quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A crise sistêmica - cap. 1 - A última era do capital [+ prefácio]

 

APRESENTAÇÃO

 

Esta obra é fruto de algo em torno de 15 anos de estudo. Sua produção partiu do fato de que uma resposta geral sobre o mundo contemporâneo era necessária. Ademais, valeria a pena escrever um novo livro, ainda que com conclusões iniciais e gerais, apenas se oferecesse respostas qualitativamente novas. As teses as quais cheguei parecem autorizar tal empreitada.

O método utilizado foi o dialético: ir ao conjunto do material necessário e, então, rastrear seu nexo interno. Em momento algum partiu-se de hipóteses ou postulados. Pode-se dizer, em linguagem menor, que se usou procedimento empírico-dedutivo ao procurar nos dados, a partir destes, aquilo que não é dado, a verdade impalpável.

Como somos frutos de nossa realidade, deve-se destacar aqui o papel do perfil nacional. Diferente do que ocorre na literatura brasileira, focada provincialmente em sua terra própria, os marxistas nacionais absorvem com voracidade toda a produção mundial no campo teórico. Forma-se um meio cultural propenso à renovação das ideias. Apenas aqui autores como Mèszáros, Kurz, Lukács, Moreno etc. fazem tanto sucesso nos meios intelectuais de esquerda. Apesar disso, tem-se o vício de abraçar alguma importante conclusão como se fosse uma bandeira que exclui previamente outras interpretações e atualizações. Há ainda outra característica no meio brasileiro: a sua divisão entre os práticos, concentrados no resgate dos clássicos quase inquestionáveis, tendendo ao dogmatismo; e os teóricos, como erro oposto, mais ativos na renovação das ideias, tendendo ao impressionismo, ao revisionismo, ao jogo de palavras etc.  (Tal divisão expressa, além de ser mais do  que apenas análoga, a diferença levantada por Marx, em suas famosas Teses contra, do materialismo que foi, até ele, passivo e “fixo” contra o idealismo que foi ativo e “solto”; veja-se que o jogo de palavras etc. deriva do modo de vida intelectual que somente lê demais, fala demais nas aulas etc. com ações quase que apenas ligadas à palavra; pensam fazer muito ao palestrar sobre um autor europeu….). Este livro pretende, portanto, superar o sectarismo intelectual e almeja oferecer uma primeira resposta unificada sobre os temas mais caros ao marxismo. Como cenário para tal tarefa, o Brasil, talvez, é, hoje, o país mais dialético ideal e materialmente.

Há, portanto, o risco do qual fala o poeta Fernando Pessoa:

 

Se eu, portanto, fizesse um estudo sobre o catolicismo, onde forçosamente teria que dizer mal e bem, que apontar vantagens misturadas com desvantagens, que indicar defeitos aliviados por virtudes, que me sucederia? Não me escutariam os católicos, que não aceitariam o que eu dissesse de mal do catolicismo. Não me escutariam os anti-católicos, que não aceitariam o que eu lhes dissesse de bem. Não me escutariam os indiferentes, para quem todo o assunto não passaria de uma maçadoria ilegível. Assim resultaria inútil esse meu estudo, por cuidado e escrupuloso que fosse — direi, até, tanto mais inútil, porque tanto menos aceitável ao público, quanto mais fosse cuidado e escrupuloso. Seria, quando muito, apreciado por um ou outro indivíduo de índole semelhante à minha, raciocinador sem tradições nem ideais, analisador sem preconceitos, liberal porque liberto e não porque servo da ideia inaplicada da liberdade. A esse, porém, que teria eu que ensinar? (Pessoa, 2020)

 

Não se trata de somar diferentes contribuições, costurando retalhos, mas descobrir, desde o empírico, o terceiro excluído, que supera as oposições teóricas. Às vezes, tal terceiro foi de um ir-se do x ao… não-x, de algo para seu oposto, como exporemos em nossa dialética própria. Uma pesquisa científica sistemática é, também, crítica e desenvolvimento do método científico, pois põe sob suspeita premissas, conceitos, postulados, verdades “naturais”, concepções, métodos etc. Uma teoria correta deve: 1) ser sistemática, 2) responder por que as teorias anteriores acertaram aonde acertaram, 3) responder por que as teorias anteriores erraram aonde erraram, 4) explicar a origem das demais teorias, 5) responder novas perguntas, 6) responder velhas perguntas já respondidas (de modo correto ou errado), 7) explicar a origem de anteriores duras polêmicas aparentemente insolúveis e o motivo de os teóricos terem sido incapazes de uma solução plena, 8) apresentar novo modo de perceber o mundo. O leitor verá se este é o caso, como propomos.

Minha tarefa logo foi, por tal ponto de vista, muito mais simples. Na medida em que as polêmicas caíam em oposições – se há crise do valor ou seu maior domínio, se há estagnação secular ou crises cíclicas, se a essência humana é natural ou histórica etc. –, deram as bases da própria superação dos problemas, ofereciam caminho para a descoberta da resolução dos opostos. Em geral, bastou abordar o objeto do debate de modo histórico para encontrar a solução; A=A e… não-A. Tratou-se, portanto, de descobrir o grau de verdade das diferentes produções, na medida em que estavam fincadas na realidade, mais do que apenas perceber erros e limites. Por outro lado, serve de mérito particular da obra reunir em um todo artístico, em totalidade, o que havia sido tratado antes apenas de modo monográfico, separado. Por isso também foi um trabalho um pouco mais fácil, embora amplo.

Esta obra trata da crise sistêmica do capitalismo. Tal como o escravismo e o feudalismo encontraram o limite histórico, o capital também o alcança. Assim, seja por qual ângulo observado, o sistema atual encontrou sua crise derradeira – contradição entre o grau de desenvolvimento das forças de produção e as relações de produção (e superestruturais) existentes. Mais: oferece em si próprio os elementos da primeira fase da próxima sociabilidade. Este é o primeiro sentido de transição: estamos na época de passagem possível e necessária para o modo de produção socialista. Também focamos na transição no sentido de primeira fase do socialismo: debatemos as revoluções do século XX, os aspectos gerais da transição social no regime etc. De um lado, fazemos balanço do passado e, de outro, tentamos esboçar possíveis aspectos do futuro.

No decorrer do livro, uma categoria destaca-se: a ficção, o falso. As categorias avançam para categorias fictícias. Vários autores focaram este ou aquele caráter ficcional do capitalismo contemporâneo, mas lhes faltou uma visão geral, unificada e categorial consciente. Aos teóricos, vale notar que a categoria trabalho esteve clara ou de maneira lastreada presente até nos estudos psicológicos etc.; mas momento algum eu havia elegido tal categoria como premissa para uso, para método etc., ela surgiu natural e necessariamente, como deve ser.

Na produção deste livro, surgiu como necessário partir da economia para, em seguida, as classes, depois a subjetividade (superestrutura subjetiva) e, então, para as organizações (superestrutura objetiva). Do contrário, teria de maneira constante de antecipar conteúdos, de remeter a outros assuntos, no lugar de uma absorção e uma exposição que avançasse e progredisse. É, enfim, o mesmo proceder de uma análise de conjuntura em uma “análise de estrutura” e assim é porque a realidade social, que é histórica, tem tal hierarquia. A dialética estrutura-conjuntura também se faz presente de maneira natural e, além de formar oposição e contradição das categorias, forma principalmente a unidade entre elas, embora esta costume estar implícita no texto.

A ideia de compor este livro começou quando soube que minha antiga organização política internacional, a LIT-QI, havia aprovado um debate de atualização programática; mais do que levantar novas palavras de ordem, isso significa chegar a uma concepção do que o mundo é hoje. Tal empreitada motivou o autor dessas páginas a publicar alguns de seus esboços na internet, porém, quanto mais pesquisava, mais precisei ir a fundo, aos fundamentos. Embora reivindique o partido político citado, mas não sua representação nacional, o processo de minha expulsão partidária, em base a uma dura luta de frações, foi bastante traumático e me impediu de ter qualquer participação nos debates internos. Anos depois, espero ter concluído o central da tarefa ao qual me propus, ou seja, dar uma explicação geral e unificada, ainda que sempre incompleta, do mundo.

A pesquisa foi feita de modo independente, com todos os desafios e as dificuldades que isso representa. Um professor universitário tem bom salário, algum tempo livre, recursos para obter muitas obras. Com um pesquisador independente, tudo ocorre de modo outro. Várias vezes, tive de apertar os cintos para comprar livros e ter tempo livre para estudar e pensar. Em outro parágrafo, foi dito que a tarefa tornou-se mais fácil também uma vez baseada em outras pesquisas; mas, por outro lado, foi de fato dificílima dada a condição do autor. Isso fez com que fosse impossível esgotar a bibliografia sobre os temas tratados; também porque o assunto é amplo e profundo, porque faltam recursos, porque – e isso tem máxima importância – o tempo da política e da crise mundial impedem adiamentos. Uma pesquisa completa demoraria pelo menos mais dez anos de dedicação exclusiva, algo inviável ao escritor. Pode haver, portanto, neste ou naquele ponto, algum plágio inconsciente que deverá ser reconhecido em caso afirmativo. O temor maior era de que as ideais pulassem como piolhos para a cabeça de outros, daí outro motivo de lançar este livro com o material estável, amadurecido, em forma de teses. Nos casos em que descobri a posteriori que outros já haviam chegado às conclusões, refiz o material adicionando citações. Em algumas partes de economia desta obra, minhas teses foram  semelhantes às de Giovani Arrigh. O mérito primeiro é dele, embora eu tenha chegado às conclusões de modo independente. Ele tratou de eras do capital de modo outro e particular. Agora que tenho acesso à sua obra, devo fazer aqui referência ao autor. Como proposta de teoria geral e unificada do marxismo de nosso tempo, suas decobertas devem ser incluídas e lembradas. Não apenas nego sua teoria com outras interpretações dos mesmos fatos, pois deve-se levar em conta que ele primeiro alcançou os fatos, embora a má ou parcial interpretação; também, também aqui, guardo-supero suas produções. No geral, todos os teóricos citados ou mencionados são suprasumidos, com novas interpretações e conclusões dos eventos por eles destacados. Seus limites estão, entre outros aspectos, em não focar na totalidade, não a buscar desde a investigação de suas partes inerentes – mas a prossuporam via de regra. Em tempo: retirado de Trotsky, Mandel também pensou, primeiro, o socialismo como três, não duas, fases.

Outro problema é o ambiente acadêmico. Seguindo programas de pesquisa de universidades, teria todo o trabalho deformado e limitado pelas regras das academias atuais. Há excessiva especialização como há montanha de pesquisas fictícias, pois ver a realidade a fundo obriga chegar a conclusões socialistas. A burocracia universitária consolidou regras conservadoras que impedem o exercício de livre pensamento. Para garantir o doutorado e evitar a desmoralização, os membros da academia evitam riscos teóricos reais. Nas humanidades, por exemplo, a pós-modernidade e outras quase ciências imperam, sufocando a verdadeira análise crítica. Como observou Lucáks, perdeu-se a noção de historicidade, de história viva. Pude me livrar de tais limites, contanto aceitasse certo isolamento social que ao mesmo tempo liberta e limita.

A ciência beira uma nova revolução do pensamento. Veja-se o caso da física: conhece bem os fenômenos da fenda dupla e do emaranhamento quântico, inclusive usando este para fins práticos em testes, mas ainda não os explica. Na psicologia, uma teoria unificada falta surgir, desde a revisão de toda produção importante sobre este objeto. Na economia, a pseudociência impera. Nunca tivemos tantos doutores em filosofia, e nunca eles foram tão inúteis. A pesquisa de base tende a ser negligenciada, porque o capital precisa de investimento em pesquisa aplicada. Limita-se a poucos países, desde a relação de dominação imperialista, a pesquisa e o ensino de qualidade. Apenas a revolução social, que dará ao método dialético seu necessário destaque, produzirá condições materiais para o pensamento profundo, renovando o ensino e o trabalho científico. Somente assim, poderemos evitar a queda de nossa nova biblioteca de Alexandria – ameaçada pelo fanatismo religioso (que cresce à medida que a qualidade de vida cai), pelas crises econômicas, pela ignorância geral, pelo oportunismo público de cientistas e experts serviçais abertos ou disfarçados dos ricos (economistas, etc., desmoralizando o mundo científico para as massas) etc. –, com a ciência deixando de ser algo das elites, das classes dominantes, das grandes empresas capitalistas, pondo-se diretamente a serviço da humanidade. A crise da ciência acompanha a crise humanitária do capitalismo. É sintomático que tenhamos ouvido de Ronald Reagan, presidente americano, no início da crise sistêmica: "Por que deveríamos subsidiar a curiosidade intelectual?" (Discurso de campanha eleitoral, 1980.) Tal retórica contrasta com a do alvorecer do capitalismo estadunidense, quando George Washington, então presidente, afirmou: "Nada é mais digno de nosso patrocínio que o fomento da ciência e da literatura. O conhecimento é, em todo e qualquer país, a base mais segura da felicidade pública." (Discurso no congresso, 1790.) As primeiras nações socialistas no possível futuro próximo terão de ser potentes campos gravitacionais, por liberdade científica e por oportunidades, atraindo para si os melhores cérebros do mundo tal como os EUA atraíram por séculos os vanguardistas de todos os tipos perseguidos na Europa.

Esta obra é sistemática, abarca toda a realidade em seus aspecos fundamentais – da mentalidade à cosmologia (melhor: da cosmologia à mentalidade). Produz (descobre), portanto, um (o) sistema. Mas não é capaz de romper com o marxismo, pois a ciência atual pode ser dividida entre marxismo e não marxismo (reducionismo, mecanismo etc.) – Marx deu as bases e os fundamentos da síntese, da última síntese da ciência e da humanidade, pertence a ele, mas não as desenvolveu até os seus limites necessários (limites estes que não são tudo ou total, mas muito mais do que o suficiente). A síntese marxista está posta de fato, mas não plenamente realizada e exposta, pois gênios também morrem, o que obriga as demais gerações a deduzir e descobrir o que mais há de necessário. Agora, espero, temos o fundamento exposto, pleno – cujas atualizações partem de suas afirmações demonstradas. Por exemplo, Marx apenas disse por alto que a crise de um sistema, melhor, modo de produção, está na contradição entre forçar produtivas e relações de produção; mas isso é dizer o básico, o central e o claro, mas pouco ainda; aqui, nesta obra, exponho em resumo o que há em comum na particularidade das crises sistêmicas passadas, antes da do capital, embora esta seja o foco e a guia (o mais complexo é que ilumina o mais simples). Quais são as três ou mais leis gerais do Ser, de todo o Ser, segundo o marxismo? Até agora, apenas silêncio foi dito. Finalmente, temos uma proposta fundamentada, organizada e material. O sistema marxista anunciado por Marx, mas apenas exposto em seus aspectos gerais agora, parece, existe. Estou ciente da radicalidade de tal afirmação, que, veremos, está na sua medida exata – e sendo o mundo uma fonte de pesquisa infinita, devemos passar do mau infinito acumulador para o bom infinito, qualitativo, ou seja, ter aquelas verdades concretas, não artificiais, que permanecem vivas independente e com-juntas as novas descobertas, pesquisas e refutações. Ou seja, que se sustente com o tempo e com o avançar da humanidade na vida e na ciência. O paradigma marxista, antes esboçado e antes exposto quase que somente o núcleo central, ainda que amplo, agora está consolidado, espero.

Em alguns pontos, repito ideias por necessidade e porque o leitor atual procura aquele capítulo importante para si, não entende a obra como obra – são mais de mil páginas, algo desafiador. A crise sistêmica dá o acorde central, mas serve de pretexto para atualizar o livro O Capital, pensar uma base para a psicologia marxista, responder as perguntas levantadas pela metafísica etc. É, quase, a reunião de minhas obras completas não ficcionais, no sentido da ruenião de conteúdo acima do acúmulo mecânico de textos. Ponho alguns contos e poemas para dar exemplo estético, por exemplo – tema bastante específico aqui. Ao final, dei-me o capricho de dispor uma pequena autobiografia caótica de leitura totalmente dispensável, mas que afirma o laço do autor com a obra. Convido o leitor a ler todas os apêndices, pois são também centrais e necessários, por exemplo, lá exponho um ensaio sobre “O capitalismo como modo de transição”, mais do que apenas modo de produção, algo deveras novo do modo como foi exposto. Por fim, é interessante destacar aspectos de estilo do texto. Procuro ser o mais claro e direto na produção, apesar de que é necessário algum conhecimento prévio sobre certos temas. Uma das táticas comuns dos autores da área de humanas é vencer o leitor por meio do cansaço com textos longos e complicados, com debates de princípio que apenas reafirmam posições, com exposição da vasta erudição do escritor, com a construção de dialetos para disfarçar a baixa criatividade etc. O marxismo tende a certos critérios de escrita, entre eles, a clareza destinada ao público popular potencial e a polêmica. Evito apenas a última característica porque o objetivo é ganhar aqueles de diferentes vertentes e tradições para um campo comum. Esta obra tem pelo menos três dificuldades importantes. Primeiro: foi escrita por alguém limitado, um não erudito típico, sequer com um cargo de professor em alguma universidade importante. Segundo: há – e devemos ser sinceros – uma altíssima dose de originalidade e ineditismo cujo perfil excêntrico tende a atrapalhar, tanto mais em nosso tempo medíocre. Terceiro: mesmo com todo o tato, inicia imensa briga contra todos os marxismos depois de Marx; de modo justo, a mão que afaga é a mesma que apedreja; assim, difícil encontrar terreno estável no nosso movimento quando, ao mesmo tempo, elogia e refuta as diversas tradições.

Ao leitor, fica a indagação um tanto retórica: esta obra existira não fossem os limites absolutos do sistema capitalista revelados desde 2008? Dito de outra forma, positiva: chegou a hora de imaginar, com os pés no chão, uma nova sociedade? O marxismo bárbaro, formado longe dos grandes centros, deste livro pretende ajudar em tal tarefa.

Teoria para guiar a rebeldia!

Organize a tua revolta!

J. P.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PARTE 1

CRISE SISTÊMICA E INFRAESTRUTURA (ECONOMIA)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A ÚLTIMA ERA DO CAPITAL

“A coruja de Minerva só voa ao entardecer.”
Hegel

O marxismo dividiu-se, entre outras, em duas concepções opostas: ou o capitalismo é fadado a ser substituído pela sociedade socialista ou é um sistema capaz de se renovar caso inexistam revoluções vitoriosas. Para resolver tal polêmica, precisamos analisar a história desse modo de produção.

Tomemos por ponto de partida as três formas de capital:

1.      Capital produtor de juros;

2.      Capital industrial;

3.      Capital comercial.

 

E suas bases constitutivas:

 

1.      Capital-dinheiro;

2.      Capital produtivo;

3.      Capital-mercadoria.

 

Em diante, trataremos das eras do capital como etapas históricas com diferentes centros de gravidade.

 

Era do capital comercial

A primeira era do capital inicia-se no século XVI com as grandes navegações. Nesta época, o artesão passa por processo de subordinação ao capitalista comercial. A grande nação do comércio é a Holanda; ao mesmo tempo, na Inglaterra inicia-se a acumulação inicial ou primitiva de capital com a expulsão dos camponeses das terras comunais e a transformação destes em mão de obra disponível em troca de salário.

O desenvolvimento do capitalismo mercantil é base para elevar duas outras formas de capital, a produção de mercadorias e o capital a juros. Também transforma a força de trabalho, antes ligada à servidão, em mercadoria.

Do ponto de vista lógico-histórico a mercadoria é também o ponto de partida e, na formação de sua totalidade, desdobra-se na criação das mercadorias dinheiro, força de trabalho e capital produtivo. Por isso, a primeira etapa do sistema tem o desenvolvimento das relações mercantis como base para o desenvolver das demais eras. A partir da mercadoria, uma nova totalidade passa a se consolidar.

A alta demanda do mercado foi parte do impulso a esta etapa histórica e serviu, também, de impulso rumo à era seguinte.

 

Era do capital industrial

A produção passa a ter força centralizadora com a I Revolução industrial, final do século XVIII. A necessidade de aumentar a produtividade e derrotar os trabalhadores, que usavam de suas habilidades para limitar a exploração, ou seja, luta concorrencial e luta de classes, motivaram o uso do maquinário.

Algumas caraterísticas essenciais surgem e merecem destaque.

Nesta era, a dominação de classe capitalista se consolida com o consolidar do novo sistema. As duas classes opostas ganham corpo: a burguesia torna-se cada vez mais conservadora na medida em que consolida seu poder e o proletariado tem cada vez mais peso político.

Iniciam-se as crises cíclicas, de superprodução relativa. O capitalismo revela-se de fato como autocontraditório, como fonte de ebulições sociais. Pela primeira vez na história humana, as crises são por excesso, neste caso, de capitais e de mercadorias.

O capitalismo maduro dá as condições para o desenvolvimento do mundo das mercadorias, com o capital comercial, e do capital produtor de juros, ambos sob a dominação do capital industrial.

 

Era do capital financeiro

No final do século XIX, a necessidade de dispor recursos para o alto investimento em máquinas e matéria-prima, em capital constante, da II revolução industrial, obrigou a fusão de capital produtor de juros e capital industrial nas formas de sociedades por ações, sociedades anônimas e controle dos bancos sobre a indústria. É a fase imperialista do capital. O capital produtor de juros, o capital bancário em destaque, passa de intermediário e subordinado a centralizador de grandes operações econômicas. Sua missão foi desenvolver a nova etapa da indústria e consolidar as relações mercantis por todo o mundo.

 

Era do capital fictício

A atual era surge na década de 1970. Há aí um movimento fundamental: a taxa de lucro cai em demasiado na economia global, logo os investimentos, em muitos casos baseado em dívidas por empréstimos, deslocam-se da produção para a superestrutura financeira (Roberts M. , Produtividade, investimento e lucratividade, 2019). Ocorre um poderoso deslocamento das finanças em relação à produção real de riquezas, observável nos gráficos a seguir:

 

 

 

GRÁFICO 1

            



Fonte: (Lacerda, 2012)

 

 

 

 

 

GRÁFICO 2

            



Fonte: (Chesnais, 2012)

 

Marx considerou o capital fictício – ações, dívida pública, etc. – algo como espuma econômica, que se desfaz logo depois de seu surgir por ter de responder à fonte original da riqueza. Isso está correto para a sua época, pois então destacou-se o crescimento e o poder do capital industrial, da produção de valor. Ele não antecipou tal ruptura do capital fictício em relação à sua fonte, ainda que tal ruptura seja relativa, além de ainda responder à base material inescapável.

O capital fictício produz, por sua vez, lucro fictício (Carcanholo & Sabadini, 2011). Toda valorização especulativa toma uma forma ao mesmo tempo real e ficcional. Nesta conceituação, inclui-se a dívida pública que não tem por função novos valores de uso (estradas, portos, etc.) e que é paga com dívidas novas (idem, ibidem). Citemos um exemplo específico: um possuidor de capital pode substituir seu dinheiro para outra moeda para lucrar com a variação do câmbio[1], especulação que é facilitada pelo alto desenvolvimento das comunicações.

Esta era “contamina” as modalidades de capital. Grandes empresas produtivas possuem importantes braços financeiros, pois a taxa de lucro nestes compensa em relação ao investimento produtivo; e o grande comércio atua ainda mais como credor para escoar as mercadorias em meio a uma superprodução crônica latente. Ademais, as dívidas estatais, formas de capital fictício, porque o Estado tem de lidar com as duras crises, elevam-se a patamares nunca antes vistos. O lucro por ações em grandes empresas toma a forma de juro, de indenização do capital. No setor de serviços, as empresas de aplicativos alugam seus programas a taxistas, entregadores, etc. em troca de juros pelo uso (Prado, Subsunção financeira, 2018).

Do ponto de vista da forma, o domínio financeiro na fórmula D-D’ opera um “salto para si” da terceira para a quarta era do capitalismo.

Embora lhe faltasse teorizar em total, Marx intuiu:

 

Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da especulação excessiva no comércio, é só porque o processo de reprodução, elástico por natureza, se distende até o limite extremo, o que sucede em virtude de grande parte do capital social ser aplicada por não proprietários dele, que empreendem de maneira bem diversa do proprietário que opera considerando receoso os limites de seu capital. Isto apenas ressalta que a valorização do capital fundada no caráter antinômico da produção capitalista só até certo ponto permite o desenvolvimento efetivo, livre, e na realidade constitui entrave à produção, limite imanente que o sistema de crédito rompe de maneira incessante. Assim, este acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial, e levar até certo nível esses fatores, bases materiais da nova forma de produção, é a tarefa histórica do modo capitalista de produção. Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises, e, em consequência, os elementos dissolventes do antigo modo de produção.

O sistema de crédito, pela natureza dúplice que lhe é inerente, de um lado, desenvolve a força motriz da produção capitalista, o enriquecimento pela exploração do trabalho alheio, levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo, e limita cada vez mais o número dos poucos que exploram a riqueza social; de outro, constitui a forma de passagem para novo modo de produção. É essa ambivalência que dá aos mais eminentes arautos do crédito, de Law a Isaac Péreire, o caráter híbrido e atraente de escroques e profetas. (MARX, 2008, p. 588; grifos nossos.)

 

Faltou-lhe perceber o caráter qualitativo, toda uma era, da teorização acima.

No início deste capítulo, propusemos avaliação a partir das três modalidades de capital, mas nada seria a Santíssima Trindade sem Lúcifer. Enquanto capital não diretamente ligado à fonte de riqueza, a produção, o capital fictício[2] infla-se de modo inédito na história do capitalismo.

Na primeira era, destaca-se o crescimento do comércio; a nação que domina o setor comercial também domina a produção, como observou Marx. Na segunda era, ao contrário, o país que domina a produção também domina o comércio, ainda tal qual Marx observou; trata-se da época em que a produção como produção de valor é o que mais se desenvolve. Na terceira era, os bancos inflam-se muito, há concentração e centralização bancária, além do desenvolvimento de outros financiamentos a partir dos juros; aqui, o capital produtor de juros desenvolve-se com destaque. Na quarta era, enfim, impera o desenvolvimento do chamado capital fictício e dos serviços[3]. Assim, mais correto é destacar:

 

1.      Capital comercial;

2.      Capital industrial;

3.      Capital produtor de juros;

 

E, colateral:

 

4.      Capital fictício e capital de serviços.

 

Percebemos por meio das próprias formas de capital, como etapas necessárias do desenvolvimento sistêmico, o limite endógeno do atual sistema socioeconômico[4]. O desenvolver da totalidade, suas partes e inter-relações, pôs o limite interno. Verifiquemos:

1.    Capital mercadoria: foco da economia capitalista, o comércio expandiu-se extensiva e intensivamente por todo o mundo – alcançou o ápice.

2.  Capital produtivo: a produção-capacidade produtiva, com o avanço técnico – especialmente, a automação e a robótica – e presença em todos os continentes junto a sua altíssima monopolização e oligopolização, tende à superprodução crônica – alcançou o ápice.

3.    Capital dinheiro: o setor financeiro inchou-se absurdamente, com domínio sobre a economia e impulsionando esta; o endividamento de famílias, de empresas e de estados é altíssimo; o capital fictício inflaciona, deslocada de sua base real – alcançou, também, o ápice.

Nesta obra, em seus capítulos iniciais, o leitor poderá observar uma característica comum aos três elementos acima apontados: desenvolvem-se, em qualitativa medida, de maneira fictícia, ao modo de capitais fictícios, num capitalismo cada vez mais real irreal. E fundamentam em versão inversa, um mundo invertido, as bases do socialismo provável.

O mundo capitalista, que constrói seu próprio fim, pode ser substituído pelo socialista, mas isso é uma possibilidade posta, de modo algum uma inevitabilidade[5]. Resultado oposto, o fim da civilização ou a extinção da espécie humana também aparecem no horizonte próximo. As duas possibilidades latentes estão de acordo com a observação de Marx e Engels no Manifesto:

 

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido uma guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada, uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito. (MARX, ENGELS; 2005, p. 40, grifo nosso.)

 

Vejamos a oposição teórica que abriu este capítulo. A ideia de que o capitalismo é necessariamente superável e superado pelo socialismo foca, para provar a força de sua ideia, nos aspectos objetivos, caindo em objetivismo (e fetichismo). A ideia oposta, de que o capitalismo “nunca cairá de maduro” já que tem de ser conscientemente derrubado, prioriza a importância do aspecto subjetivo, caindo em subjetivismo (e relacionalismo). A verdade supera ambas as posições, pois o fim sistêmico é certo, exigindo e dando as condições para revolução social, mas a vitória é incerta, uma possibilidade dada.

Descobrir no próprio desenvolvimento das modalidades do capital em eras rumo ao seu fim soa tarefa fácil uma vez exposto o movimento[6]. Então por que os marxistas demoraram a perceber os limites internos de tal modo? A falta de ousadia ou dogmatismo teórico explica apenas em parte a demora; a razão principal é que o momento histórico vigente, o próprio limite do capitalismo pondo-se, permite-nos ver o evolver de longa duração do sistema. A verdade científica depende de condições sociais desenvolvidas, precisa de bases sociais maduras para surgir. Marx conheceu o capitalismo maduro e Lenin, o início do imperialismo; ambos elaboraram nas possibilidades históricas dadas. A situação dos marxistas atuais é outra, nos dizeres hegelianos: “A suprema maturidade e o supremo estágio que alguma coisa pode alcançar são aqueles em que começa o seu declínio.” (HEGEL, 2018, p. 77.)

 

 AS TEORIAS DAS ERAS

Do ponto de vista do estilo, o capítulo encerrou-se no parágrafo anterior. Mas somos obrigados a dizer algo mais.

Após minha primeira versão deste texto em meu blog (Paulo, 2016), Eleutério Prado fez uma elaboração semelhante em seu próprio site, anos depois. De modo algum penso que seja caso de plágio ou mesmo inspiração não creditada; na verdade, quase tudo desta obra está tão maduro na realidade, de maneira tão gritante, já que ninguém antes se debruçou como deve sobre o real, que fica mais fácil chegar a tais conclusões, aparecendo alguns aspectos na cabeça de uns e de outros. A questão é superar os “esboços” e as teses fragmentadas, que passam longe da totalidade. A falta de gênios do tipo de Marx e Trotsky entre nós atrasou o conhecimento e o reconhecimento das ideias deste livro, escrito por alguém certamente mais modesto, mas que contou com o excesso de maturidade das circunstâncias, facilitando a observação das tendências, e com uma ousadia pessoal acima da média, como se verá, longe da castração acadêmica presente na área de humanas.

Este capítulo terá sua verdade exposta nos próximos – focaremos na última era do capital, apresentando de modo sintético a diferença com cada era anterior (no dinheiro, no Estado, etc.). Elaborações anteriores falharam, mesmo avançando, em ir ao fundamento de uma classificação de eras, muitas vezes limitando-se a esboços. Hobsbawm divide nossa época em Era das revoluções (1789-1948), Era do capital (1848-1875), Era dos impérios (1875-1914) e Era dos extremos (1914-17-1991) – mais sua divisão é apenas factual, não vai ao fundamento, erro igual ao de outras formulações; é uma divisão quase mercadológica. Mandel divide em 1° fase com capitalismo de mercado (1700-1850), 2° fase com o capitalismo monopolista (1850-1960) e 3° fase com o capitalismo tardio – também falha em ir ao fundamento, além de uma divisão muito duvidosa, pois assim, por exemplo, também deixa de derivar o autolimite do capital em seu evolver. Nancy Fraser elabora as fases como “capitalismo mercantilista ou comercial, capitalismo laissez-faire ou liberal-colonial, capitalismo organizado pelo Estado ou social-democrata e capitalismo neoliberal ou financeirizado.” (Fraser, 2021) – Igualmente faz uma elaboração parcialmente certa, que arranha a verdade, mas com critérios externos, não imanentes à Coisa. Ter uma formulação das eras que seja interno ao objeto de estudo tornou-se uma necessidade para a compreensão de nosso tempo. As elaborações anteriores foram tentativas de uma resposta ao problema, mas, se bem observado, foram pouco além da intuição. Ao mesmo tempo, agregamos e superamos as propostas inexatas – em um desenvolvimento teórico mais profundo possível.

Quando todas as condições para surgir uma nova ideia acontecem, estão na realidade madura, então pode surgir em mais de uma cabeça quase ao mesmo tempo. A história da ciência é recheada de fatos curiosos do tipo. Poucas semanas após a publicação de minha tese sobre, o tema, a versão inicial deste capítulo, em meu blog, o marxista Edmilson Costa também escreveu algo sobre em seu site. Descarto qualquer insinuação de plágio por parte veterano marxista. O acaso também faz a história! No mais, numa palestra da década de 1990, Maria da Conceição Tavares expõe tal divisão no seu quadro negro, sem destinar autoria. Via de regra, a polêmica é sobre a quarta era, quando ela é destacada: se é informacional, rentista, tecnofeudalismo, apenas imperialismo financeiro etc. Mas o caso que mais coincide com minhas ideias são as de Giovanni Arrigh, um gênio sem a devida fama, mas que deixou de levar suas intuições até o limite, tal como fazemos nesta obra.

 

 

 



[1] Ao leitor não iniciado: compra-se, supomos, um dólar por um real, mas há previsão de que no futuro precisaremos comprar um dólar por quatro reais; o especulador compra mil dólares quando vale um real, com mil reais, depois troca mil dólares por quatro mil reais quando um dólar valer quatro reais.  Sua riqueza cresceu de modo fictício, sem menor lastro no trabalho produtivo.

[2] No próximo capítulo, o conceito de capital fictício será alargado, incluindo outro inchaço colateral, o do setor de serviços.

[3] Mandel acerta ao afirma que esta última era, nomeada por ele “capitalismo tardio”, teria como destaque a grande inflação dos serviços; mas erra ao supor que, no setor industrial, com a queda da taxa de lucro, o autofinaciamento do capital fixo cairia, aumentando o financiamento por via financeira – isso não ocorreu, ao contrário, foi reduzido em nosso tempo. Sobre, ver: (Theodoro Guedes & Paço Cunha, 2021)

[4] Nota-se, porém, que o método de exposição não equivale de todo ao método de investigação.

[5] O igualitarismo sempre foi de fato uma possibilidade em todas as formas de sociedade classistas. Junto ao escravismo, e até para que este surja, havia várias sociedades igualitaristas baseadas no cultivo, na pesca e na pecuária; porém os povos escravistas destruíam tais formações e escravizava seus membros, tomando suas terras, porque era a escravatura a forma social que mais desenvolvia as forças produtivas naquela época. Na consolidação do feudalismo, apareceram feudos sem senhores feudais, geridos por servos camponeses. No capitalismo, apareceram fábricas sem patrões e tentativas de sociedade igualitária quando o socialismo era mais possível do que necessário. A diferença, hoje, é que o socialismo é uma necessidade cada vez maior, e cada vez mais possível, como solução da crise desta sociedade. Se evitarmos a extinção humana ou o fim da civilização, a saída socialista será consolidada. A abundância atual, por exemplo, exige relações igualitárias como necessárias, não mais contingentes como no passado.

[6] No ótimo artigo “O estágio último do capital. A crise e a dominação do capital financeiro no mundo” (Nóvoa & Balanco, 2013), os autores intuem, como afirma o título, a natureza da fase do capital, mas não o derivam ou percebem o limite sistêmico endógeno. A boa intuição é o que propomos desenvolver até o limite nesta obra.

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