análise crítica. Como observou
Lucáks, perdeu-se a noção de historicidade, de história viva. Pude me livrar de
tais limites, contanto aceitasse certo isolamento social que ao mesmo tempo
liberta e limita.
A ciência beira uma nova revolução do
pensamento. Veja-se o caso da física: conhece bem os fenômenos da fenda dupla e
do emaranhamento quântico, inclusive usando este para fins práticos em testes, mas
ainda não os explica. Na psicologia, uma teoria unificada falta surgir, desde a
revisão de toda produção importante sobre este objeto. Na economia, a
pseudociência impera. Nunca tivemos tantos doutores em filosofia, e nunca eles
foram tão inúteis. A pesquisa de base tende a ser negligenciada, porque o
capital precisa de investimento em pesquisa aplicada. Limita-se a poucos
países, desde a relação de dominação imperialista, a pesquisa e o ensino de
qualidade. Apenas a revolução social, que dará ao método dialético seu
necessário destaque, produzirá condições materiais para o pensamento profundo,
renovando o ensino e o trabalho científico. Somente assim, poderemos evitar a
queda de nossa nova biblioteca de Alexandria – ameaçada pelo fanatismo
religioso (que cresce à medida que a qualidade de vida cai), pelas crises
econômicas, pela ignorância geral, pelo oportunismo público de cientistas e
experts serviçais abertos ou disfarçados dos ricos (economistas, etc.,
desmoralizando o mundo científico para as massas) etc. –, com a ciência
deixando de ser algo das elites, das classes dominantes, das grandes empresas
capitalistas, pondo-se diretamente a serviço da humanidade. A crise da ciência
acompanha a crise humanitária do capitalismo. É sintomático que tenhamos ouvido
de Ronald Reagan, presidente americano, no início da crise sistêmica: "Por
que deveríamos subsidiar a curiosidade intelectual?" (Discurso de campanha
eleitoral, 1980.) Tal retórica contrasta com a do alvorecer do capitalismo
estadunidense, quando George Washington, então presidente,
afirmou: "Nada é mais digno de nosso patrocínio que o fomento da ciência e
da literatura. O conhecimento é, em todo e qualquer país, a base mais segura da
felicidade pública." (Discurso no congresso, 1790.) As primeiras nações
socialistas no possível futuro próximo terão de ser potentes campos
gravitacionais, por liberdade científica e por oportunidades, atraindo para si os
melhores cérebros do mundo tal como os EUA atraíram por séculos os
vanguardistas de todos os tipos perseguidos na Europa.
Esta obra é sistemática, abarca toda a realidade
em seus aspecos fundamentais – da mentalidade à cosmologia (melhor: da
cosmologia à mentalidade). Produz (descobre), portanto, um (o) sistema. Mas não
é capaz de romper com o marxismo, pois a ciência atual pode ser dividida entre
marxismo e não marxismo (reducionismo, mecanismo etc.) – Marx deu as bases e os
fundamentos da síntese, da última síntese da ciência e da humanidade, pertence
a ele, mas não as desenvolveu até os seus limites necessários (limites estes
que não são tudo ou total, mas muito mais do que o suficiente). A síntese
marxista está posta de fato, mas não plenamente realizada e exposta, pois
gênios também morrem, o que obriga as demais gerações a deduzir e descobrir o
que mais há de necessário. Agora, espero, temos o fundamento exposto, pleno –
cujas atualizações partem de suas afirmações demonstradas. Por exemplo, Marx
apenas disse por alto que a crise de um sistema, melhor, modo de produção, está
na contradição entre forçar produtivas e relações de produção; mas isso é dizer
o básico, o central e o claro, mas pouco ainda; aqui, nesta obra, exponho em
resumo o que há em comum na particularidade das crises sistêmicas passadas,
antes da do capital, embora esta seja o foco e a guia (o mais complexo é que
ilumina o mais simples). Quais são as três ou mais leis gerais do Ser, de todo
o Ser, segundo o marxismo? Até agora, apenas silêncio foi dito. Finalmente,
temos uma proposta fundamentada, organizada e material. O sistema marxista
anunciado por Marx, mas apenas exposto em seus aspectos gerais agora, parece,
existe. Estou ciente da radicalidade de tal afirmação, que, veremos, está na
sua medida exata – e sendo o mundo uma fonte de pesquisa infinita, devemos
passar do mau infinito acumulador para o bom infinito, qualitativo, ou seja,
ter aquelas verdades concretas, não artificiais, que permanecem vivas
independente e com-juntas as novas descobertas, pesquisas e refutações. Ou
seja, que se sustente com o tempo e com o avançar da humanidade na vida e na
ciência. O paradigma marxista, antes esboçado e antes exposto quase que somente
o núcleo central, ainda que amplo, agora está consolidado, espero.
Em alguns pontos, repito ideias por
necessidade e porque o leitor atual procura aquele capítulo importante para si,
não entende a obra como obra – são mais de mil páginas, algo desafiador. A
crise sistêmica dá o acorde central, mas serve de pretexto para atualizar o
livro O Capital, pensar uma base para a psicologia marxista, responder as perguntas
levantadas pela metafísica etc. É, quase, a reunião de minhas obras completas
não ficcionais, no sentido da ruenião de conteúdo acima do acúmulo mecânico de
textos. Ponho alguns contos e poemas para dar exemplo estético, por exemplo –
tema bastante específico aqui. Ao final, dei-me o capricho de dispor uma
pequena autobiografia caótica de leitura totalmente dispensável, mas que afirma
o laço do autor com a obra. Convido o leitor a ler todas os apêndices, pois são
também centrais e necessários, por exemplo, lá exponho um ensaio sobre “O
capitalismo como modo de transição”, mais do que apenas modo de produção, algo
deveras novo do modo como foi exposto. Por fim, é interessante destacar
aspectos de estilo do texto. Procuro ser o mais claro e direto na produção,
apesar de que é necessário algum conhecimento prévio sobre certos temas. Uma
das táticas comuns dos autores da área de humanas é vencer o leitor por meio do
cansaço com textos longos e complicados, com debates de princípio que apenas
reafirmam posições, com exposição da vasta erudição do escritor, com a
construção de dialetos para disfarçar a baixa criatividade etc. O marxismo
tende a certos critérios de escrita, entre eles, a clareza destinada ao público
popular potencial e a polêmica. Evito apenas a última característica porque o
objetivo é ganhar aqueles de diferentes vertentes e tradições para um campo
comum. Esta obra tem pelo menos três dificuldades importantes. Primeiro: foi
escrita por alguém limitado, um não erudito típico, sequer com um cargo de
professor em alguma universidade importante. Segundo: há – e devemos ser
sinceros – uma altíssima dose de originalidade e ineditismo cujo perfil
excêntrico tende a atrapalhar, tanto mais em nosso tempo medíocre. Terceiro:
mesmo com todo o tato, inicia imensa briga contra todos os marxismos depois de
Marx; de modo justo, a mão que afaga é a mesma que apedreja; assim, difícil
encontrar terreno estável no nosso movimento quando, ao mesmo tempo, elogia e
refuta as diversas tradições.
Ao leitor, fica a indagação um tanto
retórica: esta obra existira não fossem os limites absolutos do sistema
capitalista revelados desde 2008? Dito de outra forma, positiva: chegou a hora
de imaginar, com os pés no chão, uma nova sociedade? O marxismo bárbaro,
formado longe dos grandes centros, deste livro pretende ajudar em tal tarefa.
Teoria para guiar a rebeldia!
Organize a tua revolta!
J. P.
PARTE 1
CRISE SISTÊMICA E INFRAESTRUTURA
(ECONOMIA)
A
ÚLTIMA ERA DO CAPITAL
“A coruja de Minerva só voa ao
entardecer.”
Hegel
O marxismo dividiu-se, entre outras, em
duas concepções opostas: ou o capitalismo é fadado a ser substituído pela
sociedade socialista ou é um sistema capaz de se renovar caso inexistam revoluções
vitoriosas. Para resolver tal polêmica, precisamos analisar a história desse
modo de produção.
Tomemos por ponto de partida as três
formas de capital:
1. Capital
produtor de juros;
2. Capital
industrial;
3. Capital
comercial.
E suas bases
constitutivas:
1. Capital-dinheiro;
2. Capital
produtivo;
3. Capital-mercadoria.
Em diante, trataremos das eras do
capital como etapas históricas com diferentes centros de gravidade.
Era
do capital comercial
A primeira era do capital inicia-se no
século XVI com as grandes navegações. Nesta época, o artesão passa por processo
de subordinação ao capitalista comercial. A grande nação do comércio é a Holanda;
ao mesmo tempo, na Inglaterra inicia-se a acumulação inicial ou primitiva de
capital com a expulsão dos camponeses das terras comunais e a transformação
destes em mão de obra disponível em troca de salário.
O desenvolvimento do capitalismo
mercantil é base para elevar duas outras formas de capital, a produção de
mercadorias e o capital a juros. Também transforma a força de trabalho, antes
ligada à servidão, em mercadoria.
Do ponto de vista lógico-histórico a
mercadoria é também o ponto de partida e, na formação de sua totalidade,
desdobra-se na criação das mercadorias dinheiro, força de trabalho e capital
produtivo. Por isso, a primeira etapa do sistema tem o desenvolvimento das
relações mercantis como base para o desenvolver das demais eras. A partir da
mercadoria, uma nova totalidade passa a se consolidar.
A alta demanda do mercado foi parte do
impulso a esta etapa histórica e serviu, também, de impulso rumo à era
seguinte.
Era do capital
industrial
A produção passa a ter força
centralizadora com a I Revolução industrial, final do século XVIII. A
necessidade de aumentar a produtividade e derrotar os trabalhadores, que usavam
de suas habilidades para limitar a exploração, ou seja, luta concorrencial e
luta de classes, motivaram o uso do maquinário.
Algumas caraterísticas essenciais
surgem e merecem destaque.
Nesta era, a dominação de classe capitalista
se consolida com o consolidar do novo sistema. As duas classes opostas ganham
corpo: a burguesia torna-se cada vez mais conservadora na medida em que
consolida seu poder e o proletariado tem cada vez mais peso político.
Iniciam-se as crises cíclicas, de
superprodução relativa. O capitalismo revela-se de fato como autocontraditório,
como fonte de ebulições sociais. Pela primeira vez na história humana, as
crises são por excesso, neste caso, de capitais e de mercadorias.
O capitalismo maduro dá as condições
para o desenvolvimento do mundo das mercadorias, com o capital comercial, e do
capital produtor de juros, ambos sob a dominação do capital industrial.
Era
do capital financeiro
No final do século XIX, a necessidade
de dispor recursos para o alto investimento em máquinas e matéria-prima, em
capital constante, da II revolução industrial, obrigou a fusão de capital
produtor de juros e capital industrial nas formas de sociedades por ações,
sociedades anônimas e controle dos bancos sobre a indústria. É a fase
imperialista do capital. O capital produtor de juros, o capital bancário em
destaque, passa de intermediário e subordinado a centralizador de grandes
operações econômicas. Sua missão foi desenvolver a nova etapa da indústria e
consolidar as relações mercantis por todo o mundo.
Era do capital
fictício
A atual era surge na década de 1970. Há
aí um movimento fundamental: a taxa de lucro cai em demasiado na economia global,
logo os investimentos, em muitos casos baseado em dívidas por empréstimos,
deslocam-se da produção para a superestrutura financeira
GRÁFICO 1
Fonte:
GRÁFICO 2
Fonte:
Marx
considerou o capital fictício – ações, dívida pública, etc. – algo como espuma
econômica, que se desfaz logo depois de seu surgir por ter de responder à fonte
original da riqueza. Isso está correto para a sua época, pois então destacou-se
o crescimento e o poder do capital industrial, da produção de valor. Ele não
antecipou tal ruptura do capital fictício em relação à sua fonte, ainda que tal
ruptura seja relativa, além de ainda responder à base material inescapável.
O capital
fictício produz, por sua vez, lucro fictício
Esta era
“contamina” as modalidades de capital. Grandes empresas produtivas possuem importantes
braços financeiros, pois a taxa de lucro nestes compensa em relação ao
investimento produtivo; e o grande comércio atua ainda mais como credor para
escoar as mercadorias em meio a uma superprodução crônica latente. Ademais, as
dívidas estatais, formas de capital fictício, porque o Estado tem de lidar com
as duras crises, elevam-se a patamares nunca antes vistos. O lucro por ações em
grandes empresas toma a forma de juro, de indenização do capital. No setor de
serviços, as empresas de aplicativos alugam seus programas a taxistas,
entregadores, etc. em troca de juros pelo uso
Do ponto de
vista da forma, o domínio financeiro na fórmula D-D’ opera um “salto para si”
da terceira para a quarta era do capitalismo.
Embora lhe
faltasse teorizar em total, Marx intuiu:
Se o sistema de crédito é o propulsor principal da
superprodução e da especulação excessiva no comércio, é só porque o processo de
reprodução, elástico por natureza, se distende até o limite extremo, o que
sucede em virtude de grande parte do capital social ser aplicada por não
proprietários dele, que empreendem de maneira bem diversa do proprietário que
opera considerando receoso os limites de seu capital. Isto apenas ressalta que a valorização do capital fundada no caráter
antinômico da produção capitalista só até certo ponto permite o desenvolvimento
efetivo, livre, e na realidade constitui entrave à produção, limite imanente
que o sistema de crédito rompe de maneira incessante. Assim, este acelera o
desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial,
e levar até certo nível esses fatores, bases materiais da nova forma de
produção, é a tarefa histórica do modo capitalista de produção. Ao mesmo tempo,
o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises, e, em consequência,
os elementos dissolventes do antigo modo de produção.
O sistema de
crédito, pela natureza dúplice que lhe é inerente, de um lado, desenvolve a
força motriz da produção capitalista, o enriquecimento pela exploração do
trabalho alheio, levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo,
e limita cada vez mais o número dos poucos que exploram a riqueza social; de
outro, constitui a forma de passagem para novo modo de produção. É essa ambivalência que dá aos mais eminentes
arautos do crédito, de Law a Isaac Péreire, o caráter híbrido e atraente de
escroques e profetas. (MARX, 2008, p. 588; grifos nossos.)
Faltou-lhe
perceber o caráter qualitativo, toda uma era, da teorização acima.
No início
deste capítulo, propusemos avaliação a partir das três modalidades de capital,
mas nada seria a Santíssima Trindade sem Lúcifer. Enquanto capital não
diretamente ligado à fonte de riqueza, a produção, o capital fictício[2]
infla-se de modo inédito na história do capitalismo.
Na primeira
era, destaca-se o crescimento do comércio; a nação que domina o setor comercial
também domina a produção, como observou Marx. Na segunda era, ao contrário, o
país que domina a produção também domina o comércio, ainda tal qual Marx
observou; trata-se da época em que a produção como produção de valor é o que
mais se desenvolve. Na terceira era, os bancos inflam-se muito, há concentração
e centralização bancária, além do desenvolvimento de outros financiamentos a
partir dos juros; aqui, o capital produtor de juros desenvolve-se com destaque.
Na quarta era, enfim, impera o desenvolvimento do chamado capital fictício e
dos serviços[3].
Assim, mais correto é destacar:
1.
Capital
comercial;
2.
Capital
industrial;
3.
Capital
produtor de juros;
E, colateral:
4.
Capital
fictício e capital de serviços.
Percebemos
por meio das próprias formas de capital, como etapas necessárias do
desenvolvimento sistêmico, o limite endógeno do atual sistema socioeconômico[4]. O
desenvolver da totalidade, suas partes e inter-relações, pôs o limite interno.
Verifiquemos:
1.
Capital mercadoria: foco da economia capitalista, o comércio expandiu-se
extensiva e intensivamente por todo o mundo – alcançou o ápice.
2.
Capital produtivo: a produção-capacidade produtiva, com o avanço técnico
– especialmente, a automação e a robótica – e presença em todos os continentes
junto a sua altíssima monopolização e oligopolização, tende à superprodução
crônica – alcançou o ápice.
3.
Capital dinheiro: o setor financeiro inchou-se absurdamente, com domínio
sobre a economia e impulsionando esta; o endividamento de famílias, de empresas
e de estados é altíssimo; o capital fictício inflaciona, deslocada de sua base
real – alcançou, também, o ápice.
Nesta obra, em seus capítulos iniciais,
o leitor poderá observar uma característica comum aos três elementos acima
apontados: desenvolvem-se, em qualitativa medida, de maneira fictícia, ao modo
de capitais fictícios, num capitalismo cada vez mais real irreal. E fundamentam
em versão inversa, um mundo invertido, as bases do socialismo provável.
O mundo capitalista, que constrói seu
próprio fim, pode ser substituído pelo socialista, mas isso é uma possibilidade
posta, de modo algum uma inevitabilidade[5].
Resultado oposto, o fim da civilização ou a extinção da espécie humana também
aparecem no horizonte próximo. As duas possibilidades latentes estão de acordo
com a observação de Marx e Engels no Manifesto:
Homem livre e escravo, patrício e
plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo,
opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido uma guerra
ininterrupta, ora franca, ora disfarçada, uma
guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade
inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito. (MARX, ENGELS;
2005, p. 40, grifo nosso.)
Vejamos a oposição teórica que abriu
este capítulo. A ideia de que o capitalismo é necessariamente superável e
superado pelo socialismo foca, para provar a força de sua ideia, nos aspectos
objetivos, caindo em objetivismo (e fetichismo). A ideia oposta, de que o
capitalismo “nunca cairá de maduro” já que tem de ser conscientemente derrubado,
prioriza a importância do aspecto subjetivo, caindo em subjetivismo (e
relacionalismo). A verdade supera ambas as posições, pois o fim sistêmico é
certo, exigindo e dando as condições para revolução social, mas a vitória é
incerta, uma possibilidade dada.
Descobrir no próprio desenvolvimento
das modalidades do capital em eras rumo ao seu fim soa tarefa fácil uma vez
exposto o movimento[6]. Então
por que os marxistas demoraram a perceber os limites internos de tal modo? A
falta de ousadia ou dogmatismo teórico explica apenas em parte a demora; a
razão principal é que o momento histórico vigente, o próprio limite do
capitalismo pondo-se, permite-nos ver o evolver de longa duração do sistema. A
verdade científica depende de condições sociais desenvolvidas, precisa de bases
sociais maduras para surgir. Marx conheceu o capitalismo maduro e Lenin, o início do imperialismo; ambos
elaboraram nas possibilidades históricas dadas. A situação dos marxistas atuais
é outra, nos dizeres hegelianos: “A suprema maturidade e o supremo estágio que
alguma coisa pode alcançar são aqueles em que começa o seu declínio.” (HEGEL,
2018, p. 77.)
AS TEORIAS DAS ERAS
Do ponto de vista do estilo, o capítulo
encerrou-se no parágrafo anterior. Mas somos obrigados a dizer algo mais.
Após minha primeira versão deste texto
em meu blog (Paulo, 2016), Eleutério Prado fez uma elaboração semelhante em seu
próprio site, anos depois. De modo algum penso que seja caso de plágio ou mesmo
inspiração não creditada; na verdade, quase tudo desta obra está tão maduro na
realidade, de maneira tão gritante, já que ninguém antes se debruçou como deve
sobre o real, que fica mais fácil chegar a tais conclusões, aparecendo alguns
aspectos na cabeça de uns e de outros. A questão é superar os “esboços” e as
teses fragmentadas, que passam longe da totalidade. A falta de gênios do tipo
de Marx e Trotsky entre nós atrasou o conhecimento e o reconhecimento das
ideias deste livro, escrito por alguém certamente mais modesto, mas que contou
com o excesso de maturidade das circunstâncias, facilitando a observação das tendências,
e com uma ousadia pessoal acima da média, como se verá, longe da castração
acadêmica presente na área de humanas.
Este capítulo terá sua verdade exposta
nos próximos – focaremos na última era do capital, apresentando de modo
sintético a diferença com cada era anterior (no dinheiro, no Estado, etc.).
Elaborações anteriores falharam, mesmo avançando, em ir ao fundamento de uma
classificação de eras, muitas vezes limitando-se a esboços. Hobsbawm divide
nossa época em Era das revoluções (1789-1948), Era do capital (1848-1875), Era
dos impérios (1875-1914) e Era dos extremos (1914-17-1991) – mais sua divisão é
apenas factual, não vai ao fundamento, erro igual ao de outras formulações; é
uma divisão quase mercadológica. Mandel divide em 1° fase com capitalismo de
mercado (1700-1850), 2° fase com o capitalismo monopolista (1850-1960) e 3°
fase com o capitalismo tardio – também falha em ir ao fundamento, além de uma
divisão muito duvidosa, pois assim, por exemplo, também deixa de derivar o
autolimite do capital em seu evolver. Nancy Fraser elabora as fases como
“capitalismo mercantilista ou comercial, capitalismo laissez-faire ou
liberal-colonial, capitalismo organizado pelo Estado ou social-democrata e
capitalismo neoliberal ou financeirizado.” (Fraser, 2021) – Igualmente faz uma
elaboração parcialmente certa, que arranha a verdade, mas com critérios
externos, não imanentes à Coisa. Ter uma formulação das eras que seja interno
ao objeto de estudo tornou-se uma necessidade para a compreensão de nosso
tempo. As elaborações anteriores foram tentativas de uma resposta ao problema,
mas, se bem observado, foram pouco além da intuição. Ao mesmo tempo, agregamos
e superamos as propostas inexatas – em um desenvolvimento teórico mais profundo
possível.
Quando todas as condições para surgir
uma nova ideia acontecem, estão na realidade madura, então pode surgir em mais
de uma cabeça quase ao mesmo tempo. A história da ciência é recheada de fatos
curiosos do tipo. Poucas semanas após a publicação de minha tese sobre, o tema,
a versão inicial deste capítulo, em meu blog, o marxista Edmilson Costa também
escreveu algo sobre em seu site. Descarto qualquer insinuação de plágio por
parte veterano marxista. O acaso também faz a história! No mais, numa palestra
da década de 1990, Maria da Conceição Tavares expõe tal divisão no seu quadro
negro, sem destinar autoria. Via de regra, a polêmica é sobre a quarta era,
quando ela é destacada: se é informacional, rentista, tecnofeudalismo, apenas
imperialismo financeiro etc. Mas o caso que mais coincide com minhas ideias são
as de Giovanni Arrigh, um gênio sem a devida fama, mas que deixou de levar suas
intuições até o limite, tal como fazemos nesta obra.
[1] Ao
leitor não iniciado: compra-se, supomos, um dólar por um real, mas há previsão
de que no futuro precisaremos comprar um dólar por quatro reais; o especulador
compra mil dólares quando vale um real, com mil reais, depois troca mil dólares
por quatro mil reais quando um dólar valer quatro reais. Sua riqueza cresceu de modo fictício, sem
menor lastro no trabalho produtivo.
[2] No
próximo capítulo, o conceito de capital fictício será alargado, incluindo outro
inchaço colateral, o do setor de serviços.
[3]
Mandel acerta ao afirma que esta última era, nomeada por ele “capitalismo
tardio”, teria como destaque a grande inflação dos serviços; mas erra ao supor
que, no setor industrial, com a queda da taxa de lucro, o autofinaciamento do
capital fixo cairia, aumentando o financiamento por via financeira – isso não
ocorreu, ao contrário, foi reduzido em nosso tempo. Sobre, ver:
[4]
Nota-se, porém, que o método de exposição não equivale de todo ao método de
investigação.
[5] O
igualitarismo sempre foi de fato uma possibilidade em todas as formas de
sociedade classistas. Junto ao escravismo, e até para que este surja, havia
várias sociedades igualitaristas baseadas no cultivo, na pesca e na pecuária;
porém os povos escravistas destruíam tais formações e escravizava seus membros,
tomando suas terras, porque era a escravatura a forma social que mais
desenvolvia as forças produtivas naquela época. Na consolidação do feudalismo,
apareceram feudos sem senhores feudais, geridos por servos camponeses. No
capitalismo, apareceram fábricas sem patrões e tentativas de sociedade
igualitária quando o socialismo era mais possível do que necessário. A
diferença, hoje, é que o socialismo é uma necessidade cada vez maior, e cada
vez mais possível, como solução da crise desta sociedade. Se evitarmos a
extinção humana ou o fim da civilização, a saída socialista será consolidada. A
abundância atual, por exemplo, exige relações igualitárias como necessárias,
não mais contingentes como no passado.
[6] No
ótimo artigo “O estágio último do capital. A crise e a dominação do capital
financeiro no mundo”
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