quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A primavera árabe atualiza a revolução permanente


ELEMENTOS ESPECÍFICOS DA REVOLUÇÃO PERMANENTE  

(Capítulo retirado do livro "A Transição ao Socialismo".)

Vimos que as revoluções não diretamente socialistas tendem a um protagonismo não operário, enquanto a classe operária cumpre centralidade nos revolucionamentos sociais. Também vimos que a formação de um Estado Operário com democracia socialista abre maior possibilidade de revoluções socialistas com protagonismo urbano dos setores populares, em principal os assalariados precários. Em diante, debatemos questões levantadas pela conjuntura.

No norte da África e Médio Oriente, onde ocorreu a primavera árabe, há uma particularidade da modernização capitalista, em boa parte desses países: a burocracia  burguesa é também dirigente, além das forças armadas e do Estado, dos centros produtivos nacionais. A burocracia estatal do capitalismo tem aí relação muito mais direta com a geração de riqueza, com a produção. Isso significa: as revoluções democráticas[1], não democrático-burguesas, precisam realizar-se destruindo ao mesmo tempo o regime ditatorial, o Estado e a burguesia, ou seja, precisam avançar ao socialismo.

Diferente da burocracia de outros países, onde a classe dominante governa por meio de seus representantes diretos, esse perfil específico faz com que a democracia burguesa seja especialmente inviável nas nações da região. Na América Latina, as situações pré-revolucionárias puderam desemborcar em democracia burguesa como modo de tentar impedir a revolução. Nestas nações, em diferente, a mesma tendência – por crise, crescimento da classe operária e urbanização – tende à guerra civil. As revoluções democráticas, por liberdades democráticas emperram na necessidade da burguesia nacional e internacional por estabilidade no aparelho. A classe dominante não pode supor a substituição de dirigentes por eleições periódicas, pois equivaleria um tipo anômalo de concorrência ao transformar a luta eleitoral em luta por cargos nas estatais. A burocracia estatal é também burocracia empresarial, mesmo corpo de dirigentes.

A luta por liberdades democráticas empurra, em permanência, para a democracia socialista, de revolução socialista inconsciente para consciente, onde, em curto período de altíssima tensão social, um partido comunista, democrático e centralizado, precisa ganhar a confiança das massas a partir da clareza das tarefas.

Vejamos exemplo da burocracia burguesa como dirigente direta dos organismos de poder e, ao mesmo tempo, seu peso na economia como impedimento de uma revolução democrática normal no mundo árabe:

O imenso peso das forças armadas (apenas para que tenhamos uma ideia, o exército do Egito é o maior do continente africano, com mais de 460.000 efetivos e um milhão de reservistas). Segundo informações do Wikileaks, o próprio governo dos EUA considera que as Forças Armadas do Egito são "uma empresa quase comercial". Possuem enormes extensões de terras, propriedades e empresas (muitas das quais são dirigidas por generais de reserva) que produzem, além de armas e suprimentos, muitos outros bens de consumo. Suas empresas são responsáveis por aproximadamente 40% do PIB do país. (León & Welmowicki, 2013, p. 14)

Há um fenômeno qualitativo. No mesmo artigo (idem, p. 13) é exposto que as Forças Armadas daquele país recebe constantes recursos financeiros dos EUA desde o acordo de paz de Camp David com Israel. Por isso, por lucro, o exército egípcio aceitou mudar o governo contanto que o regime ficasse em pé, mais ou menos estável. Manobrou tanto quanto pôde para manter-se no poder e evitar a guerra civil.

Em muitos desses países, surge uma burocracia política no Estado que, se não transforma os regimes bonapartistas em monarquias, aproxima-se desse conceito. É exemplo Assad, sua família e os membros governamentais. Essa camada social, necessariamente ligada à burguesia, depende do controle do aparelho estatal para a manutenção de suas condições. Precisam manter os regimes políticos antidemocráticos. Casos típicos são os países rentistas do tipo Arábia Saudita, cuja produção petroleira, controlada pelo Estado, garante altos lucros por meio de uma única mercadoria muito cobiçada no mercado mundial.

Embora falte apreender a consequência, a impossibilidade de revoluções democráticas, a causa é clara entre parte da vanguarda:

JH | Gilbert Achcar usa o termo “patrimonial” para descrever os países no mundo de língua árabe em que um pequeno grupo de famílias são “donas” do Estado e do capital: Marrocos, Arábia Saudita e outros estados do golfo. Ao mesmo tempo, descreve Egito e Tunísia como “neo-patrimoniais” – países em que parentesco, propriedade de capital e controle do Estado se misturam, mas não se fundem. Você coloca a Síria no primeiro grupo – por que isto?
JD | A instrumentalização dos termos patrimonialismo e neo-patrimonialismo por Achcar foram muito úteis. Por “patrimonial”, queremos dizer um Estado que foi inteiramente privatizado, por dentro de uma família e através de suas próprias redes. Isto tornou a derrubada destes estados algo muito mais difícil que nos estados “neo-patrimoniais” que você mencionou, em que setores-chave do poder estatal foram capazes de remover Ben Ali e Mubarak enquanto mantiveram sua forma básica de governo. No Sudão e na Argélia – aonde atualmente estão acontecendo enormes levantes – o processo possui características neo-patrimonialistas, mesmo que o poder de fato esteja entre os membros do estrato mais elevado dos militares. Esta realidade se diferencia da Síria, em que o poder burocrático, militar e financeiro está inteiramente nas mãos de uma única família e sua rede mais ampla. (Revolução e Contrarrevolução na Síria: entrevista com Joseph Daher, 2020)[2]

Três fatores gerais também diminuem a probabilidade de revoluções democráticas desprovidas da via socialista: 1) Com o fim dos Estados Operários Burocratizados, a burguesia mundial deixa de necessitar na mesma anterior medida da reação democrática enquanto tática de apaziguamento das situações revolucionárias; 2) baixo peso operário em parte dos países da região; 3) neste momento histórico, o capitalismo torna-se um fator anticivilização e precisa, para manter-se, reduzir os direitos democráticos.

As razões de nossa derrota conjuntural na primavera árabe são, portanto: 1) a falta de partidos comunistas estruturados; 2) falta de uma teoria correspondente capaz percebesse este elemento da revolução a tempo; 3) pouco apreço pela arte militar na certeza ilusória de inevitabilidade do socialismo; 4) baixa solidariedade internacional prática.

A conclusão a que chegamos neste capítulo é evitada por pensadores do tipo Luiz Carlos Bresser-Pereira. Vejamos o que ele diz:

É claro que eu desejo que esses países se tornem nações prósperas e democráticas, mas, para seu povo, a prioridade hoje é garantir as liberdades civis ou o Estado de direito e realizar a sua revolução nacional e capitalista. Não é, portanto, o caminho islâmico, mas não é também o doce caminho da democracia. Só depois que cada país houver realizado sua revolução capitalista e, assim, houver encontrado o caminho do desenvolvimento econômico, poderá se tornar uma democracia consolidada. […] Pretender inverter a ordem histórica – implantar a democracia antes de fazer a revolução capitalista – é quase impossível. (Bresser-Pereira, 2011, p. 40)

O autor citado ignora, de um lado, que os protestos de massa urbanos, os maiores da história humana, são verdadeiras declarações de que a democracia tem condições plenas nesses países e, de outro, algo que esquece a revolução socialista e sua própria forma democrática. Ademais, são países tão maduros na economia quanto podem ser sob o capitalismo imperialista. Ele intui a dificuldade de prover a democracia do tipo burguesa, representativa, nas nações do mundo árabe, mas simplesmente dá passos atrás e defende, em vez do avanço, um recuo centralizador dos regimes políticos.

A primavera árabe ainda precisa concluir sua tarefa. Ao passarmos por três ou quatro décadas de duras crises e fracos crescimentos econômicos, as nações daquela região necessitarão de novos levantes e de novas conclusões sobre suas possibilidades imediatas. A economia planejada certamente surgirá como alternativa.



Bibliografia

Revolução e Contrarrevolução na Síria: entrevista com Joseph Daher. (06 de 01 de 2020). Acesso em 11 de 02 de 2020, disponível em Esquerda Online: https://esquerdaonline.com.br/2020/01/06/revolucao-e-contrarrevolucao-na-siria-entrevista-com-joseph-daher/?fbclid=IwAR2tA3d0RNuueYYTKj7p2ABNHrxqnchQrNOOsxuPieIw1BoQJQdzQ8eDJKg
Bresser-Pereira, L. C. (2011). Revolta no Oriente Médio e revolução capitalista. Política Democrática, 32-41.
León, R., & Welmowicki, J. (2013). Avanços e contradições da revolução egípcia. Correio Internacional, 14.






[1] Revoluções democráticas são aquelas que derrubam um regime ditatorial, mas não o Estado. Diferem-se das revoluções democrático-burguesas, que têm por tarefas reforma agrária, unificação nacional, educação universal, etc.
[2] https://esquerdaonline.com.br/2020/01/06/revolucao-e-contrarrevolucao-na-siria-entrevista-com-joseph-daher/?fbclid=IwAR2tA3d0RNuueYYTKj7p2ABNHrxqnchQrNOOsxuPieIw1BoQJQdzQ8eDJKg

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