O CAPITALISMO COMO TRANSIÇÃO
J. P.
O
CAPITALISMO COMO TRANSIÇÃO
Proudhon
pensou a tese e a antítese, sem chegar ao menos na síntese, como se tudo
tivesse dois lados, o bom e o mau; Marx refuta tal método pobre (Marx, Miséria
da Filosofia - Método, 2013) com o exemplo da escravidão, que nada tem de
positivo (mas, destacamos para nosso argumento, a escravatura é típica de um
sistema anterior). Algo mais sofisticado fez Della Volpe ao afirmar que as
contradições são resolvidas tirando o negativo (no sentido de qualidade) e
livrando o positivo; por exemplo: há contradição entre produção social e
apropriação privada – o que fazer?: Manter o primeiro e encerrar o segundo –
uma vez que seriam apenas externos um ao outro. Moreno critica este último
autor por não ver que toda contradição está em uma unidade necessária, relação
e totalidade (Moreno, Lógica marxista e ciências modernas, 2007, pp. 46, 47,
48). O instinto de Proudhon e a elaboração parcial de Della Volpe ocorrem
porque, como dissemos acima, o capitalismo é rebaixado à condição de mera
transição entre as sociedades classistas e a sociedade socialista. O atual modo
de vida, dessa forma, tem em si aspectos do futuro, embora preso ao passado.
Assim: a internacionalização das forças produtivas entram em contradição com os
limites nacionais, sendo estes últimos superados; a contradição entre
proletariado e burguesia resolve-se suprimindo esta enquanto aquela
gradualmente deixa de ser classe; as forças produtivas são preservadas e
desenvolvidas com a supressão das antigas relações de produção; sem supor o
grau de automação hoje, Marx afirma em O Capital que a mesma maquinaria que
serve ao domínio capitalista e produz o “necessário” exército industrial de
reserva também serve por excelência para acabar com o desemprego reduzindo a
jornada de trabalho no socialismo (neste sentido, não há desemprego tecnológico
propriamente); o capitalismo precisa desenvolver a ciência ao mesmo tempo em
que busca limitar a erudição das massas e ligá-las à religião; o sistema
capitalista maduro produz momentos de pleno emprego como sintoma de
possibilidade socialista, mas precisa da crise posterior para “normalizar” o
sistema, para mantê-lo; afirmar que o comunismo já existe, ao menos em modo
larval, no movimento operário é uma forma de demonstrar isso etc. Os países
atrasados que quase foram rumo ao socialismo no século XX, de fato quase foram porque
o capitalismo é uma transição, o que permitiu ocorrer tais fenômenos, tais
acidentes, mas mesmo o transicional precisa de um tempo e uma maturação para
pôr o novo, daí o recuo posterior do socialismo “real”.
Para que
evitemos confusão com as categorias, destacamos que a dialética hegeliana e
marxista parte do “nem positivo nem negativo” que avança a si mesmo para uma
relação de positivo (não no sentido de qualidade, mas no sentido de afirmar-se
na realidade) e negativo; logo depois essa oposição é superada em um novo ”nem
positivo nem negativo”, pois também o próprio negativo, que está em
“desvantagem”, é superado. Por exemplo: do artesão, nem positivo nem negativo,
avançou-se para o positivo, burguesia, e o negativo, proletariado, e o
socialismo superará tanto o positivo quanto o negativo, o fim da existência de
classes sociais.
TRANSIÇÃO E
CRISE
Os marxistas
enchem a boca, com razão, ao afirmarem que o capitalismo teve mais anos de
crise, não de crescimento. Mas deixam de perceber que a crise é necessária para
recuperar taxas de lucro rebaixadas pelo superaquecimento da economia. Quando a
economia cresce, surgem sintomas do futuro e do socialismo, como o pleno
emprego e maior atividade política das massas trabalhadoras. Porque é uma forma
transitória de sociedade, o capitalismo vai-se, sem eu avanço, de crise em
crise.
A crise
capitalista, pro ser um fenômenos social, não natural, avisa que a sociedade
está ainda incompleta e desorganizada.
TRANSIÇÃO E
“SOCIALISMO REAL”
Por o
capitalismo ser uma transição, sociedades atrasadas puderam antecipar, de modo
apressado, aspectos do futuro, do socialismo. Por que, então deram errado?
Entre outros fatores: ser transitório é diferente, em muitos casos, de ser
efêmero – a transição precisa de seu próprio tempo, de sua maturação, antes de
ir ao consolidado, ao socialismo. É duro dizer, mas aqueles países
revolucionados e, em principal, o mundo, ainda eram imaturos para tentativas
socialistas.
TRANSIÇÃO E
REGIME DE ESTADO
O
capitalismo não tem um regime político seu ou uma sequência clara de épocas com
seus regimes estatais. Ele é, em geral, instável nesse sentido – também. Para
evitar o socialismo, o futuro latente, ora parte para a ditadura militar, ora
para a democracia burguesa, ora para o fascismo.
TRANSIÇÃO E
CLASSES
Em seu
comentário n’O Capital III, Engels diz do novo fenômeno de sociedade anônima e
por ações: trata-se da superação da propriedade privada por dentro do próprio
sistema, dentro de seus limites. O burguês individual dá lugar ao burguês
coletivo.
O
capitalismo produz como sinal negativo o seu oposto positivo. Por exemplo: o
desemprego crônico e “tecnológico” é sinal imediato e invertido do imenso tempo
livre no socialismo. Ademais, o sistema produz a classe que irá destruir ele
mesmo: o proletariado moderno, os operários. Antes, os escravos no escravismo e
os servos no feudalismo não era a classe imediata e direta do revolucionamento
de seus sistemas de opressão. Só uma sociedade de transição pode isso.
TRANSIÇÃO E
MUNDIALIDADE
O
capitalismo unifica o mundo e cria uma interdependência tal que lhe torna
bastante sensível às crises aparentemente locais.
TRANSIÇÃO E
SINDICATOS
Nem escravos
nem servos poderiam ter instituições de luta. Por mais que os burgueses
tentassem destruir as associações operárias, o caráter conjunto e urbano de tal
classe obrigava a criar organizações, mesmo que clandestinas e ilegais. Mesmo
que hoje estatizados, os sindicatos são sintomas do caráter transicional do
capitalismo.
TRANSIÇÃO E
PARTIDOS
Como se por
força da natureza, partidos operários ou de esquerda tiveram de surgir. Com
eles, ideias mais ou menos difusas de socialismo ganharam força. Como o
capitalismo surgiu de modo revolucionário, a revolução é algo bem visto na
cultura popular, no cinema etc. Desde seu surgimento, os governos franceses
aditam e mutilam o hino da França para que soe menos subversivo.
TRANSIÇÃO E
SOCIALISMO
A tendência
inconsciente ao socialismo expressou-se de modo consciente, sem aparente
lastro, nos movimentos operários utópicos, no socialismo utópico não
científico. As ideias de outro futuro possível surgiam por instinto aqui e ali.
Ninguém é
perseguido por seguir Platão, mas pode morrer por defender Marx. De qualquer
modo, a filosofia científica materialista marxista provou seu direito histórico
e circula por todo o mundo, mesmo se com dificuldade sob ditaduras.
TRANSIÇÃO E
CULTURA
O apresso
medieval pela rotina e pela tradição caiu por terra. Hoje, queremos o novo, o
moderno, a novidade, o avançado e o revolucionário. Tudo que era sólido
desmanchou-se no ar. Nunca acumulamos tantos exemplos de estética, de arte.
Assim, os mais velhos e arcaicos sentem-se desencaixados no mundo renovado,
deixam de compreender a realidade.
TRANSIÇÃO E
CRISE SISTÊMICA
É
incomparável a crise total do capitalismo coma crise total de sistemas
anteriores. Pela primeira vez, podemos ser extintos. A crise ambiental, por
exemplo, muito mais que parcial e limitado.
TRANSIÇÃO E
CIÊNCIA
O
capitalismo faz o possível para reduzi a ciência ao empírico (necessário), aos
padrões externos, ao matematizável e à técnica. Assim, as ciências humanas
devem defender o capitalismo, nada crítico. Mas ele se vê obrigado a tolerar a
crítica e a ciência essencial, de base. Sem isso, sem avanço. Porém, precisa
manter a maioria ignorante, semiletrada, apenas capaz de trabalhar como caixa
de supermercado e ler manuais. Os EUA, no lugar de criar um povo erudito,
preferiu importar cérebros de todo o mundo. Por isso, gênios como Carl Sagan,
este de clara inspiração socialista, tiverem a iniciativa de ir além, de tentar
criar ao menos a simpatia popular pelo científico.
De qualquer
modo, dentro de certos limites, a cultura e a sensibilidade populares tiveram
de se elevarem.
As ciências
que foram “longe demais” – marxismo, darwinismo, einsteinismo-teoria do Big
Bang, freudismo – têm de ser atacados, negados. É uma realidade que permite,
mas não aceita de todo pensamentos avançados. Algo típico da transição.
TRANSIÇÃO E
CAPITALISMO
Como em
nenhuma outra transição sistêmica, o capitalismo é um socialismo de cabeça para
baixo. Por exemplo: em todos os bairros, há um supermercado, que servirá de
primeira forma de depósito público, gratuito e de qualidade dos produtos. A
internet e a computação permitirá um planejamento geral e científico da
economia. A robótica-automação põe fim às classes, permite produção científica,
dá base ao fim da exploração etc. Tanto a burguesia quanto o operariado, via
desenvolvimento técnico, se afastam da produção.
TRANSIÇÃO E
ESTADO
Hoje, o
Estado investe porque a burguesia não tem condições de arriscar investimento em
tão larga escala e em tanto risco. Como burguês impessoal, o Estado tonou-se
necessário ao sistema como aviso que o avanço técnico exige grande
investimento, logo recursos concentrados, talvez planificados e planejados.
Seque a sociedade por ações investiria em hidrelétricas que dão lucro apenas
após algumas décadas de funcionamento.
TRANSIÇÃO E
FORÇAS ARMADAS
Via de
regra, as forças armadas dos sistemas anteriores eram formadas por cidadãos
livres e ricos, até para reprimir a classe trabalhadora de sua época. Os
capitalistas, via Estado, ao contrário, contrata assalariados, ou seja, seus
inimigos potenciais. Eia outro sinal de transição. Diante da miséria e da
revolta operária o popular, os militares de baixa patente reprimirão os seus?
No escravismo e no feudalismo, o contrato e profissionalização do exército era
um dos sinais de decadência do modo de produção.
TRANSIÇÃO E
CONTRATENDÊNCIAS
O
capitalismo tende a substituir trabalhador por máquina, mas resiste a isso por
meio de baixos salários – o socialismo encerra tal resistência. O capitalismo
tende a derrubar a taxa de lucro, mas cria negações disso – o socialismo
encerrará tais negações. O capitalismo tende a concentração e centralização do
capital, mas promove oposições para a dispersão – o socialismo unificará todo o
grande capital como uma só empresa com planejamento central. Esses e outros
exemplos avisam que o socialismo afirmará tendências do capitalismo sem suas
contratendências, que serão superadas. Isso demonstra muito bem o caráter
transicional do capitalismo uma contradição dentro de si mesmo, barreira de si
próprio. Ele tende a algo, mas por sua configuração (classes etc.), resiste-se,
contradiz-se. Por outro lado, isso gera um tempo de maturação necessário.
TRANSIÇÃO E
DIALÉTICA: MUNDOS DA APARÊNCIA E DA ESSÊNCIA
O mundo que
é claro e evidente desdobra-se, em seu autodesenvolvimento (diversificação
etc.), em mundo essencial e mundo aparencial – para depois promover novo mundo
unificado transparente. No feudalismo, Idade Média, tudo era claro, cristalino
e evidente: não somos iguais, uma parte do trabalho fica com a classe dominante
(outra como Estado, outra com a Igreja etc.), o Estado serve aos ricos etc. Com
o capitalismo, o mundo duplicou-se: parece que somos iguais, parece que somos
pagos pelo nosso trabalho, parece que o Estado é um mediador não classista etc.
O socialismo, enfim, encerra tal duplicação, tornando tudo transparente mais
uma vez, de novo modo. O que no capitalismo é aparência e farsa objetiva, será,
em muitos casos, essência real no socialismo. O capitalismo anuncia o
socialismo, mesmo se com trombetas desafinadas. Pesando a mão e desleixando do
rigor: o capitalismo é o reino da aparência; o socialismo, da essência.
TRANSIÇÃO
No fim dos
sistemas anteriores, ou no início de seus fins, alguns efeitos aconteceram,
incluso: aumento do comércio e aumento da dívida. Ambos são o próprio capital.
Assim, aquilo que foi transicional nos anteriores sistemas é a próprio sistema
transicional hoje. Por exemplo: a urbanização alta marcou as crises sistêmicas,
e o capitalismo é urbano por excelência e necessariamente.
Repetimos: o
capitalismo é, de fato, um modo de produção e de vida, ou seja, toda uma época
da humanidade; por outro lado, também, trata-se de uma transição, quase mera
transição, entre o passado classista e o futuro sem classes sociais,
aclassista.
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