domingo, 27 de agosto de 2023

O que é "Mais-Poder"

 J. P. - Teresina-PI

A CATEGORIA MAIS-PODER

 

O argentino Moreno defende que devemos escrever um o Capital da política. Para ele, assim como a obra de Marx é a lógica do objeto estudado, devemos fazer a lógica da política. Faz algum sentido, mas há exagero. Seu marxismo e sua corrente, da qual faço parte de modo crítico, foca nas relações de produção e na superestrutura, na sociologia, sabendo pouco da necessária base econômica. É o marxismo parcial e relacionalista, sociológico (aliás, Moreno focou seus estudos em sociologia). Se tal tarefa, que superaria o legado de Maquiavel, for possível, a categoria de “mais-poder” seria a chave conceitual real de tal empreitada, ponto de partida inevitável. Neste breve ensaio, exponho alguns de seus aspectos, longo de esgotá-los, mas com a profundidade suficiente e necessária.

 

FÁBRICA E DITADURA

Marx expõe em O capital I o despotismo fabril, além de nas minas etc., a ditadura do patrão e do acionista. No escravismo grego, a elogiada democracia dos homens livres acompanhava e tinha por base a ditadura nos campos de trabalho escravo e nos lares contra as mulheres. Ditadura e democracia podem conviver juntas, aquela sustentando esta. Mais: a necessidade de implementar um ditadura de Estado capitalista vem tantas vezes pela necessidade de manter em pé, contra a rebeldia operária, a ditadura nas empresas. A democracia das reuniões de acionistas na cúpula executiva da empresa está baseada na mão de ferro contra seus funcionários. Ou a democracia externa à porta da fábrica existe para manter intacta a ditadura do capital sobre o trabalho, dentro da empresa. Assim, unimos base econômica-social e superestrutura objetiva.

 

O MAIS-PODER

Temos a mais-valia, o mais-capital, o mais-trabalho, o mais-produto e o hipotético mais-de-gozar. Penso, eis a tese, que há o mais-poder. O poder geral da sociedade, algo desenvolvido, torna-se desigualmente distribuído. O poder maior da burguesia é um poder menor, menos-poder, da classe operária. Um jogo de soma zero: um perde na proporção em que o outro ganha. No entanto, de modo algum nos confundimos com os teóricos mercadológicos que buscam um conceito novo a cada instante, artificial e exótico, para ganhar mídia e espaço acadêmico. No mais, o poder é meio, não fim abstrato. Tal luta também é pessoal.

 

ACRÉSCIMO DE PODER

Nem tudo pode ser quantificado, por exemplo, o valor artístico, que deriva de seu trabalho útil, não cabe em números nem em seu preço. No entanto, torna-se possível perceber que o poder aumenta de modo geral. Ao desenvolver a técnica e a sociedade, o homem aumentou cada vez mais seu poder sobre a natureza (e, assim, sobre o próprio homem até aqui). Tal poder, até agora, ainda exclui sua má distribuição entre os homens, tratamo-lo como geral e abstrato.

O poder deriva também, por isso, de ferramentas e como elas estão distribuídas. O arranjo do capitalismo, como tudo está organizado, torna-se base do poder do capitalista, ou melhor, do capital. Hoje, para haver poder socialista, basta o rearranjo social – o que exige um Estado paralelo.

Assim, o poder na história não permanece o que é, ou seja, estático ou permanente. Sua grandeza, se podemos dizer de tal modo, acresce ou reduz. Existir poder é condição de mais-poder; de modo relativo, este surge apenas quando aquele atinge certo valor acumulado.

 

MAIS-PODER E DEMOCRACIA

A democracia não é um acordo, ponto livremente aceito, mas algo imposto. É uma concessão forçada pelas circunstâncias. É, portanto, algo inerentemente instável e parte de uma luta permanente. Para haver qualquer tipo de democracia deve haver, também, todas as condições para ela. Dito isso, não havia democracia nos Estados “socialistas” do século XX porque não havia condições tanto para o socialismo quanto para sua democracia direta. A internet, por exemplo, exige e possibilita, enfim, a democracia socialista real.

A democracia grega foi forçada a surgir por causa da forte classe dos comerciantes, da urbanização, da quantidade enorme de homens livres urbanos etc. Fui fruto da matéria, não da ideia. Embora muitos quisessem uma ditadura, em especial na época de decadência do escravismo grego, a configuração da realidade obrigava a diluir um tanto o mais-poder, baseado na falta de poder do escravo, na sua coisificação não desejante aparente.

Quando o Brasil deixou a ditadura na década de 1980, o poder antes muito concentrado teve de ser diluído um tanto, fragmentado (num bom sentido). O povo passou a eleger seu presidente. Isso aconteceu para evitar uma guerra civil, teve-se de ceder ao poder real dos pés nas praças e ruas. A democracia é uma forma de os pobres não matarem os ricos – logo, uma falsa democracia que visa uma paz social artificial. Diante de uma realidade instável, uma nação pobre e com muita luta de classes parcial, o presidencialismo, concentrar o poder no chefe executivo, tornou-se uma necessidade. O parlamentarismo é para países urbanos mais estáveis, ou seja, mais ricos. Já nos países rurais é comum o bonapartismo, ou seja, ditaduras do executivo em geral militar que até permite a existência de 2 ou mais partidos.

A urbanidade é a casa da democracia: nela, as ideias circulam ao lado dos protestos. Torna-se mais difícil concentrar o poder e, logo, o mais-poder. Por isso, o fascismo ocorre em países mais urbanos, diferente do bonapartismo, pois tem de impor uma derrota fortíssima sobre o movimento operário e popular concentrado usando de métodos de guerra civil.

A ditadura concentra poder, logo um tanto mais de mais-poder em poucas mãos; a democracia, dá algum poder maior, liberdade, aos trabalhadores. Mas não vale a pena iludir-se com tal conquista parcial, embora positiva. O poder nunca flutua no ar de modo estável e uniforme.

O mais-poder, enfim, nunca é apenas estatal, pois é um poder de classe, de uma classe social – os ricos de todas as épocas – contra outra.

Poder é garantir que tudo funciona de tal ou qual modo. Com a crise mundial de 2008, mais a precarização do trabalho (fim da classe média), o governo Obama nos EUA tentou tirar do povo o direito de ter armas sob a farsa de justificativas humanitárias. A razão de fundo é uma tentativa de antecipação da burguesia: destruir a possibilidade dos trabalhadores tomarem o poder, manter o poder estatal burguês, derrotar uma revolta futura de maneira antecipada. Assim, por causa de luta de classes, o governo tentou aumentar o mais-poder dos ricos e de seu Estado. As ditaduras “socialistas” também tiveram como base separar o povo das armas pesadas e formar um corpo especial de homens armados.

 

O MAIS-PODER E O MAIS-VALOR

O leitor marxista logo associa a questão do mais-poder com o mais-valor ou mais-valia. Claro: acumulação de valor na forma de dinheiro dá ao capitalista – e ao capital! – mais-poder em toda a sociedade. Somos jugados pelo que temos nos nossos bolsos.

Mas a coisa é mais sofisticada… O poder do valor também se faz sobre os burgueses, pois o que há de fato é a alienação. Há um poder do mundo das coisas sobre o mundo dos homens – o mais-poder, hoje, do capital. Porque a humanidade está dividida, porque lutamos uns contra os outros, surgem leis coisais que não foram decididas por ninguém, que surgem da desorganização da espécie humana. A legalidade apresenta-se, em nosso tempo, como dinheiro em busca de mais dinheiro um processo que não encontra limite, freio, bom-senso etc. – valor que se autovaloriza, valor como sujeito-substância. O valor torna-se a alma tarada das coisas.

 

MAIS-PODER E BUROCRACIA

O burocrata “vermelho” precisava impedir a democracia socialista, operária, para manter seu cargo, ou seja, seu emprego, ou seja, seu estilo de vida destacado. Trotsky dizia que, na falta de comida na guerra, alguém deveria organizar a fila dos alimentos; tal organizador comia primeiro e comia melhor. O burocrata, apesar disso, morria de medo dos operários, por isso fazia-lhes concessões diante de uma leve greve. É o preço a se pagar, o que desestabilizava aquela sociedade.

O irmão menor deles são os burocratas sindicais no capitalismo: fazem do sindicato o meio por onde engordam; até fazem assembleias para a greve, mas só enquanto sabem que será aprovado aquilo que já esperam ser aprovado. Eles precisam justificar à categoria seu cargo, que merecem estar na direção sindical. Quanto mais-poder tem o dirigente, menos-poder tem os representados.

No Brasil, a burguesia bruta e escravocrata pedia a Getúlio Vargas, o ditado, que destruísse o movimento sindical. Mas ele era um gênio: preferiu torar os sindicatos um meio de corrupção dos líderes, sindicatos burgueses da classe operária. Assim, o número de dirigentes de um sindicato é limitado, apenas de haver uma base de representados enorme, o que concentra poder, mais-poder, na mão de poucos sindicalistas. Assim, o líder sindical pode tomar certas decisões sem consultar sua base.

 

MAIS-PODER E MORAL

Com sua inocência, inevitável em sua época, Rousseau afirma que nenhum homem deve ser tão pobre a ponto de ter que se vender, nenhum homem deve ser tão rico a ponto de poder comprar outros homens. O mais-poder é, inevitavelmente, imoral. Mas apenas na sociedade da abundância real, que começa seus primeiros passos na década de 1970, incluso abundância de tempo livre, a liberdade; o fim do mais-poder, do poder concentrado, torna-se possível, necessário e desejável. O reino desigual da inveja deve ruir, não me importarei se meu vizinho tem o que não tenho – ambos temos. O socialismo é poder acessar com facilidade os objetos necessários para o corpo e para o espírito, além de alguns caprichos sociais desejados.

 

MAIS-PODER E ARTE MILITAR

As ditaduras tendem a ter um exército mais burocrático, com os comandantes concentrando tudo o necessário. Os exércitos oficiais de países democráticos tendem a ter mais facilidade de dar iniciativa e autonomia aos grupos de base; isso tende a ser até uma necessidade da guerra, uma vantagem para quem dirige o aparelho. Esperar que o atarefado comandante do comandante tome uma decisão é impreciso (pois ele está longe), atrasa a ação etc. No entanto, a democracia não cabe em exércitos, mesmo nos revolucionários, como demostrou a revolução russa. É preciso seguir o dirigente que estudou e preparou-se na prática para bem dirigir: na hora do combate, não cabe debater decisões e votar. No entanto, outros organismos, como assembleias na cidade, devem eleger ou demitir tais comandantes.

 

MAIS-PODER E SOCIALISMO

O socialismo acaba com o mais-poder, pois o povo passa a decidir tudo o que é central em assembleias diretas, votações por internet etc. Mas o poder em si mesmo será maior, não menor, embora radicalmente democraticamente distribuído.

Trata-se de destruir o poder estatal e empresarial burguês por meio de um Estado paralelo, uma democracia superior, organismo de poder como assembleias, conselhos e comitês de fábrica.

Na revolução surgirá, por meio do poder na luta social, um poder real ao lado do poder oficial anterior e caduco. Chamamos tal regime de regime de duplo poder, o operário e o burguês. Ambos são irreconciliáveis, apenas um vencerá. Quem decide como e quando produzir? A vitória operária depende, em grande medida, de um racha nas forças armadas, quando ganhamos a parte mais pobre dela para nossas posições. Apenas o poder contra o poder. O poder é, então, abstrato, a realidade social em processo.

 

MAIS-PODER E FAMÍLIA

O mais-poder do homem baseou-se no fato de ele ter o poder econômico, sustentar a casa. Ou seja, ele tem meios de repressão e regulação. Quando a mulher começou a trabalhar fora do lar passou, também, a ruir tal poderio. No entanto, bem antes havia uma luta oculta na família. A mulher, sempre que podia, operava manobras para fazer valer sua vontade; às vezes, usando o sexo como ferramenta de barganha.

Com a crise da família monogâmica e isolados pais carentes, surgiram formas deformadas de disputa pelo poder. Temos, por exemplo, crianças mimadas, que manipulam os pais. Mas é de notar que a opressão sobre os filhos, já citada no Manifesto, nunca foi tema sério nos meios marxistas; afinal, eles são pais… Como os infantes ainda não são homens completos, deve haver autoridade e aconselhamento, mas a coisa toda nunca precisa ser despótica. Autoridade nem sempre é autoritarismo.

 

MAIS-PODER, HOBBES E MAQUIAVEL

No marxismo, refutamos uma teoria desenvolvendo ela mesmo até o limite, até extrapolá-la pode dentro de si. A teoria de que o mundo era uma guerra civil animal e o estado vem para organizar tudo, preservar a vida, reduzindo a negativa liberdade (caos)., está errada – mas tem alguma verdade. Coma altíssima urbanização brasileira, veio a crise estrutural do Estado, logo este se demitiu de agir na periferia urbana. A guerra de gangues aí era permanente, morte sobre morte. Então o tráfico e a milícia impôs a ordem, proibiu assaltos na região, organizou a comunidade, faz festas e bailes, gerou empregos, ofereceu serviços e cobrou impostos ou taxas etc. Claro, tudo por lucro e oportunismo. Mas surgiu um quase-estado não paralelo, um poder e um mais-poder, em tais regiões.

Sobre o italiano, lembremos que sua ambição era unificar a fragmentada Itália. Para isso, pesou que um grande e sábio príncipe, concentrador de poder, mais-poder, deveria cumprir tal tarefa. Daí, por exemplo, o motivo de estudar a “arte da guerra”, com uma obra sua de mesmo nome.

 

MAIS-PODER E MATÉRIA

Mais-poder é concentrar materiais como dinheiro, armas e humanos ao seu serviço. Ter mais-matéria é, nesse caso, ter mais-poder se a materialidade está organizada e arranjada de tal ou qual modo.

 

MAIS-PODER: FORMA E CONTEÚDO

O conteúdo pode ter diferentes formas, eis a dialética. O mesmo poder abstrato e concreto que está no Estado burguês pode passar-se para o estado operário. O conteúdo disputado pelas formas, muda de forma.

Capítulo do livro "A crise sistêmica".




sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O que é "soneto novo"?

O QUE É SONETO NOVO 

J.P. Teresina-PI


A arte poética cindiu-se entre o poema de forma fixa e o poema de forma livre. No entanto, há o caminho do meio. O primeiro modelo proposto são poemas que seguem a seguinte formatação: curta estrofe de apresentação, estrofes de desenvolvimento, estrofe de transição em que os versos são “quebrados” para induzir à leitura ininterrupta, estrofe final com chave de ouro. Chamo-lhes soneto novo. A segunda proposta é, em termos hegelianos, conhecida, mas não reconhecida; nomeio-o refrão. Também pertence à forma fusionada, por assim dizer, de rigidez livre como a escada rolante que é, ao mesmo tempo, firme e flexível. Nas páginas posteriores, o leitor perceberá a forma interna no informe externo, o necessário no contingente. Os poetas têm o desafio de utilizar o acúmulo histórico das escolas literárias para criar “modelos” novos.


• SONETO NOVO I •

 

Existem borboletas

Cujo sonho é cair

 

Borboletas suicidas

 

Muitas delas coloridas

Tropicais

 

Exclamações melancólicas

Pairando

Paradas no firmamento

Branco e azul

 

Urubus florais

Cemitérios flutuantes

 

Em confronto contra

Os ventos

Pois a aerodinâmica

Da vida

No tempo do

Abate

Fortalece para

Matar

 

Matar-se-ão

Multicolores e ondulantes fragmentos acima do cinza

 


• SONETO NOVO II •

 

O nada é ser no devir…

 

O vazio que me comove

É o sentimento universal do universo!

 

Sinto a falta sentida pelo cosmos

Como a falta de si próprio

 

Vir a ser aquilo que já é por meio de outro

No movimento perpétuo de toda unidade

 

Eis os

Opostos tomando

A forma de um

Hermafroditismo filosófico

 

O nada ir-se do nada ao nada por meio do nada!

 

 

• SONETO NOVO III •

 

A menor distância entre um ponto e outro é

Uma curva

 

Se as condições do mundo fossem simples

Desexistiria mundo

 

Tudo está em oculta guerra civil

E nada há desprovido de resistência

 

A interação de todos os tipos de corpos

A curvatura do tecido espaço-tempo

O radiante raio por seus caminhos tortos, tortuosos

 

A concha do

Caracol faz

Uma espiral que

Se nega e se afirma no

Seu evolver, pois

Tem o impulso de ir para fora indo

Também

Para dentro!

 

Curvo-me em mim, que não suporto todo este peso,

Como quem delira curva-se diante do talvez deus do cosmos 







quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Modo de produção? O capitalismo como TRANSIÇÃO!


O CAPITALISMO COMO TRANSIÇÃO

J. P. 

O CAPITALISMO COMO TRANSIÇÃO

 

Proudhon pensou a tese e a antítese, sem chegar ao menos na síntese, como se tudo tivesse dois lados, o bom e o mau; Marx refuta tal método pobre (Marx, Miséria da Filosofia - Método, 2013) com o exemplo da escravidão, que nada tem de positivo (mas, destacamos para nosso argumento, a escravatura é típica de um sistema anterior). Algo mais sofisticado fez Della Volpe ao afirmar que as contradições são resolvidas tirando o negativo (no sentido de qualidade) e livrando o positivo; por exemplo: há contradição entre produção social e apropriação privada – o que fazer?: Manter o primeiro e encerrar o segundo – uma vez que seriam apenas externos um ao outro. Moreno critica este último autor por não ver que toda contradição está em uma unidade necessária, relação e totalidade (Moreno, Lógica marxista e ciências modernas, 2007, pp. 46, 47, 48). O instinto de Proudhon e a elaboração parcial de Della Volpe ocorrem porque, como dissemos acima, o capitalismo é rebaixado à condição de mera transição entre as sociedades classistas e a sociedade socialista. O atual modo de vida, dessa forma, tem em si aspectos do futuro, embora preso ao passado. Assim: a internacionalização das forças produtivas entram em contradição com os limites nacionais, sendo estes últimos superados; a contradição entre proletariado e burguesia resolve-se suprimindo esta enquanto aquela gradualmente deixa de ser classe; as forças produtivas são preservadas e desenvolvidas com a supressão das antigas relações de produção; sem supor o grau de automação hoje, Marx afirma em O Capital que a mesma maquinaria que serve ao domínio capitalista e produz o “necessário” exército industrial de reserva também serve por excelência para acabar com o desemprego reduzindo a jornada de trabalho no socialismo (neste sentido, não há desemprego tecnológico propriamente); o capitalismo precisa desenvolver a ciência ao mesmo tempo em que busca limitar a erudição das massas e ligá-las à religião; o sistema capitalista maduro produz momentos de pleno emprego como sintoma de possibilidade socialista, mas precisa da crise posterior para “normalizar” o sistema, para mantê-lo; afirmar que o comunismo já existe, ao menos em modo larval, no movimento operário é uma forma de demonstrar isso etc. Os países atrasados que quase foram rumo ao socialismo no século XX, de fato quase foram porque o capitalismo é uma transição, o que permitiu ocorrer tais fenômenos, tais acidentes, mas mesmo o transicional precisa de um tempo e uma maturação para pôr o novo, daí o recuo posterior do socialismo “real”.

Para que evitemos confusão com as categorias, destacamos que a dialética hegeliana e marxista parte do “nem positivo nem negativo” que avança a si mesmo para uma relação de positivo (não no sentido de qualidade, mas no sentido de afirmar-se na realidade) e negativo; logo depois essa oposição é superada em um novo ”nem positivo nem negativo”, pois também o próprio negativo, que está em “desvantagem”, é superado. Por exemplo: do artesão, nem positivo nem negativo, avançou-se para o positivo, burguesia, e o negativo, proletariado, e o socialismo superará tanto o positivo quanto o negativo, o fim da existência de classes sociais.

 

TRANSIÇÃO E CRISE

Os marxistas enchem a boca, com razão, ao afirmarem que o capitalismo teve mais anos de crise, não de crescimento. Mas deixam de perceber que a crise é necessária para recuperar taxas de lucro rebaixadas pelo superaquecimento da economia. Quando a economia cresce, surgem sintomas do futuro e do socialismo, como o pleno emprego e maior atividade política das massas trabalhadoras. Porque é uma forma transitória de sociedade, o capitalismo vai-se, sem eu avanço, de crise em crise.

A crise capitalista, pro ser um fenômenos social, não natural, avisa que a sociedade está ainda incompleta e desorganizada.

 

TRANSIÇÃO E “SOCIALISMO REAL”

Por o capitalismo ser uma transição, sociedades atrasadas puderam antecipar, de modo apressado, aspectos do futuro, do socialismo. Por que, então deram errado? Entre outros fatores: ser transitório é diferente, em muitos casos, de ser efêmero – a transição precisa de seu próprio tempo, de sua maturação, antes de ir ao consolidado, ao socialismo. É duro dizer, mas aqueles países revolucionados e, em principal, o mundo, ainda eram imaturos para tentativas socialistas.

 

TRANSIÇÃO E REGIME DE ESTADO

O capitalismo não tem um regime político seu ou uma sequência clara de épocas com seus regimes estatais. Ele é, em geral, instável nesse sentido – também. Para evitar o socialismo, o futuro latente, ora parte para a ditadura militar, ora para a democracia burguesa, ora para o fascismo.

 

TRANSIÇÃO E CLASSES

Em seu comentário n’O Capital III, Engels diz do novo fenômeno de sociedade anônima e por ações: trata-se da superação da propriedade privada por dentro do próprio sistema, dentro de seus limites. O burguês individual dá lugar ao burguês coletivo.

O capitalismo produz como sinal negativo o seu oposto positivo. Por exemplo: o desemprego crônico e “tecnológico” é sinal imediato e invertido do imenso tempo livre no socialismo. Ademais, o sistema produz a classe que irá destruir ele mesmo: o proletariado moderno, os operários. Antes, os escravos no escravismo e os servos no feudalismo não era a classe imediata e direta do revolucionamento de seus sistemas de opressão. Só uma sociedade de transição pode isso.

 

TRANSIÇÃO E MUNDIALIDADE

O capitalismo unifica o mundo e cria uma interdependência tal que lhe torna bastante sensível às crises aparentemente locais.

 

TRANSIÇÃO E SINDICATOS

Nem escravos nem servos poderiam ter instituições de luta. Por mais que os burgueses tentassem destruir as associações operárias, o caráter conjunto e urbano de tal classe obrigava a criar organizações, mesmo que clandestinas e ilegais. Mesmo que hoje estatizados, os sindicatos são sintomas do caráter transicional do capitalismo.

 

TRANSIÇÃO E PARTIDOS

Como se por força da natureza, partidos operários ou de esquerda tiveram de surgir. Com eles, ideias mais ou menos difusas de socialismo ganharam força. Como o capitalismo surgiu de modo revolucionário, a revolução é algo bem visto na cultura popular, no cinema etc. Desde seu surgimento, os governos franceses aditam e mutilam o hino da França para que soe menos subversivo.

 

TRANSIÇÃO E SOCIALISMO

A tendência inconsciente ao socialismo expressou-se de modo consciente, sem aparente lastro, nos movimentos operários utópicos, no socialismo utópico não científico. As ideias de outro futuro possível surgiam por instinto aqui e ali.

Ninguém é perseguido por seguir Platão, mas pode morrer por defender Marx. De qualquer modo, a filosofia científica materialista marxista provou seu direito histórico e circula por todo o mundo, mesmo se com dificuldade sob ditaduras.

 

TRANSIÇÃO E CULTURA

O apresso medieval pela rotina e pela tradição caiu por terra. Hoje, queremos o novo, o moderno, a novidade, o avançado e o revolucionário. Tudo que era sólido desmanchou-se no ar. Nunca acumulamos tantos exemplos de estética, de arte. Assim, os mais velhos e arcaicos sentem-se desencaixados no mundo renovado, deixam de compreender a realidade.

 

TRANSIÇÃO E CRISE SISTÊMICA

É incomparável a crise total do capitalismo coma crise total de sistemas anteriores. Pela primeira vez, podemos ser extintos. A crise ambiental, por exemplo, muito mais que parcial e limitado.

 

TRANSIÇÃO E CIÊNCIA

O capitalismo faz o possível para reduzi a ciência ao empírico (necessário), aos padrões externos, ao matematizável e à técnica. Assim, as ciências humanas devem defender o capitalismo, nada crítico. Mas ele se vê obrigado a tolerar a crítica e a ciência essencial, de base. Sem isso, sem avanço. Porém, precisa manter a maioria ignorante, semiletrada, apenas capaz de trabalhar como caixa de supermercado e ler manuais. Os EUA, no lugar de criar um povo erudito, preferiu importar cérebros de todo o mundo. Por isso, gênios como Carl Sagan, este de clara inspiração socialista, tiverem a iniciativa de ir além, de tentar criar ao menos a simpatia popular pelo científico.

De qualquer modo, dentro de certos limites, a cultura e a sensibilidade populares tiveram de se elevarem.

As ciências que foram “longe demais” – marxismo, darwinismo, einsteinismo-teoria do Big Bang, freudismo – têm de ser atacados, negados. É uma realidade que permite, mas não aceita de todo pensamentos avançados. Algo típico da transição.

 

TRANSIÇÃO E CAPITALISMO

Como em nenhuma outra transição sistêmica, o capitalismo é um socialismo de cabeça para baixo. Por exemplo: em todos os bairros, há um supermercado, que servirá de primeira forma de depósito público, gratuito e de qualidade dos produtos. A internet e a computação permitirá um planejamento geral e científico da economia. A robótica-automação põe fim às classes, permite produção científica, dá base ao fim da exploração etc. Tanto a burguesia quanto o operariado, via desenvolvimento técnico, se afastam da produção.

 

TRANSIÇÃO E ESTADO

Hoje, o Estado investe porque a burguesia não tem condições de arriscar investimento em tão larga escala e em tanto risco. Como burguês impessoal, o Estado tonou-se necessário ao sistema como aviso que o avanço técnico exige grande investimento, logo recursos concentrados, talvez planificados e planejados. Seque a sociedade por ações investiria em hidrelétricas que dão lucro apenas após algumas décadas de funcionamento.

 

TRANSIÇÃO E FORÇAS ARMADAS

Via de regra, as forças armadas dos sistemas anteriores eram formadas por cidadãos livres e ricos, até para reprimir a classe trabalhadora de sua época. Os capitalistas, via Estado, ao contrário, contrata assalariados, ou seja, seus inimigos potenciais. Eia outro sinal de transição. Diante da miséria e da revolta operária o popular, os militares de baixa patente reprimirão os seus? No escravismo e no feudalismo, o contrato e profissionalização do exército era um dos sinais de decadência do modo de produção.

 

TRANSIÇÃO E CONTRATENDÊNCIAS

O capitalismo tende a substituir trabalhador por máquina, mas resiste a isso por meio de baixos salários – o socialismo encerra tal resistência. O capitalismo tende a derrubar a taxa de lucro, mas cria negações disso – o socialismo encerrará tais negações. O capitalismo tende a concentração e centralização do capital, mas promove oposições para a dispersão – o socialismo unificará todo o grande capital como uma só empresa com planejamento central. Esses e outros exemplos avisam que o socialismo afirmará tendências do capitalismo sem suas contratendências, que serão superadas. Isso demonstra muito bem o caráter transicional do capitalismo uma contradição dentro de si mesmo, barreira de si próprio. Ele tende a algo, mas por sua configuração (classes etc.), resiste-se, contradiz-se. Por outro lado, isso gera um tempo de maturação necessário.

 

TRANSIÇÃO E DIALÉTICA: MUNDOS DA APARÊNCIA E DA ESSÊNCIA

O mundo que é claro e evidente desdobra-se, em seu autodesenvolvimento (diversificação etc.), em mundo essencial e mundo aparencial – para depois promover novo mundo unificado transparente. No feudalismo, Idade Média, tudo era claro, cristalino e evidente: não somos iguais, uma parte do trabalho fica com a classe dominante (outra como Estado, outra com a Igreja etc.), o Estado serve aos ricos etc. Com o capitalismo, o mundo duplicou-se: parece que somos iguais, parece que somos pagos pelo nosso trabalho, parece que o Estado é um mediador não classista etc. O socialismo, enfim, encerra tal duplicação, tornando tudo transparente mais uma vez, de novo modo. O que no capitalismo é aparência e farsa objetiva, será, em muitos casos, essência real no socialismo. O capitalismo anuncia o socialismo, mesmo se com trombetas desafinadas. Pesando a mão e desleixando do rigor: o capitalismo é o reino da aparência; o socialismo, da essência.

 

TRANSIÇÃO

No fim dos sistemas anteriores, ou no início de seus fins, alguns efeitos aconteceram, incluso: aumento do comércio e aumento da dívida. Ambos são o próprio capital. Assim, aquilo que foi transicional nos anteriores sistemas é a próprio sistema transicional hoje. Por exemplo: a urbanização alta marcou as crises sistêmicas, e o capitalismo é urbano por excelência e necessariamente.

Repetimos: o capitalismo é, de fato, um modo de produção e de vida, ou seja, toda uma época da humanidade; por outro lado, também, trata-se de uma transição, quase mera transição, entre o passado classista e o futuro sem classes sociais, aclassista.

 

 J. P.