sexta-feira, 13 de março de 2020

Nova interpretação Marxista da forma material do dinheiro


O DINHEIRO


[Este texto é parte do livro inédito "A Transição ao Socialismo".]


Resumo:

Tese 11: Na medida em que se desenvolve extensiva e intensivamente o mundo das mercadorias, o dinheiro ganha cada vez mais materialidade (mercadorias comuns, cobre, ouro) até a desmaterialização (ouro, cobre, papel, bits.). O dinheiro mundial segue tal tendência, mesmo que em atraso.

Tese 12: Quando o dinheiro em forma de papel ou cobre tornou-se lastreado na mercadoria ouro, abriu-se a possibilidade de ser lastreado no conjunto das mercadorias.

Tese 13: O cartão bancário de débito e crédito oferece a forma de planejamento da distribuição no socialismo.

Tese 14: A generalização atual do meio de pagamento, receber o valor de uso antes de dar o valor de troca, esconde e revela que a distribuição já pode ser apenas a distribuição de produtos, não mais na forma de mercadoria.

O DINHEIRO HOJE

Há certas polêmicas sobre o dinheiro sobre os quais trataremos de maneira apenas indireta. Alguns, por exemplo, afirmam que tal forma social nunca precisou de fato do ouro; outros consideram sua forma vigente sem valor ou apenas fictício. Apresentaremos em diante algumas teses sobre o ser enigmático e cobiçado.

A característica física do dinheiro mundial segue o mesmo caminho do dinheiro nacional, mas em um ritmo mais lento. Quando a equivalente geral nacional expressa-se pelo o ouro (ou prata) em especifico, o comércio internacional adota o escambo ou uma mercadoria “falha”[1]. Assim, a lei mantém-se enquanto tendência: quando o dinheiro nacional começa a expressar-se por meio do papel-moeda e do cobre lastreados em ouro (séx. XVIII, XIX), o dinheiro mundial segue atrasado, ou seja, é ainda o próprio ouro enquanto dinheiro mundial. Quando o dinheiro nacional deixa de lastrear-se em ouro, a sua versão internacional – ao seu modo, a libra inglesa, primeiro; o dólar, depois e até 1971 –, ao contrário e correndo atrás, continua ainda lastreado em ouro, em equivalência. Depois, o padrão dólar-ouro é rompido, mas continua a correr tendencialmente atrás do dinheiro nacional, pois a última começa um passo novo: a digitalização por meio, em especial, dos cartões de débito e crédito[2].

Abstração necessária à análise, Carcanholo desenvolveu com maestria a tendência à desmaterialização do dinheiro. Disponibilizamos trechos do artigo-réplica “Sobre a Natureza do Dinheiro em Marx”:

Esse processo progressivo de domínio do valor sobre o valor-de-uso, no interior da unidade contraditória chamada mercadoria, constitui o que chamamos “desmaterialização progressista da riqueza capitalista”. Isso, por uma razão muito simples. O valor-de-uso é o conteúdo material das mercadorias e fica determinado pelas características (conteúdo e forma) materiais de cada uma delas. O valor é sua dimensão social. O domínio deste sobre aquele implica a desmaterialização do conceito riqueza capitalista, desmaterialização da mercadoria.
 […] É justamente no dinheiro, e posteriormente no capital, em que se manifesta de maneira mais aguda e evidente o processo de desmaterialização, […] o dinheiro apresenta-se desprovido completamente desprovido de todo valor-de-uso. […] Mas, desde muito antes, desde a sua gênese, nos princípios da forma de equivalente, já se apresenta o processo de desmaterialização. Por exemplo, já na forma geral do valor, Marx afirma que o valor da mercadoria distingue-se não só do seu próprio valor-de-uso, mas de todo valor-de-uso, inclusive naquele próprio da mercadoria, ao aceitar o equivalente em troca da sua, não está interessado no valor-de-uso deste.
A desmaterialização continua no dinheiro (ouro), mas ainda a materialidade-ouro continua ali. O processo fica muito mais evidente quando mais avançado, no dinheiro de curso forçoso e no dinheiro de crédito (que são as formas que conhecemos atualmente e que são estudadas por mais no livro III d’O Capital).
[…]
Por mais Impressionante que seja a desmaterialização já alcançada do dinheiro, ela ainda não chegou ao fim. Ela prossegue seu curso e, com certeza, a desmaterialização total, embora ansiosamente buscada pela lógica do capital, jamais poderá ser alcançada.
[nota 4] As agudas crises financeiras dos nossos dias são a manifestação mais cabal dessa contradição do sistema: o desejo incontido do capital pela desmaterialização e sua impossibilidade completa. (Carcanholo, 2002)

A que se deve isto? A questão que se nos apresenta é: por que destas duas leis, desmaterialização e ritmos desiguais entre dinheiro nacional e mundial? Ora, o capítulo I d’O Capital I demonstra o valor e a construção da “mercadoria das mercadorias” por um caminho: a relação conteúdo-forma: quanto mais tipos, mais fluxo e mais troca de mercadorias (conteúdo) existentes – quanto mais complexo e ativo o movimento delas – cada vez faz mais necessário destacar um elemento específico do conteúdo, elevá-lo, para que sirva de equivalente geral ou forma. Assim surge alguma mercadoria como meio de troca; depois, ouro; em seguida, o dinheiro-papel. O conteúdo, o mundo das mercadorias, possui características inerentes, quais sejam: tendência ao movimento, à instabilidade, à mudança, ao novo, à não-conservação. Por outro lado, fruto da contradição interna do conteúdo, a forma também possui singularidades: tende a conservar, à estabilidade e constância. Como o conteúdo, a forma tem duplo caráter: progressivo na medida em que conserva conquistas, consolida etapas; regressivo na medida em que tende ao conservadorismo, à estabilidade, a entrar em importante contradição com as necessidades novas do conteúdo. Portanto, pode haver contradição ente o conteúdo e a forma, que é superada cedo ou tarde a favor conteúdo, fazendo surgir uma forma nova.

O dinheiro em geral, seja qual for sua forma física, ainda possui lastro, que não é mais a mercadoria-ouro, mas o conjunto das mercadorias. Assim, o dinheiro recebido representa idealmente o possível acesso a outras mercadorias, e mede-se assim. O valor expresso no dinheiro é determinado por sua capacidade de prover acesso a valores de uso. Ou seja, mede-se o lastro por sua proporção com essa substância geral, com o conjunto do valor por meio da possibilidade de acesso a outros valores de uso. Quando o dinheiro passou a se expressar no papel-moeda, ainda podia-se trocar pela mercadoria específica ouro; esta capacidade de troca pela mercadoria dourada já fazia surgir de modo latente a possibilidade de lastro com o conjunto das mercadorias, pela troca por outros produtos dotados de valor e preço.

Porque na forma de expressão autônoma, separada, do valor-trabalho o lastro torna-se indireto, no lugar de direto à mercadoria específica ouro, ocorre com o dinheiro processo de similar natureza ao do capital fictício tratado por Marx (de expressão jurídica da produção real, se desprende e se valoriza artificialmente, ganha relativa vida própria, o capital se duplica) e torna-se “dinheiro fictício”, segundo expressão feliz de Eleutério Prado, adquire maior autonomia relativa. Aqui, exige-se certo esclarecimento: o dinheiro mais maleável perante seu lastro real torna-se em parte fictício ao produzir inflação artificial, mas é em si mesmo real de todo.

O dinheiro mundial também é lastreado pelo conjunto das mercadorias ou, mais exatamente, pelo conjunto do valor. O fato de este ser o dólar expressa um fator histórico: os EUA produzem e consomem parte significativa das mercadorias de todo o mundo; natural, por conseguinte, que o lastro-valor agarre-se a esta moeda – o domínio militar garantidor desta ordem é consequência, que adquire aspectos de causa[3]. O controle da Alemanha sobre o Euro possui o mesmo motivo. A industrialização e urbanização da China, pela mesma razão, coloca em decadência esta realidade. Como percebemos, o equivalente geral expressa a realidade em sua forma física. O melhor exemplo do lastro é a mercadoria mais importante e cobiçada do mundo, o petróleo, na medida em que o império americano há muito garante, com diplomacia e ameaça, a compra internacional de ouro negro apenas por meio de sua moeda, processo batizado “petrodólares”[4]. Aqui já observamos o erro de Marx ao considerar, em sua época, que o dinheiro adquire sua forma típica em ouro no mercado mundial, isto é, chegou a uma conclusão estática e incapaz de ver o desenvolvimento da forma material.

Outro modo de demonstrar o lastro do dólar percebe-se quando os EUA emitem moeda para "compensar" seu déficit na balança comercial, mantendo o nível de consumo interno. Assim, ao emitir de maneira artificial a moeda, o Banco Central força, de fato, o lastro-mercadoria; tal manobra gera inflação nos países exportadores para aquele, ou seja, a desvalorização da moeda nacional, um acréscimo relativo de fragilidade no lastro.

Já o dinheiro virtual é lastreado, por enquanto, na cédula e similares. Tal lastro é garantido informalmente por 1) cálculo dos bancos do quanto lhes será exigido de dinheiro físico e quanto pode fazer circular em bits; 2) depósito compulsório que as instituições financeiras são obrigas prover ao banco central. Quando se paga no cartão de crédito supõe-se que esse pagamento é substituível por papel pintado ou que os bits são transformáveis em dinheiro-papel tão logo o suporte-cartão entre em contato com o banco ou caixa-eletrônico.

De acordo com o debatido sobre a desmaterialização, o dinheiro virtualizado também tende a perder seu lastro imediato, tende a desprender-se do dinheiro-papel. Neste sentido aponta a matéria a seguir, sobre a moeda da Suécia:


“Dinheiro [em papel] pode sair de circulação na Suécia até 2030”
“O fim do dinheiro de papel já é uma morte anunciada na Suécia: até 2030, as cédulas e moedas deverão virtualmente desaparecer no país, que lidera a tendência global em direção à chamada “sociedade sem dinheiro”. A projeção é do Banco Central Sueco.”
“É o prenuncio de uma nova era, dizem especialistas. A previsão é de que, no futuro, as economias modernas serão dominadas pelo uso do cartão e da moeda eletrônica em escala mundial.”
“Na Suécia a transformação é visível […]”
Novos dados do Banco Central indicam que as transações em dinheiro representam, atualmente, apenas 2% do valor de todos os pagamentos realizados na Suécia – contra a média de 7% no restante da Europa.”
[…]
“’A Suécia continua à frente do resto da Europa em relação à redução do uso do dinheiro do papel. E principalmente dos Estados Unidos, onde cerca de 47% dos pagamentos ainda são feitos em dinheiro”, acrescenta Nilervail, que destaca os avanços dos vizinhos nórdicos, Noruega e Dinamarca, na mesma direção.”
[…]
“Até nos quiosque de flores do bairro de Odenplan, no centro da capital, um aviso foi colado: “Preferência para pagamentos em cartão”. Feirantes e ambulantes também se adaptam à tendência e trabalham equipados com leitores portáteis de cartões.” (Wallin, 2016)


Como repetição histórica, sabe-se que o dinheiro em ouro era constantemente roubado, e por isso passou a ser guardado e substituído por um papel que o representava; assim hoje, a atividade econômica “roubo” estimula e acelera o processo de desmaterialização do dinheiro, como aponta também a matéria:


“Ladrões de banco vão se tornado, assim, personagens do passado. O número de roubos em agências bancárias vem atingindo o índice mais baixo dos últimos 30 anos, segundo a Associação de Bancos Sueca.”
[…]
“Em 1661, as primeiras cédulas de papel da Europa foram introduzidas pelo Stockholms Banco, o embrião do Banco Central da Suécia. Agora, ironicamente, os suecos vão se tornando os primeiros do mundo a desprezar o dinheiro vivo.”(Idem)

O lastro do dinheiro virtual em relação ao “físico” tende a se perder, além dos fatores expostos, pelos seguintes movimentos:

1. A demanda por dinheiro leva aos bancos a tenderem a negligenciar o lastro informal, a relação entre bits e a possibilidade de saques desse dinheiro em forma física;
2. Tendência – em parte derivada do ponto 1 – a não depositar a porcentagem que de fato lhe cabe ao banco central, escondendo a real contabilidade;[5]

Destes, agregamos:

3. Intensificação do processo de circulação;
4. Menor custo de produção e transporte do dinheiro virtual relativo ao físico.

São as imediatas, visíveis, consequências capitalistas da digitalização do dinheiro:

1)      Maior controle social do capital financeiro sobre a circulação – e o conjunto da sociedade;
2)      Lucro por juros nos meros processos de compra-venda;
3)      Garantias à circulação: contra cheques sem fundo, calotes[6] etc.

Retomemos a história.

Pela quantidade e intensificação, o ouro foi necessário como equivalente geral, expressão do valor, por suas características físicas e por seu valor em uma etapa específica de complexidade, do fluxo de mercadorias. Mas pela mesma razão – as características físicas – tornou-se uma forma atrasada, lenta, para poder seguir o conteúdo, a evolução do capitalismo, ou seja, o cada vez mais intensivo e extensivo mercado. Esta é a explicação geral para a lei da tendência à desmaterialização. O dinheiro adquire “massa” no seu processo de aceleração histórica para, em diante, ir tendendo à desmaterialização.

Karl Marx, embora não tenha percebido isto com clareza, presenteia-nos ele mesmo com a tese:


Título de ouro e substância de ouro, conteúdo nominal e conteúdo real iniciam seu processo de separação. […] Se o próprio curso do dinheiro separa o conteúdo real da moeda de seu conteúdo nominal, sua existência metálica de sua existência funcional, ele traz consigo, de modo latente, a possibilidade de substituir o dinheiro metálico por moedas de outro material ou por símbolos. A dificuldades de cunhagem de moedas muito pequenas de ouro ou prata e a circunstância de que metais inferiores foram originalmente usados como medida de valor no lugar dos metais de maior valor – prata em vez de ouro, cobre em vez de prata – e desse modo, circulam até ser destronados pelos metais mais preciosos, esclarecem historicamente o papel das moedas de prata e cobre como substituta das moedas de ouro. Tais metais substituem ouro naquelas esferas da circulação das mercadorias em que a moeda circula com mais rapidez e, por isso, inutiliza-se de modo mais rápido, isto é, onde as compras e as vendas se dão continuamente de modo mais rápido, isto é, onde as compras e as vendas se dão continuamente numa escala muito pequena. (Marx, O capital I, 2013, p. 199)


E completa: “Para impedir que estes metais satélites tomem definitivamente [! – exclamação nossa] o lugar do ouro, determinam-se por lei as proporções muito ínfimas em que eles podem ser usados no lugar desse metal.” (Idem.)


Percebemos que o Estado intervinha contra a tendência ao desprendimento do equivalente geral do ouro. O ritmo poderia – e conjunturalmente deveria – ser mediado pela equivalência, porém, mais ou menos dia, o dinheiro estava destinado a abrir mão do lastro em metal precioso. A causa é a fluidez das mercadorias e, por consequência, do equivalente geral.

Por outro modo de abstração, entre o ouro como dinheiro e o papel-moeda sem lastro direto tivemos uma secular transição por meio do dinheiro lastreado em ouro. Na prática e pela extensa duração, fora muito mais que mera forma transitória, pois o lastro era necessário para o nível de complexidade da circulação mercantil naquele e daquele momento histórico, sendo cada vez menos necessário a equivalência do ponto de vista do conteúdo-mercadoria.

O suporte, a forma do equivalente geral, precisa, portanto, ser matéria capaz de acompanhar a velocidade e o fluxo das mercadorias. Essa é uma das razões da necessidade de expressar o valor cada vez mais tendencialmente desmaterializado – embora esta lei nunca se realize em plena forma-pura – durante o desenvolvimento do reino das mercadorias, cada vez maior e cada vez mais intenso.

Sigamos a aceleração capitalista. As revoluções na produção produzem mais mercadorias, mais tipos e vendem-se em maior quantidade de espaços, distâncias e em menor tempo; logo, o dinheiro deverá expressar a agitação festiva do conteúdo: mudanças incluem a mercadoria dinheiro. Quando as revoluções do valor fazem surgir novas tecnologias – máquina a vapor, eletricidade, a digitalização, a automação, etc. – as técnicas novas fazem surgir, portanto, mercadorias novas e, principalmente, quantidade nova de mercadorias no comércio. As inovações técnicas renovadoras das mercadorias têm de renovar, também, a mercadoria-mor, o equivalente geral, o dinheiro; mais uma vez, a forma do dinheiro expressa a própria realidade em sua estrutura física, isto é, expressa o desenvolver das forças de produção em forma corpórea. No início, isso se dá por meio do crédito; quando a economia se aquece, oferendo mais mercadorias e mais possibilidades de produção, o banqueiro não pode esperar a entrada de ouro em seus cofres (primeira e segunda eras) ou de dinheiro-papel (hoje), bastando dar ao desejante de crédito um símbolo representativo da riqueza entesourada, em papel ou bits. Adiantamos, no entanto, que esta base produtiva é importantíssima, mas o processo de mudança também se dá por mudanças na circulação e com certa autonomia relativa em relação à produção de mercadorias.

Percebamos: dinheiro = ouro representa e é típico do mercantilismo, do capitalismo mercantil (século XVI ao XVIII); dinheiro = moeda com lastro em ouro ou prata deriva do ciclo de era industrial do capitalismo, da revolução industrial (século XVIII ao final do XIX); dinheiro = lastro no conjunto das mercadorias representa a fase do o capitalismo imperialista, financeiro; digitalização = quarta era do capital, III revolução da indústria, a partir de 1973. Basta-nos observar alguns fatos: o lastro em ouro fora rompido nas moedas nacionais com a I Guerra Mundial, anjo anunciador da imperialismo; desde então, o lastro foi descartado e as tentativas de retorná-lo foram teórico e empiricamente abandonados. No mesmo sentido, por dificuldade em manter quantias de metais em circulação (guerras, escassez do metal, alta circulação de mercadorias, hiperinflação, etc.), em meados do século XVIII, Estados e bancos utilizaram moedas em papel ou em metal não-nobre para representar quantias em estoque possíveis de acumular – antes, estas formas conversíveis eram embrionárias.

As eras do capital determinam o modo como o dinheiro encarna-se no mundo. Claro também está que não é uma determinação mecânica, mas é uma determinação ainda; a desigualdade evolutiva e certos zigue-zagues acidentais apenas demonstram o quanto cada um desses quatro momentos históricos do capitalismo acaba impondo-se.

No entanto, as formas-suportes passadas do dinheiro não podem ser superadas em absoluto – guardam alguma utilidade, alguma função. Quando o capitalismo emperra e sofre por gastrite da superprodução, da crise, o ouro e a prata passam a ter um papel um pouco mais relevante (transferência de investimentos em ações para estas commoditys, comércios específicos, custeio em conflitos miliares, etc.) ou o escambo (mercadoria por mercadoria); mas nunca passarão de um papel auxiliar já que não representam em absoluto as necessidades do valor e da intensa circulação de mercadorias. Para ilustrar, basta tomar nota de que as reservas são feitas nos títulos de países com juros negativos, isto é, mesmo perdendo dinheiro, pois são títulos seguros e há possibilidade de conseguir lucro futuro no mercado de câmbio.

Em resumo, dois fatores atuam na mudança da forma do dinheiro:

1. A quantidade de trocas;
2. A velocidade das trocas.

São fatores da circulação de mercadorias, não da produção, embora esta dê a base material.

Marx e Engels consideram o dinheiro, em essência, ouro; e isto para eles se revelava no mercado mundial. Por isso, consideravam a forma-ouro um limite em si do sistema. Este erro confunde a forma física e natural com seu uso conjuntural e histórico. O equivalente geral é, antes de tudo, parte de uma relação social específica, tem caráter social: quanto mais geral, social e consolidado – aparentemente natural – o sistema menos precisa justificar-se, em sua forma ímpar, diretamente naquela mercadoria. Quanto mais natural parecer o sistema capitalista, menos precisa de uma forma natural, o ouro, para disfarçar sua natureza social, ou seja, sua natureza transitória, histórica e instável.

O dinheiro revela o nível de alienação das relações sociais capitalistas. Em nossa era, atinge a forma mais reificada, mais fetichista ao parecer, aparência, independe das relações materiais onde opera – o lastro torna-se cada vez mais indireto. Por isso o trabalho científico de rastrear as ligações íntimas do dinheiro virtual e impresso, dólar-petróleo, dólar-dinheiros nacionais, do dinheiro com o conjunto das mercadorias etc. A tendência à moeda em total virtual, apontando níveis altíssimos de produtividade, perdendo seu lastro atual, mostra-se sintoma de um sistema próximo a desmanchar-se.

Desde a origem da civilização, a história do dinheiro descreve a tendência ao fim deste: de materialidades frágeis – boi, sal etc. – ao ganho de materialidade – cobre, metais não nobres – até a forma material elevada – prata e ouro – para, em seguida, perder materialidade – ouro por cobre, por papel-moeda, por bits. Da imaterialidade à, cada vez mais, materialidade e, em diante, à imaterialidade. É uma tendência à inexistência, ao desaparecimento. Demonstra e expressa tanto o desenvolvimento da relação social de valor quanto, em diante, sua tendência à autossupressão.

     Esse debate nos auxilia para o parágrafo seguinte.

     Eis onde queremos chegar: o dinheiro tende a uma forma unificada: poucos bancos com seus cartões de créditos como suporte de bits, de dados – integração das coisas.

Toda moeda tem dois lados, mas quatro dimensões. Tempo é dinheiro, e o capital reduz em grau altíssimo o tempo de trabalho, o tempo de reprodução, o tempo de circulação, enfim, seu fundamento abstrato. A tendência à moeda unificada visa acelerar as rotações do capital, reduzir o tempo e o custo de circulação, facilitar o movimento do dinheiro e da mercadoria. De outro modo, sem maior unidade interfronteiras e intermoedas, as crises imediatas seriam mais duras econômica e politicamente, as barreiras à produção capitalista seriam sentidas com maior abalo.

O tema do dinheiro leva-nos ao seu destino sob o socialismo. Um progresso contínuo e desigual de deflação, aumento da produtividade do trabalho, fará o caminho da extinção daquela forma mercantil. Com algum atraso, a forma de distribuição será mudada. N’O Capital II, Marx conclui:

Não entra em cogitação na produção socializada o capital-dinheiro. A sociedade reparte a força de trabalho e os meios de produção nos diferentes ramos de atividade. Os produtores poderão, digamos, receber um vale que o habilita a retirar dos estoques sociais de consumo uma quantidade correspondente a seu tempo de trabalho. Esses não são dinheiro. Não circulam. (Marx, O Capital - livro 2, 2014, p. 406)


Na transição ao socialismo, os cartões de débito e crédito, suportes do dinheiro digitalizado na revolução informacional, permitirão absorção muito mais exata dos dados sobre consumo, demanda, necessidades sociais e fluxos na distribuição de produtos. Um banco único estatal com dinheiro virtualizado, encaminhando o fim dessa forma enquanto forma do dinheiro, o permitirá. Tais cartões deixarão de ser suportes do meio de circulação e endividamento. A forma e sua matéria pedem novo conteúdo social. Percebemos, logo, o limite determinado historicamente sobre o maior crítico e, ao mesmo tempo, maior teórico do capitalismo: dos vales permitíveis das I e II revoluções industriais, com seus limites inerentes, à contabilidade geral científica, rápida e precisa, na produção e na distribuição, possível desde a III revolução tecnológica. Lenin afirmou que o controle financeiro sobre a produção oferecia bases ao socialismo, ao planejamento geral; o controle também sobre a distribuição, os processos de troca, conclui a tarefa histórica.


MEIO DE PAGAMENTO

A relação credor-devedor generalizou-se no capitalismo contemporâneo. Para manter a rotação do capital, unidade de produção e circulação, o capitalismo endividou os assalariados, as empresas e o Estado. Eis uma observação comum aos economistas.

Quando o dinheiro é meio de pagamento, o comprador recebe o valor de uso antes de dar, em troca, o valor da compra. A generalização do meio de pagamento ao mesmo tempo esconde e revela que as relações sociais podem prescindir das relações de distribuição burguesas, da mediação do mercado, isto é, dos preços. O endividamento geral da sociedade é mecanismo de retardo de explosão na forma de crises cíclicas mais duras, portanto retardo também da possibilidade de socialismo. A superprodução crônica latente é base da abundância socialista, mas, sob as relações atuais, é dado um estímulo ao consumo por meio da dívida. As forças produtivas evoluíram, mas as relações de produção mantêm-se: a contradição toma forma de uma relação jurídica entre credor e devedor.

A distribuição como distribuição apenas de valor de uso está latente. A forma jurídica, a forma da dívida, esconde a possibilidade posta. Surge, então, no horizonte a necessidade de cancelamento total e irrestrito das dívidas dos trabalhadores e pequenos empresários como parte de um programa de transição em nossa época.



Bibliografia

Carcanholo, R. (2002). Sobre a natureza do dinheiro em Marx (réplica a artigo de Claus Germer). Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 33-37.
Marx, K. (2013). O capital I. São Paulo: Boitempo.
Marx, K. (2014). O Capital - livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Wallin, C. (12 de 04 de 2016). Dinheiro pode sair de circulação na Suécia até 2030. Acesso em 11 de 02 de 2020, disponível em BBC Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160411_sociedade_sem_dinheiro_cw_rb




[1]             iniciamos a abstração pelo século XVI, pelas grandes navegações; portanto, o dinheiro antes e em outros sistemas não nos interessa aqui. Fumo, conchas, aguardente, açúcar, etc. foram usados como dinheiro no triângulo comercial Portugal-Brasil-África.
[2]             Essa desigualdade (temporal) da forma dos dinheiros nacionais e mundial, o ritmo descompassado de suas mudanças, é tendencialmente reduzida quanto mais evoluído está o capitalismo.
[3] Esta consequência desenvolve ares de causa. Este caráter duplo relaciona-se com a decadência do império norteamericano. O dólar como dinheiro e reserva internacionais, além de manter o nível consumo sustentado no deficit comercial, permite manter seu poderoso aparato militar em todo o mundo. Por isso, interessantíssimo o fato de algo tornar-se sua própria negação: a produtividade e consumo nos EUA permitiu sua moeda torna-se a forma do dinheiro mundial; mas isso abriu caminho para a desindustrialização futura e entrada facilitada do capital-mercadoria, com o nível de consumo controlando a luta de classes interna.
[4]             Desde a Guerra do Iraque, é quase uma sabedoria popular a importância do petróleo para o capitalismo, fonte de energia e matéria-prima para a indústria (plástico etc.). Seu preço tem repercussão vital sobre os demais preços.
[5]             Portanto, afirmar que dinheiro “virtual” é dinheiro falso é limitado real e teoricamente. Se cumpre o papel do dinheiro – medida dos valores, meio de compra, meio de pagamento, entesouramento e mercadoria capital-dinheiro –, é dinheiro. Na teoria, no campo ideal, é conhecido que a busca da verdade se dá por aproximações, com uma conclusão partindo de outra e aperfeiçoando a anterior, sendo cada vez mais verdade, mais próxima da verdade. Com o dinheiro virtual ocorre o mesmo processo, no campo material, de ser cada vez mais realidade, cada vez mais real, cada vez mais verdadeiro e cada vez mais substituto do dinheiro “físico”. Dinheiro é seu conteúdo, sua natureza; as formas de que se vale para ser são transitórias. O mesmo não se pode afirmar sobre pirâmides financeiras como o bitcoins, sendo a possibilidade de irem de dinheiro falso ou fictício a real apenas uma possibilidade, não necessidade dada (a tese do dinheiro fictício parece pertencer, em primeiro, a Eleutério Prado). Estas operações são fictícias porque perdem relação direta com o trabalho, são D-D’.  A oferta e a procura, na especulação, regulam a possibilidade de lucro. A tendência ao irrealismo do sistema tende a fenômenos de irrealismo no equivalente geral. Porém generalizar o dinheiro desligado do ouro como “dinheiro fictício” é resposta fácil e falsa à questão, mais ideológica que científica, inibindo a profundidade real do tema.
[6]             Exemplo: dedução automática da parcela de um empréstimo no salário; este recebido pelo trabalhador num – por meio do – banco, não mais em escritório específico da empresa, como era até a década de 1980.

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