ELEMENTOS
ESPECÍFICOS DA REVOLUÇÃO PERMANENTE
Vimos que as revoluções não diretamente socialistas tendem a um
protagonismo não operário, enquanto a classe operária cumpre centralidade nos
revolucionamentos sociais. Também vimos que a formação de um Estado Operário
com democracia socialista abre maior possibilidade de revoluções socialistas
com protagonismo urbano dos setores populares, em principal os assalariados
precários. Em diante, debatemos questões levantadas pela conjuntura.
Principalmente –
mas não só, podendo valer para outros países – no norte da África e no Médio
Oriente, onde ocorreu a primavera árabe, há uma particularidade da modernização
capitalista, em boa parte desses países: a burocracia burguesa é também dirigente, além das forças
armadas e do Estado, dos centros produtivos nacionais. A burocracia estatal do
capitalismo tem aí relação muito mais direta com a geração de riqueza, com a
produção. Isso significa: as revoluções democráticas[1]
precisam realizar-se destruindo ao mesmo tempo o regime ditatorial, o Estado e
a burguesia, ou seja, precisam avançar ao socialismo.
Diferente da
burocracia de outros países, onde a classe dominante governa por meio de seus
representantes diretos, esse perfil específico faz com que a democracia
burguesa seja especialmente inviável nas nações da região. Na América Latina,
as situações pré-revolucionárias e revolucionárias puderam desemborcar em
democracia burguesa como modo de tentar impedir a revolução social[2].
Nestas nações, em diferente, a mesma tendência – por crise, crescimento da
classe operária e urbanização – tende à guerra civil. As revoluções
democráticas, por liberdades democráticas, emperram na necessidade da burguesia
nacional e internacional por estabilidade no aparelho estatal. A classe
dominante não pode supor a substituição de dirigentes por eleições periódicas,
pois equivaleria um tipo anômalo de concorrência ao transformar a luta
eleitoral em luta por cargos nas estatais. A burocracia estatal é também
burocracia empresarial, um mesmo corpo de dirigentes.
A luta por
liberdades democráticas empurra, em permanência, para a democracia socialista,
de revolução socialista inconsciente para consciente, onde, em curto período de
altíssima tensão social, um partido comunista, democrático e centralizado,
precisa ganhar a confiança das massas a partir da clareza das tarefas.
Vejamos exemplo
da burocracia burguesa como dirigente direta dos organismos de poder e, ao
mesmo tempo, seu peso na economia como impedimento de uma revolução democrática
normal no mundo árabe:
O imenso peso das forças armadas (apenas para que tenhamos uma ideia, o
exército do Egito é o maior do continente africano, com mais de 460.000
efetivos e um milhão de reservistas). Segundo informações do Wikileaks, o
próprio governo dos EUA considera que as Forças Armadas do Egito são "uma
empresa quase comercial". Possuem enormes extensões de terras,
propriedades e empresas (muitas das quais são dirigidas por generais de
reserva) que produzem, além de armas e suprimentos, muitos outros bens de
consumo. Suas empresas são responsáveis por aproximadamente 40% do PIB do país.
Há um fenômeno
qualitativo. No mesmo artigo (idem, p. 13) é exposto que as Forças Armadas
daquele país recebe constantes recursos financeiros dos EUA desde o acordo de
paz de Camp David com Israel. Por isso, por lucro, o exército egípcio aceitou
mudar o governo durante a revolução contanto que o regime ficasse em pé, mais
ou menos estável. Manobrou tanto quanto pôde para manter-se no poder e evitar a
guerra civil.
Em muitos desses
países, surge uma burocracia política no Estado que, se não transforma os
regimes bonapartistas em monarquias, aproxima-se desse conceito. É exemplo
Assad, sua família e os membros governamentais. Essa camada social,
necessariamente ligada à burguesia, depende do controle do aparelho estatal
para a manutenção de suas condições. Precisam manter os regimes políticos
antidemocráticos. Casos típicos são os países rentistas do tipo Arábia Saudita,
cuja produção petroleira, controlada pelo Estado, garante altos lucros por meio
de uma única mercadoria muito cobiçada no mercado mundial.
Embora falte
apreender a consequência, a impossibilidade de revoluções democráticas, a causa
é clara entre parte da vanguarda:
JH | Gilbert Achcar usa o termo “patrimonial” para descrever os países
no mundo de língua árabe em que um pequeno grupo de famílias são “donas” do
Estado e do capital: Marrocos, Arábia Saudita e outros estados do golfo. Ao
mesmo tempo, descreve Egito e Tunísia como “neo-patrimoniais” – países em que
parentesco, propriedade de capital e controle do Estado se misturam, mas não se
fundem. Você coloca a Síria no primeiro grupo – por que isto?
JD | A instrumentalização dos termos patrimonialismo e neo-patrimonialismo
por Achcar foram muito úteis. Por “patrimonial”, queremos dizer um Estado que
foi inteiramente privatizado, por dentro de uma família e através de suas
próprias redes. Isto tornou a derrubada destes estados algo muito mais difícil
que nos estados “neo-patrimoniais” que você mencionou, em que setores-chave do
poder estatal foram capazes de remover Ben Ali e Mubarak enquanto mantiveram
sua forma básica de governo. No Sudão e na Argélia – aonde atualmente estão
acontecendo enormes levantes – o processo possui características
neo-patrimonialistas, mesmo que o poder de fato esteja entre os membros do
estrato mais elevado dos militares. Esta realidade se diferencia da Síria, em
que o poder burocrático, militar e financeiro está inteiramente nas mãos de uma
única família e sua rede mais ampla.
Três fatores gerais também diminuem a probabilidade de revoluções
democráticas desprovidas da via socialista: 1) Com o fim dos Estados Operários
Burocratizados, a burguesia mundial deixa de necessitar na mesma anterior
medida da reação democrática enquanto tática de apaziguamento das situações
revolucionárias; 2) baixo peso operário em parte dos países da região; 3) neste
momento histórico, o capitalismo torna-se um fator anticivilização e precisa,
para manter-se, reduzir os direitos democráticos.
As razões de nossa derrota conjuntural na primavera árabe são, portanto:
1) a falta de partidos comunistas estruturados; 2) falta de uma teoria
correspondente capaz percebesse este elemento da revolução a tempo; 3) pouco
apreço pela arte militar na certeza ilusória de inevitabilidade do socialismo;
4) baixa solidariedade internacional prática.
A conclusão a que chegamos, neste capítulo, é evitada por pensadores do
tipo Luiz Carlos Bresser-Pereira. Vejamos o que ele diz:
É claro que eu desejo que esses países se tornem nações prósperas e
democráticas, mas, para seu povo, a prioridade hoje é garantir as liberdades
civis ou o Estado de direito e realizar a sua revolução nacional e capitalista.
Não é, portanto, o caminho islâmico, mas não é também o doce caminho da
democracia. Só depois que cada país houver realizado sua revolução capitalista
e, assim, houver encontrado o caminho do desenvolvimento econômico, poderá se
tornar uma democracia consolidada. […] Pretender inverter a ordem histórica –
implantar a democracia antes de fazer a revolução capitalista – é quase
impossível.
O
autor citado ignora, de um lado, que os protestos de massa urbanos, os maiores
da história humana, são verdadeiras declarações de que a democracia tem
condições plenas nesses países e, de outro, algo que esquece a revolução
socialista e sua própria forma democrática. Ademais, são países tão maduros na
economia quanto podem ser sob o capitalismo imperialista[3]. Ele
intui a dificuldade de prover a democracia do tipo burguesa, representativa,
nas nações do mundo árabe, mas simplesmente dá passos atrás e defende, em vez
do avanço, um recuo centralizador dos regimes políticos.
A
primavera árabe ainda precisa concluir sua tarefa. Ao passarmos por três ou
quatro décadas de duras crises e fracos crescimentos econômicos, as nações
daquela região necessitarão de novos levantes e de novas conclusões sobre suas
possibilidades imediatas. Sendo a guerra aí o único meio para alguma forma de
democracia, a economia planejada certamente surgirá como alternativa.
Trotsky
argumentou, ao fazer o balanço da revolução russa de 1905, que a revolução
burguesa na Rússia teria como fator central o operariado armado que, logo,
estando com o poder das armas, atuaria para seus próprios fins, ou seja,
transformaria a revolução capitalista em socialista (previsão que se demonstrou
correta em 1917). A necessidade de duras guerras civis no tipo de país citado
neste capítulo também empurra para uma solução socialista do conflito. A “nova”
democracia burguesia, a mudança de regime, poderia frear o ímpeto
revolucionário das massas e seria em si viável? A possibilidade está posta,
é-nos impossível desconsiderá-la. Mas o mais provável é um regime de duplo
poder, chamado kerenkista, onde o poder oficial “equilibra-se” em luta com o
poder real das ruas como na Rússia entre fevereiro e outubro de 1917. Então se
abrirá a possibilidade de poder socialista ou outro regime fechado[4],
pois o capital já não pode ceder as reformas exigidas pela maioria.
Em
resumo: porque tais países tendem à guerra civil, tendem, também, ao salto
qualitativo social, ao socialismo.
[1]
Revoluções democráticas são aquelas que derrubam um regime ditatorial, mas não
o Estado. Diferem-se das revoluções democrático-burguesas, que têm por tarefas
reforma agrária, unificação nacional, educação universal, etc. Hoje, toda
revolução é socialista, mas nem sempre há tal consciência disso entre os
revoltosos.
[2]
A América Latina – Argentina, Bolívia e Chile em especial – é uma revolução
adiada
[3] Em
tais nações, o nacionalismo cumpriu em seu tempo, dentro de seus limites
burgueses, uma tarefa progressiva ao desenvolver as forças produtivas de suas
nações.
[4] A
tendência geral desde 2008, por razão da crise sistêmica, é a de regimes políticos
fechados, ao menos semifechados (semibonapartismo, etc.). Logo, uma revolução
socialista que passe por uma “etapa” curta de democracia burguesa, tenderá, em
geral, a concluir-se ou com a democracia socialista ou com a ditadura
capitalista.
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