domingo, 14 de maio de 2023

PSIQUE [ensaio de psicologia marxista]

 

 

 

PSIQUE

Para a crítica da psicologia

Por uma psicologia marxista

 

 

 

J. P.

 

 


 

 

 

 

 

 


Temos, aqui, uma pesquisa completa, sistemática, mas ainda inconclusa. Alcancei uma série de conclusões sobre o tema cuja exposição não precisa ser adiada. A obra completa terá três partes: psique, ética e estética – marxistas. Tais terrenos precisam das sementes de nossa tradição, ainda. A psicologia marxista é uma das grandes tarefas intelectuais da humanidade. Como veremos, nem sempre o indivíduo será o foco, embora ele importe muito. Mudamos o ângulo e o foco desta ciência incompleta, que nunca poderá se sustentar por seus próprios pés sem mais.

Uma das ideias vulgarizadas do marxismo é esta: o modo como vivemos determina o modo como pensamos. As ideias e sentimento nunca serão um raio em céu azul. No mais, elas são materiais e forças materiais. Nossa cabeça é concreta. Por muito tempo, por um materialismo vulgar e unicausal, os marxismo consideraram a idealidade como determinada mecanicamente pela economia; logo, havia uma desestímulo à pesquisa desse mundo, dessa esfera, desse complexo. Mas as partes de uma totalidade influenciam reciprocamente umas às outras, além de possuírem uma autonomia relativa. A onda de depressão e suicídio em nosso tempo exige uma psicologia dialética para ontem e para o amanhã. A ideia de que somos determinados pelo meio tem altíssima validade, porém nada explica por si, sem pesquisa.

A existência de várias psicologias, várias escolas, demonstra uma incompletude de tal ciência – teses e ângulos parciais surgem. A hora é de ao fundo, ao fundamento. Temos prédios frágeis por bases frágeis. Trata-se, portanto, de fundar uma teoria unificada da psique. O pluralismo teórico e metodológico pouco ajuda; apesar disso, devemos ouvir as diferentes vertentes, pois todas têm um lado da verdade, que é o todo. Sem dialética, impossível uma ciência da psicologia.

Nosso objetivo, o objetivo da psicologia e do marxismo, nada mais é que tornar a vida humana, além da natureza, mais feliz, mais realizada – a humanização da humanidade. Por isso, separar o estudo da mente das questões gerais do destino humano é um erro enorme.  A vida deve ser vivida, não apenas sobrevivida. A felicidade relativa deve ser para agora, não para outro mundo. Se todos exigirmos uma vida que vale a pena, o sistema cai. Eis a verdade oculta.  A psicologia verdadeira é necessariamente anticapitalista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

GLOSSÁRIO

 

Parte 1

Aspectos de base

 

Natureza humana

Materialismo ou idealismo?

Subjetivação da objetividade

 

Parte 2

Psicologia e economia

 

Fixações históricas

Os movimentos da subjetividade na objetividade em crise

Curvas de desenvolvimento e superestrutura subjetiva

Dialética do inconsciente ao consciente

Declínio geral da psique

Apontamentos sobre psicologia n’o capital

 

Parte 3

Psicologia e estrutura

 

Classes e psicologia

Dialética do senhor e do escravo

Cinismo: teatro social

O mais-poder

Lei da população

 

Parte 4

Psicologia e superestrutura

 

A liberdade objetiva ou dialética

Desenvolvimento intelectivo

A arte

Propostas estéticas – dialeticismo

Vontade e razão

A informação

Líder e perfil organizativo

Crise, alma e posição social do cientista

A consciência socialista

Pós-modernismo de esquerda

Etapas da suprerestrutura subjetiva (ciência)

Tda

Linguagem

Ideologia

Conciência

O marxismo bárbaro

O ódio político

Método empírico-dedutivo

Luta política, luta de classes

Aspectos do maxismo

Marxismos

Fé e razão

Semideuses modernos

Sentimento de guerra

Psicologia da guerra

Sentimento de decadênica de sua espécie

Essência ou existência?

Hábito democrático no socialismo

A decadência da democracia dos ricos

A psicologia do fascismo

Teses para uma ética marxista

Teleologia objetiva

Identidade e unidade de sujeito e objeto

Relação

Desejos opostos

Afetividade: intensivo e extensivo

Angústia

Fenômenos comuns

 

Parte 5

Esboço para a crítica das categorias da psicanálise

 

Sonhos, empirismo e dialética

Pulsões de vida e de morte

Complexo de cronos

Energia – princípios do prazer e da realidade

Personalidade: defeitos e qualidades

O inconsciente organizado

Personalidade e perfil físico

Teoria do sincronismo

Nomes e personalidade

Pecados e personalidades

Inconsciente e mente

A tríade de perfis psicológicos

Falar-pensar – agir-comportar-se

Transtorno opositor persistente

Repressão familiar

A teoria unificada do desenvolvimento

Clínica – social e pessoal

Complexo de caim – leis e essência humana

Assimilação por afastamento

O lugar destas ideias

Psicologia marxista

 

Parte 6

Dinâmicas

 

Crise da família monogâmica

Sobre a prática da educação

Teoria marxista da alienação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PARTE 1

ASPECTOS DE BASE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NATUREZA HUMANA

“Aqui, a liberdade não pode ser mais do que o fato de que o homem socializado, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, submetendo-o a seu controle coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego; que o façam com o mínimo emprego de forças possíveis e sob as condições mais dignas e em conformidade com sua natureza humana.”

(Marx, O Capital III, 2016, p. 1071)

 

Em O Capital I, Marx toma nota:

 

Aplicado ao homem, isso significa que, se quiséssemos julgar segundo o princípio da utilidade todas as ações, movimentos, relações etc. do homem, teríamos de nos ocupar primeiramente da natureza humana em geral e, em seguida, da natureza humana historicamente modificada em cada época. Bentham não tem tempo para essas inutilidades. (Marx, O capital I, 2013, p. 685)

 

O mouro faz uma crítica e aponta o procedimento metodológico. No entanto, os marxistas

 

1)         Confundem natureza humana com personalidade;

2)         Confundem natureza humana com moral;

3)         Enfim, confundem “natureza humana em geral” com “natureza humana historicamente modificada em cada época”.

 

O primeiro passo para avançarmos dar-se por meio da teoria marxista da alienação. Em resumo, alienação é

 

1)         Fragmentação do homem, seu afastamento de relações plenas com a comunidade;

2)         Domínio do homem sobre o homem, a coisificação do semelhante (machismo, classes sociais, homofobia, xenofobia etc.);

3)         Exclusão do homem de sua criatividade, capacidade singular da espécie, de imaginar e colocar em prática de modo ativo.

 

Ou seja:

 

1)         Separação do homem da sociedade a qual integra;

2)         Separação do homem dos iguais, dos outros homens;

3)         Separação do homem de si próprio.[1]

 

Em duas sentenças de Marx: a valorização do mundo das coisas em proporção à desvalorização do mundo dos homens; humanização das coisas e coisificação dos homens.

Dada a base, basta-nos rastrear a equação: se há alienação, há algo negado – algo alienado. Invertamos, deduzamos: seria qual a solução da alienação, o inverso?

 

1)         Integração dos homens;

2)         Relações mutualistas;

3)         Ser ativo.

 

Estamos diante da essência biossocial. E esta descoberta tem implicações sobre todas as ciências humanas, além da psicologia.

Qual, portanto, a origem da natureza humana? Dos primatas que desceram das árvores nas savanas[2] até o homo sapiens sapiens ocorreu um longuíssimo período de formação da nossa espécie por meio da seleção dos mais aptos à sobrevivência. Aqueles cujo perfil facilitava a prática do que hoje é essência humana adquiriam probabilidade maior de sobrevivência, perpetuavam-se[3]. Por isso, por história da humanidade devemos considerar, também, a história da formação da nossa própria espécie, isto é, a importância da biologia na formação do pensamento marxista. Resolvemos, então, a oposição sobre se a essência é histórica ou natural. Assim, superamos o falso “historicismo” e a tese pós-moderna de que tudo é – limita-se à – construção social[4]. É a formação do homem como formação do próprio homem, do orgânico ao social[5].

Em elaboração geral, a alienação ocorre quando o mundo gerado pelo homem ganha autonomia frente a este e volta-se contra ele – a criatura passa a dominar o criador. É preciso, pois, ver a alienação como um fenômeno subjetivo, objetivo e intersubjetivo, assim como a natureza humana – interno e externo ao indivíduo. Tem sua existência na totalidade social e na psique. Destacamos aqui a psicologia por ser esta a questão que esta ciência faltou resolver, a natureza humana, seja por ideologia ou por pouco interesse pela filosofia marxista na ciência oficial.

No entanto, curioso o espanto causado por esta exposição entre marxistas. Ficamos diante das observações: se a natureza é apenas histórica no sentido dos modos de produção, o homem é de fato adaptável – logo a alienação social não explicaria a onda de depressão e suicídio? Se explica, há algo de fato negado. Se o homem é, em essência, apenas o determinado pelo modo de produção, adaptar-se-ia às condições dadas sem maiores prejuízos, senão físicos, pelo menos psíquicos. Por isso, uma resposta própria do marxismo percebe contradição entre natureza humana historicamente modificada em cada época e natureza humana em geral. Entre as tarefas dos homens e mulheres no e rumo ao socialismo será resolver este problema objetivo.[6]

Mário Bunge, o menos limitado dos filósofos oficiais da atualidade, socialista utópico que nada compreendeu do método de Marx, assim expressa, de modo correto:

 

Estamos vivendo a década do cérebro. Avança-se bastante, mas também ignora-se bastante. Não sabemos exatamente quais são as partes do cérebro conscientes de si mesmas; mas acaba-se de descobrir que dar traz muito mais prazer que receber, e que é o mesmo tipo de prazer que sentimos ao comer algo saboroso. Descobriu-se também, que a desigualdade é muito mais nociva que a pobreza. A desigualdade causa stress e este, por sua vez, acarreta em uma superprodução de substâncias nocivas que destroem o cérebro. Nos países mais igualitários, as pessoas são mais longevas. Os costarriquenhos e os cubanos vivem muito mais que os norte-americanos. Ganham muitíssimo menos, são muito mais pobres, mas vivem mais porque são mais igualitários. (Bunge, 2014)

 

Complementamos que, socialmente, o altruísmo, não significando necessariamente desprazer, pode ter na outra ponta da relação um impulso egoísta de quem recebe a ação. Por isso mais correto é o estabelecimento do mutualismo, que supera os opostos, como expressão categorial da essência humana[7].

Vejamos o que diz Mèszáros:

 

Termos como malevolência, egoísmo, maldade etc. Não podem existir sozinhos, ou seja, sem a contrapartida positiva. Mas isso também se aplica aos termos positivos desses pares opostos. Desse modo, não importa qual o lado adotado por um determinado filósofo moral em sua definição de natureza humana como inerentemente egoísta ou maldosa, ou altruísta e bondosa: ele acabará necessariamente com um sistema totalmente dualista de filosofia. Não se pode evitar isso sem negar que ambos os lados desses opostos são inerentes à própria natureza humana. (Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 151)

 

Ele Critica o kantismo, porém continua preso à dialética kantista. Deve-se ver a unidade superante dos opostos, além do desenvolver lógico e histórico das categorias. O nem positivo nem negativo passa para o positivo e negativo, que são superados em um novo nem negativo nem positivo. Assim, a negação prática da natureza humana levou a formar uma oposição entre egoísmo e altruísmo, superada – suprassumida – pelo mutualismo.

Se o caráter comunitário, por exemplo, é natural entre nossos primos evolutivos, ele salta de natural para social na espécie humana. Tal mudança qualitativa de natureza é incompreendida. O aspecto natural da espécie não é destruída mas suprassumida numa nova natureza, a natureza humana[8]. É mais do que o comunitário natural, sendo elevado, mais dinâmico e complexo, ao social por meio do trabalho.

Se abstraímos as origens físicas, parte significativa das doenças mentais possui origem na alienação, ou melhor, na não satisfação da natureza humana. A solidão excessiva, por exemplo, degenera e pode acarretar problemas como a paranoia, que expressa a necessidade de interação. Essa observação simples demonstra a inerência de certas características. Viver agrupado é mais do que uma vantagem evolutiva externa, pois está instalada no aparelho psíquico como necessidade, como exigência a ser satisfeita. O trabalho alienado, repetitivo e vazio de sentido, negação do caráter ativo do homem, é outro exemplo de insatisfação, que estressa o trabalhador.

A teoria unificada da psicologia é uma tarefa por se fazer, no entanto muitos marxistas recuam. Não contradição na relação entre as naturezas humanas geral e histórica é o que se pode concluir de modo equivocado. É tarefa socialista desenvolver, na medida em que sua base material amadurece, uma nova relação, ainda dinâmica, entre natureza humana e sociedade e entre natureza humana e a superestrutura subjetiva (moral, concepções, etc.)

À concepção neoliberal de natureza humana – individualista, concorrencial e otimizador de bens – opomos outra, esta sim assentada na mais avançada apreensão científica de nossa época, corroborada pelas descobertas da ciência[9]. A concepção burguesa, sempre requentada, corresponde à imposição do mundo das coisas sobre a psique, tem caráter empírico mas naturalizado, não histórico, incorrespondente, também, com a história da formação de nossa espécie. Trata-se de diferenciar o conjuntural do estrutural e de expor a contradição que daí deriva.

Por seu lado, o falso “historicismo” foi uma forma incompleta mas muito eficiente ao afirmar o homem, o caráter social da espécie. O enfrentamento contra o darwinismo social puxou a balança para o lado oposto. Agora devemos limpar caminho contra o determinismo genético por outro meio: considerando o natural, o social e o “um no outro” entre os humanos. As condições históricas, científicas e ideológicas permitem o avanço. Supera-se a unilateralidade da observação focada exclusivamente num ou noutro polo, sendo o polo determinante o social.

Apoiados na categoria trabalho como categoria fundante do homem, podemos enfim superar a obra de Freud, que tem resistido bem até aqui às duras críticas e elaborações alternativas. A psicanálise, por não ter uma concepção própria de natureza humana, acaba cedendo à visão oficial, o homem enquanto lobo do homem. Todas as versões críticas anteriores sucumbiram e tomaram posição inferior no trato sobre a psique porque falharam onde também a concepção freudiana falhou. Não mais se trata de atualizar mas de ir além, suprassumir o legado psicanalista[10].

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Na consideração das características essenciais da psique humana, devemos tomar uma exceção: o psicopata. Desprovido de estrutura cerebral e mental para a empatia e as emoções, a personalidade psicopática arranja-se fora da natureza humana.

Seguindo o caminho frio do dinheiro e da luta de todos contra todos, os tipos psicopáticos tendem a estar em cargos de destaque: líderes religiosos, políticos, diretores de empresas. É o perfil que melhor acomoda-se às exigências subjetivas do capital. A luta de classes torna-se, em certa medida, contanto considerado sua natureza social, uma luta biológica.

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A consideração mais sábia sobre a felicidade humana afirma que ela é impossível, portanto devemos buscar, com todas as dificuldades inevitáveis, uma vida que valha a pena. Tentar ser feliz, portanto, aparece como mera ingenuidade.

Neste nível do considerar, separemos alegria, um estado momentâneo de emoção, da felicidade, uma condição material. Este último é a palavra mais próxima antônima de alienação. Esta expressão, em oposição àquela, existe porque é necessário falar de um estado de coisas tão presente, enquanto falta nome melhor para o seu inverso, já que é escasso.

Ter uma vida feliz é ser feliz em determinadas condições. O grande tema do marxismo é a felicidade e todos os meios são pensados, pelo ponto de vista revolucionário, para nos aproximarmos de tal fim.

O mundo contemporâneo busca ser feliz por meio da teologia da prosperidade, da autoajuda, do esforço sobre-humano, etc. Vivemos uma época de coisas ricas e abundantes em si próprias, quase como se a felicidade pudesse ser e não ser tocada. A possibilidade latente de uma vida plena, ainda exigente de esforço e disciplina, sentida pela intuição geral, revela-se de fato como apenas em latência.

Lembremos que a alienação, cujo oposto combina as palavras felicidade e liberdade, não é, em primeiro, um fenômeno psicológico. Um burguês é feliz com sua alienação, pois está no polo positivo, vencedor. Por outro lado, se sua condição de vida deixa de satisfazer a natureza humana, pode até mesmo viver em depressão e depender de remédios psiquiátricos.

Podemos determinar neste subcapítulo uma previsão e uma exigência: a plena integração das coisas ocorrerá a partir, somente se, da plena integração dos homens – entre eles e consigo próprios[11]. Dito de outro modo, a fusão futura da arte e da vida idealizada por Nietzsche encontra uma versão realista no socialismo. A humanização do homem, sua emancipação, sua saída da pré-história, se dá por um longo processo de desumanização, por meio da alienação, por meio do inverso.

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Pode-se argumentar que a natureza humana é dada pelas condições materiais existentes. Ora, o cérebro humano é uma “condição material existente” e tem suas exigências de satisfação. Muitos marxistas, ao considerarem apenas a natureza conjuntural, tomam a essência do homem em uma sociedade como sua própria visão ideológica – no bom e no mau sentido – que a mesma sociedade tem de si. Assim, a essência humana seria de homem senhor de escravo no escravismo segundo a posição de seus filósofos, de um pecador no feudalismo de acordo com os pensadores teólogos e de egoísta no capitalismo como afirmam seus sérios ideólogos. A essência humana conjuntural confunde-se com o julgamento que os homens fazem de si. Para alcançar uma posição superior, uma pequena dose de biologia na produção teórica é necessária e pode manter-se, como vemos, dentro dos limites do ortodoxismo. O homem é um ser social, mas ainda um animal; tem em si aspectos sociais, naturais, sócionaturais e naturais socialmente modificadas[12].

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A revolução socialista seria a realização e uma imposição da essência humana? Uma situação revolucionária surge quando as condições sociais de existência faltam ser atendidas e quando as necessidades humanas (também socialmente criadas e desenvolvidas) precisam e carecem de ser satisfeitas. É claro que a contradição entre natureza humana e os sistemas de dominação classista tem sua importância e são resolvidas pelo socialismo, mas a realidade material pesa mais e é mais ampla.

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Para esgotar os argumentos contra a descoberta de uma essência ou natureza humana em geral, dedicamo-nos a mais um aspecto. Alguns camaradas tratam o tema defendendo que Marx parte da concepção de que não há natureza humana natural, e haveria apenas essência histórica como ponto de partida de seus estudos. Isso é um erro, pois partir de um postulado qualquer, como afirmar que a essência humana responde apenas aos modos de produção, trata-se do método de investigação dedutivo, não do método dialético, que é o de Marx. Uma concepção deve ser um resultado da investigação científica, não seu ponto de partida. No mais, abrimos este capítulo com duas citações de Marx que sugerem claramente uma concepção diferente de natureza humana. Dito de outro modo: uma “premissa”, se escolhêssemos este caminho metodológico, deve ser abandonada sem rodeios assim que a pesquisa exigir outro resultado, outra conclusão. Do contrário, tratar-se-ia de um dogmatismo quase religioso, que despreza o real (assim como os avanços da ciência). O marxismo nunca parte de concepções arbitrárias para entender o mundo; seu ponto de partida é a empiria, o factual. Se há ou não uma essência humana “natural”, sendo também histórica ao seu modo como demonstramos, deve ser um resultado, não um começo.

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Esta nova concepção marxista de essência ou natureza humana explica, supera e suprassume as concepções anteriores. Vejamos dois casos destacados na história da filosofia. Aristóteles afirmou que o homem é um animal político, da pólis, da comunidade – expressando o ser integrado, indiretamente o ser mutualista; afirmou ainda que o homem é um animal racional – expressando o ser ativo, embora do ponto de vista escravocrata, do trabalho intelectual. Hobbes afirmou do homem a competição, a desconfiança e a glória – exatamente ligados, embora por negação, com a integração, o mutualismo e o ativismo. Marx e Engels demonstraram que o homem só pode ser individualista e egoísta em sociedade, ou seja, de algum modo integrado. Todas as concepções rementem, mesmo que de modo negativo, incluso a concepção neoliberal antes citada, à essência humana em geral, ainda que exija trabalho filosófico-científico para perceber o lastro. Na revolução francesa, tivemos a bandeira da liberdade (ser ativo), igualdade (ser integrado, ser mutualista) e fraternidade (ser integrado, ser mutualista) como instinto revolucionário daquilo que é essencial em nossa natureza. Feuerbach filosofou que Deus é expressão da essência humana alienada; se tomamos a filosofia cristã, o Deus-pai criador é alienação o ser ativo, o filho expressa o ser mutualista e o espírito santo expressa o ser integrado. Hegel demonstrou que no começo da história, no primitivismo e no mundo antigo, a sociedade (ser integrado) é tudo e o indivíduo (ser ativo) é nada; por transição na Idade Média, o mundo moderno fundou a concepção de que o indivíduo (ser ativo) é tudo e a sociedade (ser integrado) é nada; segundo ele, chegaríamos, ainda sob o capitalismo, à concepção de que a afirmação e o desenvolvimento do indivíduo são, também, a afirmação e desenvolvimento da sociedade, e vice-versa, sem mais tal oposição, em progressão mútua – seu projeto teve de ser adiado para realização socialista, onde a afirmação e desenvolvimento de ambos realizará a natureza de nossa espécie (com o mutualismo enquanto unidade de ser integrado e ser ativo, etc.). O comunismo é a afirmação completa do indivíduo, não sua negação, como indivíduo que só é todo seu potencial em plena comunidade plena.

Em Hegel, no campo da Lógica, vemos que o individualismo é a negação do indivíduo:

 

A autossubsistência, levada ao extremo do uno que é para si, é a autossubsistência abstrata e formal que destrói a si mesma, o erro supremo e mais obstinado que se toma pela verdade suprema, - que aparece em formas mais concretas como liberdade abstrata, como Eu puro e, então, ulteriormente, como o mal. É a liberdade que assim se equivoca ao pôr sua essência nessa abstração e, neste ser junto de si, gaba-se de alcançar-se em sua pureza. Esta autossubsistência é, de maneira mais determinada, o erro de considerar o que é sua própria essência como negativo e de comportar-se frente a isso de modo negativo. Ela é, assim, o comportamento negativo frente a si mesmo que, na medida em que ele quer alcançar o seu próprio ser, destrói o mesmo, e esse atuar é apenas a manifestação da nulidade desse atuar. A reconciliação é o reconhecimento daquilo, contra o que o comportamento negativo se dirige, antes, como sua essência e [a reconciliação] é apenas como desistir da negatividade do seu ser para si, ao invés de manter-se firme nele. (Hegel G. W., 2016, p. 179)

 

O ser mutualista e o ser ativo preservam o para si, suprassumindo-o. O individualismo exacerbado neoliberal é, assim, de certa forma, um ato de transformar, apenas idealmente, necessidade ou condição em virtude.

Em Heiddegger, o ser-para-mundo, o impulso para além de si do homem (o ser aí), com o cuidado dos utensílios, com os quais interage, influenciando-se mutuamente, é uma versão inferior e parcial do ser ativo. O ser-para-outro corresponde, embora de modo deficitário, quase unilateral, ao ser mutualista e, indiretamente, ao ser integrado. O ser-para-a-morte, reconhecer a própria finitude, então fazendo a vida valer a pena, leva ao correspondente ao ser ativo.

Sartre, com seu existencialismo, expressando a classe média no auge do capitalismo europeu, defendeu que o inferno são os outros. Isso apenas se sustenta na escassez, na luta de todos contra todos – mas nada somos sem outro humano. Ele afirma o ser ativo, negando o ser integrado e o ser mutualista. É unilateral, portanto.  

O ser integrado expressa a essência humana no geral, no universal; o ser mutualista expressa a essência humana no particular; o ser ativo expressa a essência humana no individual, no singular. Também: o ser integrado liga-se ao objetivo; o ser mutualista liga-se ao intersubjetivo; o ser ativo liga-se ao subjetivo.

Se o capital é, como dizem os marxistas modernos, antissocial intrinsecamente; cumpre notar que ele produz uma essência humana histórica também antissocial ou destrutiva, contra a essência humana em geral.

 

MATERIALISMO OU IDEALISMO?

Grosso modo, o idealismo é afirmar que a ideia e seu desenvolvimento faz a realidade enquanto o materialismo, oposto, afirma que a realidade, a matéria, faz o pensamento. Marx adota a segunda posição, às vezes de modo muito intenso. Mas o mais correto é dizer: o marxismo é a fusão de idealismo e de materialismo num terceiro, o terceiro excluído incluído. É verdade que a matéria faz, primeiro, a ideia, mas, sendo a ideia uma forma toda especial e mui complexa de matéria, ela tem uma autonomia parcial, relativa, além de ser trabalho, de ser produtiva (cérebro) – a ideia, a idealidade, também afeta o mundo, em principal o social. O polo determinante dessa unidade é o materialismo, mas não de modo mecânico, unicausal, sem mediações (ele se medeia, no externo, consigo mesmo como se com outro, outro de si). Por isso fazemos de fato nossa história, pessoal e social, mas sob dadas condições materiais. O marxismo supera a oposição unilateral entre materialismo e idealismo, conclui a história da filosofia.

Vale uma construção lógica. Na lógica aristotélica, A = x ou não-x, sem terceira resposta, sem um terceiro, que é excluído – ou materialismo ou idealismo. Na velha dialética, existe a verdade exato nesse terceiro, que passa a ser incluído. Mas o terceiro costuma não ser nomeado, “entre” o relativo e o absoluto, podemos apenas aproximar com o relativamente relativo; “entre” o materialismo e o idealismo não há, também, nomeação. Na nova dialética, mantendo em pé a velha, x vai até não-x em “A”. Assim, o materialismo em autodesenvolvimento constrói o ideal, o idealismo, sem deixar de ser o “material” o verdadeiro motor primeiro e o centro, a verdade. Esse caminho do materialismo para o idealismo relativo é o caminho da sociabilidade cega existente até a sociabilidade organizada e planejada, central e democraticamente, no socialismo, quando a ideia fazer a matéria ganhará mais peso, ainda subordinado ao polo oposto unilateral, o materialismo. O terceiro, que supera o materialismo e o idealismo, desenvolve-se, dinamiza-se. O idealismo (abstrato) é o materialismo (concreto) em autodesenvolvimento (processo).

Eis nossas conclusões, um novo marxismo. Mas precisamos limpar o terreno para ganhar outros marxistas para nossa concepção. O velho Marx, d’O Capital, adotou o materialismo “duro e rígido”. Após elogiar muito um dos seus críticos, ele cita um comentário à sua obra, que diz:

 

Para tanto, é plenamente suficiente que ele demonstre, juntamente com a necessidade da ordem atual, a necessidade de outra ordem, para a qual a primeira tem INEVITALVELMENTE de transitar, sendo ABSOLUTAMENTE INDIFERENTE se os homens acreditam nisso ou não, se têm consciência disso ou não. (…) Se o elemento CONSCIENTE desempenha um papel tão subalterno na história da civilização, é evidente que a crítica que tem por objeto a própria civilização está impossibilitada, mais do que qualquer outra, de ter como fundamento uma forma ou resultado qualquer da consciência. (Marx, O capital I, 2013, p. 89)

 

Segundo o próprio Marx, o comentador foi preciso, exato:

 

Ao descrever de modo tão acertado meu verdadeiro método, bem como a aplicação pessoal que faço deste último, que outra coisa fez o autor senão descrever o método dialético? (Idem, p. 90)

 

O trecho tem outros pontos semelhantes ao exposto. Ademais, para Marx, a vontade do capitalista não é a vontade dele próprio, mas do capital impessoal, que se expressa no indivíduo.

O jovem Marx, em textos não publicados em especial, ao menos esboçou nossa concepção. A posição materialista unilateral é substancialista; a idealista, relacionalista. Em outro capítulo, demonstraremos que Marx pendula entre a concepção de substância e de relação, apesar de sua revolução teórica-metodológica e resolver várias oposições entre esses dois pontos de partida.

A velha geração marxista afirma que tentar antecipar aspectos gerais do socialismo, mesmo durante o ocaso maduro do atual sistema, trata-se de idealismo… Mas o ideal importa, a arte marxista é, também, prever, uma historiografia do futuro possível a partir das bases materiais presentes.

O materialismo focou no aspecto animal do homem; o idealismo, na sua diferença para com os demais seres (Levins & Lewontin, 2015). A verdade supera os opostos.

A própria realidade quebra-se em materialismo e idealismo. Materialismo – trabalho manual; idealismo – trabalho espiritual, intelectual. Como a verdade é o todo, a realidade supera e abarca ambos.

A verdade supera e funde o materialismo subjetivo e o idealismo objetivo.

 

SUBJETIVAÇÃO DA OBJETIVIDADE

No idealismo objetivo de Hegel, enquanto materialismo de cabeça para baixo, já fica claro, ao marxismo, a objetivação da subjetividade (pensa-se o projeto de fundar um sindicato, e funda-o). A relação é, ademais, retroativa: há, também, a subjetivação da objetividade. É famosa na internet uma lição de moral: os mais velhos têm um casamento longo, duradouro – mas por quê? Porque, dizem, na época deles, se algo quebrava, eles não jogavam este ao lixo, mas o consertavam, o reconstruíam. Isso transborda inocência e romantismo, porém há uma verdade importante aí: nós nos relacionamos pessoalmente com as coisas. Nossa psique nunca separa por uma parede fixa nossa relação com pessoas, animais e coisas. Marx diz que o homem tem a coisa, no entanto, por outro lado, a coisa passa a ter o homem. É como se os objetos tivessem, embora não o tenham, uma “personalidade objetiva”. Heiddegger trata, na relação recíproca, os objetos como utensílios, que têm utilidade para nós enquanto, por outro lado, nós os preservamos. Logo nossa relação atual com as coisas, com os objetos, afeta nossa subjetividade de fato, como intui o senso comum, embora sem conseguir reconhecer sua formulação (apenas na área da psicologia cabe o platonismo “saber, mas sem saber que o sabe”). Faz parte do declínio geral da psique, por exemplo, a descartabilidade e a alta perecibilidade das coisas enquanto mercadorias – afeta-nos. A forma como leio um livro, como me relaciono para com ele na dedicação de lê-lo, é semelhante ao meu comportamento com as demais pessoas. Um apartamento pequeno e sem varanda constrange a mente humana. Quando Bauman diz do mundo líquido, na verdade plasmático, diz, no fundo, isso. Tudo que era sólido desmanchou-se no ar – mesmo.

Vale um destaque. O objeto central deste modo de vida, o dinheiro, passa pela alta desmaterialização, é virtual, o que reduz a capacidade de medida concreta pela razão humana, um desmedido, embora esta não seja a causa central do alto endividamento.

Embora erre muito, Marcel Mauss acerta, em sua crítica a Marx, quando afirma o papel das coisas na vida humana. As coisas são o meio necessário da relação do homem com o homem, não apenas na forma de alienação, mesmo se coisas ideais como projetos comuns. A cerveja, por exemplo, é um lubrificante social que unifica os indivíduos (que o meio se torne fim é uma degeneração da relação).

O desenvolvimento da criança deriva da interação com o meio coisal, com o meio social e por avanços físicos e biológicos – os psicólogos erram quando focam em apenas um desses aspectos. Vários pensadores idealistas, muito antes da ideia de virtual ou de matrix, duvidaram se a realidade é, de fato, real ou uma ilusão. O que levou, no fundo, a tal pensamento? Bem; pessoas que têm baixíssima relação prática com o mundo, como em casos de severa depressão imobilizadora, tendem a duvidar da existência como algo existente de fato. Um estilo de vida pouco “fazedor” ou com pouco movimento, com pouca ação, produz na mente uma, por assim dizer, distância, que faz duvidar do estatuto da realidade. Por isso Platão, um escravocrata longe do trabalho manual, pensou o mundo das ideias e alegoria da caverna. Por isso Descartes pensou que o mundo poderia ser a criação ilusória de um demônio. A divisão de classes, em que um setor é pouco prático, é a base do idealismo, como o marxismo sabe.

Vale relatos comuns. Cientistas programadores pararam de programar, nos casos que conheci, porque perceberam que estavam pensando segundo a maneira da programação. Tive muitas das conclusões deste livro ao lavar louças, pois limpar o material com as mãos ajuda a limpar os pensamentos. O modo como interagimos e trabalhamos afeta decididamente nosso modo de pensar.

 

 

 

 

PARTE 2

Psicologia e economia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FIXAÇÕES HISTÓRICAS

Podemos inferir a cada época da humanidade sob regime de classes pelo menos uma grande fixação coletiva.

A grande tara social na época escravista parece ter sido a guerra, o tema dos poetas. O escravismo necessitava do conflito militar constante para conseguir escravos, terras e domínio sobre outras civilizações. Observou Maquiavel:

 

E embora depois esse império [Roma], por causa da invasão dos bárbaros, se dividissem em várias partes, essa virtú não renasceu; uma, porque se pena um bocado para recuperar as ordenações quando estão corrompidas; outra, porque o modo de viver de hoje, no tocante à religião cristã, não impõe a necessidade de defender-se que havia antigamente; então, os homens vencidos na guerra ou eram assassinados ou permaneciam em perpétua escravidão, em que se levava uma vida miserável; as terras vencidas ou eram devastadas ou despovoadas; seus habitantes eram destituídos de seus bens, dispersavam-se pelo mundo afora, de modo que os sobreviventes de guerra padeciam todo tipo de miséria. Apavorados por isso, os homens tinham em alto grau os exercícios militares e celebrava-se quem era excelente neles. Mas hoje esse temor em grande parte se perdeu; dos vencidos, poucos são mortos; ninguém fica muito tempo preso, porque com facilidade são libertados. As cidades, ainda que se rebelem mil vezes, não são arrasadas; os homens são deixados com seus bens, de forma que o maior mal que se pode temer são as taxas; de tal sorte que ninguém quer submeter-se às ordenações militares e esforçar-se nisso para escapar dos perigos os quais temem pouco. (Maquiavel, 2013, pp. 90, 91)

 

Daí que Heráclito diga, fundando a dialética instintiva: "o conflito é o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos; de alguns, homens livres." (Pré-socráticos, 1996).

Os jogos olímpicos gregos e as arenas romanas também expressavam tal fator cultural de origem na objetividade do modo de vida daquela época.

A grande fixação feudal foi para com a questão religiosa e a negação do corpo. Era necessário justificar o subconsumo dos servos na subprodução daquele modo de produzir e as hierarquias classistas por meio da religião e seus pecados – gula, luxúria, preguiça, etc. Era uma ideologia útil ao feudalismo, à manutenção do sistema feudal.

O dinheiro é tema, guia de ação e pensamento quase constantes no cotidiano sob o capital. Parecerá doença de fixação monotemática visto por um povo não mercantil futuro. A loucura de sua lógica, que toma a forma de um vício, pode ser bem visualizada quando vista de fora, quando o mundo do mercado era minoritário e paralelo nas sociedades:

 

“Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína. Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores. Mas tu, ó homem de Deus, foge destas coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a paciência, a mansidão.” (1 Timóteo 6:9-11.)

 

E:

 

“Nunca entre os homens floresceu uma invenção/ pior que o ouro; até cidades ele arrasa,/ afasta os homens de seus lares, arrebata/ e impele almas honestas ao aviltamento, à impiedade em tudo”, Sófocles, Antigone [ed. bras.: “Antígona”, em A trilogia tebana, trad. Mario da Gama Kury, 9. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, versos 344-50] (Marx, O capital I, 2013, p. 206, nota 92)

 

Como reagirá as atuais gerações quando seus padrões de pensamento obsessivo deixarem de encontrar a base de origem? Soa inimaginável ao cidadão comum afirmar que o dinheiro será extinto ou, ao menos, marginal na economia do futuro possível. Ter é condição necessária de ser, de desenvolver as possibilidades deste. Há, nos sistemas classistas, uma contradição ao o ter ser negação do pleno e saudável desenvolvimento do ser. Sob o capital, ter é ter o dinheiro – mas é o dinheiro, o próprio capital, o valor como regulador social, que tem seu portador, mera encarnação de um almático poder estranho, inumano. Ter ou não ter – eis a questão! Por isso, sentimo-nos “naturalmente” mal, desconfortáveis, quando temos de entregar nosso dinheiro, mesmo se em troca de algo de nosso desejo ou necessidade. De repente, ao vermos uma quantidade enorme e concentrada de dinheiro, imediatamente arregalamos os olhos impressionados como os insetos amam a luz artificial noturna.

 

OS MOVIMENTOS DA SUBJETIVIDADE NA OBJETIVIDADE EM CRISE

Quando todas as condições objetivas de uma situação revolucionária estão maduras – crise econômica, classe trabalhadora radicalizada, classe média à esquerda, burguesia dividida, Estado paralisado, forte partido revolucionário – ocorre que a subjetividade ganha máxima importância histórica. Até mesmo a subjetividade do indivíduo, como a do líder, adquire peso central no destino da sociedade. Quando da crise sistêmica do escravismo romano, as pequenas e individuais manipulações políticas, manobras, jogos pessoais, etc. tomaram alto relevo naquela vida social decadente (parte da crise do Estado burguês, isso se repete hoje). Em partidos políticos em dura crise interna, a psicologia individual ganha máxima importância, multiplicando-se a questão da subjetividade por causa da paralisia estrutural da objetividade partidária. Tais exemplos visam deixar claro um fenômeno da crise sistêmica do capitalismo, a subjetividade na economia. Os jornais destacam que “os mercados ficaram nervosos”, o “humor dos mercados”, como se alguma entidade inumana e emocional. O peso da subjetividade no fluxo dos capitais, a reação aos fatos, e seus efeitos práticos, após a liberalização financeira como reação contra a decadência econômica, torna-se típico de nossa época porque a base sócio-econômica amadureceu para sua crise, seu ocaso.

 

CURVAS DE DESENVOLVIMENTO E SUPERESTRUTURA SUBJETIVA

O capitalismo tem uma crise nova mais ou menos de dez em dez anos, um pouco mais ou um pouco menos. Isso faz como que a cada crise, mas com certo atraso, grupos, bandas musicais, famílias também entrem em crise – além das crises totalmente no alto, nas nuvens, independentes da base econômica. Pois bem; há ainda grandes ciclos: décadas de grande crescimentos e fracas crises – décadas de duras crises e fracos crescimentos – entre eles, entre os extremos, décadas de crises mais duras, mas ainda com algum crescimento, estagnação. Essa teoria é de Trotsky, curva de desenvolvimento do capitalismo, por mim atualizada em outro livro. Vejamos em imagem metafórica:

 



 

Grosso modo, na nossa era, assim:

 


 


 

Na fase de alto crescimento do capital, de 1945 à década de 1970, o otimismo imperou com seu existencialismo, com seu “marxismo” reformista, com suas revoluções parciais vitoriosas, com a bossa-nova (feita para a ascensão da classe média), com vanguardas artísticas longe mal-estar e da depressão. Mas tudo é transitório. A partir da década de 1970, vem a crise – vêm as crises – e, com ela, o pessimismo, o marasmo, a falência das antigas vanguardas, a literatura e o cinema distópicos, a crise do socialismo real, a crise moral, a crise dos partidos de esquerda, enfim, a filosofia e a realidade pós-modernas. O sentimento é o marasmo, o tédio como angústia – ainda não há saída. Veja-se que a base econômica, e social, mudando, mudam-se as filosofias e os humores, até as superestruturas objetivas. Com a crise aprofundada desde 2008, a depressão aprofundar-se-á, novas artes e filosofias pessimistas surgirão; porém uma revolução socialista, que é típico desta época, do declínio da curva de desenvolvimento do capitalismo, pode encher de otimismo – mesmo que momentaneamente, e com resultados duradouros – a classe trabalhadora, os artistas, parte dos filósofos, as organizações subversivas, etc.

 

DIALÉTICA DO INCONSCIENTE AO CONSCIENTE

Em outro capítulo e ensaio, debateremos nossa nova dialética; por enquanto, por aqui, desenvolvemos apenas os opostos inconsciente e consciente. Vejamos:

 

1.      A ciência focou, de início, no “como”, não no “o porquê” durante o capitalismo – a cientificidade socialista mudará isso.

2.      Uma das condições para o socialismo é termos consciência de algo ainda inconsciente, de que somos “uma forma de o cosmos conhecer a si mesmo”. Algo feito após a revolução, mas cujas condições se dão no capitalismo – hoje, sabemos muito da história e natureza do mundo, uma das “regras” para sermos capazes de revolucionar a sociedade.

3.      A psique vai do inconsciente ao desenvolvimento da consciência, sua inflação.

4.      A biologia produz, por tentativa e erro, seres cada vez mais conscientes.

5.      A revolução socialista é os trabalhadores tomando consciência, elevando-a, tomando a história, que antes acontecia como se pelas suas costas, em suas mãos, com planejamento.

6.      O inorgânico inconsciente vai-se para a biologia com consciência.

7.      As regras da língua avançam do inconsciente para o consciente formal.

8.      Marx afirma que, porque surgiu a troca com suas regras inerentes, depois veio a sua parte jurídica, a lei. Hegel diz que uma lei, como condenar assassinato, surge porque os cidadãos já condenam, antes, o crime. A lei inconsciente torna-se consciente.

9.      Taxa de juros e dinheiro, que tinham origem inconsciente, tornam-se um tanto mais, de modo relativo, ação consciente, decidida, embora a objetividade inconsciente permaneça.

10.  A macrotendência da macro-história é o aumento da cognição humana.

11.   De modo relativo, em certa medida, as coisas que são frutos do homem desenvolvem-se do inconsciente para algum nível de consciência ou proto-consciência parcial dos robôs e da inteligência artificial.

 

O inconsciente permanece com e no consciente.

Marx deu a base para percebermos o “inconsciente social”, incluso como resultado de contradições. Vemos isso na famosa expressão “fazem, mas não sabem”. Marx afirma:

 

Na aplicação da maquinaria à produção de mais-valor reside, portanto, uma contradição imanente, já que dos dois fatores que compõe o mais-valor fornecido por um capital de dada grandeza, um deles, a taxa de mais-valor, aumenta somente na medida em que reduz o outro fator, o número de trabalhadores. Essa contradição imanente se manifesta assim que, com a generalização da maquinaria num ramo industrial, o valor da mercadoria produzida mecanicamente se converte no valor social que regula todas as mercadorias do mesmo tipo, e é essa contradição que, por sua vez, impele o capital, sem que tenha consciência disso, a prolongar mais intensamente a jornada de trabalho, a fim de compensar a diminuição do número proporcional dos trabalhadores explorados por meio do aumento não só do mais-valor relativo, mas também do absoluto. (Marx, O capital I, 2013, p. 589, destaques meus)

 

Marx completa citação com nota de rodapé 153:

 

A razão pela qual essa contradição imanente não se torna consciente para o capitalista individual – e, assim, tampouco para a economia política que se move no interior de sua concepções – será exposta nas primeiras seções do livro III.

 

Para o capitalista, ele aumenta o lucro simplesmente reduzindo o custa com o salário, diminuindo este. Mas, na verdade, está aumentando o mais-trabalho e o mais-valor, aumentando o trabalho gratuito, reduzindo o valor na formado e salário e o trabalho necessário. Do mesmo modo, ao promover a automação, o capitalista prepara o terreno para o socialismo, embora queira o oposto, o aumento do seu lucro.

O terceiro aspecto do inconsciente social já foi anunciado pelo marxismo, sem nomeá-lo. O filósofo, ou o artista, ou o cientista pode ser de fato original, genial, hipercriativo, autônomo e autêntico – mas ele será sempre fruto de sua época, de seu tempo, de sua realidade. Não existe ideia isolada e suspensa no ar. A realidade de uma época faz e permite as ideias, os sentimentos, o modo de sentir, a moral, as ideologias, as ciências de sua era. O modo como vivemos (a classe etc.) determina o modo como pensamos e sentimos – uma determinação não determinista, mas determinação que determina ainda assim. O hábito faz a maneira de pensar, por exemplo. O que passa na cabeça responde e corresponde ao que se passa no seu mundo, no seu contexto. Tal verdade apenas tornou-se consciente a partir de Marx. A materialidade determina a idealidade.

 

DECLÍNIO GERAL DA PSIQUE

É do conhecimento geral que a depressão – com comorbidades como a Síndrome de Burnout – tende a ser a principal causa de afastamento do trabalho no mundo. Tal processo está lastreado nas mudanças materiais da sociedade capitalista na história recente. Já que a cabeça segue o chão que os pés pisam, mesmo que em atraso, exige-se partir da realidade, do objetivo, como nos capítulos anteriores, ao subjetivo.

Com o capitalismo recente, encerrou-se a possibilidade de um destino mais ou menos seguro, estável para a maioria, como os anos dourados do pós-II Guerra. A desconfiança quanto ao futuro tem levado a inúmeras angústias, uma incisiva incerteza. A realidade parece que será pior amanhã do que é hoje, embora a força individual de otimismo.

 

GRÁFICO 24



Fonte: (Roberts M. , Policrise e depressão no século XXI, 2023)

 

Veja-se que o recorde, o salto do gráfico, combina com o salto da queda da taxa de lucro, do aumento constante da inflação, do peso das crises cada vez maior etc. O PIB, por exemplo, afeta a mentalidade. Não é sem propósito considerar que eventos como separações de casais (ao menos na classe média) tendem a aumentar após início de uma crise cíclica.

 As fontes de frustração aumentam e veem por diferentes vias. Nas empresas, a produtividade é a grande religião; o esforço repetitivo por horas, quase todos os dias, e a busca de atender pesadas metas levam ao esgotamento psíquico. Vejamos um famoso caso:

 

Um trabalhador da Foxconn Technology tentou se matar ontem, tornando-se a 13.ª pessoa neste ano a cometer suicídio ou a tentá-lo na companhia, que fabrica produtos de alta tecnologia para gigantes do setor como Apple, Dell e Hewlett-Packard, segundo a mídia estatal chinesa. Desse total, foram 10 mortes. (…) Os suicídios e tentativas anteriores nas operações da Foxconn Technology Group no sul da China envolveram trabalhadores que saltaram de edifícios. Dois sobreviveram. Outro trabalhador se matou em janeiro em uma fábrica no norte da China. (Foreman, 2010)

 

Para resolver este problema a empresa teve uma ideia genial:

 

Gou disse aos jornalistas que estavam sendo instaladas redes para evitar que mais pessoas pulem para a morte. As redes estão sendo colocadas ao redor de praticamente todos os dormitórios e prédios do imenso complexo, que, de acordo com o correspondente da BBC em Xangai, Chris Hogg, "é uma verdadeira cidade, com lojas, postos de correio, bancos e piscinas de tamanho olímpico". "Apesar de parecer uma medida estúpida, pelo menos pode salvar uma vida se mais alguém cair", afirmou o presidente da Foxconn. (Idem)

 

Para garantir a “imagem” da empresa:

 

Eles [ativistas que prepõe boicotes] afirmam que as jornadas de trabalho são longas, as linhas de montagem têm uma velocidade muito alta e os chefes aplicam uma disciplina militar para lidar com os trabalhadores.De acordo com jornais chineses, a companhia agora obrigou os funcionários a assinar acordos declarando que não vão se suicidar [um acordo, veja só! – comentário nosso]. A companhia ressalta que apesar da publicidade negativa, todos os dias cerca de 8 mil pessoas se candidatam para trabalhar na empresa. (Idem)

 

Faltou observar que ou procuram um emprego, com risco laboral de depressão psíquica, ou sofrerão de um tipo muito específico de depressão estomacal.

Como expressão da crise do valor, na medida em que cai a taxa de lucro aos baixíssimos patamares atuais, mais a patronal pressiona pela retirada de direitos, por uma maior submissão do trabalhador, por uma taxa de desemprego “natural” maior. A moral também deve se adaptar, pois, para correr em busca dos difíceis lucros, torna-se preciso a luta de todos contra todos, o individualismo exacerbado, o vale-tudo; tal concepção vai contra a natureza humana e causa suas sequelas mentais. No longo prazo, a falta de concepção cooperativa torna o trabalho insuportável já que uma oculta guerra civil surge nos locais de trabalho. Há uma crise moral-ética evidente.

A grande urbanidade trouxe consigo, na forma capitalista, a solidão social. Tal efeito de invisibilidade de um lado traz mais liberdade em potência, menor controle direto dos cidadãos, porém pode ter também efeito contrário ao obrigar o indivíduo a adaptar-se ao meio, a ser nada ou pouco autêntico, ou seja, a construir um “falso eu”, um eu adaptativo, para ser aceito. Para sobreviver, deve adaptar-se subjetivamente ao grupo, à empresa.

Nos EUA, ficaram famosos os casos em que indivíduos completamente normais, provavelmente portadores de normose (doença da normalidade), de repente lançaram tiros sobre alguma multidão antes de cometerem suicídio. Tais atos violentos são vazios de sentido, não possuem conteúdo, porque foram motivados por vidas vazias de um sentido qualquer.

No Japão, país simbólico da crise sistêmica em inúmeros sentidos, para dar mais um exemplo, a solidão excessiva, a depressão e o suicídio, junto com duríssimas jornadas, são profundas marcas sociais e, ao mesmo tempo, tabus gerais. O mundo das coisas integra-se e enfeita-se naquele país enquanto o mundo dos homens perde poesia e fragmenta-se.

Retomando a questão dos grupos sociais, a tendência da classe média aristocrática é isolar-se, tanto quanto pode sua renda, criar um paraíso artificial que é um inferno para a psique. Dunker expõe:

 

[…] gente pode entender o condomínio mais além da forma concreta de vida entre muros, como uma espécie de patologia das nossas relações com o outro e com o espaço social, no sentido de que os condomínios [físicos] proliferam no Brasil num momento em que o Estado se demite da função de organizar o espaço público. Ele entrega isso para iniciativas independentes que vão ter muita autonomia para definir quais são as regras e a maneira de habitar aquele espaço que não é mais exatamente público. É uma espécie de concessão. Do outro lado, a gente tem uma certa alteração desse modo de vida dentro do condomínio, na medida em que se força e se cria artificialmente uma vida entre iguais. É uma vida em que você desaprende a lidar com as diferenças. É um berçário para modos muito empobrecedores de estar com o outro, nos deixando vulneráveis ao consumo de álcool e drogas de forma superexagerada, à agressividade e à violência de uma forma disruptiva – como eu não sei lidar com a diferença, ela acaba sendo uma espécie de ofensa à minha existência. Fica-se vulnerável ao tédio, à apatia, ao excesso da relação com o trabalho, a uma espécie de hiperinflação da produtividade. Quando você cria essa vida em condomínio, a vida privada passa a ser um pouco mais gerida por regras do espaço público. Então, a gente tem os clássicos sintomas do sentimento de inautenticidade, do sentimento de esvaziamento, de que você está permanentemente representando uma espécie de papel. (Redação Outras Palavras, 2015)

 

Entre a camada superior dos ricos, os bilionários em destaque, os verdadeiros donos do mundo, destaca-se a perda de noção da realidade por razão do próprio modo de vida. A falta de tato social da classe dominante na época de sua decadência foi observada por Trotsky, na clássica obra A Revolução Russa, quanto à nobreza durante a revolução francesa e o Czar e a Czarina durante a revolução russa. A existência apartada da minoria dominante mostra a alienação como em si uma vantagem ao polo “aristocrático” das relações sociais. A prova de que o capital é incontrolável até para eles e os domina é que portadores de grandes fortunas preparam-se para o possível fim da civilização com caros abrigos especiais…

Há entre a maioria, incluso políticos (vide Trump), uma loucura relativa que expressa a loucura da existência atual. Parte dessa deformação psíquica não tira das pessoas seu lado funcional, podendo até torná-las muito eficientes do ponto de vista desta sociedade. Gente que foi capaz de bloquear boa parte do desenvolvimento de sua vida emocional em nome da sobrevivência é o exemplo comum.

Boa parte dos fatores que produzem o declínio da psique é fácil de extrair da realidade. Lukács, por exemplo, observou o desenvolvimento da manipulação das massas sob o capitalismo atual, uma forte influência sobre a subjetividade. De um lado, o capitalismo precisa vender constantemente a ideia de felicidade plena por via do máximo consumo, do acesso às mercadorias, etc. Por outro lado, o próprio capitalismo frustra as expectativas da maioria. Isso passa para uma armadilha interna ao sistema, pois os assalariados e setores médios querem conquistar a qualidade de vida mostrada nas propagandas por toda parte. Isso, a luta pelo acesso, motiva o revolucionamento total da sociedade.

Sabe-se da revolução como uma reação a problemas objetivos como o desemprego. O caldo tem alguns ingredientes adicionais: os protestos revolucionários costumam parecer uma grande festa, como diz Lenin, em seus inícios, uma catarse coletiva, irracional do ponto de vista burguês, porque enfrenta também uma situação desumanizante subjetivamente.

A mudança socialista do estilo de vida – menor jornada de trabalho, mais espaços de convivência, seguridade social, acesso aos produtos, etc. – tenderá a atuar contra as diferentes formas de alienação, que pesam sobre as mentalidades, ou seja, facilitará a realização da essência humana (ser integrado, ser mutualista e ser ativo) e oferecerá satisfatórias condições materiais.

A crise sistêmica do escravismo produziu, por razões socioeconômicas, o declínio da psique naquela sociedade, aprofundado pelo uso do chumbo (no vinho, nos encanamentos, etc. – quase cometemos esse erro sob o capital). O mesmo ocorreu na crise sistêmica do feudalismo, potencializado pela contradição das novas tendências com a necessidade de repressão religiosa (com efeitos como a “epidemia da dança” na Europa – a revolução freudiana em parte evita que repitamos hoje as mesmas causas). Sob o capital em crise, talvez existam outros fatores ocultos, em si – apenas em si – extrassociais e extraeconômicos, influenciando a crise subjetiva como, talvez, o efeito da mudança climática sobre os humores, a alimentação artificial, etc. Um filósofo vulgar dirá que nossa diferença essencial para com os outros seres vivos ocorre porque somos uma espécie capaz de suicídio, do indivíduo e da espécie… Na verdade, o pensamento oficial nega o fator sistêmico, histórico, da crise psicológica. Por exemplo. Para manter o gancho com o capítulo anterior e os demais; alguns teóricos afirmam que o mau humor e a tristeza, além da sensação de peso, derivam de átomos e moléculas no ar positivamente carregados enquanto o ambiente rural apresenta matérias negativamente carregadas, dando sensação de alívio e bem-estar. Mesmo que isso seja uma causa, dentre outras, importante, está subordinada à “causa única e comum das causas múltiplas”, dito em dialética diacrônica, ou seja, o modo de vida, a forma de urbanização atual etc. O ser social exige solução social.

 

APONTAMENTOS SOBRE PSICOLOGIA N’O CAPITAL

A grande obra de Marx de modo algum é economia pura – é ciência humana em sua totalidade. Em linguagem inferior, algo interdisciplinar. Quando necessário, ele comentou os aspectos psicológicos dos temas tratados.

Já no começo de seu livro, compara o fato de um rei precisar vestir-se como rei para ser tratado e reconhecido como tal. Isso é, porém, um simples comentário na margem.

Logo mais, Marx elabora sua famosa conclusão: o fazem, mas não o sabem. Nesta observação central, ele, de fato, funda a percepção de que há um inconsciente coletivo, social – não genético ou natural, diferente de como pensava Jung (diz de algo como natural é um modo como a pseudociência passa por verdadeira ciência, sem ter que provar). Por claro, tal inconsciente é, ao mesmo tempo, individual e por meio da ação do indivíduo. Algo socialmente objetivo, intersubjetivo e subjetivo.

Ao tratar da cooperação simples no final da Idade Média, Marx reafirma que o homem é animal social, logo trabalha mais e melhor se o fizer em conjunto com outros. O simples reunir de trabalhadores autônomos aumenta a produtividade.

Em outro ponto, ele afirma: no cotidiano, somente nos lembramos que a mercadoria é feita por meio do trabalho quando ela apresenta algum defeito, que nos remete à sua origem.

Outro fator está na população. Marx demonstra que cada modo de vida tem sua própria lei da população. Mas vai além: os trabalhadores que estão em péssimo estado têm mais filhos do que a média. Isso é o natural mediado pelo social, como ele próprio se refere à lei da alta reprodução em espécies de curta vida. Há, ainda, mais verdade aí. Vamos a um exemplo. A macieira é feita para climas temperados, onde produz novas maças; mas, se colocada em climas tropicais, abundantes em luz e nutrientes, ela não produz, não se reproduz, ela escolhe seu autodesenvolvimento. É preciso forçá-la por meio de estresse duro como cortar-lhe a água regular, podá-la etc. O mesmo ocorre entre nós: a pobreza, o estresse, produz filhos e, ao contrário, a qualidade de vida reduz a prole. Este fato natural é mediado pelo social capitalista, que gera importante desemprego. A psicologia histórico-social e a psicologia evolutiva estão aí fundidas. Para deixar isso claro, vamos para dois exemplos similares: 1) 9, 10 meses após o impactante ataque das Torres Gêmeas nos EUA, a natalidade explodiu naquele país; 2) quando ficou claro que haveria uma II Guerra Mundial, a quantidade de gravidez explodiu na Europa – na mente dos casais, há qualquer tipo de racionalização que justifique isso, mas com uma causa de fundo, em geral, inconsciente.

Marx demonstra que a realidade das coisas tal como são escondem suas origens. Por exemplo: o dinheiro inglês que financiou a indústria dos EUA tem sua origem no trabalho escravo de criança na Inglaterra, mas, no mesmo dinheiro transferido, tal origem está apagada.

Também notamos que os atores sociais, o proletariado e a burguesia em destaque, levam a sério a aparência da realidade, agem de acordo com ela. Não parece que o valor, fonte do lucro, vem do trabalho gratuito, logo do mais-valor; aparece para ambos que foi pago pelo trabalho feito, integralmente, não a força de trabalho. Vale exemplo específico sobre o poder da aparência. Durante a pandemia do coronavírus, participei de um grupo de leitura d’O Capital, mas, ao avançar da obra, muitos membros tinha dificuldade de “sentir” as conclusões da obra; para alegria e alívio deles, outro membro transformava o livro I, focado na produção, em exemplos do comércio, deste setor – como concentração e centralização, mas comercial; tal alívio dos membros é o prender-se na aparência e no comercial tão comum entre os economistas. Por isso, Marx vai mais fundo do que qualquer outro na produção, que está além ou por detrás do comércio.

No livro três, Marx já inicia afirmando que se aproximará da forma como os atores sociais veem a realidade. Nisso, ele avança para as categorias práticas, comuns, de aparência do real: preço, taxa de lucro, massa de lucro etc.

Como personagem, o capitalista é apenas um representante do capital, a vontade do capital torna-se a vontade do patrão. Ele encarna a vontade de um processo, do capital mesmo. Então, o homem não tem de fato vontade própria, sua vontade é imposta socialmente e de maneira alienada. Ao querer enriquecer mais, o investidor está sendo manipulado pelo mundo das coisas, por uma vontade ou pulsão alheia como sua. Trata-se de uma forma de subjetivação da objetividade. Pode-se especular, então: as personalidades e seus distúrbios estão lastreados no dinheiro, no valor como capital.

Enfim, Marx deixa bastante claro que a economia política clássica foi muito longe, mas não longe o bastante. Isso se dá pelo ponto de vista deles, ao lado da burguesia, que impedia objetivamente tais cientistas de alcançarem visões de fato profundas do atual sistema. A moderna ciência da mente reforça isso. Certo grau de estresse, ao menos sob o capitalismo, é necessário para a criatividade como a árvore dá flor e fruto quando se sente ameaçada. A vida dos militantes socialistas é sem rotina, com novidade constante, com desafios, com ameaças – por isso, também, o movimento comunista produziu tantos gênios.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PARTE 3

Psicologia e estrutura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CLASSES E PSICOLOGIA

Como o modo de viver determina o modo de pensar, cada classe tem tendências morais, de raciocínio, de valores etc. próprias, geras para seu grupo. Isso vem desde a infância. Uma pedagoga revelou-me que trabalhou em escola de rico e de pobre para crianças; na primeira, os infantes eram “desligados” e até o lanche deveria ser dado na boca deles; na segunda, as crianças faziam fila, tenham iniciativa, comiam de modo independente etc. A divisão de classes causa divisão de perfiz de metais.

Os trabalhadores são mais práticos e naturalmente disciplinados; os professores universitários, classe média, falam demais, são viciados em falar, pensam que falar é agir, e têm dificuldade de acordar muito cedo… No partido ao qual militei, havia grupos operários e de professores superiores, e tal padrão sempre se repetia, com exceções raras entre um ou outro indivíduo.

Porque se sacrificam pouco, porque pouco agem para conseguir algo, porque pouco se frustram, aos ricos tende-se a faltar empatia, são narcisistas, são sádicos. Quando fizermos as críticas às categorias da psicanálise, veremos melhor a razão disso. Além do mais, psicopatas tendem a estar de acordo com o capitalismo, sociedade psicopática, logo prosperam e têm grandes cargos.

Devemos falar, também, do lupemproletariado – vagabundos, ladrões, prostitutas, mendigos etc. Eles são acostumados ao estresse, mas indisciplinados. Além disso, são imediatistas, deixam de criar mediações para um prazer futuro maior, não agora. Sua condição aponta para o oportunismo, para a manobra, para o jogo. Por falta de prazer social, viciam-se no prazer químico. É, em geral, vítima da sociedade, mas um inimigo dos trabalhadores como com a violência urbana, arrancando destes o fruto difícil de seu trabalho.

 

DIALÉTICA DO SENHOR E DO ESCRAVO

Hegel afirma que o Senhor teve a coragem enquanto o escravo focou no medo da morte; assim, aquele generaliza o que este toma como concreto; aquele tem a consciência essencial, mas por mediação deste, com e como a inessencial. Tal formulação na Fenomenologia do Espírito não tem validade teórica ou empírica, apenas algo da história da filosofia supervalorizada. Talvez se torne útil enquanto metáfora. Nietzsche, o grande elitista, reformulou a imagem assim: o senhor vê mundo como bom ou ruim; já o limitado escravo julga tudo como bom ou mau. Neste livro, fazemos diferente de Lukács, que apenas nega e (des)qualifica adversários do marxismo, pois fazemos a crítica imanente de escolas teórico-filosóficas, desenvolvendo ou reformulando seus caminhos. Vejamos. É, ao contrário, o senhor de escravos quem define o mundo como bom ou mau, pois ele é o polo idealista ou “espiritual”, do não prático, e isso é demonstrado quando o branco escravista do Brasil tratou a religião de origem africana como satanista, má. Já o escravo tem relação direta com a matéria, com o material, materialista e prático, logo deve definir o mundo como bom ou ruim. É o oposto do que disse o último alemão, o irracionalista; além disso, claro que o escravo toma seu senhor como mau, pois de fato o é, logo ele é mais completo, pois vem o bom e ruim e o bom e mau no mundo com maior maestria, o cérebro-consciência dele mais necessita ver cruamente a realidade. O senhor nega-se a ver na rebeldia de seu subordinado uma afirmação de humanidade, insiste em vê-lo como coisa, ferramenta falante; o escravo, a noutra ponta, ver-se como humano desumamizado e saber que a humanização e superioridade do seu “dono” apenas é possível por meio da sua exploração, do roubo de trabalho. Assim, o escravo alcança instintivamente a identidade na e da não identidade enquanto o senhor insiste que A é igual à A, esta pobreza espiritual, que algo é apenas igual a si mesmo, numa oposição supostamente fixa entre ele e o outro, que não tem sequer a dignidade de ser outro para ele. Mas Hegel e Nietzsche não veem as coisas tal como são porque tomam as dores da burguesia para si, ainda que tal classe ainda tenha sido revolucionária e “oprimida” no tempo do primeiro pensador.

Isso é expresso na prática e hoje quando o marxismo, o ponto de vista da classe operária, é o mais avançado e dinâmico na produção teórica acadêmica e partidária – na área de humana. Além disso, este polo operário abraça para si a dialética, não apenas a lógica formal. De tal modo, influencia até as ciências naturais com Einstein, comunista, e Born, um socialista dialético, terem avançado tanto na macrofísica e na quântica, contra o limite positivista e mecanicista de seus pares.

 

CINISMO: TEATRO SOCIAL

O baile de máscaras comum, tão conhecido, trata-se de relações pessoais, não diretamente sociais. Por outro lado, o teatro social revela-se, por exemplo, nos protestos da alta classe média em 2016 no Brasil. Durante mais de uma década, a aristocracia média perdeu poder econômico enquanto alguns ricos (bancos em central) e as classes assalariadas ganharam algo. Assim, a classe média viu os pobres como seus inimigos centrais, pois estes acessavam mais as universidades, pois as empregadas domésticas tornavam-se rebeldes e mais indisciplinadas, os gerentes eram vencidos pela rebeldia dos seus funcionários etc. Odiava-se gente com cara de precário acessando aeroportos “como se rodoviária fosse”. Então, protestos de massa da classe média encheram as ruas contra os pobres; mas isso não poderia ser dito, já que desmoralizaria já desde o início as manifestações. Logo, a luta formalmente era pelo Brasil, contra a corrupção etc. No fundo, no âmago, todos estavam ali, nas ruas, por um motivo egoísta e classista, mas fingiam que a pauta era outra. Os políticos dos ricos sabem que governam para os enriquecidos, mas devem mentir – usando a ideologia, que não é em si mentira – para enganar a maioria com discursos de “pelo bem do país”, “para todos” etc. Tal cinismo é o mal da democracia burguesa. No partido no qual militei, surgiu uma disputa dura e suja pela direção do sindicato dirigido pela organização; na luta de frações internas, havia todo tipo de acusação: burocracia, machismo etc. Criava-se um documento político ótimo apenas para ganhar moral e continuar dirigindo o aparato sindical… Falava-se de tudo, menos da causa da luta, a disputa de poder para privilégios sindicais. Nos primeiros anos da revolução russa, a maioria do povo certamente considerava a homossexualidade um mal a ser combatido com dureza, mas toleravam os “caprichos” dos revolucionários, como a libertação sexual, contato que o central – paz, pão e terra – fosse garantido.

 

O MAIS-PODER

Temos a mais-valia, o mais-capital, o mais-trabalho-, o mais-produto e o hipotético mais-gozar. Penso que há o mais-poder. O poder geral da sociedade, algo desenvolvido, torna-se desigualmente distribuído. O poder maior da burguesia é um poder menor, menos-poder, da classe operária. Um jogo de soma zero. No entanto, de modo algum nos confundimos com os teóricos mercadológicos que buscam um conceito novo, artificial e exótico para ganhar mídia e espaço acadêmico. No mais, o poder é meio, não fim abstrato. Tal luta também é pessoal, como as vantagens do machismo ao homem.

 

 

 

 

LEI DA POPULAÇÃO

Darwin inspira-se no erro teórico, para humanos, da teoria da população de Malthus: a população cresce, mas encontra um limite de alimentos, logo deixa de crescer. E se nos inspirarmos na lei de população de Marx sobre o capitalismo? Vejamos. Vamos, mesmo assim, deduzir, de início, um limite fixo de recursos. Assim: mais se reproduzem aqueles que estão mais ameaçados, pois isso ajuda a aumentar a possibilidade de passar seus genes (o que não impede que Darwin também esteja correto – que abundância é que produz mais reprodução). Vejamos uma pista dessa nova lei relativa. A macieira, quando levada ao clima tropical brasileiro, clima este que não é de sua origem, prefere investir em si do que na sua reprodução, pois tem muita luz, água, nutrientes etc. Então, os agricultores nacionais são obrigados a cortar a água da árvore, cortar galhos etc. para estressá-la – então surgem as maçãs novas, ela reage à sensação de ameaça ambiental, à escassez.

 

Hibernar

Na falta de alimentos, as espécies podem hibernar no inverso para guardar energia. Isso diminui o efeito da escassez sobre a população.

 

Estocar

Há um pássaro americano que, ao perceber a chega do inverno, cria enormes reservas de produtos, rumo ao consumo no inverno rigoroso.

 

Variar ração

Espécies podem mudar ou variar seu consumo. Por exemplo, surgiu uma abelha abutre que lida com carcaças.

 

Mudar o ambiente

Ao consumir uma fruta, o animal, depois, defeca fezes e sementes, ampliando extensivamente a quantidade de árvores úteis.

 

Mudar de ambiente

Os biólogos dialéticos Lewontin e Lewin haviam exposto tal movimento.

 

Tamanho da espécie e dos indivíduos

Uma quantidade maior de membros, constantes os recursos, tendem a ser menores, o que aumenta de modo relativo, em comparação, a quantidade de recursos mesmos.  No longo prazo, tende-se a diminuir o tamanho da espécie, pois os menores têm, nesse sentido, mais chances de sobreviver.

 

Capacidade de armazenar aumentada

Uma falta de alimentos pode levar os descendentes imediatos a ter mais facilidade de armazenar energia, diminuindo a demanda, a procura. No nível celular, isso ocorre por redução do metabolismo causado pelo maior autoenrolameto do DNA.

 

Roubo

Algumas espécies e indivíduos podem se especializar em roubar outras, além de membros da mesma espécie, ou agregar este hábito.

 

Formar bando

Formar grupos permite otimizar o sucesso da caça, afastando a barreira individual da alimentação.

 

Passar a produzir e criar ferramentas

Vez ou outra, uma espécie que não produz, passa a produzir (e o estresse relativo, com a imprevisibilidade, com o movimento, aumenta a cognição). No caso das ferramentas, macacos aprenderam a quebrar cocos e a produzir varetas para apanhar cupins. As abelhas, ou algum ancestral, em algum momento passaram a produzir mel. Na internet, há inúmeros vídeos de pássaros usando ferramenta externa para pescar. O peixe tegastes diencaeus domesticou camarões para nutrir, fertilizar, seu cultivo (!) de algas, sua fazenda.

 

Tais elementos relativizam, contratendenciam, a lei da população na natureza tal como pensou Darwin. No mais, nossa lei da população, oposta à de Darwin, tem prova empírica na própria humanidade: as comunidades mais pobres têm mais filhos, não menos. Aqueles com melhor qualidade de vida, entre humanos, costumam ter menor prole, mesmo tendo mais recursos. A quebra de 1929 levou ricos falidos aos bordeis antes do suicídio; na segunda guerra, os homens engravidavam as mulheres antes de ir ao combate; com o impacto, incluso midiático, da queda das torres gêmeas nos EUA, surgiu uma onda de nascimento algo como 9 meses após o fato. A causa da vontade de fazer sexo e filhos, nestes exemplos, o stress etc., está oculta e inconsciente – a consciência justifica de algum modo ou outro. No caso das árvores frutíferas, os biólogos apenas constatam sem interpretar ou generalizar; muitas árvores do nordeste brasileiro florescem e frutificam quando inicia-se o período de seca, rnenor humidade e mais calor, maior rico potencial; no Piauí, os ipês florescem o ano inteiro diante da temperatura e da baixa humidade, levando à sensação de risco.

Na psicologia individual, acompanhei um “caso” de uma jovem adulta excessivamente sexualizada, mesmo para padrões brasileiros, com imensa dificuldade em manter fidelidade sexual em um relacionamento. Em nossas conversas, suas falas deixavam claro o impacto sob(re) si que teve a descoberta de uma doença degenerativa autoimune. O medo da morte, lidar tão diretamente com a finitude, concluí, foi a base de sua sensualidade acima da média, que guiava sua rotina e relações. Tal pista não foi a princípio tratada como tal; apenas enquanto caso individual, singular e isolado. Necessitei de vários anos e outros aspectos para derivar uma teoria geral.

Os seres menores, quanto menores, mais se reproduzem. Por quê? Porque vivem pouco. Mas algo mais pode ser acrescentado, evitando a tautologia anterior. Seres menores e mais frágeis, ou seja, em estágio inferior na cadeia alimentar em enorme quantidade de casos, são mais estressados, logo se reproduzem mais do que a alcateia de leões. A lógica darwiniana continua em pé no assunto desde parágrafo, porém atualizado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Parte 4

Psicologia e superestrutura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A LIBERDADE OBJETIVA OU DIALÉTICA

Para escrever um capítulo sobre a crise da psique, este, fui obrigado a entrar em questões cada vez mais básicas da psicologia marxista. Assim, a teoria da natureza humana, a teoria das fixações históricas etc. Neste livro, não apenas neste capítulo, tomo nota do que me parece o fundamento de uma psicologia unificada, marxiana. Mas nem tudo é central sobre o objeto, pode-se descobrir mil e uma leis parciais sobre tal ciência, sem alcançar o núcleo ou o “porquê”; por exemplo, um amigo, o músico Robicharlison Coelho, disse-me ter percebido que é muito comum espirrarmos quando alcançamos uma conclusão; logo percebi que aquilo era um “orgasmo mental”, algo análogo ao orgasmo sexual; depois, percebi que o nariz congestionado é sinal de que não estamos acessando no consciente alguma conclusão; tais descobertas são contingentes, sem revelar o fundo do aparelho psíquico, além de bizarras. Dito isso, outra entre as grandes questões da psique é sobre se somos subjetivamente livres ou não – há ou não liberdade? Se há, de que tipo é ela? Vejamos em alguns de nossos mestres, antes de oferecer uma nova resposta.

 

Kant

Ele produz uma das quatro antinomias suas, que serão resolvidas nesta obra, perguntando se 1) a realidade inteira, incluso nosso pensamento, segue a causalidade, a necessidade, causa e efeito ou 2) há ao menos também liberdade humana. Ele não responde e considerava uma questão irresolvível. Antes de chegar a uma conclusão, vejamos como outros tentaram solucionar a pergunta.

 

Hegel

Ele oferece pelo menos três respostas sobre a oposição liberdade-causalidade.

Primeiro, a liberdade é reconhecer a necessidade. Por exemplo, respeitar as leis e as tendências da história. Um divulgador marxista afirmou que o animal tem a opção de evitar o fogo, sua liberdade de não se queimar é uma necessidade. Um burguês tem a liberdade de seguir a luta por mais lucro, embora possa escolher ser mendigo, ou seja, prejudicar-se.

Segundo, Hegel afirma que o uno, o um, o indivíduo, parece afirmar-se ao isolar-se do conjunto (muitos, múltiplos), mas isso é sua destruição. Então, apenas se pode ser livre e individual em comunidade. Assim também, um átomo é instável energeticamente quando isolado, por isso deve ligar-se a outros átomos, formando uma molécula, para ganhar estabilidade.

Terceiro, ele funde causalidade e liberdade afirmando a interação dos corpos, dos acidentes, das partes de um todo. A causalidade é recíproca, pois uma parte age sobre outra parte, e esta, vice-versa, também faz o mesmo. Mas todas as partes de uma totalidade, sendo causa e efeito ao mesmo tempo, pertencem uma única substância comum, que está no fundo, no fundamento (necessidade). As partes do todo-substância aparecem, de modo externo, umas independentes das outras, e o mesmo ao contrário, são fora umas das outras, apenas interagindo (liberdade). Mas essas partes são também o mesmo, uma mesmidade, pois são uma substância apenas.

 

Marx

No final de O Capital, Marx afirma que no socialismo a produção será o reino da necessidade, onde o cidadão trabalha, mesmo que apenas jornada curta de 2, 3 ou 4 horas diárias. O que é produzido de modo organizado permitirá o reino da liberdade, fora da fábrica, quando nos dedicaremos à arte, à família, ao ócio etc. Como sabemos, tudo que puder ser robotizado, automatizado, informatizado o será, o que reduzirá com toda força o tempo de trabalho ou de serviço – o trabalho manual será superado, mesmo que não extinto.

 

Lukács

O grande filósofo do século XX afirma que a humanidade tem produtividade crescente, cada vez mais produtivo – e com o aumento da produção aumenta também o grau de liberdade. O escravo antigo era não livre, o servo foi mais livre que o escravo, o assalariado (com liberdade formal) é mais livre que o servo, o trabalhador associado socialista será substancialmente livre. Nosso destino é cada vez mais determinado por escolha ou acaso, cada vez mais com mais opções.

Outro aspecto da liberdade lukacsiana é que o homem no trabalho antes pensa ou imagina como e o que produzir (teleologia, prévia ideação, liberdade) e depois manipula as leis causais da natureza (necessidade) para produzir algo útil.

Para Lukács, a liberdade era uma categoria apenas humana, social, além de histórica.

 

Nossa proposta

Vejamos como resolvemos o problema kantiano. Ora, se a realidade tem possibilidades e probabilidades, ela as tem em si mesma, dentro de si própria. Logo, a liberdade é objetiva antes de subjetiva – é dialética. O homem ou a partícula toma a decisão que tem já tendência, na sua personalidade ou perfil, além do contexto, de tomar. Um chiste famoso ajuda a esclarecer: podemos escolher o que quisermos (entre as opções), mas não escolhemos qual é nosso desejo, o que de fato desejamos. Se temos 4 opções, escolheremos aquela que melhor corresponde ao que somos. A liberdade é ter tais opções exato para escolhemos a que de fato somos levados a escolher, causalidade e necessidade (e nossa liberdade está dentro da realidade objetiva). Esse é o primeiro modo de fundir causalidade e liberdade. O segundo é que o “o que” irá ocorrer é algo necessário, causal, determinístico até, mas “o como” isso irá acontecer está, em geral, em jogo. Por exemplo, certo é que o capitalismo irá cair, mas pode desabar de várias formas, mesmo opostas, como por revolução ou por extinção da humanidade etc.

Necessidade é reconhecer a liberdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

DESENVOLVIMENTO INTELECTIVO

O dado empírico, de QI, embora fonte de medida limitada, demonstra que há elevação global, de 1909 a 2013[13]:

 

GRÁFICO 23



Fonte: (Change in average fullscale IQ by country)

 

O desenvolvimento das capacidades mentais é vital para um projeto socialista. Os mais jovens, em especial, tendem a ter mais cultura e habilidade relativo aos mais velhos e, pela primeira vez na história da humanidade, dominam com mais desenvoltura a moderna ferramenta, o computador.

As condições nunca serão ideais, mas são as melhores dentro dos limites do sistema capitalista. A internet – para citar um destaque – ajuda no acesso ao conhecimento. A urbanidade, a necessidade de “pôr em algum lugar” os filhos dos trabalhadores, o capitalismo exigindo maior sensibilidade para prover o consumo são elementos que atuam para a elevação do nível mental geral.

O mero aumento absoluto de pessoas capazes ou com habilidades latentes, em potencialidade, será útil ao desenvolvimento da sociedade socialista.

O Neurocientista Michel Desmurget, no entanto, aponta tendência à redução do QI por razão da pobreza de experiência da vida digital:

 

[…] os pesquisadores observaram em muitas partes do mundo que o QI aumentou de geração em geração. Isso foi chamado de 'efeito Flynn', em referência ao psicólogo americano que descreveu esse fenômeno. Mas recentemente, essa tendência começou a se reverter em vários países.

É verdade que o QI é fortemente afetado por fatores como o sistema de saúde, o sistema escolar, a nutrição, etc. Mas se considerarmos os países onde os fatores socioeconômicos têm sido bastante estáveis por décadas, o 'efeito Flynn' começa a diminuir.

Nesses países, os "nativos digitais" são os primeiros filhos a ter QI inferior ao dos pais. É uma tendência que foi documentada na Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda, França, etc. (Velasco, 2020)

 

Evitamos arriscar, aqui, afirmar que esta é uma tendência atual ou mesmo secular, pelo menos enquanto a crise sistêmica perdura (como dissemos, as condições nunca serão as ideais). Porém a observação citada tem um valor relativo e pode ser incluído na decadência geral da psique.

Em alto nível de abstração, o movimento ocorre assim, uma alienação nova em certo sentido: ganho de cognição das coisas na proporção da perda de cognição dos homens. A mesma tecnologia que pode dar habilidades e tempo livre criativo ao homem está, sob o capital, fazendo o inverso. A robótica, que ganha sensibilidade (como medir pressão etc.) cognitiva, e a inteligência artificial estão desobrigando o capital a investir em qualificação dos trabalhadores, em educação – além de a internet significar menos movimento e experiências à nova geração, viciada nas telas virtuais. Se o simples e constante movimento repetitivo imposto pelo maquinário declinava a mente do trabalhador, a nova tecnologia, sob o capitalismo, faz algo semelhante, aprofundando a perda cognitiva humana dentro e fora do ambiente de trabalho.

A mercadoria faz a mediação entre a vida no trabalho e a vida fora do trabalho, infraestrutura e relações sociais, no sentido amplo, gerando seus problemas. A produção moderna dispensa, de um lado, trabalho qualificado, embrutecendo intelectualmente o operário e, ao mesmo tempo, produz os celulares modernos que estão desestimulando o desenvolvimento completo das capacidades cognitivas (relaciona-se menos, movimenta-se menos). Aqui, deve-se considerar a mercadoria máquina.

 

A ARTE

A qualidade de uma obra de arte depende do quanto o artista se dedica a ela, à sua construção. São fatores:

1)  A dedicação do artista à sua formação;

2)  A dedicação à obra em si;

3) Indiretamente, os materiais e o trabalho para produzi-los.[14]

Se pinta uma tela enorme toda e apenas de preto, exige um esforço; se constrói a Guernica, exige esforço outro e maior. Isto é rastreável pelo resultado. Tanto o tempo objetivo quanto o subjetivo são importantes: a inspiração cumpre seu papel mágico para, em seguida e em paralelo, ceder à transpiração. Uma história começa como ideia que toma forma de um microconto; depois, um conto; depois, uma novela; depois, um romance… Eis a exposição pura, lógica, do desenvolvimento real, histórico, por assim dizer; pois na prática do escritor o processo ocorre de modo menos consistente e, por isso, menos claro, recheado de tortuosidades.

Pode-se argumentar que há gênios mais ou menos natos. De fato: isso lhes dá uma enorme vantagem que, em boa parte, os demais podem compensar pelo esforço. A própria inspiração deriva de um acúmulo prévio de observações, estudo, experiências pessoais, outras produções etc. Quando uma letra de música “nasce pronta”, exigindo apenas duas ou três mudanças[15], há aí uma produção inconsciente e subconsciente.

A ideia de talento é verdadeira na medida em que somos diferentes, com perfis e tendência diferenciados, com diferentes e múltiplas disposições; sendo todos igualados na sociedade do capital, onde temos de nos adaptar às necessidades do mercado – surge o homem abstrato e suas unidades particulares, carentes de ser homens concretos plenos.

Quando a produção artística separa forma do conteúdo, há perda de proporções, de medida, de sentir faltas e excessos. Ferreira Gullar foi o melhor observador deste problema e sua origem. A arte tipicamente burguesa do século XIX, o parnasianismo, arte pela arte, é substituído por a forma pela forma, matéria pela matéria, novidade pela novidade. Mesmo onde é quase impossível o vazio de sentido, na literatura (onde houve algum papel progressivo da pós-modernidade, a experimentação), ocorreu a tendência ao impacto pelo impacto, trato complicado com a linguagem para disfarçar enredos fracos e experimentalismos desprovidos de um fim estético maior e novo. De modo geral, o valor artístico de uma obra literária tem sido medido pela impossibilidade de lê-la, pela dificuldade de acessar o sentido, pela confusa linguagem – surge igualdade falsa: ser vanguarda é igual à arte inacessível, ilegível. Isto é tanto mais forte quando o livro não tem público e os eruditos oficiais buscam “leituras de pertencimento” a uma casta do saber, a diferenciação dos demais. Nas artes visuais, a pós-modernidade pôde ir mais longe na medida em que a sensação visual é imediata, causa impressões desprovidas de esforço prévio da parte do espectador – e do artista… A crise da arte expressa, assim, a crise do trabalho (manual) teorizada por Kurz e Postone (já veremos a razão concreta disto).

“Não há arte revolucionária sem formas revolucionárias”, Maiakovsky. A arte pós-moderna é uma falsa subversão; tal qual o realismo “socialista”, inverso análogo, está diante de raros momentos históricos em que, com disfarce de renovação, uma nova proposta artística cumpre papel negativo, reacionário, regressivo.

“Na poesia, a novidade obrigatória”, Maiakovsky. Em arte, o novo – o de fato novo – é uma necessidade tanto do artesão ficcional quanto do público[16].

***

O que é arte? Resultado da atividade humana, arte é uso de técnicas para prover mensagens fictícias ligadas ao real. Se as ferramentas são usadas para construir uma mesa, temos um valor de uso de todo real; mas se as mesmas ferramentas são artifícios para produzir uma belíssima escultura, então temos um objeto real de verdade em si fictícia a nos passar uma mensagem conectada à realidade, mas em ruptura relativa com esta.

Toda arte é fruto da atividade humana, fictícia e suporte de uma mensagem indiretamente ligada à não-arte. A técnica precisa pensar as proporções daquilo construído para ser um valor de uso, digamos, mesa. Na arte, a técnica trabalha o material para que suas formas expressem, de maneira criativa, o valor de uso mensagem; suas proporções são pensadas para a comunicação artística. Por mais bela e talhada, nunca a mesa será análoga à poesia ou à escultura. Por mais que “artistas” coloquem tal artefato alimentício num museu.

Por razões acidentais e não necessárias ou inerentes ao objeto, mesa ou cadeira podem ter formas transformadas em armas de combate, em valores de uso para agressão ou autodefesa; quem sabe, um quadro enorme do Louvre possa ser usado para sustentar pratos e talheres… Porém o caráter de cada qual logo se nos revela.  Um mictório tem sua matéria e sua forma pensadas para uso específico ainda que esteja fora de seu lugar.

A assim chamada arte pós-moderna é o desenvolvimento de uma pseudoarte. A arte falsa ou a ficção da ficção pode ser constatada, mas o desafio teórico irresolvido é saber por quais mediações o capitalismo fictício e irreal, com sua forma sem conteúdo, com o “jarro vazio” desta época, produz a própria produção supostamente artística correspondente.

Apenas na consideração acima, de que a forma material é pensada para mensagem fictícia, podemos então relaxar o conceito. A arquitetura produz valores de uso não artísticos e é, ou pode ser, ao mesmo tempo, arte. Um jarro pode ter belíssimas pinturas. Como dissemos em outro capítulo, o valor de uso tem ganhado maior valor estético para vencer a disputa comercial. Ainda que haja casos assim, combinados, sabemos reconhecer uma obra de arte mesmo quando está associada a outra função. Assim como há mercadorias que tem preço sem valor (terra, etc.), há produções que caem fora da concepção exposta.

A arte é unidade de ser e nada, pois a arte é e não é – ao ser ficção real.

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As razões para a crise da arte estão na ampliação do fator econômico, mas há mediação de outros aspectos que tornam o efeito da economia sobre o artístico mediado, indireto. O desenvolvimento da sociedade, por exemplo, impulsionou os mais variados estilos, o que dificulta, embora nunca esgote, a possibilidade de surgir novas escolas artísticas – por isso muitos artistas estancam na mera experimentação sem finalidade (poderíamos falar em escola experimentalista?). Também, entre as causas – frutos do desenvolvimento técnico-científico, da produção – está a fundação da fotografia, do cinema, das TVs, da internet e da arte em jogos eletrônicos; pois tornam menos atraentes e necessárias a pintura, a escultura, etc., que tentam se afirmar com uso de novos ou perecíveis materiais, com o estranho e o espanto, com o mero curioso, já que, ao mesmo tempo, querem atrair público e podem fazer qualquer coisa porque, por outro lado, não têm público (de modo, também, que não vale um longo esforço…). A literatura não escapa dessa dualidade entre produzir algo vanguardista artificial e produzir algo para o mercado.

Em todo o mundo, surgiu um novo romantismo baseado no semiletramento das massas, na urbanização e na decadência do capitalismo. Vejamos a emulação: aquele romantismo, dos séculos XVIII e XIX, época das revoluções burguesas, tendia ao amor romântico e erotismo irrealizáveis; o atual, ao triângulo amoroso e ao erotismo vivo. Aquele e este aos mercados e à leitura fácil e fluida. Aquele, aos poemas instintivos, versos livres e atraentes; este, ao poema-trocadilho, rimas rápidas e na velocidade da internet, versos curtos e autoajuda. Aquele, ao nacionalismo; este, ao internacionalismo primário. Aquele, ao fetiche pelo mundo medieval; este, também, por narrativas mistificadas. Aquele tendia à tragédia final; este, à vitória. Aquele, ao individualismo burguês; este, ao individualismo interligado ao conjunto. Aquele se expressou – terceira fase – com a crítica social e simpatia pelos excluídos; este, por ideias de revolta, revolução, antiburocráticas e antiditatoriais, instinto rebelde e sensação intuitiva de anormalidade e artificialidade do tempo presente[17]. Este se revela na ficção científica, na distopia, como crítica social metafórica. O que pesa é a diferença na erudição dos próprios autores, pois o romantismo clássico teve nomes de peso na literatura.

Na prosa e séries televisivas, há preferência por histórias profundas e longas – logo algo muito progressivo – como compensadores do vazio existencial, da rotina, da solidão coletiva, da passividade comum e dos aspectos rasos nas relações e vida pessoais, que oprime a consciência – logo reação ao regressivo no real. Séries como a primeira temporada de Narcos (poderíamos citar várias: Breaking Bad, Dark, Big Bang: A Teoria[18], etc, que são verdadeiras obras de arte) são dotadas de altíssimo estilo – e com grande público, o que revela em si a possibilidade de ter produções de qualidade com acesso popular. Apenas o pessimista por natureza, que tenta destacar-se com crítica indiscriminada a tudo, ou seja, uma crítica sem critério, sem ver o que há de avanço, deixa de ver também que a regressão da vida pessoal, como regressão da vida social, demanda arte acessível e popular como expressão inversa da decadência (na literatura, o público prefere, por sua carência existencial, a profundidade do romance, enquanto os autores têm caído em narrativas curtas ou rasas[19]). No cinema, o avanço é mais complicado, porque a busca pelo mínimo risco – e arte é correr risco – faz com que as empresas adotem fórmulas obrigatórias, ritos de roteiros, finais programados, estilo que atrai, etc. Aí há a contradição entre arte e lucro. Eis um dos fortes motivos da decadência relativa dessa forma artística nas últimas décadas[20].

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A arte não necessita ser agradável, mas, por derivação, a beleza é um tema importante – o belo é objetivo ou subjetivo? Está na realidade ou nos olhos de quem vê? Em primeiro lugar beleza está na própria coisa, portanto, natural em si (tanto natural para a percepção do externo quanto no próprio externo); trata-se da beleza no geral, no universal, pois o lado animal do homem e suas percepções capta a beleza do mundo, desde sua vida prática para com animais e situações (o sombrio na arte tem, remete a, traços do sombrio na vida real). Mas, por outro lado, a beleza é algo humano no sentido histórico, determinada historicamente, socialmente; porém, sendo a beleza no particular, não nega de todo a beleza geral, natural, antes pode mediá-la ou deformá-la. Por último, temos a beleza no singular, no individual, que responde à própria formação pessoal e da psique, algo único – este medeia e, ao mesmo tempo, é mediado pelos outros dois. Assim, as polêmicas sobre o caráter do belo, dentro e fora da arte, são resolvidos, percebendo os próprios “níveis” que se misturam, um sendo a base do outro. Tenta-se refutar, por exemplo, a beleza natural geral, com o fato de existirem pessoas com gostos exóticos; por outro lado, tenta-se refutar a instância da beleza individual com a constatação de consensos gerais sobre se algo é belo, apontando para o objetivo ou, ao menos, o intersubjetivo. Os pontos de vista opostos acertam e erram ao mesmo tempo, são incompletos e sem mediações[21].

***

A arquitetura, a jardinagem, a propaganda, a biografia etc. são, de fato, arte? São, ao que parece, por seus valores de uso centrais, quase-artes, mas não arte de modo direto e real. Um jogo eletrônico moderno, como God of war ou The last of us, é certamente arte em comparação ao demais citados, mas provavelmente será necessária uma nova geração de eruditos, já crescendo com seus consoles, para reconhecer isso. Uma das provas de que arquitetura etc. não são arte ver-se em Lukács ao este defender a incapacidade de tais manifestações romperem com a ideia de beleza, com a meta do agrado. Mas ele não deduziu disso que se trata de quase-artes, cuja estética está subordinado ao valor de uso esterno ao artístico. 

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Como Aristóteles, Lukács diz que arte é mimese, imitação do real. Essa verdade é metade mentira, pois a arte fala do verdadeiro por meio do falso – ela deforma, acentua e unilateriza o real para melhor expressá-lo. Uma escultura não é como uma mulher da escultura, por uma é feita de carne viva, outra é talhada em mármore. A arte não nos permite ver de cima, como um ampliador ocular facilita ver as estrelas e o nível microscópio, não amplia, pois ela, na verdade, agrega experiências ao espectador, ao lado e junto. É preciso romper relativamente com a realidade para melhor vivê-la. Por isso, a arte vai da materialização para a desmaterialização, e vice-versa, para o realismo e contra o realismo.

Na estrutura, a poesia está entre a prosa e a música; a dança, entre a música e o teatro; a prosa, entre a poesia e o teatro; e assim por diante. Mas ocorre que a maior parte das artes separam-se e autonomizam-se umas das outras, como a prosa da poesia, a dança da música. Depois, na história recente, as diferentes artes separadas voltam a unir-se no cinema, com suas muitas variantes, e nos jogos de vídeo game. Então, temos: 1) fundação, 2) abstração e separação, 3) reunião. Concreto, abstrato, concreto.

Lukács diz que a arte tem relação com o trabalho primitivo, pois o movimento repetitivo economiza energia e aumenta a produção, gerando prazer. Sem querer, chegou ao esgotamento de artes. O público cansa daquele estilo que deixou de ser novidade, mas o velho artista não muda, torna-se conservador, pois manter o mesmo modo de criação preserva energia e produz um modus operandi.  Em geral, novas gerações mudam os rumos, renovam.

Enfim, a arte tem um objetivo primário muito mais modesto e vulgar do que pensa Lukács, que pensa ela como uma forma de expor o real. Sua função é a mesma da religião por outros meios, ou seja, tornar a vida mais suportável e interessante (o homem primitivo faz a dança e uma ferramenta ambas para tornar a vida mais vívida). A arte, antes e além de expressar casualmente o real, cria realidade, humana e fictícia. Em resumo, não há falsa cartase, toda cartase é verdadeira, embora os lukacsianos pensarem a elevação do indivíduo ao gênero como único caminho catártico. A arte não eleva o indivíduo ao gênero, mas propriamente o individualiza, o subjetiva, alarga e dá mais forma ao Eu, contra a objetividade dura da qual faz parta, da qual é parte.

***

Os marxistas podem estimular novas escolas artísticas e o reavivamento da arte, mas apenas o socialismo dará solução à crise artística ao elevar a cultura geral dos artistas e do público, além de oferecer mais tempo livre e recursos.

 

 

PROPOSTAS ESTÉTICAS – DIALETICISMO

Se o leitor desejar, salte por sobre este subcapítulo. Agora, trataremos de propostas para renovação da arte. Este livro pretende ser base teórica da prática política, mas também artística. É insuficiente apenas criticar; por isso, temos de ir ao positivo. Nossas propostas estão focadas na literatura, área do autor, mas podem ter análogos em outras artes.

A vantagem das obras de estética na história é que foram produzidas por gênios – Aristóteles, Kant, Hegel, Lukács etc. Mas o defeito deles é que, em nenhum dos casos, o autor era artista. Lukács, em especial, foi normativo ao pensar o realismo como único caminho digno na arte[22]. O que seria de nós sem o expressionismo, por exemplo? Ele apoia um ou outro artista moderno, mas era contra as vanguardas a priori, embora seus discípulos isso pouco reconheçam. A arte não precisa expor com fidelidade a realidade, ou não precisa expô-la expondo-a. “Nem só de política vive o Homem.” (Trotsky, Questões do modo de vida, 2009) Trotsky tem razão: em matéria de arte, os marxistas são anarquistas – liberdade total, sem limites políticos ou financeiros. Ao mesmo tempo, podemos propor, sem impor, caminhos inspirados no marxismo, sua lógica etc.

 

1.  Realismo simbolista

1.  As escolas opostas podem ter uma fusão. De imediato, soa como conteúdo realista e forma simbolista; mas pode-se ir além, com verdadeira mistura de ambos, mais do que mera justaposição.

2.  O cemitério abriga mausoléus e indigentes.

3.  Dirá Hegel: nada grandioso no mundo foi feito sem paixão. Portanto, o novo cientificismo afirma a emoção. O cosmos é poético, deslumbrante!

4.  Infelicidade e fanatismo na era do conhecimento subatômico!

 

2.  Cartas

1.  As extintas cartas devem ser postas como variação nova da prosa quando ficcionais ou discursivas.

2.  As cartas permitem romper com o tecido espaço-tempo, objetivo e subjetivo, da prosa, como com o pensamento sem extensão.

A escola experimentalista usa, muitas vezes respeitando o conteúdo, “modelos” como obituários, diários etc. A carta, por outro, tem a vantagem de ser geral, universal como formato.

 

3.  Soneto novo

A arte poética cindiu-se entre o poema de forma fixa e o poema de forma livre. No entanto, há o caminho do meio. O primeiro modelo proposto são poemas que seguem a seguinte formatação: curta estrofe de apresentação, estrofes de desenvolvimento, estrofe de transição em que os versos são “quebrados” para induzir à leitura ininterrupta, estrofe final com chave de ouro. Chamo-lhes soneto novo. A segunda proposta é, em termos hegelianos, conhecida, mas não reconhecida; nomeio-o refrão – estrofes livres entremeadas por refrãos, versos repetidos etc. Também pertence à forma fusionada, por assim dizer, de rigidez livre como a escada rolante que é, ao mesmo tempo, firme e flexível. O leitor perceberá a forma interna no informe externo, o necessário no contingente. Os poetas têm o desafio de utilizar o acúmulo histórico das escolas literárias para criar “modelos” novos.

Vejamos exemplo prático de soneto novo:

 

Existem borboletas

Cujo sonho é cair

 

Borboletas suicidas

 

Muitas delas coloridas

Tropicais

 

Exclamações melancólicas

Pairando

Paradas no firmamento

Branco e azul

 

Urubus florais

Cemitérios flutuantes

 

Em confronto contra

Os ventos

Pois a aerodinâmica

Da vida

No tempo do

Abate

Fortalece para

Matar

 

Matar-se-ão

Multicolores e ondulantes fragmentos acima do cinza

 

 

4.  Conteudismo I

O foco no conteúdo pode levar à redução da forma e da matéria na arte, em nome do conteúdo. A incompletude, o dito sem dizer, o sugerido, o vazio auxiliar. Na poesia, o uso de apóstrofos, abreviações etc.

Devemos também “atualizar” a gramática segundo o conteúdo. Além disso, devemos explorar a duplicidade das palavras e sentidos ao máximo. Se bem utilizados, vícios de linguagem podem ser, por igual, úteis.

 

5.  Conteudismo II

Temos a grande história da arte ao nosso favor. A regra conteudista é ter à sua disposição todos os recursos possíveis para a forma expressar bem o conteúdo. Se o poema é sobre forma, logo usamos métrica fixa; se é sobre o caos, logo os versos são caóticos.

 

6.  Fusão de gêneros

Shakespeare colocou doses de humor no drama, fazendo escola até nossos dias. Por outro lado, a vida é pluralidade, não unilateral. Logo, numa obra, podemos somar todos os caminhos: o humor, o drama, o terror, o policial etc. Uma das qualidades possíveis de tais obras é o fluir natural, não forçado, de algo ao outro, como do humor para o drama, além de fundi-los.

 

7.  Tempo verbal

A literatura pode usar o tempo verbal futuro para contar uma história, como uma previsão. Isso permite um narrador vidente ou profeta.

 

8.  O espaço

Deve-se afirmar, contra o fragmentário pós-moderno, a construção sistemática de uma obra. O poema está naquela página do livro porque aquele é, de fato, seu lugar segundo a estrutura, o conteúdo e o desenvolvimento. As pinturas, por exemplo, devem estar ligadas umas às outras.

 

9. Nova ficção científica

O procedimento é simular um tratado científico ou algo semelhante. Temos uma tese clara, em geral exposta ao leitor, então fazemos “estudo de caso”, argumentos, “provas” para aquela ideia. Ou a hipótese procura os “dados” ou estes desaguam numa conclusão. É científica, mas ficcional. O realismo e o naturalismo também demonstravam algum argumento; porém aqui somos muito mais diretos, mais “científicos”. Na poesia, temos o poema-tese. No cinema, podemos fazer falsos documentários, mas com inspiração real científica, como da vida em outro planeta, técnica hoje usada porcamente por pseudociência.

 

10.  Crônica

É hora de fazemos crônica para o futuro, destinado aos historiadores de amanhã. Em tais textos, procuramos escrever sobre o que é invisível para nós, do cotidiano ignorado, tentando adivinhar o que de nosso cotidiano é anormal ao cidadão do comunismo. Os cachorros donos da rua, os comércios típicos da esquina etc. Ao leitor hoje, o susto daquilo óbvio, mas esquecido, o atrai – o que parece natural, não o é.

A tarefa de elevar o estilo crônica ao nível de alta literatura se dá de três modos: 1) trabalhar com de dedicação a forma, preencher de poesia; 2) conteúdo profundo, o presente passado do suturo; 3)  temário relevante, o visível, porque visível, invisível.

 

1.      Crônica científica

Tal estilo já existe de modo embrionário e inconsciente. A arte “menor” da crônica – por exigir menos esforço – pode ser elevada por meio da união de base teórica, jornalismo e literatura. Guiado por um eixo teórico, escreve-se um uma crônica sobre o real, mesmo cotidiano, de maneira poética e estilística.

 

2.      Antiode

O antiode é o oposto do ode em conteúdo, pois é dura crítica, e o oposto da sátira na forma, pois não foca, por exemplo, no humor. O precursor de tal tipo de poesia foi João Cabral de Melo Neto com um poema de mesmo nome.

 

3.      Minimanifesto da poesia conjuntural

A poesia conjuntural agarra-se à notícia em destaque da semana, adapta seu fazer poético à historicidade de curta duração do jornal de ontem e de amanhã.

Fazer poema demora – e é difícil. Para burlar os limites poéticos, usamos, para impor musicalidade, as rimas fáceis e desprezamos, em princípio, o trabalho de métrica.

A poesia conjuntural é irmã da charge no jornal impresso ou na internet. Abusa dos trocadilhos, do humor, da sátira, da caricatura, das frases de efeito, das aliterações rápidas, dos jogos com as palavras, da repetição.

Para nossa sorte, os fatos mais importantes duram algumas semanas junto à chamada opinião pública. É possível, assim, produzir poemas descartáveis de qualidade.

A poesia conjuntural é realismo puro, velocidade e quase improviso.

Que o poema esclareça!

Que o poema exija!

Que o poema denuncie!

Que o poema seja palavras de ordem!

Que o poema provoque risos desalmados e raivas repentinas!

 

4.      Poesia filosófica sistemática

Deve-se resgatar o hábito dos filósofos antigos de escrever suas ideias em versos. Mais uma vez, a forma deve impulsionar a expressão do conteúdo. A linguagem poética, em sua deformação da linguagem comum, ajuda a expressar. Mas os poemas têm seu lugar, sua hora, por isso o livro poético filosófico é sistemático, há um desenvolvimento das ideias ou um nexo geral entre elas.

 

5.      Poema quase fixo, quase livre

Pode-se fazer poemas com rima e metrificação dada, mas, aqui e ali, como em nome do conteúdo, quebrar os versos aonde a frase também quebra-se, um verso final de tamanho incomum. Vale a criatividade. Um exemplo é fazer estrofes de igual quantidade de versos, ou quase sempre, em que a métrica do primeiro verso da primeira estrofe tem a mesma metrificação do primeiro verso da segunda estrofe, o segundo verso da primeira e da segunda estrofe com a mesma métrica etc. De minha experiência, soa bem tal método, que funde livridade e fixidez.

 

6.      Por uma – Nova Bossa

A música brasileira focou muito na voz e na letra, tantas vezes de maneira genial, em parte por herança medieval dos trovadores. Mas isso deve ser suprassumido, mantido como conquista e ao mesmo tempo superado. Os instrumentos, por aqui, o violão em especial, tornam-se passivos, um acompanhamento, apenas por detrás da poesia cantada. Nossas propostas, portanto, são:

a)      Fazer no violão algo similar às frases do baixo.

b)      Apostar nas variedades de dedilhado.

c)      Como no rock internacional, usar bastante riffs durante a cantoria, não apenas nas introduções.

d)      Ritmo dançante.

Isso merece justificativa. Quando a música se afasta da dança, degenera em classe média. Os trabalhadores manuais gostam de movimento; os intelectuais, de reflexão, de inércia. Por isso, um dos motivos do samba entrar em decadência, ao querer agradar paladares eruditos e semi. A MPB deve, logo, voltar a ser popular, retomar a dança – dançar é preciso.

e)      Muitos solos na canção. Nossos grandes músicos aproveitam pouco a melodia, a escala, o improviso de solo. O violão deve ser ativo.

f)        Quebra repentina do tempo e da intensidade, sem ou quase sem transições.

Isso alerta o ouvinte, energiza-o. E é algo incomum na nossa música.

g)      Aproximar-se, de modo indireto, dos power acordes (tônica e quinta, tônica e terça, tônica e quinta com terça etc.).

h)      Não estrutura da letra.

Uma letra estruturada – tipo: estrofe, estrofe, estribilho, refrão, estrofe, estribilho, refrão – já nada tem de novidade, espera-se, cansa o espectador. Uma letra sem norte formal, embora não improvisada, causa o inesperado, uma nova e boa sensação. Pode-se, por exemplo, fazer apenas uma letra longa, depois um estribilho e depois um refrão longo e final. Algo semelhante fazer com os versos e sequência de acordes.

i)        “Faça você mesmo!”

Nossos novos artistas são de alto nível técnico, mas comportados, não ousados – desconfia-se que a qualidade técnica deriva do medo de ser rejeitado, por querer agradar. O princípio do punk, incluso os três ou quatro acordes, deve ser levado à MPB.

j)        Temos tristes produzem artistas tristes – porém a rebeldia é afirmar a alegria. A onda de MPB melancólico, com seus acordes diminutos e menores, pode ser superada, ainda que mantida na Nova Bossa.

k)      Levar à sério o visual, no palco enquanto teatro e nos clips.

l)        Músicas muito maiores do que a média ou menores, pequenas pílulas.

m)    Sistema de violões.

O violão conquistou seu espaço assim como o ouro enquanto dinheiro. O ouro tornou-se o meio comercial porque era fácil de dividir e unir, porque era imperecível, porque guardava muito valor em pequenas quantidades. O violão tornou-se central, pois: 1) permite cantar, 2) permite solar, 3) permite fazer acordes, 4) permite tocar em alturas baixa, média e alta; 5) permite diferentes volumes; 6) permite fácil transporte; 7) seu som é especialmente agradável; 8) seu aprendizado mecânico é intuitivo; 9) relativamente barato; 10) fácil de consertar; 11) permite uma nota de “baixo” auxiliar, uma tônica; 12) permite dedilhado; 13) oferece recursos únicos especiais; 14) preenche bem o cenário com seu som. O cavaquinho e a viola, além de outros similares, estão para o violão, e próximos, como a prata está para o ouro.

  O sistema de violões pode ser uma boa meta de um grupo musical. Nomeio tal projeto, ainda que apenas experimental de início, “Nova Bossa” em oposição e homenagem à Bossa Nova. O músico Phill Veras, por exemplo, antecipa nossas propostas de modo belíssimo.

 

7.      Frasismo

Há, hoje, peseudopoetas e pseodopoemas. Isso não é apenas crítica negativa; na verdade, muitos praticam uma are nobre, embora desprezada – o frasismo, a elaboração de frases. Por não ter cultura, o falso poeta faz uma falsa poesia quebrando uma frase ao meio para parecer um verso, um poema. Soma-se a isso rimas fáceis e trocadilhos fracos.

Mas podemos fazer um frasismo positivo para nossa épica com as seguintes características:

 

1.      Duplo sentido

2.      Sentido intenso, concentrado

3.      Jogos de palavras

4.      Subverter clichês

5.      Sugestão

6.      Jogos de linguagem

7.      Nova gramática parcial

8.      Palavras atuais, não “poéticas”

9.      Foco na leitura, não na oralidade

 

Vejamos um poema frasista, um poema programático:

 

Rejeite as frases de efeito

Rejeite os poeminhas fofos

Rejeite os toscos trocadilhos

Rejeite as risíveis rimas

 

Desconfie-das

Desconfie-dos

 

O princípio é o princípio

O fim é o fim

O meio é o meio

 

Criamos jogos

Agora jogos nos criam

 

Infelicidade e fanatismo na era

Do conhecimento subatômico

 

Antes mal acompanhado do que só

 

Nascido no tempo errado

Minha época é amanhã

 

Mas é Mais – Mais é Mas

 

Pois a poesia é a dimensão quarta

Da matéria

 

Concreto tornam-se os que habitam

A selva de

 

Des – ou – cansa

As ruas do mundo estão todas vazias

 

Unir o inútil ao desagradável

Já que o afeto nos afeta

 

Todas as dores do mundo

Doem mais entre os nossos

 

Tal como a vida

A Morte tem – menos ou mais –

3, 6 bilhões de anos

 

Os suicidas têm razão

 

Aqui em Israel – Palestina – até as palavras explodem

 

Menos que a sombra da sombra

 

Uma bala instalada no cérebro de um burguês

Equivale a 1000 poemas

 

 

 

A sabedoria da angústia

 

 

Antivírus

 

 

Quase todas as características do frasismo novo estão em tais frases quebradas, versos. A arte nobre pode ressurgir com dignidade.

 

VONTADE E RAZÃO

Unir o otimismo da vontade e o pessimismo da razão, um aforismo ao modo de Gramsci, tornou-se algo característico do século XX diante das derrotas e da impossibilidade, naquele momento, de superar o capitalismo. Após a queda do muro de Berlim, estamos diante da formulação oposta: pessimismo da vontade e otimismo da razão. Todos os teóricos lúcidos e a própria arte, tão focada na distopia, sabe ou intui um fim sistêmico latente; mas o pessimismo da vontade toma conta do espírito humano. É difícil os partidos imporem uma disciplina férrea, ainda que e principalmente se democrática, aos seus militantes porque as derrotas foram duríssimas. Apenas com situações difíceis e algumas vitórias determinantes a dialética entre vontade e razão resolver-se-á de maneira positiva.

Como parte da crise geral da psique; com razão, reclama-se que não mais temos gênios na ciência, na filosofia, na arte etc. O poeta-músico Humberto Gessinger expressa isso:

 

Onde estão os caras que lutavam dia-a-dia

Sem perder a ternura jamais?

Onde estão os caras que desmaterializavam

Moedas de dez mil reais?

Onde estão os caras que desconheciam limites

Universal e singular?

Onde estão os caras que desenhavam novas cidades

Em guardanapos na mesa de um bar?

 

Onde estão os caras que pregavam no deserto?

O deserto continua lá

Onde estão os caras que deixavam as portas abertas

Para a vida poder circular?

Onde está o teatro mágico só para iniciados?

Onde está o espaço não privatizado?

Onde estão os caras que acenavam com a mão invisível

Um mercado para todos nós?

 

Onde estão as provas?

Onde estão os fatos?

As boas novas eram só boatos?

Onde estão os atos de bravura e rebeldia ternura guerreada dia-a-dia

Será que estamos sós?

 

A queda do chamado socialismo real, fictício, teve papel central na falta de ousadia, imaginação, criatividade, impulso etc. – e esperança. É hora de reerguermos a utopia, pois a realidade pede, a desmoralização já faz algum tempo e temos ainda algum outro tempo para virar o jogo. Fé cega, mas com pé atrás. A posição crítica e o estímulo ao pensamento autônomo, tão desestimulados em “nosso” movimento no século XX, são e serão o nosso norte.

Pode-se argumentar que a crise da sociedade produz a crise da psique, logo nenhuma vanguarda real surgirá no campo do pensamento como, para Marx, a consolidação do capitalismo encerrou a era dos grandes economistas burgueses. Isso tem muita verdade, mas ainda é parcial. Vejamos: 1) os críticos ao status quo, durante a crise, serão obrigados a produzir; 2) as partes da sociedade global têm particularidades, assim, em pelo menos um país ou região, a decadência produzirá nova filosofia etc.

 

 

 

A INFORMAÇÃO

A literatura distópica do século XX produziu duas grandes conclusões opostas sobre o destino da informação na sociedade: George Orwell teorizou que seríamos privados de informação enquanto Aldous Hoxley, que teríamos informação em excesso. Embora a segunda hipótese seja mais sofisticada, nossa distopia real é uma combinação das duas projeções: há, ao mesmo tempo, excesso e falta de informação.

Neste livro, evitamos tratar de ideias que já são senso comum entre revolucionários e reformistas, como a quase óbvia manipulação midiática. Podemos destacar apenas a inocente crítica ao pensar que basta a quebra dos monopólios de mídia e apresentar finalmente a verdade ao povo para tudo mudar de vez… Como disse Lukács, as ilusões da falsa ideologia são socialmente necessárias. É claro que os grandes meios de comunicação manipulam a verdade e criam, também, sentimentos e subjetividades; por isso é preciso, enquanto faltam duras conjunturas que abram a possibilidade de os revolucionários serem a maioria, uma luta de guerrilha pela informação e pela emoção.

 

LÍDER E PERFIL ORGANIZATIVO

Via de regra, a objetividade de uma organização exige que o líder aliene-se, tone-se do perfil exigido. Mas também a organização, de cima à abaixo, sofre influência do perfil de sua liderança – ainda que parcialmente, de modo relativo, nada absoluto. Não é incomum, da base ao tomo, os membros parecerem com o perfil geral da instituição. Assim, um exército sofre influência do perfil de se general. O mesmo ocorre, por exemplo, em partidos. O partido leninista Bolchevique teve muitos pontos de confluência com a personalidade pessoal de Lenin.

 

CRISE, ALMA E POSIÇÃO SOCIAL DO CIENTISTA

A cientificidade marxista percebe que a posição do cientista sobre o mundo afeta e influencia – não determina de todo[23] – sua capacidade de ver o mundo, de alcançar a verdade, de ir além da aparência. Quando se toma a posição conservadora da sociedade, de preservar o status quo, tende-se a mistificar o real, a avançar menos, a justificar o injustificável, etc. Isso é mais verdade nas ciências humanas do que nas ciências naturais, embora também aí deva haver influência indireta. O cientista é, também, uma ferramenta, mais ou menos qualificada para lidar com o objeto de estudo. Mas isso é metade do caminho: a ciência moderna da mente-cérebro reforça tal concepção ao demonstrar que o stress relativo tende a produzir criatividade assim como a macieira produz maçã quando o ambiente lhe é hostil. Um cientista ou teórico que, além de tomar mera posição em defesa do socialismo do alto de seu apartamento, envolve-se praticamente com situações militantes ativas, dinâmicas, arriscadas, vive precariamente, etc. têm, assim, um estímulo do ambiente para sua produção intelectual. Por isso, Trotsky foi imensamente produtivo em sua vida militante e ainda mais quando no exílio mortífero forçado por Stalin (a experiência de viver no mundo, para além do país de origem, como foi o caso de Marx, também influencia – hoje relativamente compensado pelo atual cosmopolitismo, a internet, etc.). A sabedoria popular diz que “a necessidade faz a criatividade”, semelhante ao que afirma o consenso das pesquisas. Com a crise sistêmica, com o declínio da atual curva de desenvolvimento do capitalismo, ou seja, com a baixa estabilidade, a psique dos talentosos e honestos lutadores será pressionada para novas elaborações, para ver em profundidade, etc. Disso, este livro é uma demonstração. Por outro lado, porque vive sob privilégios, porque precisa negar a essência da existência, o lado da burguesia está, neste sentido, em desvantagem relativa – contanto que nunca subestimemos o inimigo. Trotsky, ao tratar da crise nos EUA, após 1929, destaca: os trabalhadores são levados a procurar razões do mundo melhores ao verem que, após uma breve recuperação econômica, outra crise já aparece… Hoje, que os comunistas aprendam a ter as respostas certas.

No socialismo, o baixo stress será compensado pela alta erudição dos cidadãos, pelo avanço técnico, pelos debates públicos, pela popularização da dialética, pela pedagogia ativa, etc. Desse modo, a criatividade terá seu suporte.

O pensamento vulgar no marxismo diz que o crescimento impulsiona a arte e a ciência enquanto a crise marca seus declínios. Isso é pensamento mecanicista, causalidade não dialética, apenas em parte verdadeiro. A crise de 2008 reduziu o investimento pesquisa no Brasil, desde 2016, e fez, ao contrário, o governo estadunidense aumentar o investimento estatal em pesquisa; a mesma causa com efeitos opostos em circunstâncias diferentes. O ascenso do escravismo na Grécia permitiu o nascer da filosofia, mas foi a decadência grega a importante fonte para surgir Platão e Aristóteles. A decadência italiana produziu Maquiavel. A Alemanha dos séculos XVIII e XIX e a Rússia no final do século XIX e início do XX produziram boa parte dos maiores gênios da humanidade, pois o atraso relativo deles, a combinação entre o velho e o novo, formando forte contradição, exigia melhores pensadores.

 

A CONSCIÊNCIA SOCIALISTA

Ao tratar da consciência socialista, Enio Bucchioni afirma:

 

[…] a palavra de ordem “Um, dois, três Vietnãs” atingia a consciência dos ativistas e das massas em todo o planeta. É nesse cenário que floresciam militantes no mundo inteiro, que sonhavam e lutavam para, num futuro próximo, expropriarem a burguesia em seus países.  Era a consciência socialista que se apossava de milhões de pessoas em várias partes do mundo.

[…] O principal cenário de fundo desse gigantesco crescimento era a colossal vitória da Revolução Russa de 1917, que inspirava a consciência comunista para os ativistas nos mais variados quadrantes do mundo e penetrava fundo nas massas. (Bucchioni, 2015)

 

Em polêmica, Hernández opõe-se:

 

Para tentar demonstrar sua tese, Bucchioni transforma a consciência burguesa em socialista e daí conclui que, há quarenta anos, o fim do capitalismo e do imperialismo estava próximo. No entanto, esse não é o principal problema do texto, porque não era a consciência burguesa das massas o que impedia, naquele período, acabar com o imperialismo e com o capitalismo. Afinal, qualquer marxista sabe (ou deveria saber) que as massas fazem revoluções, contra a burguesia, com uma consciência majoritariamente burguesa. (Hernández, 2015)

 

Resolvamos com dialética a questão acima. Se os trabalhadores fazem uma revolução socialista com consciência burguesa, logo esta consciência imediatamente adquire duplo caráter, socialista e capitalista. O raciocínio aprofunda-se: no caráter duplo, um dos polos domina a relação – o valor domina o valor de uso, o aspecto alienador da religião supera seu aspecto humano, etc. – até que a oposição se desfaça; então, pela tarefa histórica que esta consciência move, o polo central é seu caráter socialista, não o capitalista.

A consciência precisa ser expressa. Quando faltam organizações corretas para expressar a consciência socialista, ela se direciona para os partidos centristas e reformistas. Pode haver, portanto, uma expressão deformada do real estado da consciência das massas.

 

PÓS-MODERNISMO DE ESQUERDA

O grande marxista José Paulo Netto afirmou, numa de suas palestras, que, após o surgimento do setor pós-moderno reacionário e de direita, surgiu o pós-modernismo de esquerda e progressivo (dentro de seus limites, claro). Qual a origem, por quê? Desde pelo menos os anos 1970, com a alta urbanização em especial, surgiu uma camada de classe média maior e setores médios novos e precarizados. Isso levou à esquerdização do pensamento.

O pós-modernismo propriamente reacionário, mais profundamente irracionalista, gruda no cérebro das pessoas e nas correntes ligadas à aristocracia da classe média, da alta classe média, e a burguesia.

Destacamos que o pós-modernismo é mais afeito aos setores médios porque 1) são de vida, trabalho e convívio, mais fragmentado, mais atomizado, mais individualizado – tendências gerais aprofundadas da vida social na história recente para todas as classes, no entanto muito mais forte naqueles setores onde isso já é típico; 2) são mais volúveis emocionalmente, pois não passam pela escola dura da vida prática proletária; 3) tendem a ter mais necessidades democráticas, menos trabalhistas, de tipo formalmente individuais, como os direitos das mulheres, legalização das drogas, etc. 4) são incapazes de ter um projeto de sociedade próprio diante da decadência da sociedade burguesa, e apenas em circunstâncias especiais uma parte, a mais precarizada, aceita a liderança da classe operária; 5) são ligados aos afazeres intelectuais.

 

ETAPAS DA SUPRERESTRUTURA SUBJETIVA (CIÊNCIA)

Em A Ideologia Alemã, Marx criticou duramente a ideia de que etapas da história humana fossem idênticas e como etapas do indivíduo – criança, jovem, adulto, velho. A crítica está totalmente correta. Porém em parte da superestrutura subjetiva, como demonstraremos, ocorrem etapas semelhantes entre o desenvolvimento psíquico individual e das ideias, ideologias e concepções científicas.

Leiamos a observação de Moreno:

 

Estudiando el desarrollo de las ciencias descubrió un paralelismo estrecho, aunque no total, entre el desarrollo natural de la inteligencia y el de las ciencias. Esta lógica es la de las grandes teorías de la ciencia moderna. (Moreno, Lógica marxista e ciências modernas, 2007)

 

E continua:

 

Si Della Volpe ignora a la psicología genética de la inteligencia, ésta no lo ignoraría a él. Creemos que clasificaría su método de la abstracción determinada como un buen ejemplo de pensamiento de niño de entre 8 y 10 años. No estaría en mala compañía, ya que Bergson y otros ilustres filósofos están más atrasados aún, entre los 4 y 6 años de edad mental. (Moreno, Lógica marxista e ciências modernas, 2007)

 

O argentino, generalizando descobertas-invenções de Piaget, trata da “nova lógica hipotético-dedutiva”:

 

El autor que estamos criticando no sólo ignora que para Marx hay dos métodos de conocimiento del objeto […], sino también que la epistemología junto con la psicologia moderna han descubierto uno nuevo: el hipotético-deductivo, que ya no trabaja construyendo sobre abstracciones sacadas de la realidad o de la actividad, sino sobre posibles, hipótesis. La psicología del conocimiento advirtió que los adolescentes entre los 12 y 15 años, comienzan a utilizar una nueva forma de pensar, la hipotética deductiva. (Moreno, Lógica marxista e ciências modernas, 2007)

 

Além de com o método hipotético-dedutivo (dos adolescentes e da adolescência quase atual da cientificidade no capitalismo – como com o hipotético-dedutivo de Popper); com a pós-modernidade, e a hiperespecialização da ciência, podemos afirmar que não apenas a cientificidade mas também – ampliando – parte do conjunto da superestrutura subjetiva da humanidade está na fase final de sua adolescência, de sua juventude, podendo ou não alcançar a maturidade. Por ora, tendências de fragmentação, isto é, de esquizofrenia, típico da idade, imperam por razão das tensões acumuladas e conflitos irresolvidos. Essa fase maravilhosa, mas conturbada, base para o posterior amadurecimento, demonstra a possibilidade de sairmos da infância da espécie nesta transição para a fase adulta, o socialismo.

No nível superestrutural subjetivo, o iluminismo, para o atual sistema, e sua concepção de racionalidade total tem relação real com o período de latência em Freud, o de desenvolvimento lógico em Piaget, o quarto estágio em Erikson, o estágio categorial em Wallon. Desenvolvemos, em seguida, a longa etapa vista em nível individual pelos três teóricos citados – que corresponde à adolescência e à sequência do capitalismo nas ideias.

Nos dois níveis, pessoal e histórico, o processo instável da relação sujeito-objeto (que inclui a produção, etc.) leva a processos de assimilação e acomodação (Piaget[24]), base para a etapa seguinte. O avanço da superestrutura científica da humanidade para a priorização da acomodação (ver nota de rodapé anterior) é a futura dominação geral da dialética na ciência.

A observação de Moreno sobre percorrer de modo inexato o mesmo caminho, entre um e outro, entre psicologia individual e a história das ideias, está de acordo com a crítica construtiva, ou seja, dialética de Henri Wallon a Piaget[25]: os processos não são exatamente lineares, pode haver recuo com acúmulo, o desenvolvimento ou mudança de etapa pode retardar, uma etapa agrega (suprassume) a anterior, etc.

Nossa concepção é evolucionária e revolucionária. Thomas Kuhn teorizou “A estrutura das revoluções científicas”, como o seguinte movimento: ciência normal – resolução de quebra-cabeças – paradigma – anomalia – crise – revolução. Mas cometeu três erros. Primeiro, ele não generalizou esse “modelo” de desenvolvimento para a dialética geral, além da do pensamento, como faremos em outro capítulo, sobre processo e crise. Segundo, ele pensa que um novo paradigma científico, fruto da revolução, ou melhor, da crise, não é superior ao anterior – apenas diferente. Ora, esse tipo de coisa acontece na arte: o próximo movimento artístico, demostrou Lukács, é apenas diferente do anterior, nunca melhor em si[26]. Porém isso é impróprio na ciência, pois ela se aproxima cada vez mais da verdade. A revolução científica é uma evolução científica. Essa evolução pode ser contraditória, com avanços acompanhados de recuos como a época moderna, século 16 a 18, negando noções como ontologia e totalidade do pensamento antigo. No entanto, na larga escala, a tendência é de avanço, como do afastamento científico, ir além ou por debaixo e dentro, em relação ao mero empírico ou intuitivo (os gregos pensavam que, para compreender a realidade, bastava olhar). A ciência tem 2 níveis, as teorias (e categorias etc.) de aparência e as de essência. A teoria da gravitação de Einstein serve para o meso e o macrocosmos, ambos, enquanto a gravitação de Newton é funcional, instrumental, útil para apenas a escala “meso”, não extrema. As teorias oficiais em economia pensam que o valor e o lucro se dão assim, em resumo: custos com objetos (desgaste das máquinas, uso de materiais etc.) + custos com folha de pagamento + custo com impostos + custo de novo investimento +, finalmente, um lucro médio do mercado. Isso está certo na prática, na empiria, na aparência, na economia vulgar. Mas, na essência, na mercadoria há custo com capital constante (desgaste de máquina, uso de matérias etc.), cujo valor vem do trabalho humano, + um valor produzido pelo próprio operário para pagar o seu salário + um valor produzido a mais pelo próprio operário, mas entregue de graça ao patrão e a outros (impostos etc.). Ou seja, o mais-valor e o lucro vêm da produção, mas parecem vir da circulação, vêm da mão disciplinada do operário, mas parecem vir do cálculo mental do burguês. Eis a diferença entre teorias instrumentais, ou aparenciais, e teorias essenciais. Terceiro: se a humanidade manter-se de pé; alcança-se níveis onde é possível reformas científicas, ainda que profundas, não mais revoluções.

 

                                                                   TDA

O Transtorno de Déficit de Atenção (e Hiperatividade) tem sido a moda das questões mentais comuns. De fato, o nome não expressa bem sua natureza. Não há falta de atenção apenas, mas atenção também exagerada, hiperfoco, somente naquilo que desperta real interesse no portador. Também não é uma doença, mas uma personalidade, um tipo humano (INFP, principalmente). O fato de o TDA ter sido percebido em nosso tempo revela mais sobre este próprio tempo que a evolução da ciência da mente-cérebro em si. O portador de TDA têm muitas semelhanças com a psicologia do lupemproletariado, sendo provavelmente uma das origens individuais, não em exato históricas, deste grupo social, entre aqueles que não conseguem se adaptar ao mundo capitalista. A dificuldade de planejamento de longo prazo e a quase impossibilidade de se envolver com tarefas duras são exemplos da coincidência, não somente ocasional, entre ambos.

O TDA é naturalmente intolerante contra as diferentes formas de alienação; por isso, também, pode tornar-se marginal na sociedade. Ele somente aceita ordens se: 1) vê nelas sentido lógico, 2) sente que o ordenador não tem intensões de dominá-lo, de se pôr como superior. Uma criação familiar e social por demais repressiva pode tornar o TDA um subversivo crônico, com transtorno opositor (como marginal ou revolucionário etc. – daí que Jung tenha posto o subversivo, seja o tipo negativo ou o positivo, na mesma categoria, na classificação de arquétipos[27]). Além disso, a impulsividade faz do TDA amoroso, muito solidário e empático.

Marx teve as características de um TDA, com a vantagem de viver numa época de poucas distrações. Vejamos:

10.                       Como dissemos, um TDA é intolerante, em alto grau, às relações alienadas. Isso permitiu Marx ter uma sensibilidade muito maior para perceber a natureza da alienação, em especial no capitalismo.

11.                       Um TDA é altamente simpático e empático, além de impulsivo (carinhoso, naturalmente solidário etc. – mas costumamos associar impulsivo com violento). É o caso biográfico de Marx.

12.                       Um TDA tende a ignorar as “inúteis explosões” do imediato, da aparência, e querer saber do lado interno do mundo, da lógica das coisas. Isso ajudou a tornar Marx um dialético.

13.                       Um TDA é, via de regra, imensamente criativo, associativo de ideias. Este é o caso de nosso gigante, o maior pensador da nossa era.

14.                       Um TDA, em geral, tem letra feia, ilegível ou quase (embora seja comum entre o tipo a habilidade de combinar as palavras, de estilo). É o caso de Marx, que perdeu uma vaga de emprego por tal razão.

O TDA, independente de sua origem ser genética ou igualmente com outras causas possíveis, é uma afirmação do capitalismo, como com sua falta de planejamento, mas, ao mesmo tempo, é sua negação completa e típica, pela sua anti-alienação, por seu perfil mais humano, por sua indisciplinada disciplina, por seu lado criativo-associativo e profundo, por sua noção “distorcida” de tempo etc. (Antes, éramos donos do tempo, mas hoje somos dominados por ele – certa vez disse Fonseca Neto.) Daí sua queda, hoje, no lado lúpem, seu fracasso comum. Assim, TDA, neste modo de vida, expressa em si contradição deste próprio modo de vida.

A psicologia social beneficia-se desse tipo de observação. Uma sociedade sob ditadura, por exemplo, produz ou estimula relações de opressão por hierarquia, como na família, o que, por sua vez, produz subversivos tendentes a ir contra aquela mesma realidade.

 

LINGUAGEM

É evidente que a linguagem humana, social, não tem sua origem primeira na biologia, mas na sociedade, embora a mecânica corporal de controlar os fluxos de ar seja vital. Como diz Engels, foi preciso a necessidade de dizer algo para algo dizer, ou seja, o trabalho cada vez mais complexo impulsionou a fala, depois a escrita; o erro desse gênio foi supor que a necessidade da fala fez surgir os órgãos necessários, como se o esticar do pescoço tivesse produzido as girafas.

Em analogia aproximal, a relação valor de uso, valor de troca e valor na mercadoria tem algo de similar com três elementos da linguagem básica – o significante, o significado e a energia. A palavra é uma unidade de energia, energética.

Temos agora de demonstrar pistas sobre tal conclusão. O cérebro tem, por exemplo, uma tensão interna, de energia, que precisa ser vazado tal excesso ao transformar a “pulsão” em ato de falar. Uma energia, que incomoda, foi transformada em outra matéria e energia. Assim, o padre medieval – e toda ciência começa como misticismo e pseudociência, como o inverso de si – aliviava os fieis que desabafavam; assim, o psicólogo e o psicanalista melhoram o paciente.

A energia descarregada em linguagem aqui afeta menos ou mais outro sujeito ali, a palavra é mediação dessa troca e transmissão energética. A fofoca precisa ser dita, o carente precisa conversar o que quer que seja com quem quer que seja. A palavra não é o inconsciente, mas algo vital mediante como o dinheiro é mediador das mercadorias.

Vejamos por outro ângulo: há uma economia de energia. Em geral, as palavras tendem a ficar menores e mais simples economizando matéria-energia. Sabe-se que nos países frios as consoantes e a fala introvertida imperam por causa da perda energética do corpo. Nos locais quentes, impera a vogal, o gasto do excesso. As palavras Saara e Caatinga, em temperaturas mais extremas, bem expressam isso. A palavra “muito” em português soa, de modo anormal, como “muinto”, pois gera economia, flui melhor. As palavras mais comuns, como sim e não ou yes e not, costumam ser menores.

O ato falho verbal descoberto por Freud surge de uma tensão que supera uma tensão de censura contraposta e resistente. Mais uma prova do caráter energético e transformado da palavra.

Em especial por suas origens, as palavras são comumente como onomatopeias do real, metáforas sonoras do objeto representado. Torquato Neto afirma, contra a palavra:

 

Escrever não vale quase nada para as transas difíceis desse tempo, amizade. palavras são poliedros de faces infinitas e a coisa é transparente – a luz de cada face distorce a transa original, dá todos os sentidos de uma vez, não é suficientemente clara, nunca. nem eficaz, é óbvio. depende apenas de transar com a imagem... chega de metáforas, queremos a imagem nua e crua que se vê na rua, a imagem – imagem sem mais reticências, verdadeira.” (Torquato Neto, Os Últimos Dias de Paupéria.)

 

Mas poliedros, a palavra, lembra poliedros, paralelepípedos lembra paralelepípedos. Ele não entende, também, que a duplicidade de significados é uma força, mais do que uma fraqueza, da linguagem. A fusão ou a combinação de significados torna poética a poesia real da vida. É muito comum sermos duplos para expressar a verdade do inconsciente e, ao mesmo tempo, a verdade consciente e funcional, não menos verdadeira. A expressão “suprassumir” em alemão – ao mesmo tempo significando os opostos superar e destruir, guardar e preservar, elevar e suspender – facilitou descobrir a própria dialética da vida; pois a realidade é filme, não fotografia. A poesia estica isso ao máximo, ao limite; vejamos um pequeno exemplo, sem dispensar recursos visuais:

 

arrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr ar

pe pe pe pe pe pe pe   dra

ááááááááguuuuuuuu    a

fo fo fo fo fo fo fo fo  fogo

 

Para fora, o pensamento era sem forma e sem ordem. Era um mar profundo coberto de escuridão; mas sobre suas águas pairava o espírito do homem. Então ele disse.

***

Derivamos as seguintes conclusões sobre a linguagem:

1.      Ela é unidade de ser e não ser – se dissemos “não pense num elefante”, logo pensamos positivamente num elefante antes de fazer negação.

2.      Ela vai da materialização à desmaterialização – as palavras mais usadas, após criadas, são diminuídas, reduzidas.

3.      Ela é energia-matéria.

4.      Vai do simples ao complexo, como sabe qualquer observador – e tende a simplificar-se de modo relativo.

5.      Vai do extensivo para o intensivo, como concentrar significados na mesma palavra.

6.      Vai do concreto ao abstrato ao concreto.

7.      Um conteúdo palavrático pode ter várias formas, assim como várias formas podem ter diferentes conteúdos. “Penso” pode ser pensar ou pender; “fui” pode derivar de ser ou de ir – ou ambos! To be é ser, estar (aqui) ou estar (fazendo).

8.      A palavra tende a mudar, adaptar-se, sua forma para ganhar a “aerodinâmica” melhor para seu fluir.

9.      Há o duplo sentido, duplo caráter, de polo inconsciente e outro inconsciente comum na linguagem, associação.

10.  Saber bem uma língua ou saber várias línguas ajuda de modo relativo o pensamento.

11.  A linguagem oral e escrita potencializa o pensamento, mais do que o limita.

12.  A linguagem começa com um conceito, que se desdobra em dois opostos e avança para um conceito maior, unificador, mediador ou meio-termo – ou expressão conceitual. A criação de uma palavra, no começo, leva, tantas vezes, a criar outra oposta, similar (com sufixo etc.) ou oposta na sonoridade.

13.  O verbo, o adjetivo, o substantivo etc. existem porque existem na realidade. O cérebro evoluiu e adaptou-se para perceber tais aspectos.

14.  As relações sintáticas existem porque existem na realidade.

15.  Morfologia é lógica formal, grosso modo; sintaxe é lógica dialética, grosso modo.

16.  Ir o ensino da letra para a sílaba, para a palavras etc. reproduz, grosso modo,  uma sequência real na fundação da linguagem oral pelo homem primitivo.

17.  Grosso modo, a morfologia costuma expressar o desenvolvimento real da linguagem no primitivismo, como começar – no estudo e na história da humanidade – pelo substantivo (antes, concreto; depois, abstrato) para poder, no evolver, fundar o verbo etc.

18.  A contradição entre a língua falada (conteúdo e mutável) e língua escrita (forma) e erudita (forma e conservadora) é produtiva, oferece uma duplicidade que anima a psique.

19.  A linguagem não é neutra, mas sua acidez não é tão alta. A realidade não é estruturada pela linguagem, apesar de sua vitalidade e influência parcial.

20.  Há linguagem de aparência e, oposta e “dentro”, de essência.

21.  A tarefa central do pensador não é esclarecer conceitos – sua missão é desenvolver as categorias, desdobrá-las.

22.  A linguagem, de um autor etc., costuma, a priori, expressar sua personalidade.

23.  Não basta desfazer o argumento adversário. Deve-se também demonstrar sua manobra, seu jogo e sua falta lógica. A origem do erro deve ser exposta, como a intensão real do outro.

24.  A poesia é uma forma de encaixar o poema nele mesmo

 

MODERNO SOFISMO

Kant e Hegel escreviam de maneira complicada porque eram distantes do mundo popular, porque o conteúdo era complexo, porque suas personalidades eram exuberantes, por falta de tato etc. Algo esperado. Assim como cálculos complexos são mais difíceis de entender, também textos complexos o são; assim como para entender cálculos complexos exige-se uma base, também textos complexos a exigem. Mas hoje é de todo diferente. Usa-se uma forma complicada para ocultar um conteúdo fraco ou um engodo. O leitor, coitado, já faz um esforço imenso para traduzir o material, falta-lhe energia posterior para fazer qualquer crítica. Com o linguajar nebuloso procura-se elevar à décima potência o sucesso da obra, além de usar o bizarro. É claro que a ciência e a filosofia podem desenvolver a linguagem e sua poesia, mas isso está subordinado. Tal como os sofistas antigos educavam os cidadãos pagantes na arte da retórica, aonde pouco importava a verdade de fato, os sofistas atuais também negam a verdade e apostam na linguagem, em jogo artificial. Isso tem uma razão histórica de fundo: de um lado, a perigosa verdade, classista, não deve ser acessada – de outro, esgota-se a filosofia-ciência humana desta época, exigindo novo paradigma, o marxismo. Incapazes de produzir algo novo com seus padrões velhos de pensamento, forçam a criação via o palavriado. Esta obra, por exemplo, apenas pôde existir após abandonar premissas e “verdades consolidadas”.

 

PALAVRA: RAZÃO E EMOÇÃO

Por seu efeito, a palavra é unidade de razão e emoção. A palavra “amor” ou “saudade” causa em nós, ainda que de modo leve, tais sensações, repercute na nossa psique. A palavra tem, assim,  poder – uma força material. Os poetas sabem disso, manejam tal jogo. Nomear um organismo partidário de “célula” em lugar de “núcleo”, por exemplo, algo simples e vaporoso, tem certa influência pequena sobre a subjetividade e a dinâmica do próprio organismo, que passa a ser encarado como ambiente de debate e trabalho, além de conspiração e, de modo relativo, autônomo, diferente da outra forma de nomear. Mas não caímos na outra ponta, um extremo, de considerar que a realidade é linguagem – nada disso; tal formulação não resiste contra uma observação mínima. A palavra é uma objetividade subjetiva, uma subjetividade objetiva.

 

IDEOLOGIA

A palavra maldita, ideologia, com a qual uns acusam os outros, e vice-versa, de a praticarem em suas afirmações talvez ou supostamente interessadas. Como veremos, todo este capítulo tem como centro tal objeto. Para nós, a mentalidade não é epifenômeno, como até Marx deixou quase entender em alguns momentos. Mas, mesmo assim, doloroso à consciência a ideia de que não decidimos quando decidimos ou que não temos livre arbítrio. Às vezes, somos até capazes de ver nos outros que eles e seus pensamentos são frutos do meio, de sua experiência não escolhida, mas “esquecemos” de olhar com o olho de dentro para fazer a autoanálise. Em geral, apenas quem está numa posição social que necessita da verdade, a posição comunista e proletária, torna-se capaz do julgamento muito pleno de si e dos demais, de saber a base concreta do pensamento ou sentimento abstratos. Vejamos, agora, o resumo de alguns de nossos mestres e uma conclusão específica sobre.

 

MARX E ENGELS

Eles começam a concepção marxista de ideologia enquanto sinônimo de falsa consciência, como oposto à ciência. Depois, Marx avança para um conjunto de ideias como forma de tomar consciência prática das tarefas e problemas de seu tempo.

Eles elaboraram, então, a famosa máxima: as ideias dominantes de uma época são as ideias de sua classe dominante.

 

LENIN

O teórico russo contrapõe ideologia como visão de mundo classista, das diferentes classes. Há, assim, a ideologia operária e, oposta e inimiga, a ideologia burguesa.

 

LUKÁCS

O húngaro nomeia ideologia toda a superestrutura subjetiva: ciência, política, moral etc. Para ele, ideologia é ontológica, ou seja, tem função prática na realidade para 1) convencer uns aos outros a trabalhar de tal ou qual modo, 2) convencer os outros homens a organizar a vida social de certa ou daquela maneira.

 

ALTHUSSER

O autor francês retomou a ideologia como falsa consciência, como uma versão ou visão invertida, de cabeça para baixo, do mundo real. Na prática, ele apenas retomou o senso comum e preconceitos de seu meio ambiente, a universidade burguesa. Sua meta foi adaptar o marxismo à academia e suas concepções de classe média.

 

OUTRA CONTRIBUIÇÃO

Como no tema da liberdade humana, todas as concepções acima estão certas em algum nível. As diferentes ideologias – filosofia, arte etc. – subjetivam a objetividade, ou seja, desenvolvem, unilateralizam e aprimoram o que já existe na realidade. Por isso, muitas vezes apenas organizam e sistematizam o senso comum, o cotidiano.

Engels afirma:

 

Vimos como os filósofos franceses do século XVIII que abriram o caminho à revolução, apelaram para a razão como o juiz único de tudo o que existe. Pretendia-se instaurar um Estado racional, uma sociedade ajustada à razão, e tudo quanto contradissesse a razão eterna deveria ser rechaçado sem nenhuma piedade. Vimos também que, em realidade, essa razão não era mais que o SENSO COMUM do homem idealizado da classe média que, precisamente então, se convertia em burguês. (Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico, 2003, detaque meu)

 

Ele repete, na mesma obra:

 

Para o metafísico, as coisas e suas Imagens no pensamento, os conceitos, são objetos de Investigação Isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si, como algo dado e perene. Pensa só em antíteses, sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim, sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma coisa existe ou não existe; um objeto não pode ser ao mesmo tempo o que é e outro diferente. O positivo e o negativo se excluem em absoluto. A causa e o efeito revestem também, a seus olhos, a forma de uma rígida antítese. À primeira vista, esse método discursivo parece-nos extremamente razoável, porque é o do chamado SENSO COMUM. Mas o próprio SENSO COMUM - personagem muito respeitável dentro de casa, entre quatro paredes - vive peripécias verdadeiramente maravilhosas quando se aventura pelos caminhos amplos da investigação; e o método metafísico de pensar, pois muito justificado e até necessário que seja em muitas zonas do pensamento, mais ou menos extensas segundo a natureza do objeto de que se trate, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira, ultrapassada a qual converte-se num método unilateral, limitado, abstrato, e se perde em Insolúveis contradições, pois, absorvido pelos objetos concretos, não consegue perceber sua concatenação; preocupado com sua existência, não atenta em sua origem nem em sua caducidade; obcecado pelas árvores, não consegue ver o bosque. (Idem, destaque meu)

 

Lukács fala que a ciência costuma derivar do cotidiano como a criação de pombos observada por Darwin, mas não teve tanta clareza sobre isso quanto à ideologia.

Marx diz n’O Capital:

 

O segredo da expressão do valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos porque e na medida em que são trabalho humano em geral, só pode ser decifrado QUANDO O CONCEITO DE IGUALDADE HUMANA JÁ POSSUI A FIXIDEZ DE UM PRECONCEITO POPULAR. Mas isso só é possível numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma universal do produto do trabalho e, portanto, também a relação entre os homens como possuidores de mercadorias é a relação social dominante. (Marx, O capital I, 2013, p. 103)

 

Em seguida à citação, ele faz a famosa afirmação: por estar no mundo antigo e ser senhor de escravos, Aristóteles era incapaz de perceber a substância do valor.

A realidade é traduzida pelo pensamento, não criada neste nível. Uma obra de moral expressa a moral objetiva da realidade, por assim dizer. Quando pós-modernos falam de “Multidão” no lugar das classes em luta, eles estão intuindo o fim das classes no comunismo de modo impressionista e imediatista, pois as classes estão de fato em crise categorial. Quando outros pós-modernos falam de fim do trabalho e besteiras semelhantes, de fato sentem com exagero a crise do valor, a automação etc.

O filósofo ou o artista está na vanguarda do novo, ainda que algo seja de curta vida. Adorno percebeu já e ainda no começo que a música se tornaria apenas o fundo de um cenário, logo fato comum hoje desde o walkman, o MP3, o celular, a internet etc. Claro, muitas vezes erram os ideólogos.

Se a realidade humana, pessoal, está fragmentada, logo surgirá uma filosofia fragmentada. Passamos para a linguagem humana aquilo que não a é. O espírito do tempo hegeliano, Zeitgeist, na verdade é a objetividade do tempo, ou melhor, do meio, a carne e a coisa de uma época, corpo social e dinâmico – espírito, mas espírito concreto.

Isso produz uma nova conclusão, teorema: se uma teoria parcial pode surgir, ela surgirá. Vejamos dois exemplos. A artificialidade atual do dinheiro, na artificialidade do sistema mantido pelo Estado, sua criação fácil, leva a membros da classe média a pensarem como solução para tudo a criação maior de moeda. A nova classe média e a aristocracia operária europeia fizeram a cabeça de Sartre e seu existencialismo.

O materialismo parte, também, do senso comum: a realidade existe. Para um cidadão médio é óbvio que a objetividade há, e é, pois Deus a criou. O idealista apressado acusa tal ideia por ser vulgar, cotidiana, e eleva a voz para duvidar da existência autônoma do real. Na verdade, sequer dá dois passos à frente na sua elaboração.

A realidade é um inconsciente objetivo para além do inconsciente individual, subjetivo. Assim, este é influenciado por aquele; então ocorre a racionalização, no duplo sentido, psicanalista e não psicanalista. Lukács, por isso, erra quando diz que o artista, similar ao Espírito hegeliano, vai para o mundo e, enriquecido por ele, produz algo, retoma-se; não; o poeta já está na realidade e sua inspiração vem de repente, tantas vezes do inconsciente duplo para a consciência; depois, uma ideia leva à outra, e outra, e assim por diante. Se o romancista pesquisa, parte da ideia inicial, age a posteriori, e suas investigações são muito específicas, como estudar arte militar para melhor descrever e narrar uma batalha.

Veja-se que os reformistas enrustidos no meio marxista insistem em negar a validade teórica de três aspectos do socialismo científico: a dialética, a queda da taxa de lucro rumo a crises e ao fim do sistema e a necessidade de um partido democrático centralista. Fazem isso de modo, em geral, inconsciente, mas o fazem. Em geral, expressam a classe média em suas entranhas cerebrais, por isso, por exemplo, a maior dificuldade de ir além da lógica formal.

Enfim, a subjetividade dominante de uma época é a subjetividade de sua objetividade dominante. O subjetivo é um espelho ampliador. A classe dominante não cria ideologia em uma sala secreta de reuniões, caso contrário seria pura falsificação, não ideologia; assim como não controla o próprio sistema, a burguesia não controla a criação ideológica de modo direto e inteiro; “nós criamos, mas criamos apesar de nós”. A realidade entra na cabeça da própria classe dominante, que traduz o real de seu ponto de vista, e tenta ganhar a sociedade para suas próprias posições, que têm origem primeira no objeto, ainda que unilateral.

Uma ideologia, por mais força social potencial que tenha por si, costuma precisar de uma superestrutura objetiva, uma instituição, para prosperar em muitas cabeças. As teorias de Lenin e Trotsky somente deixaram de ser marginais porque lideraram uma revolução, um partido e um Estado. Na França, a escola de Annales apenas cresceu porque tomou espaços universitários. Para muitos filósofos, cargos como o de reitor de universidade tiveram um efeito brutal na popularidade de suas ideias. Fora de tais meios, costuma-se cair na marginalidade.

O externo se internaliza. Os marxistas afirmam que apenas (re)conhecemos o objeto quando ele está maduro; antes, conhecemos imperfeitamente o objeto porque o objeto também ainda é imperfeito. Os mercantilistas na economia pertencem à época mercantilista; a teoria da evolução de Darwin, a seleção do mais apto, pôde surgir e ser corretamente aceita porque a revolução industrial impôs o império da livre concorrência, permitiu surgir tal avanço científico por sua estrutura-avanço social e tais ideias eram úteis para o desenvolvimento das forças produtivas. Eis uma forma diferente de identidade e unidade objeto-sujeito. Em duplo sentido, o objeto que se reconhece no sujeito. Além do mais, a realidade tende a produzir homens e mulheres para si, que veem tanto quanto podem ver.

A ideologia traduz e expressa as contradições e as dinâmicas do real, ainda que seja para negar tais contradições e tais dinâmicas. A ideia de tradição medieval vem de uma objetividade que pouco muda, em que o passado dava respostas suportáveis – até não mais dar.

Temos, portanto, uma concepção ideológica de ideologia. A consciência avança se sua base material avança; e recua se esta recua. Mas a consciência também é matéria, então tem força na própria materialidade, e resistência à mudança, para frente ou para trás, além de influenciar também o meio. Há aprendizado, há tradição. De tal modo, damos um novo significado para a dinâmica unidade e identidade sujeito-objeto; tal objeto como objetividade, realidade. A ideia é matéria – a ideia é matéria em processo.

 

CONCIÊNCIA

De onde vem a consciência? Da contradição. Quando um todo no qual o ser vivo opera se desregula, ou seja, quando os hábitos, as repetições de comportamento, deixam de encontrar a externalidade (totalidade) correspondente à ação; então força-se à percepção, cálculo, medição, comparação e diferenciação de si, do si, em comparação ao externo. É a sobrevivência, a necessidade de satisfazer necessidades, o impulso íntimo, cuja fonte é exterior ao corpo-mente. O primeiro impulso deu-se com a obrigatoriedade dos antigos primatas a descerem das árvores nas savanas.

A teoria da evolução descobre que um órgão corporal, uma parte do, o cérebro neste caso, pode ser mais ou menos flexível e modificável para novas funções; e que as mudanças, mutações, mais ou menos comuns, prosperam ou não a depender se gerarão vantagens, não-contradições, com o ambiente natural. Temos um segundo estímulo à consciência. Isso é válido para uma espécie ou seu ser singular, uma pessoa, como também para um grupo humano: uma crise econômica faz com que um ser coletivo, a classe trabalhadora, ao romper a rotina, avance de classe em si para, ao elevarem-se as contradições, classe para si, consciência de classe. É análogo ao processo em escala biológica.

Na medida em que o homem primitivo, os antepassados evolutivos próximos, modificavam, por meio do trabalho e construção de ferramentas, os seus próprios hábitos, surgiam necessidades novas; o ambiente modificava-se, o que gerava novas limitações a serem superadas. Como agir a estas contradições e mudanças? Pela capacidade de projeção, de imaginar, de antecipar idealmente. Tal habilidade só pôde surgir como necessidade permanente, mais que casual. Temos aí a base para tudo a que chamamos inteligência, criatividade, consciência e pensamento. Para isso, já o sabia Engels, o cérebro contou com energia oferecida por alimentos cozidos, pelas carnes e ômega 3.

Abordemos uma pista empírica – forma de protoconsciência – em outras espécies:

 

INSETOS PODEM TER TIDO “CONSCIÊNCIA” BÁSICA HÁ MAIS DE 500 MILHÕES DE ANOS. (Comentado)

Dr. Barron e pelo Dr. Klein acreditam que as origens da consciência, são rastreadas pelo menos, até o Cambriano, que começou há cerca de 540 milhões de anos atrás.

“Quando os organismos começaram a mover-se livremente em seu ambiente, eles enfrentaram muitos desafios novos”, explicou o Dr. Klein.

“Eles tiveram que decidir para onde ir. Eles tiveram que priorizar suas necessidades. Eles tinham de interpretar informação sensorial que mudou como consequência do seu movimento. Isso exigia um novo tipo de modelagem integrada, e é aí que nós pensamos que a consciência surgiu.”

Bruno van Swinderen é professor associado da Universidade de Queensland e é um líder no campo da neurobiologia do inseto.

Dr. Van Swinderen acredita que um dos pontos mais importantes do novo trabalho é a constatação de que a compreensão da evolução da consciência não virá da procura de comportamento inteligente em outros animais, mas sim de compreender os mecanismos fundamentais que apoiam a consciência subjetiva e atenção seletiva, que ele diz que “sabemos agora que insetos têm”.

“Os insetos têm sido vistos tradicionalmente como mini-robôs, respondendo a estímulos ambientais de uma forma bastante inflexível”, disse o Dr. Van Swinderen.

“Em contraste, Barron Klein e sugerem que é provável que algumas dos bases fundamentais da consciência já foram resolvidas nos menores cérebros”. Compreender completamente o que está na mente de um inseto ainda é impossível, no entanto. (Rossetti, 2016)

 

Uma coisa é o órgão; outra, o fruto de sua atividade: cérebro e mente são categorias reais interligadas, são o mesmo, mas, ao mesmo tempo, diferentes. Destas pistas, retiramos a seguinte hipótese, que nos parece mais correta: não há um local responsável pela consciência – é uma consequência da totalidade da atividade cerebral, da interação de suas partes. Mas, certamente, qualquer totalidade, incluso o cérebro e a consciência, tem um centro.

A explicação científico-filosófica da consciência certamente terá de abandonar a explicação simples e dicionária, isto é aquilo, para uma explicação por saturação do conceito. De novo, as conquistas metodológicas da economia política nos servem de exemplo facilitador: Marx, ao longo de sua obra magna, não diz apenas em uma vez e explicação “o capital é (isto)”, escolhe desenvolver a categoria no seu próprio evolver, satura-o no seu significado próprio (é-se: valor que se valoriza, relação social etc.). Aqui, indicamos “consciência é alucinação relativa” para o caminho lógico-teórico do tema. Tratemos por nome imaginação, imaginação controlável pela relação material: dúvida, sendo diferente de imaginar, é uma forma de imaginar; recordar, sendo diferente de imaginar, também apenas se expressa como imaginação específica; são exemplos de diferentes formas de imaginação. Essa é uma das instâncias de preenchimento do conceito de consciência.

Tornemos ainda mais claro. O esquizofrênico tem, por sofrimento material, diante da realidade, nesta, a imaginação inflada com lógica também sob inchaço. Na selva amazônica, um macaco prende-se na armadilha de caçadores de uma cuia com frutas dentro e um pequeno furo para pôr a mão; coloca a mão dentro, agarra as pequenas frutas, e trava-se naquela situação, fica preso, pois lhe é impossível soltar as frutas para se desprender e fugir – o macaco não alucina perante o desespero, falta-lhe imaginação. “Leve um homem e um boi ao matadouro; aquele que berrar é o homem. Mesmo que seja o boi.”(Torquato Neto). Na falta de relação imediata com o objeto, alucina-se.

A “mente imaginativa” é um resultado da atividade cerebral, órgão específico e integrado aos demais, é material, e tem de ser considerada também em si, assim como o bombear de sangue não é o próprio coração – coisa e atividade.

Apenas permanece aquilo que muda – e só a mudança é permanente. A consciência vem da repetição; quando a mudança tornar-se regra, logo o cérebro-mente tem a necessidade, em permanência, de saber o que permanece na mudança. Ele continua fixado no passado, na busca da repetição, do padrão, embora, diferente de um computador, de fato crie, faz o inédito.

Isso permite explicar um comentário: não existem mais gênios judeus. Ora, a pergunta é por que judeus e ciganos contribuíram tanto para a humanidade! Porque 1) eles tiveram um grande período dinâmico, de movimento e nômade; 2) eles estavam, ao mesmo tempo, dentro e fora da sociedade (veja-se que a solidão leva, tantas vezes, à leitura, por exemplo). Isso explica, em parte, o motivo de os negros no Brasil (Machado de Assis, Gilberto Gil, Cruz e Sousa, Milton Santos etc.) e dos EUA (Jazz, Blues, cinema etc.) terem contribuído tanto com gênios máximos na história desses dois países.

A mente, a consciência, a ideia (abstratos) são resultado do cérebro (concreto) e da realidade (concreto) em movimento, em mudança, em atividade (processo) – o abstrato é concreto em processo. Porque a realidade altera-se, e a realidade social mais ainda, produz-se um impulso de manter a repetição, que forma a mente e é base para todo pensamento avançado. Uma pessoa que permanece uma semana presa e apenas deitada num quarto sem sequer ter noção da luz natural solar sente sua psique “desfazendo-se”, dissolvendo-se, pois perde a noção de movimento e mudança. Os teóricos da consciência etc. erram ao partirem de dentro para fora, não ao contrário, como se fosse premissa básica que a mente etc. existe por si. Aumentamos, portanto, o peso do objeto sobre o subjetivo. Nesse sentido, embora forçando um tanto a mão, a consciência é objetiva antes de ser subjetiva.

A consciência surge ou eleva-se por sua necessidade, por necessidade de satisfazer necessidades (individuais, coletivas). Por isso, países decadentes após largo avanço ou imensamente contraditórios, como entre o avançado e o atraso, produzem grandes gênios. A degeneração dada pela alta qualidade de vida por ser combatida pela combinação de arte, esporte realista, erudição, alguma dedicação manual, relação esforço-recompensa.

***

Aqui, inspiramo-nos nos gregos. Eles negavam a empiria aparentemente aparência, instável, caótica, sem lógica, sem rumo, contingente e queriam acessar o mundo por meio da boa reflexão, do pensamento dedicado, de deduções abstratas, de lógica e conflito de ideias com palavras. Assim, continuavam querendo o permanente na mudança – e fizeram, portanto, filosofia! A filosofia experimental, a científica e a objetiva, claro, hoje baseiam muito mais diretamente nos dados, no fatos, na empiria, embora saiba que a aparência ao mesmo tempo revela e esconde a essência, a verdade.

Isso leva-nos ao debate sobre inteligência artificial: podem os programas e robôs tornarem-se conscientes? Para nós, o que é, em primeiro lugar, consciência? Devemos responder tal pergunta milenar, até hoje um enigma insuperável, com suas diferentes escolas e polêmicas. Consciência é, também (pois não o que ela é não cabe no dicionário), autoconsciência, consciência de si. Mas ser consciente de si é ao mesmo tempo diferenciar, ter consciência do outro e do externo. Por isso, dizer que consciência é consciência de algo tem tal algo igualmente como a si próprio, alguém. Assim, ter consciência exige ter consciência da sua finitude, de perceber ser algo que não outro, ou seja, ter borda e limite, ou seja, ter fronteira. O erro de dizer que pensamos e temos consciência por meio de todo o corpo deve ser (re)considerada – não penamos com o corpo inteiro, mas é quase isso. O cérebro é também sua função. Ademais, consciência é finitude não só espacial, também temporal – consciência exige falta, logo, necessidade, logo, desejo.

Dito isso, considerando a consciência de seu lugar abstrato, ou seja, separado e isolado nas nuvens ideais, vemos a dificuldade de uma inteligência artificial tornar-se de fato consciente. Ademais, o cérebro é a coisa mais complexa e difícil de replicar do universo. Pode-se, com mais rapidez, simular um “como se” tivesse consciência. Mas, ao oferecer algo como um sistema nervoso completo ao robô, além de sentir necessidades (falta de energia, incômodo etc.), quem sabe a singularidade finalmente ocorra, para o bem ou para o mal. Marx diz que a há humanização das coisas e coisificação dos homens; e isso tende a ser literal, atingir um máximo: das máquinas simples que imitavam o movimento repetitivo das mãos humanas às máquinas complexas que imitam a sua inteligência e consciência.

 

O MARXISMO BÁRBARO

O marxismo acadêmico, antes alternativa, tornou-se o marxismo oficial, contaminando os partidos marxistas. Há uma razão clara para o melhor do marxismo – Lênin, Trotsky, Marx, Engels, Gramsci, Moreno etc. – ter se formado por fora da academia, não por meio dela; em muitas ciências e na arte este também foi, inúmeras vezes, o caso. Burocratas universitários cumprem tarefas de burocratas; se fazem ciência, é algo acidental – tanto mais se em profundidade; a universidade precisa ser libertada, assim como foi libertada, antes, das mãos do feudalismo. Pelo ambiente e por elevação da qualidade vida, tornar-se professor de universidade matou o ímpeto de boa parte dos melhores quadros do movimento socialista. O marxismo agora oficial pouco produz de fato, pouco contribui e, quando tem algo profundo a dizer, erra com maestria. É constrangedor a falta de domínio do método dialético, por exemplo, usando do sofisma para fingir que compreende algo sobre o qual pouco domina, nunca usou como ferramenta. O marxismo sofreu o primeiro duro ataque interno na II Internacional, com os papas da social-democracia alemã; apenas com o marxismo russo, como com o marxismo do mundo subdesenvolvido hoje, pôde renovar a teoria. Depois, o estalinismo matou teórica e fisicamente toda a nossa tradição criativa. Após a segunda guerra mundial, Mandel, na estável Europa, tenta atualizar o marxismo, mas falhou e pendeu para o revisionismo; em oposição, Moreno, na conflituosa América Latina, faz um trabalho melhor, mas ainda tímido e de resgate. É com Lukács que começa alguma virada após a morte de Trotsky. Mészaros, de um lado, e Kurz, fora da universidade, de outro, são aqueles que dão o passo de fato primeiro, ousado, mas caem em pensamento unilateral e impressionista. Outras contribuições pontuais surgiram, mas pontuais, como os de Henri Wallon, na psicologia, e Henri Lefebvre, na geografia. Moreno falou de “trotskysmo bárbaro”, formado longe dos ambientes de erudição oficiais e no calor das lutas; ampliamos para marxismo bárbaro, porque tem a sujeira necessária, como a palavra comunista em relação à palavra socialista, para a produção realmente criativa, embora não revisionista. O marxismo bárbaro tem adoração pela dialética, mas de modo por inteiro crítico e renovador. O marxismo bárbaro nunca teme a desmoralização ao querer resolver polêmicas e problemas teóricos ousados. Em geral, o marxismo acadêmico é estéril, pouco criativo. Quando não é bíblico e dogmático, é renovador sem critérios de fundo, novidade pela novidade, impacto pelo impacto ou para vender muito o próximo livro… Subversão sem marxismo de nada serve; marxismo sem subversão é inútil. Os intelectuais marxistas são incapazes de ligar teoria e prática, de fazer análise de conjuntura, de elaborar política correta etc. É preciso certa dose de vida dialética para pensar de modo dialético. Por isso, o marxismo que olha apaixonado para os teóricos europeus da história recente mantém a tradição, comum no Brasil, de abraçar qualquer novidade exótica vinda da Europa; nada se produz em profundidade, apenas se torna representante oficial deste ou daquele filósofo em palestras que pouco ensinam. O muro de Berlim caiu logo em cima de tais consciências! É necessário dizer que a razão de resgatar os clássicos, estudá-los, tem a função de atualizar a teoria, nada de apenas atividade literária ou repetição de fórmulas. Os jovens marxistas devem respeitar seus mestres e suas tradições, mas para subir em seus ombros e ver mais longe e melhor. Mas a prova de que isso não ocorre é a pobreza dos sites e revistas de marxismo dos partidos, às vezes com meses sem novas contribuições, sem polêmicas vivas! A paz dos cemitérios futuros. O despotismo partidário, a ordem dos dirigentes, destrói o livre pensamento, o impulso subversivo, o pensar com a própria cabeça, o arriscar acertar e errar. Com a devida humildade, espero que este livro – com sua teoria geral da crise sistêmica e outras teses – seja parte vital da recriação necessária do marxismo, demonstre que é possível, abra novos caminhos. Afinal, isso era tarefa, já muito atrasada, para dirigentes e eruditos da velha guarda que teve de ser cumprida por alguém fora dos ambientes oficiais. Pois, no entanto, ela gira.

 

O ÓDIO POLÍTICO

Diante da situação reacionária no Brasil e no mundo, a esquerda fez campanha contra o ódio, em defesa do amor e do diálogo (pedindo, assim, que o inimigo na ofensiva não atacasse). Isso é reformismo do pior tipo. As pessoas não estão odiando à toa, pois o desemprego e a precarização batem à porta; a classe média, falando de outro grupo social, irrita-se com sua fragilização ou com pobres usando aeroporto. A luta de classes é inevitável, logo é necessário que ela tenha como motor os nervos pessoais, a raiva acumulada. Se tal ódio não se expressa de forma positiva, criativa, poderá transmutar-se em desmoralização, tristeza ou depressão e impotência, individual e social. São tempos de forma sem conteúdo, de café descafeinado, de suco artificial, de corpo sem pulsão, de mercadoria sem valor novo – dirá o, no mais, medíocre marxista Slavoj Žižek. Se não é fruto de acasos, o ódio importa, mesmo e em principal o ódio de classe dos assalariados contra os ricos, dos ricos contra os assalariados. O reformismo quer resolver tudo na base do voto, não da luta, quer o bom comportamento logo quando se deve destruir o comércio no templo. A emoção e a razão não são apenas opostos e nem sempre contraditórios, um limitando o outro; eles podem estar juntos, um impulsionando o outro e vice-versa, em unidade destrutiva-produtiva. O partido revolucionário deve estimular este ódio com a situação e a coragem, a ação ousada. Sem fortes sentimentos, nada grandioso e racional será feito. “Nada grandioso no mundo foi realizado sem paixão”, afirma Hegel. O pacifismo derrotista de nada nos serve, pois há horas para o máximo diálogo e há outras para o máximo confronto. O ódio como sentimento apenas e sempre negativo é filosofia e política da pior qualidade.

 

MÉTODO EMPÍRICO-DEDUTIVO

Quando a civilização grega antiga atingiu seu apogeu, com o devido afastamento das barreiras naturais, o homem ainda mais social numa sociedade de classes, produziu a filosofia dos sofistas, onde a verdade, na prática, não importava, seria inalcançável. Algo semelhante acontece hoje. Com os avanços do século XX, em base a uma sociedade fraturada em classes, a filosofia pós-moderna, na área de humanas, declarou as várias verdades, as narrativas, a fragmentação, o culturalismo, o grande indivíduo – sentiu-se à vontade para desprender-se, em parte e ilusoriamente, do real. Duas questões (Machado, 2022) parecem operar o início do pensamento pós-moderno: 1) a crise do liberalismo como crise do capitalismo; 2) a crise do marxismo por razão das ditaduras estalinistas que transformaram o pensamento antes crítico em dogmas em nome de repressões contrarrevolucionárias. Isso, tal explicação, é parcial, quase apenas superestrutural; no fundo, estão também, além dos fatores análogos aos dos gregos: 3) o crescimento da classe média urbana; 4) a precarização de tal classe; 5) o aumento da solidão social; 6) diminuição e fragmentação da classe operária; 7) a necessidade de evitar conclusões socialistas, sistema ainda relativamente impossível naquele momento. A base econômica-social, as mudanças na estrutura, deu as condições necessárias para a criação da filosofia irracionalista correspondente, como sua imagem e semelhança, como carne que se faz verbo, matéria que se faz ideia. A loucura do sistema em seu ocaso faz a loucura metodológica da pós-modernidade, a realidade em migalhas faz o pensamento em migalhas.

Por exemplo, dizer que tudo é construção social – à semelhança dos antigos sofistas – soa subversivo, até socialista, mas é idealismo puro, como se valores e hábitos pudessem mudar por pura decisão, por pura tomada de consciência. É absurdo que marxistas tomem tal posição como na questão da natureza humana. Tal erro tem uma base, qual seja, somos, de fato, mais sociais que antes, bem mais, além de estarmos sob escravidão assalariada ainda.

Mas a solução não é o seu oposto, uma tomada conservadora. Aqui, entra a reflexão sobre o método propriamente científico. O método hipotético-dedutivo de Popper foi superado como paradigma pela moderna filosofia da ciência, mas cientistas atrasados ou pouco afeitos à filosofia permanecem no erro. Isso tem motivo. Não há método científico, no singular, mas métodos científicos, no plural; e o hipotético-dedutivo certamente ajuda a fazer descobertas, embora limitadas, por isso a sua resiliência.

Mas permanece a mera aglutinação, não a fusão em um terceiro, do empírico e do racional. Einstein defendeu sempre o método dedutivo, por exemplo, enquanto outros, o indutivo. É necessário resolver a oposição e a contradição. O empirismo afirma que devemos nos limitar a colher e organizar dados, fazendo generalizações indutivas quando for razoável, evitando de todo refletir sobre eles; o racionalismo, ao contrário, diz que os dados enganam, logo devemos confiar na razão humana para, de ideias racionais, chegar a conclusões novas e racionais. Ora, ambos acertam e erram ao mesmo tempo. O método empírico-dedutivo, o oposto do superado hipotético-dedutivo e o adversário mortal da pós-modernidade, inicia pela apreensão dos dados empíricos, pois eles são o começo e vitais como fonte da verdade; mas tal empiria, além de revelar, esconde e engana, logo usamos a razão para saber desviar das armadilhas, para saber do interno por meio do externo, da unidade por meio da diversidade, da essência por meio da aparência enganosa – pois o essencial é invisível aos olhos e a realidade tem uma lógica própria a ser descoberta, não criada pelo cientista.

Além de ter uma estrutura, a realidade tem um processo inerente – queremos ambos na nossa investigação. Queremos o mundo em seu vir-a-ser, em seu devir, em seu tornar-se, em seu desenvolvimento. A ciência já atrasou por demais seus avanços por falta da dialética como instinto básico da pesquisa. O universo estático, repetitivo, passou, com muito atraso, para o universo com história, com evolução; já podemos tomar como ainda mais racional que o cosmos teve e terá ciclos, gerações de universo, um após outro.

Não se deve apenas interpretar os dados. A física quântica, por exemplo, tem uma dezena de interpretações conflitantes sobre tal estágio do mundo, todas baseadas nos dados. Mas estes nem sempre são criticados: antes, tomava-se como verdade incontestável que o salto quântico é instantâneo; hoje, ainda toma-se o spin como algo do reino quântico, como uma propriedade fora da nossa racionalidade, sem maiores explicações, portanto. Deve-se deduzir, também, o limite do empírico. A verdade está em algum lugar, nem que seja no meio ou na fusão.

 Deve-se evitar de todo iniciar por hipóteses, premissas, postulados, modelos, “métodos”, princípios ou mesmo conceitos – eles devem ser a conclusão da pesquisa, não seu início. E são descobertos, não criados de modo arbitrário. Em especial, os conceitos mudam se a realidade muda, não são fixos, são móveis, muitos com início e fim.

A verdade é não empírica, impalpável, mas deriva sua descoberta da empiria. Ao que parece, Darwin correu o mundo colhendo dados multíplices, contingentes, diversos, caóticos – até perceber as leis gerais do desenvolvimento da vida. Nesse sentido, foi um dialético.

É o objeto de pesquisa que diz como ele será explicado e apreendido. De modo algum, o cientista tem a honra de escolher um ângulo ou método para sua investigação como fazem o kantismo e o pós-modernismo. A verdade é o todo contraditório em evolver.

Se há responsabilidade básica, nunca será escolha de todo pessoal do pesquisador qual será seu objeto estudado. É a realidade, o objeto, as necessidades sociais ou teóricas, que determina qual será o tema de pesquisa, nunca a mera vontade subjetiva do sujeito. Claro, entre assuntos urgentes e relevantes, pode-se escolher aquele pelo qual se tem mais afinidade.

Até o modo de organizar e expor um livro deve ter origem no objeto, não no sujeito. A organização do objeto impõe uma organização clara da obra. Neste livro, tivemos de começar, primeiro, pelo primeiro na sociedade, a economia; não fosse assim, o material textual seria confuso.

O método dialético torna-se o método empírico-dedutivo. Em outro capítulo, demonstraremos como no trato da lógica de tal método, Hegel deixou de observar como se deveria o diacrônico, o processo.

Marx, Darwin, Einstein e Freud revolucionaram o pensamento e a sociedade. Além desse fator comum, todos foram base para uma concepção histórica do cosmos – Ser é histórico, ou melhor, histórico-geográfico. Mas algo ainda mais de fundo também os une. Consciente ou inconscientemente, com maestria ou com improviso; todos usaram o método empírico-dedutivo, dialético, bem ou mal. Marx percebeu, pelos dados, as leis de desenvolvimento da histórica capitalista e da humanidade. Darwin percorreu o mundo colhendo dados e experiências variadas sobre a vida, até deduzir a evolução das espécies. Freud deixava os pacientes falarem à vontade, de modo relaxado e aparentemente desconexo, até que era percebido o nexo interno oculto na diversidade externa, além de aspectos da história do paciente – o que lhe permitiu consolidar uma teoria. Einstein defendeu com veemência o método dedutivo, não o empírico-dedutivo, porém suas premissas, muitas vezes, já estavam sendo confirmadas na realidade, como a velocidade da luz e sua medida como a máxima do universo, aproximando-o intimamente do método aqui defendido (resumo grosseiro: partir do empírico para deduzir – Einstein declara: “Vale então o princípio: a massa gravitacional e a massa inercial de um corpo são iguais uma à outra. Até hoje a mecânica, na verdade, registrou este importante princípio, mas não o interpretou(Einstein, 1999, pp. 57, 58; destaques feitos por Einstein)). Sua formulação foi a base da teoria do Big Bang, da história, ainda incompleta, do universo. Isso explica o motivo do limitado Popper ter afirmado que a teoria da evolução de Darwin, a teoria da história humana de Marx e a teoria freudiana não serem, para ele, ciência… Depois, recuou no caso da biologia darwiniana para evitar desmoralização diante da merecida autoridade de Darwin. Popper desconhece as ciências históricas. Veja-se que todas as teorias acima são atacadas das mais diferentes formas; negadas por estados, correntes e religiões. Nenhum acaso há aí. Concepções de Marx como o lado não eterno do capitalismo fere interesses lucrativos, de classe e religiosos. A teoria da evolução derruba uma premissa da religião, logo é negada com fervor. A teoria freudiana tira o lugar consolador da fé e agride os bloqueios inconscientes de muitos (homossexuais enrustidos, pessoas que mal lidam com seu complexo de édipo etc.), levando até a acusação máxima de pseudociência (enquanto consideramos, aqui, ela incompleta). Einstein é acusado de charlatanismo até hoje, mas nunca refutado, nem superado (embora possa ser ao mesmo tempo preservado e superado no futuro como tentaremos esboçar em outro capítulo) – além de ser acusado, com razão, de ser… comunista! As ditaduras têm, em geral, horror às teorias de essência, mais do que instrumentais. Se são obrigadas, aqui e ali, a adotá-las, como para fazer uma bomba atômica, ou para parecer marxista enquanto rouba o povo, trata-se da verdade impondo-se. Ainda assim, o método dialético, como empírico-dedutivo, demonstrou apenas metade de suas capacidades revolucionárias na ciência. Em outro momento, demonstraremos construções como A=A e não-A, sincrônicas em geral, suprassumidas por A=A e… não-A, também diacrônicas. Isso casará bem com E=mc², a identidade dos diferentes no movimento ou no desenvolvimento.

Junto com ser empiricamente verificável, a verdade deve ser empiricamente dedutível, apesar do engano das primeiras impressões.

 

LUTA POLÍTICA, LUTA DE CLASSES

Há uma falha no movimento comunista, na sua comunicação. Exceção dos conflitos palacianos, as medidas de governo e de poder possuem um caráter classista oculto, que deve ser revelado às massas. Por que Dilma foi obrigada a tomar medidas neoliberais, por que o teto de gastos ao Estado? O objetivo da grande burguesia era quebrar a onda de graves daquele período por meio do retorno ao desemprego; por isso, cortar os estímulos estatais à economia. A causa classista das medidas de governo deve ser denunciada por todos os cantos. Enquanto a mídia cria um enredo para dizer que tal ou qual media é bom para todo o país, independente das classes, e faz justificativas “técnicas”; nós devemos, sempre, esclarecer o caráter de classe das medidas tomadas ou pretendidas. A luta política, em especial a partidária, camufla e esconde qual a luta real em jogo, a de grupos humanos opostos. Enquanto uns procuram esconder o caráter classista, nós revelaremos. Isso é um caminho necessário para retornar a consciência de classe. A luta política quer esconder, como se autônoma, o caráter de classe de sua dinâmica.

 

ASPECTOS DO MAXISMO

Neste subcapitulo, trataremos de incompreensões sobre o marxismo. Muitas críticas contra tal ciência, derivam do mau entendimento de suas conclusões, algo comum mesmo entre os discípulos de Marx.

 

Individual e coletivo

Diz-se que Marx acertou, mas apenas entre as formigas. Como se o velho pusesse o coletivo sobre o indivíduo. Isso é um erro. Sua concepção defende que o desenvolvimento de cada um será, no socialismo, a condição – condição! – do pleno desenvolvimento da sociedade. Como isso se mostra? O escravo antigo não tinha liberdade alguma; depois, o servo medieval era mais livre; depois, o assalariado no capitalismo é ainda mais livre, livre em formal; depois, o cidadão socialista terá o maior grau de liberdade possível. No marxismo, a história humana é a história em que o indivíduo é cada vez mais livre, logo a próxima etapa, a socialista, será de liberdade ainda maior que a anterior.

O marxismo abomina o “isto ou aquilo” e substitui por “isto e aquilo”. Assim, a oposição entre individualidade e coletividade deve ser superada na união de ambos.

 

Biologia

Para Marx, o motor primeiro da humanidade não é a luta de classes, o modo de produção ou a economia. O central é que homem deve, primeiro, satisfazer suas necessidades, incluso sexuais. Ele pensou isso antes da revolução de Darwin, contra a religião e a filosofia de sua época.

É necessário, antes, produzir e reproduzir as condições de vida de modo a ser capaz de, pelo menos, manter-se de pé e perpetuar o gene (desconhecia-se genes à época), a espécie e a comunidade.

Vejamos a lei primeira de Marx, fala de Engels:

 

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc; de que, portanto, a  produção dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento económico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, das têm também que ser explicadas — e não, como até agora tem acontecido, inversamente. (Engels, Discurso Diante do Tumulo de Karl Marx, 2006)

 

A luta de classes é uma luta por recursos e uma luta distributiva, não só de produtos ou dinheiro, mas também de tempo, de energia etc. Em resumo, luta de classes por: movimento, energia, tempo, espaço e matéria.

Antes de ser social, o homem é natural. De outro modo, natural socialmente modificado e desenvolvido. Os marxistas relacionalistas pensam que a biologia humana é apenas uma carcaça vazia, como se a genética e o biológico nada tivessem a dizer, ainda que de modo relativo e mediado.

Por vezes de modo cínico, os marxistas vulgares consideram apenas a homossexualidade como natural, biológica, pois isso é um bom argumento em defesa da causa. Mas é uma exceção e um limite. Têm medo da verdade, procuram encaixá-la em suas noções prévias.

 

Essência humana

Marxistas também erram sobre Marx. É o caso do tema da essência humana, pois seus seguidores dizem que a natureza do homem vem das "condições materiais existentes" em cada época. Pois bem; Marx diz, em O Capital, que temos, não uma, mas 2 essências humanas: 1) a geral, independente da época – de origem natural, como descobrimos; 2) a histórica, que muda com as mudanças ambientais da sociedade. Assim, o cérebro humano também é uma "condição material existente", apenas relativamente maleável.

O Marxismo sociólogo pensa: 1) para a teoria burguesa, o egoísmo é a essência humana e algo natural; 2) a concepção burguesia está errada; 3) logo não existe essência natural. Percebe-se o absurdo salto lógico ilógico? O fato de a concepção burguesa de essência humana estar errada nada afirma sobre a existência ou não de, também, uma essência humana geral e natural. Deve ser investigado, incluso a posição de Marx da existência de duas essências humanas.

Lembremos que na época de Marx: 1) as ciências da mente e do cérebro sequer engatinhavam, e a neurociência é recentíssima; 2) as revoluções científicas da história do homem e da vida, Marx e Darwin, haviam acontecido, mas ainda com muito a desenvolver. O princípio e o método marxistas permanecem como base das atualizações, como a essência humana “natural”.

 

Marxismo não é estatismo

Eis uma confusão universal. Se uma empresa do Estado visa, direta ou in[28], o lucro, o mais-valor, o dinheiro em busca de mais dinheiro, logo a empresa é capitalista. O Estado burguês é um burguês impessoal. Contra a oposição entre o público e o privado, alguns marxistas defendem o “comum”. Nas empresas socialistas, os operários governam a própria empresa por meio de assembleias regulares que decidem tudo o central de seu funcionamento; tais empresa só são estatais porque o Estado socialista não é uma entidade separada de seu povo, mas é diretamente controlado por ele, pelos que vivem do próprio trabalho.

 

O ideal

Pensa-se o materialismo de Marx como se a subjetividade nada importasse. No meio da militância comunistas, “detalhes” psicológicos são tratados como descartáveis, exóticos, fora do materialismo etc. Mas a visão marxista é a visão do todo, o que inclui tudo subjetivo; ademais, criar um partido marxista tem a função de disputar consciências, pois não existe caminho inevitável ou natural, determinístico, para o socialismo. A oposição externa entre ideal e material, mente e corpo, consciência e realidade, é apenas… externa, pois tudo é matéria.

 

MARXISMOS

Faz falta uma obra que faça a análise correta dos mais variados marxismo, dessa pluralidade teórica. O pensamento contemporâneo pode ser dividido entre marxistas e não-marxistas. Aqui, trataremos de maneira sintética apenas das escolas que têm algum peso maior, que formaram tradição – ainda que menores em suas contribuições. Apesar de nossas críticas, elas foram base desta obra, mesmo como um referencial de por onde evitar navegar.

 

LENIN

O russo viveu uma das ditaduras mais violentas do mundo, da história. Isso serviu de base para que pensasse um modelo de partido hoje nomeado bolchevique. Democracia interna nos organismos, que lutavam por democracia, em especial a socialista, mas agir de modo unificado e disciplinado no movimento prático – contra um inimigo centralizado. Seu perfil partidário logo teve de ser generalizado para outros partidos, mesmo que sob democracia burguesa.

Lenin foi um dos últimos a teorizar a natureza do imperialismo. Seu acerto, no entanto, deve-se mais à sua perspectiva, operária e revolucionária, que lhe deu um bom ângulo para caracterizar as mudanças.

Um político genial, mas limitado em outras áreas do pensamento. Um dos seus limites é ter estudado a Lógica de Hegel apenas após o início da primeira guerra mundial. Assim, ele opunha luta política e luta econômica, sem ver a dialética unidade delas. Sua teoria do reflexo não tem muito a oferecer.

Lenin, na obra Imperialismo, ora diz que a nova fase do sistema estimularia o desenvolvimento das forças produtivas como nunca antes, ora dizia que elas não mais conseguiriam se desenvolver. Por que a duplicidade? Pela pressa em torno da revolução mundial… É difícil aceitar que seu tempo ainda não é o tempo do socialismo, a vida é curta.

Para os estalinistas, o Lenin que conhecemos hoje nasceu pronto, sem erros. Não poupam elogios ao revolucionário. Mas ele foi uma construção social, que se desenvolveu.

Já criticamos a indução de que a causa dos Estados burocratizados “socialistas” seria fruto da liderança por partidos centralistas – posição que vê a parte apenas, não o todo (a imaturidade daquelas sociedades e do capitalismo global). Há uma dedução mais sofisticada, que pode ser fruto até mesmo desta obra: como as condições estruturais, não conjunturais, estavam ainda imaturas para o socialismo, buscou-se um compensador social, o partido leninista; assim, não precisaríamos mais de tal partido porque as condições objetivas estão, agora, maduras, dispensando um compensador “externo”. Isso é um engano: nada garante, de antemão, mecanicamente, que o socialismo virá, pois depende de escolhas humanas, de convencimento amplo. Com os primeiros Estados operários, a revolução será, tendencialmente, mais fácil, o que diminui relativamente a necessidade de partidos prontos e elevados, mas, por outro lado, ao mesmo tempo, facilita a formação de partidos elevados, que se educarão por saltos.

 

TROTSKY

Leon Trotsky ofereceu uma contribuição genial à dialética, a lei do desenvolvimento desigual e combinado; isso foi facilitado por viver num país desigual e combinado, com o mais avançado convivendo com o mais atrasado. Além disso, seus textos sobre moral e arte são memoráveis. Duas grandes contribuições suas são a teoria da revolução permanente e o programa de transição.

A teoria da revolução mostrou-se verdadeira, pois a revolução burguesa de fevereiro de 1917 na Rússia tornou-se revolução socialista de outubro. Isso fez parecer correta a antes hipótese. Porém, isso é metade do caminho. Por exemplo: a teoria da gravitação de Newton é útil nas nossas escalas, mas superada em escalas maiores. Trotsky partia de uma conclusão que se tornou, assim, premissa: o tempo da revolução socialista havia chegado. Esse erro levou-o ao raciocínio sofisticado. Se estamos na época do socialismo, como ele ocorrerá em países atrasados? Daí pensar que a revolução burguesa nos países limitados teria de se tornar socialista logo, com o necessário apoio da revolução nos países ricos. Todo este livro é demonstração de que o gênio estava errado, pois a pressa levou às conclusões apenas de modo parcial e limitado verídicas. Era preciso ainda surgir a crise total, sistêmica.

Sua contribuição militar foi muito mais prática do que teórica, sendo o líder máximo do Exército Vermelho capaz de derrotar outros 14 exércitos inimigos.

 

GRAMSCI

A Itália teve como seu grande problema o Estado, o que produziu gênios como Maquiavel. Apenas no final do século 19 o país unificou-se. Isso pesou sobre o perfil de Gramsci, focado na superestrutura objetiva (organizações) e subjetiva (mentalidades etc.). Porém, ele não teve condições de oferecer uma obra sistemática, pois estava preso. Restaram-nos anotações vagas para evitar repressão.

Não é por acaso que tantos centristas reivindiquem seu nome. A ideia de um revolucionário preso pelo fascismo escrevendo seu trabalho intelectual desde a cadeia tem algo de muito romântico, em especial para “marxistas” de classe média, aquele professor universitário. Os funcionários públicos, como os professores, tendem a focar em temas superestruturais.

 

LUKÁCS

Lukács viveu no “socialismo” real cuja ideologia capitalista do trabalho imperava. Tal pensamento comum da propaganda governamental afetou seu perfil. Pensou, então, uma ontologia marxista, que tornava o trabalho a categoria fundante do ser social. Ele poderia ter ido mais longe, bem mais, derivando a nossa metafísica materialista, exposta em outro momento desta obra, mas havia um limite sobre si.

Sua grande contribuição para a dialética é a ideia de que as partes de um todo se relacionam umas com as outras, o que produz, também, acidentes, acasos da causalidade recíproca dos muitos elementos constituintes de uma totalidade em movimento.

Grosso modo, de maneira muito resumida, a ciência produzida pode, para ele, tornar-se, sendo uma ideologia, uma ideologia propriamente. Para nós, a ideologia, o senso comum, pode – também, pois é recíproco – ajudar, além de atrapalhar, a produzir nova ciência.

 

ESCOLA DE FRANKFURT

Não sendo marxistas, mas não negando tal filosofia – surgiu a escola alemã, com seus fantasmas pessimistas. O mais destacado dentre eles foi, certamente, Adorno. Ele afirma que o “todo é o falso”, pois associa totalidade com totalitarismo, um jogo de palavras de baixo nível. A verdade é o todo, sabemos junto com Hegel; uma verdade parcial é parcial, certa e errada. Também levantou a ideia de que devemos focar na diferença, não na identidade. Erra mais uma vez: a dialética é a afirmação tanto da diferença quanto da identidade. O trabalho difícil de um cientista ou filósofo é ver a identidade, a unidade, do diverso que aparece. Por fim, propôs o foco na contradição, contra a totalidade, mas a contradição se resolve, dissolve-se, em seu lado produtivo; além disso, as categorias centrais da dialética são três, não uma: totalidade, contradição e movimento – e a contradição tem por debaixo a relação, incluso autorrelação.

 

MORENO

Natural da Argentina, Moreno viveu as duras lutas do continente americano na segunda metade do século 20. Sua qualidade e defeito estão em forcar na “estrutura”, ou seja, nas classes, na sociologia, na antropologia. Ofereceu, assim, uma série de atualizações da teoria marxista segundo as exigências da realidade. Percebeu, por exemplo, que a teoria da revolução permanente de Trotsky estava incorreta, apenas em parte verdadeira, mas não soube propor algo melhor.

 

MANDEL

Em oposição à Moreno, Mandel viveu uma vida estável, incluso de professor universitário, na Europa democrática do Estado de bem-estar social. A realidade, assim, impediu que fosse um grande marxista. Suas leituras são limitadas, embora tenha esta ou aquela boa sacada na infraestrutura, na economia.

 

CHE GUEVARA

Formado na classe média, de um subcontinente contraditório e atrasado, como com grande população camponesa, surgiu Guevara. Ele foi um lutador internacionalista e pelo socialismo, mas não foi um crítico total às ditaduras “vermelhas”. Sua pressa pela primavera, fez com que tornasse popular o seu princípio, resumido em: 1) não é preciso esperar o levante das massas, 2) um pequeno grupo armado e disciplinado pode tomar o poder, vencer o Estado. Sua morte ao promover uma guerrilha na Bolívia o refutou da pior forma, além da derrota de tantos movimentos guerrilheiros pelo mundo, em especial na América Latina. Como ser revolucionário tornou-se sinônimo de ser marxista, ele foi considerado por outros e por si como herdeiro de Marx. Basta dizer-se marxista para sê-lo. Mas, bem observado, ele fundou um neoblanquismo. Os blanquistas consideravam que um grupo de elite e bem armado poderia tomar o poder e implementar uma ditadura do proletariado, ditadura no sentido comum do termo. A grande contribuição do Che foi para a história da guerra, com sua guerra de guerrilhas, apesar de ter escritos econômicos, por exemplo. A pressa, tão comum entre revolucionários, levaram os melhores para uma guerra inglória, antes da hora, contra o inimigo articulado e poderoso.

 

ALTHUSSER

É o mais limitados dos teóricos aqui citados. De imediato, sua função foi adaptar o marxismo às concepções acadêmicas de sua época, num momento de alta qualidade de vida, baixa luta de classes e alta moral do estalinismo. Por isso, condenava o que pensava ser ideologia; por isso, condenava a dialética; por isso, condenava o jovem Marx filósofo (para ele, o Marx maduro e final “científico” surge apenas anos depois de publicado o primeiro volume de O Capital…). Sua concepção metodológica usava a metáfora interessada do pesquisador que colhe a matéria-prima amorfa e lhe dá, então, forma e ordem. Pois bem; o marxismo diz o contrário, que a própria matéria usada pelo cientista já tem sua forma, sua história e sua própria lógica – cabe-nos descobri-las, não criá-las.

De seus manuscritos, descobriu-se que, para ele, os momentos de passagem de um sistema para outros ocorre aumento da aleatoriedade, um materialismo aleatório. Tese de impacto, mas não demonstrável. Pode-se dizer igualmente que o aleatório apenas ganha relevo diante da crise sistêmica, não aumenta quantitativamente de modo decisivo ou qualitativo, ou que na estabilidade o aleatório se torna ainda mais rotineiro, ou que o aleatório nada mais expressa que a necessidade (não sendo, logo, apenas aleatoriedade). Disso tudo, percebemos o carinho de intelectuais acadêmicos, eles com boas contribuições, pelo teórico limitado.

 

KURZ

Com a terceira revolução industrial, alguns teóricos burgueses levantaram a bandeira do fim do trabalho, crise do trabalho etc. Kurz deu a estas intuições uma explicação marxista, a crise do valor. Ele pertence à Alemanha, vanguarda da nova tecnologia e com baixa luta de classes por uma qualidade de vida acima da média. Por isso, ele não vê na classe operária uma saída revolucionária.

Em tempos midiáticos, Kurz lutava por seu prestígio e por não desaparecer. Mas suas saídas teóricas levavam-no para um beco sem saída, unilateral. Então ele e sua corrente forçavam a mão na tentativa de fazer novas elaborações, impressionistas ou forçadas.

MÉSZÀROS

Com um estilo prolixo, focado em debater contra seus colegas universitários ingleses, Mészàros foi um gigante oposto ao Kurz, igualmente genial. Ele toma a “obsolescência programada” já debatida nos meios intelectuais e a generaliza, como com a redução da utilização da força de trabalho. Também foi impressionista, advogando uma crise permanente. Não percebeu a crise do valor, por exemplo, assim como Kurz não percebeu a crise a partir do valor de uso, como fez Mészàros.

 

 

ESTALINISMO

O estalinismo não formou uma teoria real ou geral, apenas adotou esta ou aquela posição segundo a necessidade do momento. Sua função era negar o marxismo, manipular as massas e seus ativistas. Para isso, usavam a terminologia marxiana, mas apenas ela. Há, no entanto, algumas contribuições para a história tática militar no oriente, como em Mao. Este usou a linguagem dialética para falsificar a realidade, afirmando existir contradição principal (como a luta imediata contra uma invasão) e não principal (como a luta de classes durante a guerra) em cada conjuntura – na verdade, corrigimos, as contradições entram em combinação, fundem-se, articulam-se. Não é que ele entendeu mal o dialético, apenas fez uso oportunista da linguagem.

 

Em geral, por terem encontrado a verdade, pensaram ter encontrado toda a verdade. Cada escola marxista fechou-se em si, num movimento autofágico. Esta obra visa quebrar o sectarismo ao fazer crítica e, ao mesmo tempo, absorção dos teóricos unilaterais. Um “a partir daqui para frente” torna-se um dos objetivos aqui expostos. Isso quer dizer uma teoria unificada do marxismo, contra o isolamento escolar. Só nos resta o caminho de ir juntos, ou mais juntos ainda.

 

NOVO MARXISMO

O marxismo antigo entrou em crise, pois seu modo de operação esgotou-se, tonou-se incapaz de responder aos novos desafios e ambientes. Ele foi avançado para seu tempo, mas precisa ser superado e guardado. Os atuais quebra-cabeças encontram mais sofismo que respostas na mão das velhas interpretações. Isso é normal: tenta-se responder ao novo ou ao velho, retrospectivamente, com as ferramentas de sempre, sem arriscar qualquer salto prematuro. Mas vamos acumulando limites cada vez maiores, ao estilo de Kurn. A velha guarda limita-se a repetir ad infinitum as velhas fórmulas, ignorando seus limites. Aqui e ali, tenta-se salvar a teoria comum com atualizações pontuais, quantitativas. Kurz e, na outra ponta, Lukács anunciaram a necessidade de uma renovação completa do marxismo, sem eles mesmos conseguirem apontar todo o rumo. Em geral, o limite dos marxismos recentes é, de um lado, não estarem ligados à luta de classes e, de outro, não passar pela escola dura do trotskysmo (leninismo), apesar de seus limites. Dificilmente um não trotskista chegaria ao conjunto das contribuições desta obra. Tentou-se um pós-marxismo, marxismo analítico, marxismo matemático, neomarxismo, socialismo do século XXI etc. Foram ensaios do porvir. O marxismo é a teoria social final, que apenas começou – assim como a nova síntese da teoria da evolução, a teoria da relatividade na macrofísica são as teorias definitivas, que podem, no máximo, passar por reformas revolucionárias. Marx é, no social, o que Darwin-Mendel é para biologia e Einstein é para física. Mas seu trabalho é, em grande parte, inacabado, como a necessária teoria da psicologia. Com a devida humildade, penso que esta obra coloca a teoria social marxiana em outro patamar, como com uma renovação completa e qualitativa da dialética (A=A e… Não-A). Seria uma anomalia inesperada que a crise sistêmica, final, do capitalismo não gerasse uma renovação teórica, se não por todos os lados, ao menos em algum local do globo terrestre. Uma vez encontrada as repostas gerais, as novas gerações de militantes intelectuais e mesmo acadêmicos poderão destravar suas percepções, resolvendo novos enigmas e oferecendo novas contribuições úteis e corretas, mesmo que parciais, não mais sofismas ou novismo artificial (como criar conceitos apenas porque sim, para vender livros e não cair no ostracismo…) A vida é dura, mas nós somos mais teimosos. Digamos a verdade, doa a quem doer. Destruamos a razão desse beco sem saída: o tempo nos faz esquecer o que nos trouxe até aqui, mas lembramos muito bem como se fosse amanhã!

 

FÉ E RAZÃO

Além da oposição emoção-razão, há entre fé e razão. Os mais moderados dizem que ambos são necessários e complementares, portanto ambos devem ser preservados. Isso é dialética kantista, resolvida pelo diacrônico (A=A e… não-A). A ideia absurda de que há uma região do cérebro responsável, logo estrutural, pela religiosidade é um erro científico de principiante. Ou melhor, no máximo, a mesma região serve para cada oposto, pois o que o aparelho psíquico busca é compreender a realidade, certa garantia da previsibilidade de um futuro bom etc. A religiosidade foi uma das primeiras ferramentas, por isso a mais frágil. Porque não tinham meios melhores, os antigos usaram a religião. Depois, vieram a filosofia e a ciência maduras, além da arte desenvolvida. No socialismo, ao poucos, sem imposições, as novas gerações serão cada vez mais ateias, cientificas e filosóficas céticas ao admirarem o cosmos. A alta qualidade de vida permitirá isso; um país com maior pobreza material e espiritual tem mais religião e fanatismo; outro país mais agradável tem mais ateísmo e menos fanáticos. Há, portanto, uma evolução, uma progressão, da religiosidade para o sentimento filosófico futuro. Um passa para seu oposto. Se temos certo aumento da religião onde há mais sofrimento por causa das guerras etc., temos, por outro, a nova geração que “acredita em tudo” como ciência, astros, energia, Deus etc. Tal bifurcação subjetiva expressa uma realidade bifurcada, com duas possibilidades, socialismo ou barbárie. No mais, o novo e amplo ateísmo deve se livrar seu perfil de seita sectária, próprio de movimentos em seus inícios, e focar, como orienta Trotsky, na divulgação científica popular (jornais, panfletos etc.), na formação de clubes, na defesa das pautas sociais etc. Curioso que muitos jovens ateus procurem Nietzsche, um anticientífico, pai do irracionalismo atual, quando deveriam assumir a responsabilidade de ligar-se a Marx, o revolucionário ateu e científico.

 

NEOATEÍSMO

O ateísmo é uma concepção antiga, mas imensamente marginal – imensamente, mesmo. Alguns filósofos antigos eram ateus. Hoje, membros da nova geração adotam tal postura, logo isso deve ser explicado. As razões são: 1) desenvolvimento da economia, o que oferece ouros prazeres como TV, séries, alimentos baratos etc. 2) alta urbanização, o que diminui o controle sobre o indivíduo; 3) alto desenvolvimento da técnica e da ciência, oferecendo alternativas e respostas; 4) governos democráticos, sem maior controle; 5) onda permanente de escândalos religiosos, como pedofilia e pastores ricos; 6) nível cultural médio maior das novas gerações. Assim, os novos ateus podem surgir em muitos países, em especial nos desenvolvidos e nos de cultura ocidental. Seus ares de seitas ocorrem por ser um movimento em seu início, que deve aprender a baixar a guarda dos seus adversários para ganha-los aos poucos, pelas beiradas. De qualquer modo, o futuro do ateísmo depende do futuro da economia, do resultado da luta das classes. Uma sociedade de decadência não resolvida tende ao fanatismo religioso.

 

 

 

SEMIDEUSES MODERNOS

Em outro momento, oferecemos um novo significado sobre o super-homem, o além-do-homem, de Nietzsche, pois ainda não somos em exato humanos e no futuro faremos automodificações de acordo com certa ética; para ele, o filósofo irracionalista, em sua concepção limitada, aquele que acessasse grande sofrimento e a arte chegaria ao nível superior. Pois bem; daiemos mais um passo. A era da comunicação de massas levou à adoração de certos seres humanos. Em geral, reconhecemos o hiper-especialista em alguma tarefa como um homem total, autorrealizado. Mas, por ser unilateral, na verdade é incompleto e falho, meio humano. Tal lógica também ocorre quando olhamos para eles: tomamos a parte pelo todo. O divulgador científico Pirulla demonstra que a internet, e as câmeras celulares de bolso, ao permitirem novo tipo de vigília informal de todos sobre todos, afeta a visão impressionista dos artistas, intelectuais etc. como se perfeitos, completos, únicos. Mesmo assim, continuamos a procurar o absoluto no outro por nos sentirmos menos e menores. Vale notar que a erudição ampla de um Caetano Veloso e um Gilberto Gil, juntos com suas especialidades, facilitou seus sucessos, a aura em torno de si mesmos. Uma beleza rara, uma grande habilidade com o futebol etc. geram a figura dos semideuses modernos, adorados. Para isso, faz-se necessário o talento, o facilitador, e a vocação, este impulsionando o trabalho constante e duro; mas costumamos pensar a figura do gênio como natural, já pronta desde o seu começo, sem esforço e sem bastidores.

 

SENTIMENTO DE GUERRA

Walter Benjamin observou: a guerra antiga produzia heróis, orgulho e poemas em ode – hoje: silêncio dos ex-combatentes, dificuldade de narrar etc. As causas são:

1)      A abundância atual impedir justificativa subjetiva para a guerra, a razão;

2)      Somos mais integrados internacionalmente;

3)      Os fatos explosivos da guerra com alta tecnologia são imensos, colossais;

4)      Pela mesma razão de 3, perde-se a noção de causa e efeito, de lógica, pois morre-se de repente por um objeto vindo de algum lugar obscuro, explode-se de repente (a causalidade, por exemplo, era clara na guerra antiga por espadas, lanças e flechas – vale destacar que o trauma tem como um de seus fatores certa perda de lógica);

5)      Guerreia-se para outros e para outra classe, não para si e para sua classe.

Trataremos os efeitos disso no capítulo sobre a crise militar burguesa.

 

PSICOLOGIA DA GUERRA

Via de regra, o exército mais poderoso baixa a guarda, além de ir à luta com entusiasmo; logo cabe ao mais fraco, o defensor, ter criatividade e ousadia, que surpreende.

Ao ganhar uma batalha, inevitavelmente o vencedor baixa a guarda, alegra-se, quer que aquilo termine logo depois de tanta tensão mental e física. Isso costuma ser a causa da derrota na batalha seguinte. O general pode reduzir tal otimismo negativo, mas não pode impedir de todo.

Parte essencial da luta é fazer o inimigo perder o moral, o estímulo. Por isso, proíbe-se que haja reclamações entre soldados, que desestimula os companheiros, afeta-os.

A psicologia tem força: tratamos bem o adversário que desiste para que outros também parem; matamos nossos desertores para que os nossos não parem.

 

SENTIMENTO DE DECADÊNICA DE SUA ESPÉCIE

Novas experiências civilizacionais podem levar a novas experiências de sentimentos. Um deles, típico para nossa época, trata-se do sentimento negativo pela decadência de sua espécie. A primeira vez que sentir algo do tipo foi por meio da experiência cinematográfica, os primeiros filmes de “O planeta dos macacos”. “Unam” é um nome possível para o sentimento novo que ainda não tem nomeação.

 

ESSÊNCIA OU EXISTÊNCIA?

Os gregos pensavam que, assim como a pereira produz pera, cada homem tem um lugar natural, um talento seu ou essência. O existencialismo pensa o oposto, que o homem faz a si próprio, a existência individual precede a essência. Pois bem; ambos estão certo e errados. Alguém que nasce com TDAH tende a ser criativo para a arte e a política, mas estará em más condições, em geral, como dirigente militar. É verdade que não se nasce mulher, torna-se; mas é verdade, também, que não se torna mulher, nasce-se – tem traços femininos determinados desde antes do nascimento. É outra forma de dizer isto: os homens fazem sua própria história pessoal, mas a fazem sob condições dadas, incluso biológicas e ambientais, que não escolhem. Eu sou Eu e minhas circunstâncias, mas o Eu é também circunstância. Eu sou o que sou.

O existencialismo como escola de pensamento surgiu e cresceu com o aumento da democracia, a invisibilidade urbana elevada, o fato – em principal – de sermos mais sociais e mais individuais relativo à antes, a existência de abundância de mercadorias, a elevação das classes médias etc. A necessidade – causalidade etc. – produz, em seu desenvolvimento, a liberdade, ainda que relativa e parcial (teleologia etc.). A liberdade (abstrato) é a necessidade (concreto) em autorrelação e autodesenvolvimento (processo). Daí a ilusão de que somos já de fato livres e independentes, a inflação exagerada do conceito de liberdade individual.

 

HÁBITO DEMOCRÁTICO NO SOCIALISMO

Diz-se que no socialismo a democracia direta e participativa respeitará a vontade da maioria, mas isso deve incluir uma cultura de ampla tolerância. Vejamos as variantes:

1)      Aprovação por ampla maioria;

2)      Aprovação por maioria;

3)      Aprovação por consenso;

4)      Aprovação por a maioria ceder de modo voluntário à minoria;

5)      Nada fazer por falta de consenso;

6)      Adiar a decisão;

7)      Solicitar voto secreto (em organismos de base).

8)      Sorteio como para eleição de alguns dirigentes (CIBCOM, 2023).

9)      Os mandatos de tipo e gerais serão curtos em duração.

Assim, iremos mais longe porque juntos.

O planejamento econômico democrático e centralizado é a afirmação do homem, seu auge, pois afirma e eleva a categoria central do trabalho, a teleologia. O homem vai, assim, de um caminho inconsciente para uma solução consciente (análogo do ir de um inconsciente ao consciente na natureza). O caminho cego para o socialismo torna-se um caminho claro, decidido – se vencermos, uma probabilidade real e não apenas formal. A elevação de consciência dos trabalhadores, sua decisão de reorganizar de vez a sociedade, torna-se condição da vitória.

 

A DECADÊNCIA DA DEMOCRACIA DOS RICOS

No ambiente protestante e neopetencostal, os privilégios de ser pastor atrai oportunistas, vagabundos e psicopatas. Assim, o processo se retroalimenta. Na política ocorre algo semelhante: atrai, por privilégios, gente de baixa estatura moral e intelectual. É um aspecto “subjetivo” da crise do Estado burguês – e a decadência da sociedade atual reforça o aqui exposto. Com eleições regulares, que ora elegem um grupo e ora outro, além de políticos sem falta de projeto geral, o governo não tem plano de longo prazo, para além das próximas eleições. O que um governo começa, outro para ou desfaz etc. Um rei, que por ser mero rei merece a guilhotina, tem ao menos a vantagem de pensar em planos de 30 anos, pois estará, ele espera, ainda no comando da nação. Como o socialismo revolverá tais contradições? Debateremos melhor em capítulo específico, adiantaremos apenas alguns aspectos. De um lado, os cargos não terão privilégios, além de sofrerem eleições regulares e mandatos perdíveis a qualquer instante; de outro, um parlamento científico e apartidário, formado pelos maiores cérebros do país, agregados por difícil concurso e por notório e público saber, com salários altos, será formado, com suas propostas aprovadas de modo automático, apenas podendo ser negadas caso reclame o outro parlamento, que é eleito e sem privilégios, logo regulador. Pode ser que o parlamento científico seja posto em dúvida por plebiscitos a cada, por exemplo, 20 anos, se mantém ou renova os membros, mantendo apenas a “chapa” minoritária, formada por uma parte dos cientistas que queria a renovação dos cargos. Assim, temos o melhor dos dois mundos aprofundando a democracia, não a negando.

Direto ao tema, a crise sistêmica da economia torna a democracia representativa incapaz de melhorar a vida da maioria. A crise da democracia burguesa é a crise do sistema de dinheiro. O atual sistema democrático é, portanto, incapaz de resolver o problema. A democracia desmoraliza-se, com razão. Daí que muitos setores desejem o fim do jogo, que busque a volta das ditaduras contra a ralé. Daí que os eleitores, cansados de ser enganados, elejam comediantes e outras figuras pitorescas para o governo, já que nada muda, seja na esquerda seja na direita. Cabe aos comunistas democráticos exigirem na primeira oportunidade: democracia direta operária e popular já! Democracia real – só com o fim do capital!

 

A PSICOLOGIA DO FASCISMO

Trotsky, o caluniado, foi quem melhor explicou o fascismo e como combatê-lo. É um movimento burguês imperialista, que se apoia na classe média falida, raivosa porque desesperada pela crise; o fascismo é fruto dos erros do movimento operário. Porém os pensadores do século XX, possuídos de fetiche pelo tema, tentaram psicologizar a origem do fascismo e seu sucesso momentâneo. Todo tipo de tese original, embora nem tanto correta, surgiu. É claro que perfis psicológicos nacionais, perfis de classe etc. facilitam ou dificultam o sucesso nazista, mas a base é a crise do capital, não um inconsciente revoltado ou pulsão sexual não vivida… Pierre Félix Bourdieu afirmou, por exemplo, que o Brasil não tenderia ao fascismo porque vivia suas pulsões animalescas no carnaval. Os franceses, na verdade, fetichizam os brasileiros, e vice-versa; somos alegres e anárquicos nas festas carnavalescas porque nossa rotina é bruta e violenta; somos amigáveis, cordiais, porque estamos sempre à beira do conflito direto, da luta, da agressão; as mães trabalhadoras criam os filhos por meio da violência; ademais, Bourdieu não (re)conheceu de fato a história deste país, quase sempre sob ditaduras e um Estado “democrático” assassino. O governo brasileiro Bolsonaro, extrema direita, ajudou a refutar o francês. O fascismo se combate com milícias operárias e populares, além de boas propostas socialistas para os trabalhadores e a classe média, não com psicanálise coletiva.

 

TESES PARA UMA ÉTICA MARXISTA

25.  A moral é objetiva, deriva da realidade, de sua concreticidade.

26.  A moral também é intersubjetiva, por depender do meio e da sociedade ter certa moral.

27.  Enfim, a moral é também subjetiva, pois cada um tem experiências diferentes, singulares, que o moldam.

28.  A moral pode negar a natureza humana, afirmá-la, mediá-la ou deformá-la.

29.  O tema da moral ou ética, ou da felicidade, surge da contradição de um problema real, um problema moral concreto.

30.  A ética real e prática, ou a mesmidade que é a moral, pode ser algo “antiético”.

31.  Via de regra, não se sabe o que é certo na conduta a priori, sem contexto e sem finalidade.

32.  Há certa dialética da moral: a) ela pode ser funcional para o sistema; b) pode ser disfuncional para o sistema, mesmo que surja dele, de sua objetividade, de seu modo de vida (caso demonstrado neste livro); c) pode ser uma combinação de ambos; d) pode ser funcional e tornar-se disfuncional – e) ou o contrário, o inverso. Por isso Florestan Fernandes conclui por instinto o fim próximo do capitalismo por este gerar, em nossa era em especial, um convívio ético antiético.

33.  A luta comunista é pelo fim da alienação, sua finalidade, logo sua moral obedece a tal objetivo – ainda que por mediações.

34.  Cada classe tem, por seus hábitos e estilo de vida, tendências morais próprias.

35.  A moral dominante é a moral da objetividade dominante.

36.  A filosofia da moral na história costuma usar um mediador ideológico: os gregos usavam o “lugar natural” no cosmos (cosmologia), os medievais usavam Deus (teologia), os modernos elevavam o indivíduo (humanismo). São formas de disfarçar o caráter classista e social-histórico da questão ética-moral.

37.  Há saída para o imperativo categórico? Fazer algo, ter uma postura, porque é certa em si mesma não se sustenta. Erra Kant. Pois quase tudo é em seu contexto. Mas ele diz: não fazer aos outros o que não quer que façam contigo. Como se houvesse indivíduos apenas. O imperativo categórico mantém-se se é, sob novo significado, imperativo de uma categoria, categorial, a emancipação, fim da alienação, liberdade e felicidade individuais e coletivas.

38.  A moral comunista é rígida, mas sua aplicação é dialética.

39.  A moral, antes, inicia-se na prática, depois é estruturada, defendida ou criticada e ampliada de modo consciente.

40.  A luta socialista é também uma luta por uma sociedade ética, de boa moral, e cria as condições para tal moralidade, mentalidade.

41.  O comércio é o mundo da trapaça, da tentativa de barganhar – o mundo capitalista é o mundo comercial.

42.  Enquanto existir ricos e pobres, haverá corrupção.

43.  Certa moral deriva de sua necessidade.

44.  Os fins justificam os meios, mas os meios também justificam os fins.

45.  A crise sistêmica, ao elevar tensões, produz crise ética, moral.

46.  Ao forçar a luta de classes, o capitalismo força a classe operária a adotar certa melhor moral, como a unidade coletiva, para ser vitoriosa – assim, o capitalismo faz surgir as concepções morais, boas e ruins, que serão partes de sua destruição.

47.  A moral do capitalismo em seu ocaso volta-se contra o próprio sistema, ajuda a torná-lo insuportável.

48.  Impossível uma obra de ética final, conclusiva nos aspectos gerais, sem uma concepção correta de homem e de sua psicologia.

49.  O autor de uma ética definitiva, de clara inspiração marxista, deve, antes, ter passado por uma grande rede de experiências, ter vivido a vida, ter sofrido – ser muito mais do que um rato de biblioteca.

Aristóteles diz que a felicidade depende de uma sociedade organizada, justa e saudável; mas a ética surge exatamente porque não há eticidade na prática, porque surge a necessidade de pensar sobre ela – realidade adoecida e sua reação contra ela. Ele também afirma o meio-termo, o bom senso, entre estremos de comportamento; mas o que comanda não é a ideia, uma lógica a priori, a realidade é maior; pois isso, há momento para respeitar o medo, há momento de coragem e há momento de máxima ousadia.

 

TELEOLOGIA OBJETIVA

Para ganhar moral no meio acadêmico, um dos segredos é ser contra a teleologia, a concepção que a realidade tem finalidade, um fim, um objetivo. É uma crítica fácil e famosa, mas pouco refletida. Os erros nesse assunto se deram à visão mecanicista do tema, desde Aristóteles até Lukács. Vejamos a confusão, as igualdades falsas na crítica:

1)      Teleologia exige uma consciência que planeja.

Isso é a concepção mecanicista de um trabalho artesão ou artístico, generalizada e, logo, rejeitada por muitos. Mas as leis inerentes da realidade podem levar a um rumo específico.

2)      A teleologia exige separar fim e meio.

Falso. Ainda uma visão mecanicista, priorizando uma forma de trabalho, como vemos. O fim pode estar, em sistemas orgânicos, no próprio meio, vai-se realizando no processo, rumo a si mesmo. O socialismo vai rumo a si na lutando por ele, com práticas de acordo com o fim almejado. O fim (abstrato) é o meio (concreto) em desenvolvimento (processo).

3)      Teleologia é determinística.

Nada justifica essa hipótese. O homem, por exemplo, tende ao socialismo – tende. Mas pode se extinguir antes de se realizar. A teleologia não é nem determinística nem contingente, pois é tendencial.

4)      Não existe teleologia fora da sociedade.

Outra hipótese sem comprovação. Por exemplo, o olho surgiu 6 vezes de modo independente na história da natureza, pois era necessário que o olho surgisse. No social, a história ocorre como teleologia objetiva e insconciente até que a sociedade ganha consciência alta, toma as rédeas da história.

5)      Teleologia exige um fim (absoluto).

Na verdade, a teleologia pode ter um alto grau de autorrealização, mas ele permanece como pulsão, movimento, desenvolvimento. Não se encerra quando se encerra.

Temos a teleologia objetiva. Lukács afirma que na arte há identidade sujeito-objeto, forma-conteúdo, essência-aparência e nós completamos com criar-descobrir e nada-ser. Logo vemos que Hegel se inspirou no trabalho artístico para pensar sua Lógica, caindo em mecanicismo em certo sentido.

De modo geral, prospera quem respeita a teleologia, quem está de acordo com a história; definha quem está na sua contramão.

 

 

 

IDENTIDADE E UNIDADE DE SUJEITO E OBJETO

A ciência conheceu toda uma etapa burguesa, que foi progressiva para a humanidade em essência, pois ofereceu bases ao socialismo. A ciência será socialista – mais do que de forma latente ou oculta como com a III Revolução Industrial – quando der base ao desenvolvimento da nova forma social, suas tecnologias etc.

Entre as condições para a revolução mundial encontra-se um alto desenvolvimento da ciência e da técnica. É preciso grande conhecimento das propriedades do mundo, de suas possibilidades, de sua natureza e de sua história para revolucionar a sociedade. Enfim, é preciso que o homem tenha produzido as condições para perceber que “somos uma forma do cosmos conhecer a si mesmo” (Sagan). Tal identidade entre sujeito e objeto deve estar latente, ainda exigindo uma nova revolução científica, para sua realização socialista.

 

RELAÇÃO

Há três relações psicológicas imediatas:

  1. Homem-homem, sujeito-sujeito;
  2. Sujeito-objeto;
  3. Sujeito consigo.

Inspiremo-nos em Winnicott. A relação 1 torna-se mais própria do neurótico; a 2, mais própria do perverso; a 3, mais própria do psicótico. No neurótico, interno em si, a 1, mais própria do histérico; a 2, mais própria do fóbico;  a 3, mais própria do obsessivo. No psicótico, também 3, a 1 é mais própria da paranoia; a 2, mais própria da melancolia; a 3, mais própria da esquizofrenia. No perverso, a 1 é mais próprio do sadismo; a 2, mais própria do fetichismo; a 3, mais própria do masoquismo.

O feto trata-se como relação consigo mesmo. Depois, relação com outro, em principal a mãe. Depois, pluraliza a relação, com outros. Tal relação cada vez mais é também relação dos outros consigo, na medida em que o Eu desenvolve-se. Enfim, ocorre a afinidade eletiva nos amores, nas amizades etc. Por meio do outro, meço-me, individualizo-me, reconhece-me e ao outro como iguais e humanos.

 

Forma 1

Relação consigo

 

Forma 2

Criança                        – Mãe (pai)

 

Forma 3.1

Criança                             - Mãe

- Pai

- Irmãos

- Parentes

- Próximos

 

Forma 3.2, inversa

Mãe           - Criança

Pai

Irmãos

Parentes

Próximos

 

Forma 4, afinidade eletiva

Jovem, adulto – amor

Jovem adulto – amizade

Jovem, adulto – família

 

Em resumo, a identidade, relação consigo, feto, passa para a relação com a mãe, com o outro, ou seja, põe-se a diferença; esta, e a sua relação, passa para a diversidade; isso, por sua vez, produz oposição, contradição, relação, concentração e atração – e, enfim, uma unidade (amizade, família nova, amor etc.). A semelhança com as formas de valor em O Capital e, logo, na “relação” de medida na Lógica de Hegel apresenta-se como real, proposital.

 

 

 

DESEJOS OPOSTOS

Somos a unidade tensa de desejos opostos. Certa mulher, jovem adulta, deseja, de um lado, focar na sua felicidade pessoal, sua carreira e ter prazeres; por outro lado, ao mesmo tempo, tem o desejo de ser mãe, de ter uma prole. Ambos os desejos opostos são essenciais, legítimos, justos – ainda que um mais social e outro mais natural. Cabe a escolha, ou mediação, ou atossabotagem, ou lidar com frustração parcial etc. Nossa tensão é mais do que por desejar, pois também trata-se de ter desejos diversos, que podem cair em contradição.

 

AFETIVIDADE: INTENSIVO E EXTENSIVO

Certa mãe que tem oito filhos distribuirá, diluirá, seu sentimento maternal, ainda que tenha preferências. Já a mãe isolada e carente, dedicará de modo intensivo, menos extensivo, seu sentimento, saturando o filho único. Quem tem muitos amigos, logo baixa carência, não é ciumento com suas amizades. Numa sociedade de relações amorosas livres, a baixa dependência emocional, o gastar intensivo de sentimento apenas para um, fará fraco o ciúmes, como hoje entre amigos leais. De modo puro, o extensivo mostra-se, na unidade interna de ambos, oposto ao intensivo; menor extensividade, maior intensividade – e o mesmo ao inverso.

 

ANGÚSTIA

A psicanálise afirma que a angústia é sem objeto, diferente do medo, e sem tempo, diferente da esperança ou ansiedade, por exemplo. Os filósofos não marxistas consideram a alienação eterna, inevitável, junto com sua angústia. Assim, discordamos, a causa, talvez central, do angustiamento está na não satisfação da essência humana – ser integrado, mutualista e ativo. É uma dor de existência que é difícil nomear e, ao mesmo tempo, difícil de saber a sua causa (o que exige, literalmente, milênios de elaboração teórica-filosófica). Mas tal vazio ocorre pela negação, no hábito, de nossa natureza natural. A angústia, em geral, não tem objeto, pois seu objeto não é objeto algum, mas a relação que é a falta de relação.

 

FENÔMENOS COMUNS

Há uma série de regularidades destacadas no mundo atual. Aqui, destacaremos dois, focos de minha atenção duradoura, dos mais comuns cuja explicação já é insinuada no mundo popular, mas sem formalização teórica acabada.

  1. Tiroteio em escolas etc.

Há casos de pura psicopatia sem causa outra, de fato, mas a maioria ocorre por uma construção. O sujeito acumula frustração, frustração, mais frustração – até que surge, aqui e ali, certa raiva pura, aparentemente sem conteúdo, apenas raiva. Ela vai e vem até que, por mais frustrações, domina o assassino. Lembramos apenas que explicar não é justificar, nem fazer do carrasco uma vítima.

  1. Pedofilia entre padres etc.

Para todos, óbvio que a causa é o celibato, a proibição de casar-se. Falta explicar o processo. Assim, a profissão atrai gente com problemas sexuais ou, mesmo, homossexuais enrustidos. Ao, em permanência, impedirem em si mesmos olhar a mulher ou o homem de modo sexual, ao censurar-se mais o acúmulo de desejo; o cérebro procura certa mediação, a transferência da pulsão para corpos infantis, meninos ou meninas – que têm, também, menos meios de se defender. Ocorre, então, a mistura de distúrbio e oportunismo. Uma das razões de quase todos os líderes da igreja católica oporem-se ao casamento deles, o que reduziria a tensão libidinal, seria porque passariam ser obrigados a casa com mulheres, não com homens.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Parte 5

ESBOÇO PARA A CRÍTICA DAS CATEGORIAS DA PSICANÁLISE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para superar uma teoria é insuficiente criar outra oposta, pois se deve criticar ela por dentro dela mesma, em seus critérios, levá-la ao limite; ou seja, ver o acerto no erro e o erro no acerto. Nesta obra, oferecemos algumas pistas para uma possível teria unificada da psicologia. Tal meta deve lidar com a teoria mais avançada de nossa época sobre a psique, a psicanálise. Ela foi acusada de charlatanismo e pseudociência, em geral, por gente que não é da área. Pensa-se assim: tenho pensamento, tenho psicologia, logo entendo do assunto por natureza… Mas a física quântica é tão bizarra e inesperada quanto a psicologia real, logo a ciência nunca tem a obrigação de ser agradável. Por outro lado, porque acerta o alvo muitas vezes, a psicanálise é negada e caluniada, pois, por exemplo, impensável a um jovem religioso e homossexual enrustido aceitar tal teoria que o desnuda por dentro. A resistência violenta contra a psicanálise é, assim, uma prova empírica de sua validade geral, ainda que incompleta. Na psicologia, sujeito e objeto são idênticos, em unidade. Vejamos, então, alguns dos comentários deste livro sobre a psique.

 

SONHOS, EMPIRISMO E DIALÉTICA

Freud operou uma revolução ainda insuperada na ciência da psicologia. Por inevitável, cada ciência particular alcança um momento em que é possível profundas reformas, mas não mais rupturas de pensamento, revoluções. Sequer a neurociência, que ainda engatinha, foi capaz de tirar o lugar da psicanálise.

O núcleo inicial da teoria freudiana foi sua intepretação dos sonhos. Em resumo, os sonhos são realização fantasiosa de desejos, claros ou ocultos, para manter o corpo em repouso. Freud sempre deixou claro, contra a crítica vulgar, que o conteúdo dos sonhos não são sempre e necessariamente sexuais; se dormimos com sede, sonhamos algo relacionado a isso, como, por exemplo, estar dentro de um rio.

Feito o resumo de uma teorização que parece irrefutável pelo avanço científico, portanto correta, vamos ao método. Em geral, Freud usa o método indutivo (empirista), ou seja, opera generalizações por repetição de padrões. Na associação livre, porém, usa o método empírico-dedutivo, quando as falas do analizante, desconexas na aparência, demonstram ter um nexo interno; mas não é o nosso foco aqui. A relação freudiana com o empirismo revela-se na seguinte citação:

 

Nosso primeiro passo no emprego desse método nos ensina que o que devemos tomar como objeto de nossa atenção não é o sonho como um todo, mas partes separadas de seu conteúdo. Quando digo ao paciente ainda novato: “Que é que lhe ocorre em relação a esse sonho?”, seu horizonte mental costuma-se transformar-se num vazio. No entanto, se colocar diante dele o sonho fracionado, ele me dá uma série de associações para cada fração, que poderiam ser descritas como os “pensamentos de fundo” dessa parte específica do sonho. Assim, o método de interpretação dos sonhos que pratico já difere, nesse primeiro aspectos importante, do popular, histórico e legendário método de interpretação por meio do simbolismo, aproximando-se do segundo método, ou método de “decifração”. Como este, ele emprega a interpretação em détail e não em masse; como este, considera, desde o início, que os sonhos têm um caráter múltiplo, sendo conglomerados de formações psíquicas. (Freud, 2001, pp. 118, 119; grifo nosso)

 

Nenhum método científico é, em si mesmo, errado – nem é o critério da verdade. Com métodos inferiores pode-se chegar à verdade ou parte dela. Mas o método superior, a dialética, faz uma crítica ao empirismo como crítica da citação acima:

 

Ora, a percepção é, mais, precisamente a forma em que se deveria conceber; e esse é o defeito do empirismo. A percepção, como tal, é sempre algo singular e transitório; contudo o conhecer não permanece aí, mas busca, no universal percebido, o universal e permanente; essa é a progressão da simples percepção para a experiência. Para fazer experiências, o empirismo se serve principalmente da forma da análise. Na percepção, tem-se algo variadamente concreto, cujas determinações devem ser separadas umas das outras; como uma cebola cujas cascas se tiram. Essa decomposição tem assim o sentido de que se desprendem e decompõem as determinações que “cresceram-juntamente” [concretas]; e de que nada se acrescenta a não ser a atividade subjetiva do decompor. A análise contudo é a progressão da imediatez da percepção até o pensamento, enquanto as determinações que, em si, o objeto analisado contém reunidas recebem por serem separadas a forma da universalidade. O empirismo ao analisar os objetos encontra-se em erro, se acredita que os deixa como são; pois de fato ele transforma o concreto em um abstrato. Por isso ocorre, ao mesmo tempo, que se mata o que é vivo, porque vivo é só o concreto, o uno. No entanto, deve haver essa separação para conceber; e o espírito mesmo é em si a separação. Mas isso é apenas um dos lados, e a coisa mais importante consiste na reunião do [que foi] separado. Enquanto a análise fica no ponto de vista da separação, vale a seu respeito aquela palavra do poeta: “Isso a química chama ‘Encgeiresin naturae’ que zomba dela mesma e que não sabe como; em suas mãos possui as partes. Mas, que pena! Está faltando só o vínculo do espírito.” A análise parte do concreto, e esse material tem muita vantagem sobre o pensamento abstrato da velha metafísica. (Hegel F. G., 1995, p. 105; grifos nossos)

 

Caiu o freudismo no erro do empirismo? Em parte… Ao fazer interpretação, foi além do mero empírico colhido, foi do sensível ao suprassensível. Mas ficou no meio do caminho. Minha tese é a de que os sonhos podem, sim, ser analisados desde sua totalidade. Em minhas análises de sonhos, todos os fatos sonhados eram incompreensíveis e aparentemente desconexos – até que, com esforço, o sentido do TODO aparecia para minha razão. Assim, as partes tinham um conteúdo geral e um sentido comum. Certa vez, sonhei estar num sítio com jacarés, logo depois, ato contínuo, dirigindo em marcha ré por uma estrada com minha mãe e minha namorada. Acontece que, tempos antes, havia viajado com elas e meu pai, este dirigindo para o sítio de uma familiar… O sonho aconteceu do final para o início, de trás para frente, além de revelar o conflito edipiano com o pai dominante. Pois bem; o sonho só faz sentido como uma totalidade, não por análise isolada das partes apenas e principalmente. Além disso, somente pode ser entendido como narrativa, como história – não como conteúdo fixo e estático. Eis a estrutura e o processo, a verdade é o todo. O sonho, ademais, tenta resolver uma contradição num movimento, numa narrativa. Outro exemplo, para dar substância: certa amiga sofria assédio moral todos os dias no trabalho, era humilhada, mas lhe era impossível se demitir, logo ela sonhava todos os dias, antes de acordar para ir ao serviço, que matava a outra funcionária que lhe fazia mal. Assim, suportou o problema por um bom tempo.

O sonho – além de ser uma forma de manter o corpo em repouso, além de ser uma forma de alívio psíquico por satisfação fantasiosa – parece ser uma forma de manter bem a psique ao manter de pé a consciência, que deriva do movimento externo, da contradição do permanente e da mudança.

***

Jung afirma que Freud limita-se a considerar o sonho como a fantasia de um desejo qualquer, que gera tensão mental.  Segundo ele, o sonho tem função, também, de orientação, de conselho – inspira-se na religião, como parte de seu limite pessoal conhecido… Unifiquemos sob prioridade da psicanálise. Se temos um problema que nos angustia muito, que gera tensão psíquica, logo desejo, o cérebro, pelo sonho, pode propor uma solução, um movimento. Um viciado em matemática pode criar, na fantasia do sonho, uma solução possível para um problema matemático no qual estagnou, por exemplo. Isso ocorreu comigo. Após assistir a Série Cosmos, de Carl Sagan, veio-me o projeto de escrever um estilo de poema coma poética daquele divulgador científico mais o realismo da ciência, um simbolismo realista, ateu. Mas não conseguia escrever algo, o que girava minha energia. Num sonho por esses dias, vi o nascer e o pôr do Sol de modo mágico, enquanto uma voz, provavelmente a minha, recitava um poema novo… Assim que acordei, corri para escrever os versos, antes de esquecê-los; foi quando percebi que minhas unhas grandes de violonista haviam deixado marcas na palma da minha mão, por pressão enquanto sonhava. O poema surgiu quase pronto, precisando apenas de retoques.

 

 

MÁGICA MATERIALISTA

 

Rubro o arrebol

Do céu no universo

 

Todo o material estrelar queima

Em uma queima cósmica de arquivos

 

Das cinzas negras das estrelas

Surgem a noite

E as sobras-faíscas dos fogos estrelares

 

Quem sabe um parto

De novíssimas e efêmeras nebulosas planetárias

 

PULSÕES DE VIDA E DE MORTE

Como vemos, Freud cai no dualismo dos opostos sem unidade interna, sem mesmidade. O que existe é apenas pulsão de vida. Esta pulsão desdobra-se de modo externo em: 1) pulsão de criação, 2) pulsão de preservação, 3) pulsão de destruição. Os três podem ocorrer de modo combinado ou misturado. A pulsão de morte é uma anomalia, uma doença, quando a mente-corpo não está em seu estado normal.

 

COMPLEXO DE CRONOS

Trataremos este ponto mais uma vez em nota de rodapé posterior para reforçar outras ideias. Sua importância justifica a repetição. A experiência do complexo de Édipo – os filhos disputarem o amor de um adulto contra outro – fica no inconsciente do adulto, que a revive de novo, mas de modo contrário. O carinho do pai pela filha ou da mãe pelo filho, por exemplo, produz conflitos, disputa de atenção. Além disso, constrangedor aos mais velhos o vigor e a beleza dos jovens filhos – o efeito maldito do tempo! Daí o jeito duro da ação paterna contra o filho homem ou da materna contra a filha. Isso tende a ocorrer mais quando o filhote adquire forma corporal mais humana, mais madura. Assim, o complexo de Édipo relaciona-se consigo próprio como com um outro, com o complexo de Cronos.

 

 

ENERGIA – PINCÍPIOS DO PRAZER E DA REALIDADE

Para Freud, a energia psíquica é sexual – mas a energia é mais do que isso. Ela é pulsão, que serve para satisfazer necessidades básicas, como comer ou praticar sexo. Daí sua fusão com o marxismo, que também parte das necessidades básicas e práticas.

Vemos mais uma vez o erro apenas dualista do pai da psicanálise ao contrapor o princípio do prazer e o princípio da realidade. É a busca do prazer que obriga a criar mediações necessárias, logo o princípio oposto. É a necessidade de certa moral que faz adotar uma específica moral, diria Hegel. O princípio da realidade é o princípio do prazer – mas mediado.

 

PERSONALIDADE: DEFEITOS E QUALIDADES

A unidade do defeito e da qualidade é a característica. O característico não é nem positivo nem negativo; e mostra-se como um ou outro apenas no contexto. Destruir ou bloquear um defeito é, em geral, destruir ou bloquear uma qualidade. A personalidade é uma, é una, e expressa-se externo em defeitos e qualidades, em opostos – que são internamente o mesmo. Alguém impulsivo pode ser, por isso, “sem noção” e, por falta de limite interno, também, por ouro lado, muito criativo. A malandragem do jogador Neymar, por exemplo, para forçar faltas com quedas artificiais ou induzidas é a mesma malandragem usada para enganar o goleiro e fazer o gol (se, por exemplo, por ordem do técnico, ele bloqueia a primeira característica, então bloqueia a si próprio, ou seja, impede igualmente a segunda). A oposição e a contradição externas entre virtudes e vícios têm a unidade interna na característica, no característico, em uma só propriedade, particularidade, traço ou caráter. É o contexto, a situação, que faz aparecer de alguém um polo ou outro da unidade interna.

 

O INCONSCIENTE ORGANIZADO

O inconsciente opera, de modo oculto à consciência, a formação de conhecimento por padrões, conclusões de funcionamento da realidade quase imperceptíveis ao pensamento, leituras da realidade não formalmente teorizadas etc. Isso ficou conhecido popularmente como a hipótese do “superpoder” mental e cerebral do homem – a intuição. Citamos o caso de quando se teve o impulso intuitivo de comprar uma nova chinela com o fato de seu calçado de fato quebrar uma semana depois, pois a mente apreendeu alterações mínimas no objeto durante o seu uso, o que gerou a intuição. Porque um pneu de ônibus pode dar sinais imperceptíveis ao consciente, mas perceptíveis aos modos mais profundos da psique, um usuário do transporte pode dizer momentos antes “o pneu irá fura” como suposta previsão “mística”. Sem qualquer método formal, muitos conseguem ler psicologicamente outra pessoa ou a tendência de dinâmica de um grupo. Pessoas do campo podem “sentir” que irá chover apesar da aparente falta de sinais imediatos e aparentes. O autor deste material errava a chave do grosso molho a ser usada quando tentava escolher de maneira consciente, mas acertava sempre quando se deixava agir por “instinto”. O consciente deve focar-se no imediato, no prático, deve especializa-se e evitar excessos; logo cabe ao inconsciente o trabalho de base, que é expresso conscientemente em forma apenas de conclusões “supostas”, sem revelar seu lastro. Às vezes, o inconsciente aprende antes do consciente ou independente deste. Uma conclusão, mesmo teórica, está diante de nós, a pedir para ser falada ou sacada, mas temos bloqueios conscientes, como o medo da ousadia. Os artistas sabem muito bem disso, pois à vezes uma ideia ou letra de música nasce pronta, vinda não sei de onde, bastando externalizá-la e melhorá-la. O inconsciente tem ordem em seu caos. Assim, temos o Eu (ego), o SuperEu (superego) e o infraEu, que não é o ID puro.

O inconsciente, infraEu, tem consciência de si. Somos, assim, um que é dois. O que um analista leva 5 anos para saber do paciente, e que o paciente também não sabe, o infraEu sabe de modo claro e organizado. Freud e a psicanálise são atacados também porque romperam um contrato social invisível, de ver apenas o eu que aparece de modo direto, também real. Os psicopatas, ao verem literalmente o mundo, veem bem este aspecto para manipular. É comum que usuários de drogas, como maconha, vejam a “verdade”, a camada por assim dizer proibida.

Além da realidade como inconsciente e do inconsciente subjetivo sob novo significado, temos a visão materialista do inconsciente coletivo, como explicado antes sobre a origem dos arquétipos. Complementamos: o inconsciente coletivo existe sob forma diferente da de Jung porque, junto com as singularidades e particularidades, os cérebros diversos possuem e compartilham estrutura e processos comuns, universais. Por isso, um líder religioso antigo e um enlouquecido hoje podem ter ao mesmo delírio ou alucinação.

O inconsciente organizado e a dupla consciência, com outro eu oculto, revela-se na linguagem humana, além da natural. Com frequência, falamos frases com duplo sentido, duplo caráter, um claro e funcional, outro não funcional, que revela o Eu interior – ambos verdadeiros.

 

PERSONALIDADE E PERFIL FÍSICO

Esta área já foi obra de muita pseudociência, mas deve haver razão na loucura. Os escritores sabem descrever um personagem por seu modo físico para expressar sua personalidade, como traços pontudos para alguém perigoso e traços arredondados para alguém amoroso. O interno se externaliza. Isso deve ter origem genética, mesmo[29]. Uma parte – apenas uma parte – do perfil humano deriva de sua biologia. Mas há, também, o fator ambiental ou social. Em síntese: hábitos levam a perfis mentais e corporais; por sua vez, perfis mentais levam a hábitos e padrões corporais; enfim, perfis corporais levam a hábitos e perfis mentais (neste caso, em parte como alguém é visto pelos demais a partir do padrão, pressionando informalmente a colocar “cada um em seu devido lugar”[30]). Os três momentos ocorrem combinados, retroalimentando-se. Isso, ao modo de Platão, sabe-se sem saber no mundo cotidiano.

Aquele adulto que tem o problema de ser um “Rei-bebê” esticado tende ao, ao ser como crianças mimadas, desejo de comida e outros hábitos que lhe faz ser acima do peso, arredondado como um infante. Um sujeito por ter barba imperfeita por amadurecimento imperfeito, e crescer barba após, por exemplo, casar e tomar responsabilidades. O corpo fala de muitas maneiras tal como certa metáfora da psique. O leitor pode ver que há aí absurdo, mas a verdade não precisa ser agradável e não absurda. Em cachorros e raposas domesticadas, assim como em animais de pasto, observou-se que hábitos (ambiente etc.), genética e perfis afetavam seus modos físicos, em período curto, no ser individual e em poucas gerações; incluso com mudança hormonal.

 

TEORIA DO SINCRONISMO

Vamos direto aos aspetos:

1) Observei diálogos de colegas de classe na universidade UESPI. Em torno de alguém extrovertido, papel de líder e comunicador, os amigos juntavam-se antes das aulas. No passar do tempo e das conversas, seus corpos faziam movimentos, tendo por resultado final: um círculo formado por aquelas pessoas, pernas abertas em forma de “v” invertido, tão estável quanto possível, onde até certos outros movimentos corporais igualavam-se (mãos no bolso ou braços cruzados etc.);

2) Os movimentos corporais empáticos possuem como principal fator a imitação, como espelho, do movimento de outrem: cruzo as pernas quando quero me aproximar subjetivamente de alguém de pernas cruzadas;

3) Os hábitos coletivos em um determinado espaço (casa, escritório etc.) tendem a um ritmo e lógica internos de interação, tal como alguma “dança informal”, entre as pessoas naquele ambiente;

4) É possível fazer leitura corporal do estado da relação de um casal por meio de suas posturas ao dormirem. Por exemplo: um de costas para o outro, costas encostadas, e movimento espelhado idêntico – ideia de harmonia entre eles.

A tendência ao sincronismo é uma dimensão intersubjetiva na objetividade social. No mais, corresponde ao desejo, dimensão psíquica, por harmonia, ordem, organização, integração etc.

Em linguagem poética:

 

Os corpos humanos estão interligados

Em uma sincronia de movimentos cotidianos

Como em um ballet invisível

Que não percebemos também porque

‘Stamos demasiadamente nele

 

E

Se teu corpo na sala movimentar-se

Na cozinha alguém reagirá

Ajeitar-se-á o outro alguém à mesa

Como se fossem os corpos todos

Maestrados e maestros partes todos d’um todo

Conectados integrados e interinfluentes

Em um único instante num único coletivo movimento

Onde juntos e inconscientes e sempre dançamos

Até a data desta tese-poema

 

E

Há uma camada pensante do não pensamento

Somos

Causa-consequência em igual medida-tempo

Pois não há dia ou pedaço do dia

Desprovidos desta dança complexo-lógica

Como os corpos ao se encontrarem na rua que

Agem reagindo como reagem agindo

 

Instantaneamente e ambos

Simultaneamente

Simultaneamente e simultaneamente

 

E

Meu corpo vira-se enquanto o teu abraça-me

Ao dormirmos

 

NOMES E PERSONALIDADE

Os nomes e sobrenomes podem influenciar parte da personalidade. Em resumo, isso é deduzido das seguintes descobertas:

1) A formação do self na criança, sua diferenciação do meio, ser algo em si e para si, perceber-se, se dá também por meio do seu nome, em especial por meio do chamado verbal-afetivo do pai e da mãe (descoberta de Winnicott).

2) Na infância, a capacidade lógica da criança passa por estágios e demoram os saltos de percepção. Até a pré-adolescência, há uma lógica muito rígida, não dinâmica, de opostos e significados (descoberta de Piaget).

3) A mente opera, em sua função pré-consciente, associações e combinações (descoberta de Freud).

4) A mente é sugestionável, sem necessidade hipnótica, em níveis diferentes.

Exemplifiquemos. Uma criança cujo nome é Flor apreende o significado de flor enquanto objeto externo com suas características e, ao mesmo tempo, esta palavra lhe é absorvida enquanto significado de si – então ocorre uma fusão interna, inconsciente. No A Interpretação dos Sonhos, Freud, citando Goethe, cita por alto, apenas em forma de intuição, que as pessoas vestem seus nomes, sendo que o seu nome significa em alemão “Alegria”, o que o influenciou a ser médico, psiquiatra e fundador da psicanálise.

 

PECADOS E PERSONALIDADES

Toda ciência começa como religião e pseudociência. Como a alquimia deu lugar à química, o confessionário passou bastão para a clínica em psicanálise. Dito isso, o método classificatório de perfis é sempre imperfeito e falho – todos corretos com defeitos. Mas, em geral, podemos dizer que cada cidadão, ao menos nas sociedades de classe, é marcado por ao menos um dos assim chamados “pecados capitais”.

 

INCONSCIENTE E MENTE

Busca-se refutar o freudismo de modo equivocado ao afirmar que a neurociência moderna provou a inexistência de um inconsciente, como se um pedaço do cérebro fosse. O aparelho psíquico como inconsciente e consciente ou ID, ego e euperego (super-eu) de modo algum são coisas ou partes mas frutos abstratos da interação da Coisa, do cérebro consigo próprio e com o ambiente, da interação de suas partes. A mente, também, de maneira nenhuma é coisa, pois é o fruto da atividade da coisa orgânica, ligada ao seu meio; e é essa própria atividade. Para comparação, não podemos tocar nem o valor nem o preço das mercadorias em si, mas eles existem e são dedutíveis. Para ser real e cientificamente válida, uma categoria não precisa sempre ser diretamente observável – já que pode sê-lo indiretamente.

 

A TRÍADE DE PERFIS PSICOLÓGICOS

Freud observou, por generalização bastante perspicaz, que existem três tipos humanos: psicótico, neurótico e perverso. O psicótico tem lei, e lógica, rígida, fixa; em ampliação, a figura comum do louco com sua “vida paralela inventada”. O neurótico, por muitos considerado o normal, aceita as leis, mas é capaz de crítica e reformulação; ele pode derivar o fóbico (cujo objeto central, de medo no caso, é externo), o histérico (cujo objeto é o corpo) e o obsessivo (cujo objeto é um pensamento ou comportamento de origem mental); logo veremos porque insistimos na palavra “objeto” nos parênteses. O terceiro perfil é o perverso, que somente respeita a lei se lhe dá alguma vantagem. Pois bem; os psicanalista associam os três perfis com o complexo de édipo (homossexualidade etc.), do nível e do tipo de repressão em reação ao “objeto” amoroso parental. Ao que parece, no entanto, levantamos a proposta na esperança de originalidade e acerto, que vale para todo tipo de objeto. Vejamos. O psicótico assim é, em nível menor ou na forma doentia, porque na infância frustrou-se muito em acessar os objetos de desejo (comida, brinquedo, afeto etc.) ou teve pouca experiência prática com a realidade – logo seu objeto tornou-se seu pensamento, sua imaginação, que se inflou, compensando. Daí que Lacan pensou que a loucura de Joice foi compensada por este ao destinar sua imaginação para a escrita. Muitos cientistas são psicóticos e psicóticos criativos, não só neuróticos. (Por outro lado, por exemplo, visto de modo reverso, a dedicação unilateral e constante à, por exemplo, matemática, leva a um desenvolvimento deformado, inflado e desigual do cérebro, perdendo outros aspectos necessários à vida por causa da especialização excessiva, levando matemáticos a verem padrões por todo canto, desregulado.) O neurótico comum teve acesso ao objeto e por mediações, como parte de um trabalho, além de uma satisfação normal; então, enriqueceu sua experiência para com ele. O perverso, por outro lado, não teve mediações, não teve trabalho, quer relação direta e imediata com o objeto, tornando até o outro como objetal; pouca frustação – enquanto o psicótico teve muita, base e gatilho de sua esquizofrenia comum –, prazer desmedido, satisfação quase imediata (daí que ricos tendam mais ao mundo e ao modo perverso – daí que empresas familiares tendam a falir com o passar das gerações); por isso, também, supõe-se, os perversos possuem pouca imaginação, disciplina e criatividade; por não sofrerem como se deve, os perversos não desenvolvem a empatia mutualista. Afirmações como “a consciência é a consciência de algo”, ou “a consciência é alucinação relativa”, ou ”a consciência vem de fora para dentro por querer o permanente na mudança” etc. ligam-se bem com estas observações.

O neurótico adoece quando não consegue alcançar seu objeto, como afirma Freud. Vejamos, para formar um círculo teórico, um caso de delírio persistente, psicótico, na qual o portador tem noção crítica de seus pensamentos doentios. Porque ele sente solidão, imagina que está sendo vigiado secretamente, sendo olhado (ser integrado); porque sente solidão sexual, imagina que moças famosas estão se guardando para ele (ser mutualista); porque se sente menos, tende a acreditar que é dotado de grandes habilidades e ações (ser ativo). Em Freud, a questão é quase sempre sexual apenas, como única base – sem suspeitar a essência humana natural-social ou relação com todo tipo de objeto de desejo.

Vejamos dois estudos de caso opostos, um sádico (perverso) e um psicótico (delírio).

O jovem adulto gosta de ver vídeos de pessoas acidentadas, agressões, lutas duras, cenas de guerra reais, torturas etc. Produz humor depreciativo, diminui amigos, humilha de forma engraçada, constrange os próximos etc. Quando criança, matava pintos com pedra para saber como eram. Brigava diariamente e controlava suas namoradas. Olhando de perto, sua mãe depressiva, abandonada pelo marido desde cedo, apegou-se em demasia com o filho. Ela dava tudo o que ele queria, controlava-o por meio do prazer, do presente. Ele venceu de modo edipiano, sendo o esposo da mãe. Desacostumado com frustração, sempre abandonava um negócio, uma arte marcial etc. sempre que havia sinal de sacrifício. Eis um sádico leve.

O segundo caso é oposto. A mãe controlava, sendo narcisista, por meio da punição, da frustração – base para um filho com traços delirantes. O pai, obsessivo compulsivo, apegado ao dinheiro, e sádico, também costumava frustrar o infante. O garoto, na adolescência, revelou sua loucura parcial como reação ao controle paterno e materno. Aqui, o edipianismo também foi vitorioso com a proximidade coma mãe, contra o pai austero, mas não serve de causa para o delírio, pois, assim fosse, ocorreria algo semelhante ao primeiro caso; logo vemos que a frustração excessiva, não somente sexual, movimentou a psique deste caso, substituindo o objeto real pela fantasia.

 

FALAR-PENSAR – AGIR-COMPORTAR-SE

A separação do agir e do falar deu-se em duas clínicas, a cognitiva-comportamental e a psicanálise (ou humanismo etc.). Mas a ação é exteriorizar, logo o mesmo que a linguagem. Mas falar é uma ação. Nada impede mudança de comportamento como parte da clínica – nada impede ouvir o paciente para ele melhorar. Materialismo e idealismo juntos no terceiro, práxis.

 

 

                                 TRANSTORNO OPOSITOR PERSISTENTE

Vale a pena citar este tipo para a nossa avaliação. Uma sociedade autoritária, como com ditadura, passa seus valores por meio da família, dos pais. Pais autoritários, expressando uma ditadura de Estado maior, geram filhos cronicamente rebeldes – por quê? Porque o infante já nasce com natureza humana natural, como a necessidade de ser ativo, afirmar-se. Assim, mediada pela família (escola etc.), a ditadura estatal gera seus próprios coveiros, seus inimigos. A sociedade socialista deixará de ter tais transtornos por sua democracia real, sua qualidade de vida e respeito aos jovens.

 

REPRESSÃO FAMILIAR

Uma das causa importantes do masoquismo e do sadismo é a repressão familiar. Ao beber cerveja ou comer açaí pela primeira vez, odiamos a experiência; mas, se insistimos no consumo, o cérebro atua para modificar a experiência, que passa a dar prazer, até vício. O mesmo ocorre quando um pai tem mania de agredir a filha – a agressão tornar-se o sexo dela com o pai. Um menino que vive sempre com pai alcóolatra e violento pode passar a gostar de violência, de constranger os demais etc. torna-se sádico.

 

A TEORIA UNIFICADA DO DESENVOLVIMENTO

Freud, Erik Erikson, Wallon e Piaget desenvolveram, cada um por si, suas próprias teorias do desenvolvimento infantil. Mas, bem observado, todas têm algo em comum: suas etapas ocorrem, grosso modo, na mesma época, na mesma divisão temporal (e as datações são tendenciais, aproximativas). A etapa 1, do nascimento até, via de regra, um ano e seis meses; a etapa 2, de um ano e seis meses até os três anos de idade; a etapa 3, dos três anos até os seis; a etapa 4, dos seis anos até os dose; a etapa 5, pela adolescência etc. Como todos têm tal temporalidade, bem ou mal, logo há uma teoria comum ainda oculta.

O que há em comum são três fatores:

 

1.  Etapa do desenvolvimento cerebral

Como suas partes e suas interrelações estão quantitativa e qualitativamente ordenados.

2.  O nível de experiência

Diz-se que se um gato doméstico tivesse o tamanho de leão, ele comeria seus donos. Aprender a andar, por exemplo, leva a novas experiências.

Há uma oposição teórica: a vivência leva a uma etapa (Vigostsky) ou a etapa permite certa experiência cognitiva (Piaget)? Ora, a etapa existe, mas ela pode demorar a surgir ou passar-se para a próxima por baixo estímulo ao desenvolvimento. Eis resolução da possível contradição real entre relacionalismo e substancialismo, posições unilaterais e igualmente válidos.

3.  Energia (em busca de mais de si)

Para Freud, a energia é propriamente sexual, mas, para nós, ela é energia corporal e cerebral que tem apenas a forma de energia sexual como seu centro, principal forma.

 

Vejamos cada etapa, que chamaremos totalidade, do ponto de vista comum, completo:

 

Todos corretos e unilaterais:

Freud: psicossexual, biológico

Erikson: psicossocial

Wallon, Vigotsky: emocional e grupal, relação com os demais humanos

Piaget: cognitivo, biológico, relação com objetos

 

Totalidade 1 – nascimento até 18 meses

Aqui, a criança é totalmente dependente, seu problema central é a fome, a necessidade de amamentar-se. Seu problema é o outro.

Freud: fase oral, quando o prazer centra-se na boca.

Erikson: sensorial, nesta fase desenvolve-se a confiança ou a desconfiança.

Wallon: impulsivo-emocional.

Piaget: inteligência sensório-motora. Da indiferenciação eu-mundo exterior ao reconhecimento de objeto, espaço, tempo, causalidade.

 

Totalidade 2 – 18 meses até 3 anos

Freud: prazer anal, foco na prática social comum. Prazer em prender (obsessivo-compulsivo futuro etc.) ou soltar (criativo no futuro etc.) fezes.

Erikson: muscular, desenvolve autonomia ou dúvida e vergonha.

Wallon: sensório-motor e projetivo

Piaget: pré-operatória, pensamento indutivo, rigidez irreversibilidade do pensamento.

 

Totalidade 3 – 3 até os 6 anos

Freud: fase genital, prazer genital, o filho se apaixona, em geral, pelo membro adulto da família do sexo oposto, complexo de Édipo.

Erikson: O terceiro estágio – iniciativa ou culpa são consolidados na personalidade.

Wallon: estágio do personalismo. Imitação motora e social. Fase em que discorda dos adultos.

Piaget:  pré-operatória, pensamento indutivo, rigidez irreversibilidade do pensamento.

 

Totalidade 4 – dos 6 aos 12 anos

Freud: latência – deixa-se a energia como sexual, que se volta para outros centros, como a inteligência.

Erikson: o quarto estágio – dois caminhos para a personalidade: indústria (produtividade) ou inferioridade.

Wallon: estágio categorial – a capacidade de abstração e saber dos conceitos crescem.  O estágio do personalismo é sucedido por um período de acentuada predominância da inteligência sobre as emoções.

Piaget: operatório concreto – Passagem da intuição à lógica do concreto, início da descentração. Aquisição da capacidade de perceber a reversibilidade das operações, explicações causais, noções de permanência de substância, peso e volume.

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Totalidade 5 – dos 12 aos 21 anos

Piaget: operatório formal ou abstrato – Acesso à lógica operatória abstrata, descentração se completa. Pensamento proposicional e hipotético-dedutivo

A partir daqui, apenas Erikson desenvolveu de modo oportuno e seguro.

O quinto estágio – desenvolve-se em identidade ou confusão de identidade.

Marca o período da Puberdade e adolescência.

O amadurecimento total desta fase, em seu fim, é ser capaz de um raciocínio dialético, o mais maduro existente. A unidade dos opostos e a mesmidade do diverso é o central, passa-se do hipotético dedutivo – típico dos jovens – para a dialética, mas raro de acontecer na sociedade de classes ou atrasadas.

A adolescência foi descoberta, reconhecida, não criada em si pela modernidade. Basta lembrar que os gregos antigos reclamavam que os jovens apenas pensavam em sexo e festas.

 

Totalidade 6 – dos 21 aos 40 anos

Questão chave deste estágio: Deverei partilhar a minha vida ou viverei sozinho?

 

Totalidade 7 – dos 40 (35) aos 60 anos

Os dois caminhos possíveis, a crise, está entre generatividade ou estagnação.

Este ponto merece destaque.

O corpo torna-se mais lento, mais frágil. Na psicologia, aprende-se a economizar energia, por exemplo, vencendo o adversário por cansaço ou saber esperar. Mas, porque se está mais frágil, começa a se tornar alguém com mais medo. Assim, podem surgir tendências cínicas e oportunistas. Alguém antes subversivo e revolucionário sabe que, mais velho, não será tão ativo numa perigosa revolução, por isso tende a ser mais mediador, mais covarde (nos protestos de 2013 no Brasil, os veteranos dos partidos radicais condenaram a violência dos manifestantes; o velho anarquista Proudhon condenou fervores revolucionários de sua própria juventude). O pensamento muitas vezes cristaliza-se ou torna-se conservador, algo mais comum na próxima totalidade.

O desenvolvimento mental e lógico aqui é mais intensivo que extensivo: consegue fazer mais associações. Se pedimos para falar sobre França, logo ele citará aspetos ligados à palavra, como o pão, Louvre, poetas, revolução etc. Pode-se, assim, chegar ao auge da produção intelectual se não se curva à sua fragilização em andamento, se continuar ousado.

Leminski diz que “a política é o sexo dos velhos”. Bem cabe a frase nesta época, de vida socializada.

Quando vê que está perdendo os traços de juventude, o sujeito pode se agarrar ao passado, com crise da meia idade, namorando gente mais jovem, usando roupas da moda etc. Vivemos a ditadura do ser jovem sempre, porque estamos na época entre a juventude e a maturidade do ser social.

 

Totalidade 8 – dos 60 anos até a morte

Ou o sujeito irá para a integridade ao fazer bom balanço de sua vida ou sentirá desespero por um mau balanço de sua existência. Mas, discordo de Erikson, há também a sabedoria da angústia no segundo caso, não apenas a sabedoria do acerto no primeiro.

 

Há inúmeras “crianças crescidas”, que estagnaram numa fase inferior em muitos aspectos, embora consigam desenvolver um outro lado funcional, que pague as contas. Não é incomum pessoas velhas com lógica infantil do tipo “ou isto ou aquilo”, de opostos fixos. A maturidade ainda é algo raro. Por outro lado, frustração moderada, como parte menor da riqueza de experiências, ajuda a amadurecer; mas estresse pesado pode, ao contrário, estagnar um sujeito.

Outra observação precisa ser feita. Em nossa dialética, que debateremos nos últimos capítulos, passa-se, no tempo, não apenas logicamente (como em Hegel), da identidade para a diferença, para a diversidade, para a oposição, para a contradição e, se caso for, para a unidade-identidade. Isso também ocorre como processo por cada etapa. A totalidade 1, unidade, tudo é um, e progressivamente o bebê vai diferenciando-se, percebendo-se; na totalidade 2, a criança tem diante de si a diferença (unitária) que quer passar para a diversidade “solta”; na totalidade 3, temos a diversidade que passa para a oposição; na quatro, temos a oposição que passa pra a contradição; na quinta, adolescência, contradição; na maturidade real, a unidade de opostos. Isso está exposto de modo rígido, o processo é muito mais confuso, com processo, retrocessos e saltos.

Eis primeira formulação e esboço da teoria unificada do desenvolvimento.

 

CLÍNICA – SOCIAL E PESSOAL

O adoecimento psíquico, via de regra, deriva de relações sociais mediadas por relações pessoais. A clínica de terapia produz uma nova relação pessoal, desta vez positiva, em geral, como reação indireta às contradições do atual modo de vida.

 

COMPLEXO DE CAIM – LEIS E ESSÊNCIA HUMANA

Os irmãos disputam, comparam as ações uns dos outros, formando-se. Mas a psicologia pode ter mil e uma leis, todas corretas sem chegar ao fundo, ao fundamento; “irmão do meio” etc. Ora, irmãos formam personalidade porque nascem com necessidades biológicas e sociais com sua essência humana. A necessidade de amor (ser mutualista) pode gerar a formação de uma personalidade tanto por imitação ou por diferenciação, a depender das circunstâncias. É a natureza humana, com a qual abrimos este capítulo, que diz dos rumos do que seremos, ao menos na maior parte.

 

ASSIMILAÇÃO POR AFASTAMENTO

O título parece contradizer as leis da natureza. Quando o filho sai de casa ou quando os pais morrem, a descendência, que conviveu com os cuidadores, faz uma compensação, absorve alguma característica do outro em seus hábitos, pensamentos, personalidade. O outro permanece conosco de modo indireto. Perder amigos etc. podem também produzir tal efeito.

 

O LUGAR DESTAS IDEIAS

Tais formulações, teses, são com facilidade acusadas de pseudociência – são imensamente exóticas. Por isso, para preservar a moral dos demais assuntos, meditei exclui-las desta obra. Mas seria covardia teórica em um livro que propõe a renovação de quase toda a ciência, como com a nova teoria da essência humana.

Nas próximas páginas e capítulos, teremos mais exemplos de formulações ainda não sistematizadas para uma proposta de psicologia marxista. Sobre elas, quase tudo aqui é muito novo, inédito, por isso haverá resistência conservadora, dos mais velhos em especial. Mesmo na teoria, nunca haverá revolução sem resistência do passado.No entanto, quase todo este capítulo serve de preparo para o próximo ponto, a crise da psique.

 

PSICOLOGIA MARXISTA

Neste capítulo, próximo a concluir-se, apresentamos nossa proposta geral de psicologia marxista, o que não dispensará uma pesquisa especializada posterior. Em geral, os psicólogos nada sabem de economia, logo a base de toda a sociedade. Como separar a psique dos ciclos econômicos no sistema vigente? Em geral, nada sabem de história como totalidade. Em geral, são incultos, como em questões de dialética, ou biologia, ou neurociência. Enfim, a verdade é o todo, não a parte em si.

A psicologia deve adentrar mais em temas como ética, emprego, classes, diferenças biológicas entre sexos (sim, há diferença na igualdade), estética, movimentos psicológicos da economia, educação, dinâmica política etc. Isso é psicologia marxista.

Feita a crítica absorvente da teoria mais avançada, a psicanálise, façamos um breve passeio pelos teóricos.

 

PSICANÁLISE

Focar no sexo como base da psique, em biologia humana sob tal ângulo, tornou-se a força e a fraqueza do freudismo. Isso é vital, mas não é a totalidade. O homem também é social. No mais, o psicanalítico caiu em dualismo, falha a ser superada.

 

VYGOTSKY

Aqui, tratamos mais da tradição do que da letra literal do autor. Inspirado na revolução russa, surgiu a ideia de que a psicologia é baseada na comunicação, nas reações sociais e pessoais, no estímulo externo, nas fases sociais. A linguagem seria o centro. Mas o homem é social-biológico.

 

 

 

PIAGET

Caiu no erro oposto, as etapas de desenvolvimento como apenas cognitivas e naturais. Ainda assim, no final da vida pôde reconhecer que havia certas variações em tribos etc. Também não viu o homem total, a verdadeira sociabilidade. Focou na relação sujeito-objeto, não também no sujeito-sujeito, unilateralidade típica da psicologia histórico-social.

Na verdade, a fase, a etapa de desenvolvimento, é dada pela CONDIÇÃO biológica, a etapa é uma CONDIÇÃO para, uma base; mas seu fluir e desenvolver, seu consolidar, é relacional.

 

WALLON

Pôs dialética no materialismo de Piaget – como uma etapa agregar dentro de si a anterior. Via a variação de centro de gravidade entre emoção e razão no desenvolvimento infantil. Esqueceu, também, a totalidade ao focar na educação.

 

SKINNER

Comete o mesmo erro dos demais: não encontra a essência humana. Para ele, valia a concepção de que o objeto (ambiente) é ativo e o sujeito (indivíduo) é passivo, adapta-se. Isso deriva de um erro parcial de Darwin, que criticaremos em outro momento. Mas a criança já nasce com uma essência natural, que busca ser satisfeita, além de pulsões naturais e sociais. Não apenas nos adaptamos: mudamos a realidade, manobramos, mentimos, jogamos, evitamos, mudamos, moldamos, insistimos, mediamos etc. Para ele, um comportamento flui ou tende a desaparecer por reforço ou punição. Apenas. Um empirismo medível. Há uma verdade aí, no entanto: o meio tem poderosa força sobre o que somos.  A crítica ao Skinner é, antes, liberal disfarçada com roupas de esquerda, como se fôssemos livres, autônomos, individuais apenas, de todo conscientes etc. Somos ratos em uma gaiola de recompensas… Embora possamos, com a linguagem e com nossa essência, além da revolta, do ser ativo, reagir e revolucionar. O homem faz sua história, o cérebro é trabalho, produtivo, ativo.

 

SOCIOBIOLOGIA

Tal escola não tem contribuição relevante alguma, por exemplo, na economia. Mas há algo a dizer sobre a psicologia, onde de fato avançam – só que de modo unilateral e impressionista. O homem não se reduz à sua condição biológica, ou genética ,ou sexual. Ademais, aquilo biológico pode ser “natural socialmente modificado” ou mediado.

 

Todos eles buscam um ângulo, um erro que é um acerto. Dizer que tudo é construção social é tão certo e errado quanto dizer que tudo deriva de sua biologia. O método necessário torna-se método dialético, empírico-dedutivo. Devemos passar longe do empirismo. Nota-se que um programa virtual famoso de neurociência estava dando uma série de falsos positivos por décadas, sem que isso fosse percebido… A maioria dos testes psicológicos não dão o mesmo resultado quando repetidos, replicados, por outros, se e quando são retestados. A verdade é teimosa. Incluso, ela deve ser tema maior das reflexões psicológicas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Parte 6

DINÂMICAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CRISE DA FAMÍLIA MONOGÂMICA

 

“Pois o nome político do amor não é outro senão socialismo.”
Frei Betto

“A medida de amar é amar sem medida.”
Santo Agostinho

 

Além da inspiração evidente em Engels, este capítulo quase que repete de todo, embora chegue a conclusões diferentes e socialistas, o pensamento da grande sexóloga e psicanalista Regina Navarro Lins; ela recebe menos atenção da parte dos marxistas, ligados aos clássicos e limitados pela literatura estrangeira, do que o merecido por suas elaborações. Sua observação de que o amor romântico está em decadência e há uma substituição progressiva, ainda que lenta, por novas formas de amar é uma importante contribuição, pois demonstra que a instituição família nuclear burguesa está em crise e pode ser substituída por outra família com traços comunitários.

 

O AMOR CONTRA O CASAMENTO

Afirma-se que o amor é social, mas podemos demonstrar, ao contrário, que o amor é, de fato, natural socialmente modificado ou, em principal, reprimido na história. Aliás, tal sentimento foi condenado na prática até recentemente, até a década de 1940, por mais que embelezasse obras de arte. Vejamos um exemplo. Manteve-se viva uma lenda dos índios do Piauí que trata do amor de um índio e uma índia de tribos diferentes; eles se conheceram por acaso, amaram-se e, por causa de tal amor, foram amaldiçoados: um transforma-se em pássaro durante o dia e o outro se transforma em onça durante a noite de modo que eles nunca se reencontram… A partir de nossa mentalidade, do ponto de vista que valoriza o amor, é estranho o resultado desta lição de moral indígena em forma mitológica. É o tipo de estória que demonstra: 1) o amor é natural e 2) foi socialmente negado.

Entre os bonobos, espécie mais próxima dos humanos, a fêmea fica meio distante, em rejeição, dos membros do bando quando entra na puberdade e, logo mais, afasta-se para entrar em outro grupo, onde se reproduz[31]. Esse tipo de atitude tem valor biológico, pois aumenta a variedade genética. Vemos que é uma tendência como no caso lendário dos índios e que os valores sociais podem negar ao máximo a mesma força natural (xenofobia, etc.).

A história de Romeu e Julieta serve-nos também de exemplo. É uma lição de moral: seguir os impulsos juvenis, amar alguém de uma família outra e adversária, contra a sabedoria racional dos mais velhos, leva à morte, ao desastre. A ideia de que o clássico do teatro ocidental é algo romântico trata-se uma releitura posterior, sob novos olhares[32]. O texto de William Shakespeare já mostrava uma forte tendência social ao amor individual sexual (por urbanização, etc.) ao mesmo tempo em que mediava com a condenação de sua prática, ou seja, o sucesso ficcional da tragédia expressava um conflito real. Há aí uma contradição entre o homem natural e o homem social, contradição esta que, existente sob diferentes aspectos, será resolvida pelo comunismo, em uma nova relação ainda dinâmica entre os dois polos.

Como afirmamos, apenas na década de 1940 o casamento por amor tornou-se prática social comum, aceitável. As críticas sociais do início do século, sob uma base social que se alterava (urbanização, trabalho feminino, etc.), e o fato de as tradições levarem a duas grandes guerras, impulsionaram a uma renovação dos hábitos. Antes, o casamento era de caráter financeiro ou formal, onde o amor ficava fora da equação social em si. Agora, o casamento envolve sentimento mútuo, e isso é – e merece máximo destaque – uma bomba de efeito retardado sobre a instituição familiar atual. Como os sentimentos não são eternos, a base emocional da união do casal pode, e frequentemente irá, ser desmanchada com o passar dos anos, ou seja, o fim do amor sexual pede o fim do casamento, o direito de separação. Enquanto o casório aconteceu por motivos sociais “racionais”, ele não entrou em crise, diferente de hoje.

Como quase tudo que surge negando o velho e surgindo dele, há um período de transição. Entre o antigo casamento econômico e o amor antifamília tradicional do futuro, há a mediação da busca da realização total e plena por meio da união amorosa, por meio do casamento – o amor romântico. Isso gera uma enorme frustração, uma contradição na vida dos casais. O amar é a negação da rotina enquanto a vida de casal é a rotina completa, por exemplo. Os fatores da crise da família monogâmica serão melhor debatidos a seguir. Até aqui, ficamos com estas observações.

 

PÍLULA ANTICONCEPCIONAL E OUTRAS MERCADORIAS

O desenvolvimento tecnológico é também o desenvolvimento de mercadorias cujos valores de uso possam tornar mais fácil certas tarefas. Em A Revolução Traída, Trotsky afirma que o Estado soviético fez em seus primeiros anos o possível para coletivizar as tarefas domésticas, contra a opressão das mulheres, mas, por exemplo, diante de roupas rasgadas e mal lavadas vindas das lavanderias públicas, baseadas ainda no trabalho manual, os cidadãos passaram a preferir o retorno à atividade doméstica. Hoje, com a máquina de lavar, este problema pode, enfim, ser facilmente resolvido por lavanderias públicas, gratuitas e de qualidade. O desenvolvimento técnico atual permite liberar o tempo das mulheres em relação aos cuidados com a casa. Mas muito mais. Para dar profundidade às mudanças em curso, preferimos citar de modo direto Regina Navarro Lins:

 

A pílula anticoncepcional é a principal responsável pela mudança radical de comportamento amoroso e sexual observada a partir dos anos 1960. O sexo foi definitivamente dissociado da procriação e aliado ao prazer. A mulher se liberta da angústia da maternidade indesejada e passa a reivindicar o direito de fazer do seu corpo o que bem quiser.

O sistema patriarcal entre nós há 5 mil anos, que se apoiou na divisão sexual das tarefas e no controle da fecundidade da mulher – uma mulher tinha quantos filhos o homem quisesse, passando grande parte da vida grávida –, recebe assim um golpe fatal e começa a entrar em declínio. A mulher, a partir de então, passa a ter a possibilidade de não só dividir o poder econômico com o homem, como ter filhos se quiser e quando quiser.

As fronteiras entre o masculino e o feminino começam a se dissolver – nada mais interessa ao homem que não interesse à mulher e vice-versa –, atenuando a distinção entre eles, o que é uma precondição para uma sociedade de parceria entre homens e mulheres. (Lins, 2012, p. 216)

 

É conhecida a relação entre opressão das mulheres e propriedade privada. Quando o homem passou a cultivar e cuidar do gado, dando início ao processo de propriedade privada, percebeu que os machos também influem na capacidade das mulheres de ter filhos. Para controlar quem herdará os seus bens, a sexualidade feminina, e toda sua vida, passa a ser controlada. É isso que entra em crise em nossa época.

Regina Navarro Lins (2012) complementa que o automóvel e o telefone foram duas “ferramentas” que facilitaram o encontro livre no século XX. Hoje, observamos com facilidade que a vida sexual pode ser mais plena, mais rica, menos “fiel” (contribuindo para a crise do casamento e da monogamia), por causa da internet – isso tem um valor especial para as mulheres já que os homens sempre foram poligâmicos. A família monogâmica burguesa é atacada por todos os lados.

A entrada da força de trabalho feminina é outro destaque que corrói a família monogâmica burguesa. A primeira revolução industrial coloca as mulheres nas fábricas, dando-lhe renda própria e, logo, alguma autonomia. De lá para cá, houve avanços e recuos da participação da mulher no trabalho não domiciliar, porém a tendência do capital se impõe e já são as mulheres uma parte do “mundo trabalhista” indispensável.

Ao lado desses fatores,

 

Somem-se as crescentes dificuldades para impor a fidelidade feminina em uma sociedade que está se urbanizando, no qual os contatos sociais vão se tornando cada vez mais frequentes, e na qual, ainda, a abundância possibilita e requer o desenvolvimento (afetivo e racional, lembremos) das pessoas. (Lessa, Abaixo a família monogâmica!, 2012, p. 71)

 

Como observamos em outro capítulo, a tendência no socialismo é que se formarão grandes bairros com seus próprios centros, onde tarefas sociais serão guiadas, como a educação comum das crianças. Serão formas coletivas – como, provavelmente, restaurantes públicos, etc. – de socializar as tarefas nas quais as mulheres efetuam hoje sua segunda jornada de trabalho.

 

 

A NATUREZA DO CIÚME

Neste ponto, destacamos o debate sobre se o ciúme é natural ou, ao contrário, social, cultural, condicionado. A resposta desta questão tem consequências práticas para os destinos e as ações de convívio. De imediato, a tese culturalista (idealista) deve ser descartada, pois nenhum tipo de sentimento perdura artificialmente, por mera insistente educação, sem que seja sustentada e estimulada pela própria realidade objetiva (social ou natural). O efeito da cultura, por isso, nada é de primário ou primeiro e é, portanto, secundário, resultado e reforço de uma base que está para além de si.

Na tese natural, podemos observar espécies de libélula, onde o macho, após copular, vigia a fêmea para garantir que ela não copule com outros machos; mas isso nada significa, por analogia forçada, que seja o mesmo caso entre humanos.

O ciúme é, em primeiro lugar, visto de imediato, algo de fato natural em nossa espécie, e nas demais quando ocorre, porque se trata de um processo físico-químico e biológico, corporal, cerebral. Mas a pura natureza acaba aí. Essencialmente, o ciúme, ao menos entre nós, deriva não de um fato em si mesmo, mas de um contexto – assim, algo social, ambiental.

Porque há escassez emocional, relacional, há ciúme romântico. Se todos nós tivéssemos o costume, porque a realidade assim o confirma regularmente, de nos sentirmos desejados, amados, com um “colchão social”, etc.; se o medo de perder o amado fosse baixo na medida em que logo encontraremos outro ou teremos, ao menos, certa rede de amizade e vida social bem estabelecida, etc. se, dito de outro modo, tivéssemos a sociabilidade íntima bem desenvolvida típica do socialismo – então, só então, nesta abundância afetiva, além de também e necessariamente material, o ciúme amoroso será algo inexistente ou, quando muito, marginal.

O ciúme sexual não existiu em tribos matriarcais ou não monogâmicas porque a comunidade cuidava dos filhos, porque não havia herança, porque a solidão social (e sexual) era baixa, etc. Nesse sentido, mesmo se for algo inteiramente natural, refutando a posição aqui apresentada[33], tal tipo de sentimento pode ser severamente reduzido, sem nenhum peso que hoje tem, pela forma de autocomposição da sociedade. Um cachorro criado preso dentro de uma casa e totalmente dependente para sua sobrevivência e afetividade será imensamente mais ciumento em relação a outro que pode sair quando quer, convive em grupo com outros de sua espécie, tem alimentação fácil, etc.

Pensamos ter medido bem o peso daquilo que é natural e social no ciúme romântico, entre fato e contexto. Portanto, o corrosivo sentimento nunca acabará por uma tomada de consciência (embora tenha sua importância), por instalação forçada de relações amorosas mais livres, etc. Augustos dos Anjos, combinando naturalismo e expressionismo, afirmou: “O Homem, que, nesta terra miserável,/Mora entre feras, sente inevitável/Necessidade de também ser fera.” (Anjos, 2002, p. 103) Porém esqueceu de poetizar, junto, aquela selva que faz tais feras ferozes, se mantemos a metáfora.

Tentemos resolver, agora, outra oposição.

 

 

 

MATRIARCALISMO OU PATRIARCALISMO?

Os períodos de transição possuem suas formas claro-escuro, suas mediações negativas. O isolamento social da alta urbanidade leva a uma dependência emocional dos pais em relação aos filhos, o que pode significar a repressão constante para controle ou a manipulação dos infantes (a opressão sobre os jovens costuma ser pouco destacada). Mas, por outro lado, pode levar ao “rei bebê” mimado, ou seja, certa submissão paternal, algo de nossa época. Assim também, as mulheres podem liderar relacionamentos abusivos contras seus parceiros, acontecimento impossível em outros momentos históricos. São fenômenos transitórios, logo substituídos com o revolucionamento social quando e se o socialismo vencer. As sociedades primitivas foram matriarcais, sem opressão dos homens, a diferença dos iguais depois se transformou em oposição e, em seguida, em contradição entre os sexos com o patriarcalismo. Agora, podemos encontrar nova unidade com o fim da dominação sexual de qualquer tipo, com uma comunhão civilizada dos homens, mulheres e crianças.

A separação tornou-se um processo comum e aceitável, até desejável, apesar das disputas por propriedade (aspecto esperado sob relações capitalistas). É possível ter vários namorados durante a vida, há o “ficar” por apenas um dia, temos o “juntar-se” sem casamento, ocorrem festas especiais de separação, etc. Neste aspecto, o mundo mudou para melhor (aqui, contrariamos o típico modo operante dos comunistas que pensam de forma negativa sobre tudo, veem apenas crise e derrota); se as características vigentes não alcançam as vanguardas da revolução sexual dos anos 1960, há que reforçar que eram apenas vanguardas, não fenômenos de massa como hoje. Claro, nem tudo está garantido, pois é uma época de transição que pode trazer resultados positivos ou negativos (novo fanatismo religioso durante a decadência sistêmica final, etc.). Neste tempo, os homens vivem esta fase de diferentes formas, incluso com violência contra a mulher: o feminicídio tende a ter novas causas, como a insegurança do homem machista em relação à maior libertação feminina da parceira[34].

Surge a questão sobre como serão as relações de amor no socialismo avançado. Para tal tentativa de prever, combinamos afirmações de Lessa (2012) e Lins (2012): de um lado, satisfaremos a necessidade de afeto com relações estáveis temporárias com um ou mais parceiros; de outro, ao mesmo tempo, a pulsão sexual é permanente e não dirigida a apenas um único amante, logo teremos a liberdade sexual, sexo casual, longe de ciúmes, controles sobre o amado, etc. Deste modo, serão superadas as angústias dos relacionamentos de nossa época.

Ao a sociedade socialista oferecer tempo livre, estabilidade financeira, vida social plena, coletivização de atividades domésticas, etc. a família deixará de ser uma ficção idealizada tal como é hoje ou uma fonte de traumas. Os pais terão como enfim acompanhar o desenvolvimento dos filhos, as uniões estáveis temporárias deixarão de ter aquela pequena guerra civil entre quatro paredes. De certa forma, a luta pelo socialismo também é a luta em defesa da família, de uma nova.

O movimento progressivo afirma, com razão, a igualdade de homens e mulheres. Quando o machismo e outras opressões forem superados no comunismo, veremos ainda mais identidade entre os sexos, mais semelhanças – mas há, de fato, diferenças no idêntico oposto. Por biologia, a mulher tem uma leve tendência maior ao cuidado; os homens têm fibras musculares mais fortes (com o maquinismo atual, uma característica muito secundária) e um pouco maior apresso pelo risco. Somos iguais, apesar e com as diferenças inevitáveis, naturais. Isso exige a dialética da unidade e da identidade dos opostos, que algo é idêntico a si próprio e seu oposto, a identidade na diferença. Além do mais, podemos ir para além das tendências naturais, nunca são barreiras intransponíveis. Há mais homens na física porque, em primeiro lugar, há machismo, mesmo que exista uma tendência relativa para outras ciências entre mulheres (psicologia, medicina etc.). Quando a dominação do homem sobre o homem acabar, poderemos medir bem o que era social e o que é uma tendência não determinística natural.

Há um debate no marxismo: a tarefa não é dar cargos no poder às mulheres, mas destruir o cargo e o poder inevitavelmente machistas, mesmo se liderados por uma mulher. Isso tem muita razão, mas é parcial. Nosso cérebro também funciona por padrões, por naturalizar repetições, assim como um programa-robô pensa, por padrão, que ser executivo é igual a homem branco. A presença de mulheres e negros em cargos de destaque onde antes era incomum educa bem as novas gerações, produz uma nova naturalização por padrão. Isso é contraditório: uma mulher dona de fábrica é uma inimiga, e machista por negar às funcionárias creches e licença maternidade de 1 ano; mas tem um traço positivo, embora menor. O machismo apenas acabará com o fim do capitalismo, mas temos essas mediações complicadas no meio, falsas e verdadeiras ao mesmo tempo.

 

ORIGEM DA HOMOSSEXIALIDADE

Há três grandes teses causais sobre a origem da homoafetividade: 1) no fluxo hormonal durante a gestação; 2) genética; 3) falta de satisfação sexual heterossexual (veja-se que há cobras que se tornam travestis, mudam de cheiro para atrair machos, quando falham na meta de copulação). O erro é considerar apenas uma causa, unicausal, quando o mesmo efeito pode ter diferentes, até opostas, causas – como penso ser este o caso: todas ou quase todas corretas, ambas presentes na realidade[35]. Engels, um defensor voraz da libertação das mulheres, cometeu o erro der ser homofóbico, embora nenhuma campanha contra tenha feito em público. Ele afirmou que a decadência de sociedades correspondeu ao aumento de hábitos sexuais “antinaturais”. Ora, pelo menos em nossa sociedade decadente, isso tem alguma verdade porque a alta solidão, a fragmentação dos homens, estimula a causa número 3. Ademais, o começo da decadência dos modos de produção está acompanhada de maior urbanização, o que diminui um tanto o controle sobre os hábitos.

 

SOBRE A PROSTITUIÇÃO

1.      O trabalho para outro é a forma mais antiga de prostituição.

2.    Neste tema, confunde-se princípio, caracterização e mediação política.

3.    Trabalho, num conceito amplo, e prostituição, que são o mesmo, se vagina ou se mãos, não incluem prazer.

4.    No tema, a esquerda tem um pé, logo o pé errado, o direito, na religiosidade.

5.    Sexo não é sagrado ou especial – algo normal e comum. Aliás, a prostituição reduz estupros (que, claro, não justifica). Sim, sexo é sempre uma forma que inclui dominação, não seria diferente na prostituição – nem no trabalho classista; logo dizer que prostituição é dominação, classismo também o é. Claro, também, que totalmente superior se consentido. Mas a mesma energia psíquica do sexo, a pulsão, vai para a violência – eles até se relacionam no mesmo local do cérebro. Homens que têm vida sexual escassa por inúmeros motivos tendem a adoecer mentalmente (com consequências, às vezes, seríssimas – para si e para outros), ademais de fisicamente; assim a prostituição “diminui” o problema. Para a mulher é fácil ter relações sexuais; para os homens, não. Isso deve ser levado a sério, mesmo. Ignorar ou outra reação negativa sobre apenas é consequência do machismo, que ignora a saúde masculina.

6.    Mas vamos ao centro: as prostitutas. Assim como o uso da maconha, a prostituição sempre existirá em sociedades de classes. Para ajudar as moças, devemos evitar a criação de empresas, mas garantir aposentadoria para elas, além de outros direitos. Elas irão se prostituir – como evitar a subordinação a cafetões e empresas sem, pelo menos, descriminalizar? Impossível.

 

FEMINISMO E ARTE

Séries como The Boys e tantos filmes “lacraram” nas pautas sociais e feministas sem serem “cancelados” – lacraram e lucraram. Por outro lado, quando um roteirista sabe estar diante de certa má história, apela para pautas como feminismo na vã tentativa oportunista de justificar o texto, causar polêmica etc. A solução é a seguinte, parece: certa mulher guerreira e forte, por exemplo, deve estar na obra sendo guerreira de modo inteiramente NATURAL, de acordo com a história contada, o contexto – porque, de fato, É NATURAL (pasmem: um escritor de direita ensinou-me tal verdade, foi feminista sem o saber). A arte moderna pode ajudar a naturalizar mulheres em cargos, em ações “masculinas” etc. Sem forçar, sem justificar por fora. Uma justificativa interna é muito melhor. Certo escritor disse que escreve bem sobre mulheres porque descobriu que, afinal, elas são seres humanos, então assim as trata.

 

HOMENS E FEMINISMO

O feminismo também é para homens! A licença maternidade deve ser de, pelo menos, 1 ano – para mulheres e, veja só!, Para homens! Isso evita preferência por contratar homens nas empresas, produz igualdade. No mais, os homens estão cansados da personagem que têm de fazer, cansados – exaustos, dirá Lins. Nem sempre se é forte e exato, ou frio. A loucura relativa feminina é vista como algo belo, charmoso, atraente e aceitável. Um homem “meio desequilibrado” recebe o oposto: rejeição, piada, crítica etc. É uma opressão sobre os homens. Portanto, nem matriarcado nem patriarcado: união e unidade pela igualdade e contra o machismo!

 

MEDIDA DA LIBERDADE

Contra o imperialismo e o eurocentrismo, muitos afirmam que a sociedade ocidental não é superior. Mas como vamos medir a liberdade, o nível de civilização, sem cair no relativismo? A sociedade ocidental, incluso a América Latina, garante mais liberdade às mulheres, aos homossexuais etc. – eis a medida, engelsiana. Tal libertação tem como uma das suas bases a dominação sobre o Oriente Médio, mas é um nível superior, ainda que contraditório, ainda que baseado na barbárie alheia, mesmo assim. Outra medida, mais geral, passa por ter mais opções, como usar ou não usar burca quando quiser. A liberdade da mulher deve ser um valor universal, independente de país, pois é cientificamente provado que ela, sendo diferente, é igual ao homem. Essa medida está lastreada, de modo indireto e recheado de mediações, no nível de produtividade como base de níveis de liberdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SOBRE A PRÁTICA DA EDUCAÇÃO

 

A crítica à educação hoje é, via de regra, negativa, apenas importante crítica. A falta de propostas positivas têm razão de ser: nada importante pode ser feito sem muitos recursos. O atual modelo de escola é condizente com sua verba. Mesmo assim, faz-se necessário propor ao menos algo de transição.

O pensamento pós-moderno vê apenas o lado negativo da escola, como prisão juvenil. Mas é um espaço de ciência e filosofia, de aprendizado subjetivo, de encontro com os demais. De modo algum, uma educação em casa ou virtual substitui o encontro, a necessária vida coletiva.

Por outro lado, exemplos pedagógicos vêm de professores, mas deve-se levar em conta que suas “pedagogias” são próprias de suas personalidades, seus perfis subjetivos deslumbrantes. Logo, não servem de exemplo imediato.

Na pedagogia, o gênio Piaget erra ao, na prática, culpar a criança, e livrar o educador, ao dizer que, se o aluno não aprende, é porque ainda não está em certa etapa… Ora, a evolução é um ato de força, um esforço ou tentativa – não apenas um fluir de água, dirá Vygotsky.

Como vimos, o desenvolvimento das forças produtivas empurram para a tendência de mudança do resto do tecido social, como a educação. Tecnologias como realidade aumentada serão parte do revolucionamento educacional ao permitir ao aluno “ver” o funcionamento das partes de uma célula diante de si, os planetas e a galáxia etc. Mas, sob o capitalismo, o desenvolvimento tecnológico tem diminuído a demanda por trabalho qualificado. A mesma base que permitirá alta educação a deteriora segundo a exigência do capital.

Feitas tais observações, vejamos nossas propostas.

 

LIVRO DE MATEMÁTICA E AFINS

Para facilitar o aprendizado e a memorização, tais medidas devem ser feitas nos livros:

 

1.  Contar a história ou alguma anedota sobre aquele assunto;

2.  Dizer sobre grandes aplicações práticas;

3.  Derivar ou provar aquela equação etc.;

4.  Revisar assunto anterior necessário;

5.  Ir do concreto ao conceito abstrato;

6.  Dar exemplos de aplicação, do simples ao complexo;

 

Até o ponto 4, deve ser a parte que o aluno pode “pular quando bem quiser” caso tenha pressa.

 

7.  Os capítulos devem ser curtíssimos;

8.  As questões devem ir do simples ao complexo, do concreto ao abstrato;

9.  A diagramação deve ser espaçosa e agradável;

10. O livro deve ser o máximo completo, sem precisar da ajuda do professor ou da internet.

 

Além disso, equações etc. devem ser apresentadas dentro de imagens fortes, criativas, de todo inusitadas o que facilita a mente tirar uma “foto”, memorizar. Macetes criativos e atalhos devem ser ensinados, além do uso de recursos artísticos e literários como o humor.

No Brasil, as obras que mais se aproximam de um projeto tão simples é a coleção “Conecte”, da Saraiva, com uso mais comum na classe média alta.

Deve-se acrescentar que o Estado deve oferecer manuais e vídeos que ensinem a estudar e a memorizar, com as técnicas disponíveis na psicologia moderna.

 

ENSINO MÉDIO

No ensino intermediário, o aluno deve ter acesso a todas as matérias, mas deverá escolher qual bloco, entre humanidades e ciências naturais, terá por média a nota 5 e qual a nota 7, entre 0 (zero) e 10.

 

FILOSOFIA

Deve-se dividir o ano desta matéria em duas partes por semestre: na primeira, história geral dos pensadores; na segunda, a história dos conceitos e ideias – conceito de espaço na história, concepções de moral, como os pensadores trataram a questão do um e muitos etc. Ademais, os diferentes métodos científicos devem ser explicados.

 

PROVAS

As provas devem ter uma questão de opinião ou redação do aluno sobre algum tema. O central é ele, desde a primeira aula do mês, ser levado a pensar sobre algum tema para escrever sua hipótese sobre na prova, valendo ponto extra.

Os cálculos não devem ser exatamente decorados. A folha da prova deve dispor todas as equações necessárias ao aluno, como na vida real – o que interessa é aplicar. No ensino médio, o uso da calculadora também deve ser permitido. As questões da prova, e do livro, de modo algum devem ser uma verdadeira charada; devem ser claras e simples, mas pode haver uma questão extra especial de alto valor.

Vale um relato pessoal. Minha professora de reforço fazia o seguinte: 1) eu deveria ler para ela um parágrafo do capítulo; 2) deveria resumi-lo em voz; 3) deveria dar minha opinião sobre. Isso foi de máxima positividade para minha formação.

 

MÚSICA

Há um conto de Machado de Assis sobre um maestro que passou a vida inteira apenas lendo partitura e reproduzindo os clássicos; quando decide escrever algo próprio, é incapaz. Às vezes, passamos 15 anos decorando, memorizando, absorvendo e, de repente, no doutorado, somos obrigados e incapazes de criar algo de fato novo. A música ajuda a resolver isso. Aos 12 anos, um aluno pode aprender música num instrumento, primeiro reproduzindo; mas, ao aprender as primeiras escalas musicais, pode ser imediatamente incentivado a improvisar solos. Esse é o eixo: ensinar, após certa absorção, a improvisar, solar, até mesmo de modo subconsciente. O cérebro, assim, aprende a ser criativo, a associar, nesta e noutras áreas.

 

CURSO DE FOLOSOFIA

O curso de filosofia deve ter duas etapas. Primeira, história da filosofia, de grupo de pensadores a outros, de um filósofo a outro; segunda, focado em ciência moderna para produzir hipóteses e novas conclusões.

 

HISTÓRIA

No ensino fundamental e médio, a visão marxista da história é a necessária ao alunado. Isso pode soar ideológico, mas é a ciência mais profunda de fato. O livro de história pode, por outro lado, apresentar as diferentes contribuições de outras escolas teóricas, uma ao lado da outra. Ouvi de um professor que ensina para alunos ricos de minha cidade: “Eles preferem a história marxista porque é cinematográfica; brinco com um colega que estamos ensinando nossos inimigos de classe.”

 

 

PRODUÇÃO DE ARTIGOS

É notório que há uma fábrica quase inútil de artigos no meio acadêmico. Para preservar a qualidade, a medição deve pôr uma quantidade máxima limitada de artigos e papers que valem ponto num ano. Além disso, livros individuais devem valer mais, além da divulgação científica.

 

LÍNGUAS

Quase todos os alunos jovens sonham aprender inglês, mas não aprendem na sala de aula. Há algo errado, portanto. Minha proposta é a de imersão completa por 3 semanas ou 1 mês, no ano, estudando apenas inglês ou outra língua nesse período. Nos EUA, há uma escola em que o aluno vai para um retiro de férias onde tem contato apenas com a língua estrangeira, com todos os objetos com o “nome” deles colado, com livros e filmes naquela língua, com pessoas para conversar etc. Isso deve ser feito em escala maior. Para economizar custos, o Estado pode colocar algumas escolas nas 3 primeiras semanas de aula; outros nas 3 seguintes etc.

Além disso, o professor, se ainda mantemos alguma aula convencional, deve usar palavras opostas no ensino. Tal oposição gera gatilho para aprendizado.

O Estado deve comprar certas séries, dos mais variados estilos, de episódios curtos, com um programa que permita o aluno ver uma cena em português, depois em inglês etc. A repetição importa.

 

OUTRAS MATÉRIAS

No quarto ano do ensino fundamental, todo aluno deve ter três cursos: 1) música, rumo ao improviso; 2) arte marcial; 3) no final de semana, escoterismo. Nos anos seguintes, pode escolher focar em um ou outro.

 

BIOLOGIA

O Estado deve aproveitar que a tecnologia computacional está avançadíssima para criar uma série completa, longa, repetitiva e “devagar” sobre todos os assuntos dos livros didáticos. Por exemplo, cada processo celular invisível deve ter um vídeo com grande qualidade de efeitos especiais para demonstrar, repetida e agradavelmente, o processo.

 

 

 

RENDIMENTO DO ALUNO

Assim que um aluno, desde a alfabetização, demonstra dificuldade, notas baixas, logo ele deve ser encaminhado para um reforço extra com outro professor. Isso promoveu uma revolução educacional no pobre Ceará, que tem 87 das 100 melhores escolas do país, além das 10 melhores. Nem reprovar, que afasta o aluno, nem passar de ano em modo forçado, alimentando seu atraso.

 

INTERNET

A internet e o celular são base para a revolução educacional. Em salas de aula, os professores perdem a maior parte do tempo escrevendo no quadro, depois os alunos tiram foto daquilo escrito… O livro e a internet devem ser suficientes, com cada aluno pesquisando por si o que o professor apenas apresenta. Reforçamos: em pelo menos metade das matérias, o aluno poderá faltar às aulas para estudar por si numa biblioteca da escola com internet boa e aparelhos, para estudo isolado; além disso, poderá dedicar-se ao lazer e ao esporte no espaço interno da escola caso queira estudar em outro momento. Alguns alunos aprendem melhor sozinhos, outros, com aula etc.

Assim, deve ser direito todo aluno ter um bom celular e internet permanente.

Vale notar que há uma arte oportunista dos professores, a arte de enrolar. Aquilo que poderia ser oferecido em 1 ou 2 aulas é esticado para durar 1 mês inteiro.

Como o aparelho psíquico do alunado ainda está em formação, apenas em casos raros há carinho por aprender. Por isso, deve haver alguma autoridade professoral, e estímulos ao aprendizado, por prazer e recompensa ou dever.

 

SALÁRIO

Os alunos devem receber salário, que cresce com o avanço das séries. Além disso, uma parte da renda recebida varia segundo as notas, segundo o rendimento em prova. Veja bem; ao cérebro do adolescente ainda falta maior senso de responsabilidade e é impulsivo, logo deve ser em parte guiado, incentivado. Além disso, bons resultados devem gerar salários maiores a professores e funcionários.

 

AULA

A aula deve começar 8 horas da manhã, não 7 ou 6. Além disso, nenhuma tarefa deve ir para casa, tudo deve ser resolvido no espaço escolar.

Mais uma vez, o aluno tem direito a não marcar presença em metade das matérias, mas deve fazer prova como os demais, com nota mínima 7. Para isso, a escola deve oferecer bibliotecas para estudar, internet ou distrações como esportes etc. Ou seja, o aluno pode faltar em tais matérias, mas deve, de qualquer modo, oferecer bom resultado final. Uma nota mínima, 7 ou 8, deve ser condição para liberar-se da presença em aula.

 

FARDAMENTO

O fardamento não deve ser obrigatório, apenas opção, para estimular a diferença, incluso de perfil mental. Além disso, as fardas devem respeitar a moda e o clima.

 

 

FORMAÇÃO DO PROFESSOR

A formação do professor, em principal nas exatas, deve ter três perfis: 1) licenciatura superior; 2) bacharelado; 3) licenciatura de base. Um curso de matemática voltado a formar professores de ensino médio e fundamental deve ensinar algo de matemática avançada, cálculo etc., mas deve focar na didática, na oratória, no reforço do aprendido antes, na história de tal ciência etc.

 

ENSINO SUPERIOR

Todas as matérias de um semestre do curso deve ter um tema base, mas também um livro de base, cuja leitura é obrigatória. Os alunos do ensino superior hoje terminam o curso sem ter lido sequer um livro inteiro, apenas introduções ou pedaços de algumas obras. Isso deve mudar. Ler em sala e individualmente devem ser o foco máximo. Mil vezes melhor um único livro lido com atenção a 200 trechos de 200 autores.

Ademais, todo professor capaz de dar grandes aulas deve ser pago para disponibilizar cursos gratuitos completos na internet. Toda cultura erudita humana deve estar disponível de graça na web em português.

 

SOBRE FILHOS

Em complemento, temos tais indicações para a educação familiar:

 

1.      Dar opções ao filho. Por exemplo: se sairão juntos, pedir para que o filho escolha entre três roupas, entre três sobremesas etc.;

2.      Sempre explicar o motivo de uma ordem;

3.      Ouvi-lo sinceramente e de fato, mas, nas questões centrais, os pais decidem;

4.      Elogiar mais o esforço do que o resultado;

5.      Não contrariar ordem de outro, exceção de situações de debate;

6.      Não bater, exceção de casos raros, mas punir com cortes de afazeres (não deixar sair, sem internet etc.) ou novas obrigações;

7.      Desde cedo oferecer brinquedos desafiadores, mesmo que impróprios um tanto para a idade;

8.      Dar tarefas domésticas, maiores ou menores segundo a idade;

9.      Ensinar coisas práticas da vida: como retirar dinheiro em banco, como andar no centro, como pedir para descer do ônibus etc.

10.  Estimular a brincadeira e convívio com outras crianças, evitar o isolamento típico de nossa época;

11.  Testar desde cedo quais os talentos ou vocações da criança, sem preconceitos ou ambições, e “especializá-lo” desde já, incentivando enquanto o interessar, sem forçá-lo – uma habilidade desenvolvida desde a infância gerará um ótimo trabalhador, ou alguém saudável com seus hobbies particulares;

12.  Respeitar a moda juvenil, mesmo com alguns limites relativos;

13.  Nunca humilhar em público;

14.  Dar direito à intimidade, à vida própria, ao filho – comum os pais sentiram-se donos das crias;

15.  Falar sobre sexo com naturalidade, disponibilizar preservativos e espaço privado para vida sexual – isso dificulta muito a gravidez;

16.  Punir egoísmo, mas premiar autorrespeito, a defesa das próprias vontades.

 

No fim, não há manuais que garantam o destino da prole.

 

A NOVA GERAÇÃO

Refletir em filosofia sobre os mais jovens têm vários problemas associados. Primeiro, pode-se ter uma concepção saudosistas e criticista exagerada entre os mais velhos, que romantizam o próprio passado. Segundo, oposto, pode-se pensar que se trata apenas de geração diferente, como se a degeneração geracional não fosse uma possibilidade. Há ainda a armadilha do caminho do meio; vejamos um exemplo lógico: a impulsividade (mesmo) de alguém, a caraterística de fundo, produz em certas situações qualidades, como criatividade grande, mas também defeitos, como a falta de noção social; a característica, a mesmidade ou base, externaliza-se como defeitos aqui e qualidades ali. Pois bem; a nova geração teria, assim, igualmente, qualidades e defeitos próprios?

Participo de um grupo de escritores; nele, com frequência, os mais jovens perguntam "isso pode?", ou "isso é certo?". Eles querem agradar, não ser rejeitados. Penso que há duas razões centrais para: 1) uma criação mais isolada, menos vida social, o que reduz o colchão psíquico; 2) a internet pede que sejamos desejados e vistos, contra o ridículo e a ridicularização pública (certo controle social abstrato retorna com a internet – em sistemas de punição e recompensa, reforço e desestímulo). Aonde há rebeldia? Aonde há originalidade? Isso é perigoso, muito. Ser “alternativo” agora é comprar roupas “alternativas” da moda… Bolos de aniversário falsos na festa e teatros de subversão.

A nova geração, desde muito cedo, movimenta-se menos, socializa-se menos – eis a fragilização, o atraso do desenvolvimento em todas as esferas psíquicas. Se somos, por exemplo, rejeitados, mas temos uma fonte segura de amizade e amor, somos muito menos afetados pela ação alheia. Para comparação, veja-se que um militante de classe média, mais isolado em geral, cede com mais facilidade a pressões hostis, pendendo ao centrismo, em relação a militantes operários, mais “duros”, mais tolerantes aos isolamentos.

A crise geral da psique, parece, cobrará seu preço sobre a nova geração. Por evidente, há qualidade maiores como a maior capacidade de aprender com a internet. Mas o que melhora a sociedade e o indivíduo, o que determina o peso do positivo e do negativo, é sua capacidade de subversão, o novo.

Humberto Gessinger, Engenheiros do Hawaii, pensa na música Pose sobre:

 

Vamos passear depois do tiroteio

Vamos dançar num cemitério de automóveis

Colher as flores que nascerem no asfalto

Vamos todo mundo

Tudo que se possa imaginar

 

(…)

Vamos ficar acima, velejar no mar de lama

Se faltar o vento, a gente inventa

Vamos esquecer o dia da semana

Tem que ser agora, anos 90

 

Vamos remar contra a corrente

Desafinar do coro dos contentes

 

E completa:

 

Tô fora voodoo, ranço, baixo astral

Eu não vou perder meu tempo brincando de ser mal

Não vou viver pra sempre nem morrer a toda hora

Como rasgos pré-fabricados num novo velho blue jeans

 

Há várias manifestações de adestramento, incluso disfarçados de rebeldia. Sabemos que, há poucos anos, os pais brigavam para os filhos entrarem casa; hoje, brigam porque não saem.

 

AS LIÇÕES

Os marxistas e os dialéticos evitam a filosofia do comportamento, dos estoicos etc. Mas seus raciocínios gerais podem ser muito úteis diante do sofrimento humano, ainda que este apenas possa ser muito reduzido numa sociedade socialista. Apenas Trotsky, em Questões do modo de vida, e Valério Arcary, em Ninguém disse que seria fácil, ensaiaram entrar em tais temas. Como este livro pretende tanto explicar o real quanto oferecer algo para a prática, derivamos as seguintes conclusões:

 

1)                 O excesso constante de prazer não leva à felicidade, mas ao esgotamento. Felicidade tem substância e conteúdo, quase medida.

2)                 Se a sociedade está em situação difícil, mas difícil será o indivíduo obter vitórias individuais ou felicidades.

3)                 Na vida pessoal e no curto e médio prazo, às vezes, não há saída ou alternativa, embora não tanto demore uma solução na maioria dos casos. Inexiste situação totalmente sem saída, mas pequeníssimas alternativas em probabilidade difícil e raramente se realizam.

4)                 O processo importa, mas vitórias importam ainda mais.

5)                 O grande esforço é condição da vitória, mas não suficiente nem garantia certa.

6)                 Sofrer é o privilégio de viver, mas para evitar aquele desde o prazer e a felicidade.

7)                 O trabalho não dignifica o homem, exceção quando obrigamos a sociedade a permitir com que a necessidade natural do trabalho seja cumprida de maneira respeitosa.

8)                 Vitórias pessoais são obras coletivas e mais ou menos democráticas.

9)                 O inferno é a falta do outro.

10)             Perceber a causa, o motivo, a razão, a utilidade e a finalidade possível de um projeto ou trabalho produz prazer e impulso, talvez felicidade.

11)             Precisamos dos opostos, lazer e atividade, dormir bem e acordar bem, amor e raiva, medo e coragem, e assim por diante, e assim por diante. Sem excesso de um contra o outro, sem unilateralidade. Às vezes, um tornando-se o seu inverso.

12)             Desistir pode ser uma opção, em principal e muitas vezes apenas no limite, pois o acerto também é feito de falhas no caminho ou ao lado.

13)             A perfeição de personalidade ou de vida é uma utopia irrealizável. Vida é conflito, contradição.

14)             Os defeitos não devem ser reprimidos, produzindo novas doenças aparentemente sem causa, mas redirecionados para algo positivo, produtivo, saudável e útil.

15)             Exceto causas orgânicas, inexiste preguiça dominante mas não uso de talentos e possibilidades, pelo individuo ou pela sociedade.

16)             Não há qualquer fórmula que garanta permanência de relações sociais e pessoais – só a mudança é permanente.

17)             Nem sempre felicidade é abrir os olhos, mas é necessário.

18)             Apenas na impossibilidade de uma vida feliz, deve-se pensar a possibilidade de uma vida que valha a pena, contanto não fira a essência humana natural.

19)             A popularidade dos livros de autoajuda é fruto da semialfabetização popular mais a infelicidade constante, mais a felicidade como quase tocável pelo alto desenvolvimento do mundo social e das coisas.

20)             Nem sempre se colhe o que planta, nem sempre se planta o que colhe.

21)             Má condição não é sempre punição de um erro ou punição justa.

22)             Entre as piores sensações é sofrer, mas não saber a causa de seu sofrimento. Daí a necessidade, por exemplo, da cultura. Daí que se procura soluções erradas como excesso de acúmulo de coisas.

23)             O corpo não é a negação da alma, mas sua afirmação. Corpo são para ter mente sã.

24)             A principal tarefa do Marxismo é a felicidade humana, tanto quanto possível e responsável.

25)             Agir por uma causa maior é tanto compensador quanto correto e necessário.

26)             Como na guerra, a máxima ousadia pode ser o mais racional.

27)             Exato o medo de algo produz o algo, o medo da rejeição produz rejeição.

28)             Às vezes, é preciso recuar antes de avançar com dignidade.

29)             Às vezes, é preciso adiar para ter algo melhor no futuro.

30)             Nem toda proposta boa em si é boa de fato quando considerado todo o contexto.

31)             Uma derrota aparente pode esconder uma vitória essencial. Uma vitória aparente pode ser, na verdade, uma derrota oculta. O azar pode ser sorte, a sorte pode ser azar.

32)             Planejar, nunca nos mínimos detalhes, é preciso – até para alcançar bons resultados diferentes do esperado.

33)             É necessário teimosia e insistência de médio ou longo prazo.

34)             O correto nem sempre recompensa.

35)             Quase nada é certo ou errado em si, pois depende do contexto.

36)             Nos planos, o mais importante é fixa-se no “o que” deseja realizar, pois tal “o que” pode acontecer de muitos modos, “como” e formas diferentes; portanto, deve-se ter mente aberta aos modos de realização, os “comos”.

37)             O homem é ainda um animal, logo é negativo para o homem urbano afastar-se em demasia da natureza, ainda que ela possa envolver algum risco.

38)             Se teu trabalho é intelectual, dedique um momento regular para ato manual; se, ao contrário, teu trabalho é manual, dedique um momento regular para ação intelectual; além disso, tenha um momento do dia ou da semana para nada fazer, para o pensamento fluir solto ou planejar e refletir; ser unilateral produz problemas físicos e mentais.

39)             Sempre consulte outros antes de tomar uma importante decisão.

40)             Os fins justificam os meios, mas, ao mesmo tempo, os meios devem justificar os fins.

 

Uma obra sobre moral ou ética marxista terá de adentrar em tal tema, incluso formulando sobre, mantendo a noção de totalidade e tempo histórico.

Certo ensinamento geral nem sempre é útil ao comportamento cotidiano, e vice-versa. É fato que podemos dividir os homens em ativos e reativos, mas ocorre de modo diferente, inverso, na amplidão das classes sociais. A classe operária é ativa e anda em bando; no nível pessoal, são os reativos que andam em grupo. A burguesia é reativa, mas mais individual.

 

 

 

TEORIA MARXISTA DA ALIENAÇÃO

 

É da cultura comum afirmar que alguém sem interesse por política é um alienado. Tal significado de alienação até está correta, mas é muito limitada. Comecemos com uma reflexão. Se o trabalho é central para a espécie humana, porque só nos sentimos humanos quando terminamos de trabalhar? Bem observado, sentimos os prazeres mais básicos e animalescos de dormir, comer, praticar sexo, etc. Isso ocorre porque vivemos em uma forma de sociedade que nega nossa humanidade.

Para nos aproximarmos do conceito completo, o primeiro significado de alienação é separação. E é ainda mais correto dizer “separação daquilo que deveria estar integrado, unido”. Veremos: tal concepção é insuficiente ao mesmo tempo em que permite uma aproximação bastante correta da teoria.

 

O CAMINHO DA TEORIA DA ALIENAÇÃO

Hegel, pensador anterior a Marx, elaborou: nosso pensamento, o subjetivo, cria o objetivo, como, por exemplo, o Estado. Aquilo criado a partir de nosso “espírito” separa-se de nós: é a subjetividade objetivada. A partir da ideia de Estado, nosso exemplo, cria-se uma instituição que ganha vida própria, que ganha independência. Aqui vale uma atenção: o processo de formação de algo separado é, para Hegel, inteiramente positivo.

Outro filósofo, desta vez da época de Marx, chamado Feuerbach, criticou Hegel com imensa dureza. Elaborou uma teoria ateísta e materialista da realidade, contra a religiosidade mais ou menos presente em Hegel. Feuerbach afirma: Deus não criou o homem – foi o homem quem criou Deus! Porém: a ideia de Deus passou a dominar o próprio homem, ou seja, a criatura passou a dominar o criador! Deus, esse pensador diz, é a representação do próprio homem, de sua própria essência, para o homem infeliz com sua realidade. Aqui vale outra atenção: para ele, a alienação é inteiramente negativa.

Marx combina as duas formulações, de Hegel e Feuerbach, para formar algo novo. O homem – ou melhor, os trabalhadores – cria a realidade, mas essa mesma realidade volta-se contra o criador e o domina. O Estado, por exemplo, só pode existir porque há trabalhadores, porém o Estado existe para reprimir e controlar a classe trabalhadora.

O mundo das coisas criado pelo trabalhador ganha autonomia e independência, então a criatura, como as mercadorias, controla o criador. Aquilo que chamamos “capital”, que é um processo social, é também um processo cego, que impõe regras sobre os homens. Porque os homens estão desorganizados como sociedade, separados uns dos outros, surge uma série de leis sociais que não são decididas por ninguém, pois surge uma lógica das coisas que passa a controlar a humanidade.

Nas fábricas, o fruto do trabalho, o resultado do esforço, é uma mercadoria que não pertence ao trabalhador, ou seja, ao criador – pertence ao capitalista. Ele, o operário, é separado do fruto de seu próprio trabalho e nada tem de identidade com seu produto final. É muito comum o operário passar oito horas seguidas apenas colocando uma única peça num aparelho, no entanto ele nada sabe da função de seu ato de trabalho, para que serve aquele componente que ele instala no produto.

O trabalhador serve ao processo produtivo, não é o processo produtivo que serve ao trabalhador. O operário torna-se uma ferramenta de carne e osso da máquina – o maquinário passa a dominar os trabalhadores. Assim, a máquina é sujeito e o operário é objeto – o trabalhador é coisificado, o maquinário é humanizado. Há, portanto, coisificação dos homens com a humanização das coisas.

Vale a pena oferecer relatos sobre não alienação no trabalho. Certa vez, fui vigia de dependentes químicos; numa dessas vigilâncias, sentou perto de mim um paciente que pintou as paredes e colocou grama no pátio da instituição; pois bem: ele conversava com um colega e disse: fazer todo o trabalho é puxado, mas quando vemos o resultado, dá um prazer enorme. Esse “prazer”, um sentimento, é muito valorizado pelo marxismo; o trabalho escravo, feudal e assalariado negam esse prazer sentimental do animal humano. Tenho um amigo que, por improviso, sem formação oficial, produz, por exemplo, a própria mesa de sua casa; ele diz que, quando vê o fruto do seu trabalho, lhe dá um prazer enorme – o cérebro premia a criatividade, a criação ativa. No meu caso, a primeira vez em que tive tal sentimento foi quando ensaiava com minha banda nossas próprias músicas; nós não repetíamos as músicas como robôs musicais, ao contrário, experimentávamos, dávamos propostas para as canções, e uns aos outros, tentávamos, corrigíamos etc. – depois, era quase uma hora inteira sentido aquele sentimento sem nome, agradável, do qual comentávamos. Também senti isso quando as reuniões partidárias da qual participava eram dinâmicas, com observações, propostas, votações etc. É um sentimento fortíssimo porque é raro hoje; mas será natural no socialismo, pois, por exemplo, saberemos que nosso esforço é útil para a comunidade, que ajuda tanto a nós quanto aos outros.

A alienação também é a separação dos seres humanos com a dominação de uns sobre os outros. A dominação de uma classe sobre outra, o machismo, o racismo, a homofobia, a xenofobia são formas de separação daqueles que deveriam estar integrados, unidos. Os que dominam a relação – o patrão, o homem machista, etc. – recebem muitas vantagens por sua vida alienada enquanto o outro polo, o negativo – o operário, a esposa, etc. –, tem uma série de prejuízos nessa forma de alienar-se. A prática machista ou domínio do patrão sobre o empregado são formas de coisificar o outro, de diminuir sua humanidade, de subordiná-lo.

A separação dos homens é ainda mais profunda. Vemos o outro como inimigo, como adversário. Os capitalistas lutam entre si por lucro e os trabalhadores entre si por emprego. Por isso, a missão do socialismo é superar essa animosidade, colocando, finalmente, fim à divisão da humanidade entre possuidores e despossuídos, entre classes sociais. 

A alienação inclui a transformação do dinheiro em um Deus. Hoje, o dinheiro é apenas um pedaço de papel pintado, mas guia nossa rotina e nossos pensamentos. A coisa domina os homens, a criatura domina o criador. Se alguém nos mostra um bolo enorme de notas de dinheiro, logo esticamos os olhos e ficamos afetados – e um desejo estranho de ter aquilo nos possui. Pense-se que sempre nos sentimos mal quando gastamos dinheiro, sentimento que nos pressiona a poupar, a guardar nossas notas.

A humanidade aliena-se em seu desenvolvimento e tal alienação desenvolve-se até que existam condições para o reino da liberdade real. Em sua evolução, a humanidade nega-se a si própria – coisifica-se, etc. – para, depois, afirmar-se de modo pleno. Ou seja: o caminho da liberdade é feito por meio de seu oposto, de seu contrário, de sua negação. Os modos de vida escravocrata, feudal e capitalista são etapas necessárias para que o homem, no futuro, torne-se livre de fato. No escravismo antigo, os trabalhadores eram como coisas, nenhum pouco livres. No feudalismo, o homem na forma de servos medievais torna-se um tanto mais livre, preso ainda à terra, e um pecador. No capitalismo, somos formalmente, juridicamente, livres e iguais – apenas formalmente; ou trabalhamos como as condições difíceis nos impõe ou fracassamos. No socialismo, seremos de fato e finalmente – substancialmente – livres. A história da humanidade é a história por onde ela se torna cada vez mais livre, liberta.

Em relação às coisas, hoje, a alienação aparece assim:

 

1)  Humanização das coisas na proporção da coisificação dos homens;

2)  Valorização das coisas na proporção da desvalorização dos homens;

3)  Integração das coisas – a internet! – na proporção da fragmentação dos homens;

4)  Ganho de características das coisas na proporção da unilateralização dos homens;

5)  Poetização, estetização, das coisas na proporção da brutalização dos homens;

6)  Ganho de cognição das coisas na proporção da perda cognitiva dos homens.

 

Isso tem consequências no perfil das mercadorias, além de tanto outros aspectos, como a crise sistêmica.

 

TEORIA DO FETICHE

Quando falamos em fetiche da mercadoria, muitos imaginam uma crítica ao consumismo, à adoração dos produtos, ou algo semelhante. Essa forma sugestiva de interpretar está de todo errada. O fetiche ou feitiço é uma teoria sofisticada de Marx, por isso devemos ir-nos aproximando dela, passo a passo.

Em resumo, o fetiche ocorre na sociedade quando relações sociais aparecem como relações de coisas, entre coisas, como propriedade das coisas. Chamamos coisificação ou reificação. Marx usa a palavra fetiche da nossa língua portuguesa, pois ela significa dar poder sobrenatural a um objeto, como os tribais venerando uma criação sua, o totem (uma escultura de madeira).

Antes de Marx expor o dinheiro, mostra que as trocas anteriores eram casuais, raras, ao acaso, e aconteciam pela trocabilidade de certa mercadoria por quantidade de outra. Por exemplo: 1 braça de linho = 2 casacos. Veja-se que o valor do linho (que, lembramos, deriva do trabalho) é expresso no valor de uso de outra mercadoria, 2 casacos. Pois bem; parece uma propriedade natural do casaco ser expressão do valor do linho, parece ser de sua natureza material, natural, não social. Isso ficará mais claro demonstrando outras formas de fetiche.

A mercadoria tem valor, mas parece ser uma propriedade natural da mercadoria ter seu valor, como se não fosse determinado socialmente. O valor tem como sua substância o trabalho abstrato (indiferenciado, igual, controlado pelo tempo) e sua grandeza no tempo de trabalho socialmente necessário – mas isso nunca fica claro no mercado, na troca. Foi preciso milênios de trabalho científico para, enfim, Karl Marx tornar evidente a propriedade social desse objeto, o valor. O que é uma relação social aparece como coisa, propriedade da coisa, ou relação entre coisas. O que é uma propriedade social da mercadoria, seu valor, aparece como natural dela mesma.

Marx fala de um investidor que leva máquinas, ouro e matéria-prima para a Austrália na intenção de lucrar em novo ambiente. Porém tudo deu errado, pois era-lhe difícil disciplinar os trabalhadores – isto é, era preciso condições sociais de trabalhadores desprovidos de tudo, que necessitassem de um emprego, para o capitalismo prosperar. O patrão pensou – e isso é típico do fetiche – que o capital é maquinário, matéria-prima, dinheiro, ou seja, coisas, que as coisas lhe dão poder e riqueza. Na verdade, o capital é uma relação social entre pessoas que é coisificada, intermediada por coisas. A propriedade social parece coisal.

Para que fique mais clara a teoria do fetiche, pensemos no poder do ouro. Parece uma propriedade natural do ouro, assim que é extraído do fundo da terra, sua capacidade de ser a riqueza por excelência. Parece uma força que vem do objeto em si, natural. A verdade é que para extrair esse metal é necessário muito trabalho humano, logo muito valor, por isso parte de sua importância; além do mais, passou a ter função útil para o mercado porque era muito uniforme e poderia ser dividido ou fundido com facilidade, o que ajudava a expressar o valor das demais mercadorias (já um casaco nunca poderá ser cortado e remendado à vontade). O que é uma dádiva social, o valor, aparece, no entanto, como algo natural do objeto. Aí entra o fetiche ou feitiço do dinheiro como se ele tivesse valor em si mesmo, como se fosse ele que desse valor às mercadorias, não as mercadorias dessem ao dinheiro seu papel, ou seja, como se o dinheiro e seu valor nunca fosse uma derivação do trabalho.

Vejamos outro caso. A riqueza social capitalista vem do trabalho e, mais exatamente, do mais-trabalho, do mais-valor, do trabalho não pago ao trabalhador, portanto, trabalho gratuito – roubado. Porém, no capital produtor de juros, tudo aparece assim: D-D’, dinheiro que gera mais-dinheiro. E pronto. Parece que uma coisa, o dinheiro, reproduz a si mesma sem mediação social do trabalho, a verdadeira fonte de toda riqueza (junto com a natureza, a “terra”). No D-D’ dos bancos, há o máximo fetiche e coisificação (reificação). Nessa fórmula, D-D’, apaga-se toda ideia de relação social realmente existente e inicia uma relação entre coisas. Chega-se ao absurdo de acontecer campanhas de propaganda oferecendo a multiplicação do seu dinheiro misteriosamente do nada se se investe no mercado financeiro.

Os economistas vulgares falavam de fórmula triática: o capital, máquina ou dinheiro, gera o lucro ou juros; o trabalhador e o trabalho geram o salário; a terra gera a renda da terra. Mas coisas não geram valor, não geram lucro – apenas o trabalho produz mais-valor, lucro, renda da terra e salário.

Enfim, a teoria do fetiche deriva da teoria da alienação, que tratamos em outro capítulo. Os homens e suas relações são coisificados e as coisas são humanizadas, ocorre uma relação social como se, sendo, relação social entre coisas.

Reforçamos: a ciência, em geral, cai em erros opostos: a teoria fetichista e a teoria relacionalista. O espaço seria relacional; tudo, construção social; o valor, fruto da troca etc.

Para pesquisa especializada, há que ver se há fetiche, ou outro tipo de fetiche, análogo, em outros modos de produção. No escravismo, o escravo é considerado ferramenta, embora falante, coisa, como se capital fixo (reificação). No feudalismo, uma dependência social entre senhor feudal e servo aparece como se o servo fosse ligado diretamente à terra, à coisa, ao natural, não numa relação de homens, embora fosse uma relação mais direta e transparente do que o confuso capitalismo. O servo não poderia abandonar a terra, como se em cordão umbilical com ela, como se fosse algo natural estar ali; mas logo passou a ser expulso de modo traiçoeiro por excomungação jurídica da Igreja, em nome oculto da classe dominante.

 

A ESFERA COISAL

Lukács afirmou que nem a psicologia nem o lado coisal seriam esferas ontológicas próprias. Em acordo com ele, penso que a o mundo das coisas é, ao menos, um colateral, uma falsa modalidade de ser – um é que, ao mesmo tempo, não é. Quando Marx diz em sua grande obra que uma relação entre homens mostra-se como uma relação entre coisas, não trata de apenas um engano; na verdade, as coisas impõe uma lógica de si, uma relação entre elas mesmas tendo o homem como o suporte.

O máximo desenvolvimento do ser inorgânico levou ao ser orgânico, ao biológico; o máximo desenvolvimento deste último levou ao ser social, o homem humano; o auge do desenvolvimento deste, o capitalismo, levou ao ser coisal. O anterior é sempre base e suporte do próximo, como na relação homem-coisa em nosso atual modo de vida.

A esfera coisal, seu poder, inclui coisificar o homem. Como diz Marx, há humanização das coisas e, em relação direta, coisificação dos homens; a máquina é o sujeito enquanto o homem é um objeto, uma ferramenta de carne daquela. Assim como o homem, em seu desenvolvimento, humaniza a natureza, que veio antes e de onde veio, a coisa, em seu desenvolvimento, coisifica o homem, que veio antes e de onde veio.

O ser coisal consolida-se com a imitação de movimentos humanos na produção, substituindo braços e cérebros. Mas não para aí: a robótica visa imitar a sensibilidade do homem, até mesmo superá-la. Em nosso tempo, temos vírus de computador que se multiplica, como um ser vivo, e recentemente criamos robôs com a pulsão, a programação, de multiplicar-se a si próprios. A concorrência capitalista, que é uma lei cega imposta pelas coisas tal como estão, leva a que surjam várias tentativas de produzir a melhor inteligência artificial – poderá surgir uma inteligência similar à humana, mas sem emoção?

A integração das coisas tem vindo acompanhada do isolamento dos homens. Tal integração é condição da integração humana no socialismo, mas não condição absoluta – é, hoje, uma aposta social.

O dinheiro é a coisa central, a Coisa das coisas; o valor é a alma objetiva delas, um verbo que se quer fazer carne. Segundo Carcanholo, o valor era apenas um adjetivo da coisa, do objeto, do produto como mercadoria; para ele, tornou-se, como capital, um adjetivo substantivado[36]. Complementamos: tornou-se, depois, substantivo concreto, com a maquinaria e suas consequências humana e coisais, para tender a ir ao substantivo abstrato e, por outro lado, ao mesmo tempo, verbo que se faz carne (isto se relaciona com as quatro eras do capital: a era do capital mercantil, a era do capital industrial, a era do capital financeiro e a era do capital fictício). Com o devido jogo de palavras, o valor é um sujeito oculto, que exige teoria por detrás do preço, e um sujeito indeterminado, sem determinações. Como o espaço-matéria e energia-massa; o valor é um sujeito simples que se torna sujeito composto, valor e capital, valor-capital, que podem, como vimos, entrar em contradição.

A esfera coisal tem sua grande história já no início do ser social, como ferramenta e produto. Marx diz que temos a coisa, o objeto, mas, por outro lado, a coisa nos tem – isto é ontológico. Relacionamo-nos pessoalmente com as coisas, nós as afetamos assim como elas nos afetam. Hoje, elas ganham poesia, estética, enquanto nosso mundo perde arte. O mundo das coisas, embora misturado conosco, opõe-se ao mundo dos homens. O valor, o capital, o coisal faz de nós um meio, encarnações e representantes deles.

Os objetos não são neutros. O dinheiro é típico do capital e do capitalismo, incompatível com o socialismo. O mero microfone, usado por líderes autoritários, é condição para a vida socialista com suas assembleias de bairros e fábricas. Ademais, temos a concepção correta da lei geral da história humana “produtividade crescente”, mas ela é apenas quantitativa. Temos ainda a produtividade qualitativa. Quando o socialismo cumprir, em poucos anos ou décadas, todas as necessidades humanas em quantidade, com a ajuda de mudanças qualitativas, terá ainda mais condições de garantir maior qualidade aos objetos.

A alienação, em resumo, apresenta-se assim:

O sujeito é o objeto

O objeto é o sujeito

De tal modo: o sujeito é o sujeito por seus predicados – o objeto é o objeto por seus predicados.

A verdadeira unidade-identidade de sujeito e objeto, sem alienação, estará posta como tarefa socialista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Este é um esforço de condensação e seleção da teoria, na relação homem-homem. A alienação em Marx se expressa em: “1) alienação dos seres humanos em relação à natureza; 2) à sua própria atividade produtiva; 3) à sua espécie, como espécie humana; e 4) de uns em relação aos outros.” (Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 14)

[2] Nosso ancestral evolutivo já vivia abaixo das árvores, no solo, porque sua morfologia fazia-o habilidoso para andar e correr; por isso, adaptou-se ao ambiente de savana.

[3] No mais, vale observar, o paleontólogo Nacho Martínez Mendizábal teorizou que o gênero homo, diferente de nossos primos primatas, perdeu o tamanho dos caninos, pois, ele diz, tais dentes elevados serviam para disputas internas, contra membros da própria espécie, e, entre nossos antepassados, a cooperação superou tal tipo de conflito, moldando a morfologia dentária.

[4] A grande dádiva do marxismo não é apenas, nem no seu começo, afirmar que o homem é diferente e especial como dizem a religião e boa parte da filosofia. Ao contrário, descobre, pouco antes de Darwin dar a forma teórica ímpar, que o homem é um ser natural, biológico, antes de ser de fato social. Isso é parte do significado de que o homem precisa comer e de abrigo antes de poder fazer filosofia. Sobre isso trata Mészáros no capítulo sobre moral em seu “Teoria da alienação em Marx”.

[5] Quem vem antes, a essência ou a existência? O processo de formação da existência é, também, o processo de formação da essência (Sartre pensa que a existência precede a essência porque ele vê o indivíduo, não a humanidade – por outro lado, na formação do indivíduo humano, sua maturação existencial avança para consolidação da essência humana em geral; uma criança têm uma fase egoística, pois ainda é um homem em formação). Além da formação de nossa espécie, o longuíssimo período de comunismo primitivo, igualdade e comunidade da escassez, operou uma seleção social com seleção natural, facilitando a reprodução e perfil daqueles que têm a essência humana em geral.

[6] O trabalho sobre a noção, até aqui mistificada, de essência humana pode receber a crítica de que usamos o método dedutivo para percebê-la. Marx também usa tal metodologia para expor um novo objeto, o valor, no Capítulo I d’O Capital.

[7] Os psicólogos evolutivos (Robert Trivers) chamam altruísmo recíproco, reciprocidade. A expressão mutualismo, tomado emprestado da biologia, a associação de populações diferentes de modo vantajoso a ambos, é limitado, mas o mais próximo que consideramos para corresponder ao objeto.

[8] Vale a pena comentar em nota a questão, famosa hoje, do gene egoísta. O egoísmo do gene é base de nosso egoísmo natural, pois os genes focam em reproduzir a si mesmos? Ora, isso fica muito mais claro e correto se incluímos a categoria suprassumir; esta expressão, o suprassumir, é, ao mesmo tempo, concentrados dentro de si, misturados, os significados diferentes e opostos destruir, superar, guardar (conservar) e elevar. O lado egoísta do gene não é totalmente negado na realidade, nem totalmente afirmado nela, pois é suprassumido, como no fato de as espécies, como nível acima, que apareceu antes – do “ponto de vista do gene egoísta” – como mero nada ou instrumento, procurarem a perpetuação das próprias espécies; permanece, então, a possibilidade do altruísmo, da solidariedade, da comunidade, da comunhão, do mutualismo. No lado humano, acrescenta-se que o homem é a afirmação da natureza e, mas, ao mesmo tempo, sua transcendência.

[9] A concepção aqui exposta pode dar base a outras observações e pesquisas. Exemplo: abstraindo o uso como ração, incomum hoje no ocidente; nós adestramos os lobos para que servissem de companhia (integração), fossem capazes de guarda (relações mutualistas) e auxiliares na caça (ser ativo).  Desenvolvemos raças de cães para satisfazer diferentes necessidades. A demonstração dos tipos caninos é um tanto unilateral, pois os três elementos, abstraídos, estão como se misturados dentro da realidade; porém serve de primeira aproximação clara ao tema.

[10] Freud está em relação a uma nova teoria da psique como Ricardo em relação a Marx. Considerar o aspecto natural do homem é uma das forças da psicanálise, embora seja uma ciência social, mesmo que seja negada esta localização pelo seu fundador, que a considerava parte dos estudos biológicos (possivelmente para dar ares mais científicos ao seu legado contra os ataques que sofria). Dito de outra forma, dar-se, com a psicanalística, primeira base materialista para a psicologia, embora deva ser superada.

O Behaviorismo, por sua vez, também avança certos aspectos, mas de maneira unilateral. É tão ciência quanto o freudismo. Nega-se os avanços de Skinner porque se tem, entre os seus críticos, uma concepção burguesa de homem, como se livre e autônomo, longe de quase determinismos do ambiente, o que é falso. No mais, tal concepção percebeu que a repressão sobre os jovens não é um método válido como em animais, pois gera reações, manobras, problemas, etc. Mais um pouco e seria percebido que isso se deve a uma essência humana.

[11] As coisas tendem à integração: aglutinação de valores de uso, internet das coisas, aproximação entre produção de bens de consumo e produção de matéria-prima, fusão entre capital financeiro e capital produtivo, etc. A tendência à integração coisal, falsa modalidade do Ser, é expressão alienada – por alienação – da tendência de integração do ser social, como a formação de uma única comunidade global no socialismo, respeitando as particularidades locais, a atração dialética após a repulsão, como demonstrou Lukács esta última humana tendência (até onde vai meu conhecimento sobre o húngaro, nunca tendo chegado a formular sobre a primeira e, logo, nem também a ligação ontológica de ambas, algo próprio como contribuição desta obra). Apesar de mais implícito que explícito, o movimento “das coisas” está entre as bases deste livro; como vemos, uma nota de rodapé é suficiente, embora o tema seja em si profundo e inédito científica e filosoficamente. Certo nível de integração das coisas, mesmo fragmentando os homens, é uma das condições para haver socialismo.

[12] Exemplo deste último, natural socialmente modificado, podemos observar na atração pelo corpo feminino. Na idade média, a escassez levou a ver como sinal de saúde mulheres acima do peso; na China, os homens atraiam-se por pés femininos pequenos porque os pés das camponesas eram mais rudes, diferente dos das mulheres da aristocracia. Nestes casos, a busca por fêmeas melhor aptas para a reprodução teve mediação social em tipos específicos.

[13] A linha no gráfico sobre ao Brasil não corresponde aos dados reais, tendo sido um erro de organização. Também neste país houve elevação do QI.

[14] Os três elementos mais o fator tempo, o nível de antiguidade da obra, impulsionam a formação do valor artístico de uma arte. Este valor específico expressa-se porcamente e de modo deformado no valor de troca preço. Ao que parece, para Mészàros, o valor artístico deriva da demanda (Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006) do artista e do público, como “necessidade”, ao modo análogo aos dos economistas depois de Marx; o valor artístico aqui, ao contrário, deriva do trabalho, da energia humana – embora nem seja empírico, nem seja bem expresso fenomenalmente.

[15] Ainda assim, há diferenças. Uma letra de música mais ou menos instintiva tem menos esforço, ainda que bela, em relação a outra que adota metrificação como unidade da inspiração e da transpiração.

[16] Diga-se de passagem: 1) comum que criar seja, ao mesmo tempo, descobrir (caminhos) na produção artística; 2) novidade exige, em gera, mais esforço, logo mais valor artístico.

[17] Em certo artigo de conselhos aos novos ficcionistas, o escritor mercadológico Stephen King afirmou que o leitor se fixa no tema do trabalho, mas o autor desconhece o motivo disso. Temos uma resposta. Porque é viva na prática social, oprimindo corpos e mentes, que são o mesmo, é comum em livros e séries haver algum debate direto ou indireto sobre alienação, que inclui, por exemplo, existir com a personagem central – um investigador, um químico, etc. – um trabalho com traços artísticos, criativos, útil, desafiador, afirmador e desenvolvedor da personalidade, etc. Há o lado do público nos EUA com a tradição puritana da negação do sexo para afirmação do trabalho, para onde deve ser destinada a energia corporal, como afirmou Gramsci sobre o fordismo e o controle dos corpos, e também, íntimo a isso, a busca frenética por dólar; mas o sucesso mundial dessas produções revela, como diz o diretor Bong Joon-Ho, que vivemos em um grande país chamado capitalismo – com suas alienações influenciando o conteúdo das produções artísticas, quase como uma revolta fantasiosa contra o destino.

[18] A escolha de uma série de humor é proposital. Entre nós, comum a concepção de que a comédia é algo inferior, arte menor – de acordo com a escola aristotélica (a arte pode ser classificada, simplesmente, em otimista ou pessimista, além do entre ambos aonde um polo domina). Os eruditos oficiais têm, como um sadomasoquista, a preferência pelo drama, pela tragédia; usam os melhores adjetivos do dicionário para os filmes mais difíceis de digerir… Assim como na história, assim como há ensaio geral (esboço, etc.), o em si, e o de fato, o para si; a arte avança da tragédia para a farsa (comédia) como do romance de cavalaria para o ápice e, ao mesmo tempo, degeneração em Dom quixote, como o romance sertanejo com sua passagem para o Auto da Compadecida.

[19] De qualquer modo, ao menos enquanto o conjunto da humanidade não for erudita, temos arte de massas, arte de vanguarda ou propaganda (no sentido de público especial e limitado, especializado etc.) e arte de círculo, mais limitado. A diferença entre eles de modo algum é mecanicamente sobre qualidade.

[20] As produtoras criam excelentes trailers que garantem público nos cinemas; assim, elas podem entregar um filme apenas mediano, limitado principalmente na qualidade do roteiro, com garantias fáceis de lucro. Nas séries, ao contrário, torna-se necessário segurar o espectador.

[21] Um caso análogo em outra área: passamos do valor, para o preço de produção, para o valor de mercado, para o preço de mercado… Há mediações, portanto.

[22] Por exemplo, de sua estética, conclui-se: deve-se narrar, não descrever (Lukács, Narrar ou descrever?, 2018). Mas assim ele cai no ou-ou, ou seja, esquece o caminho do meio, o narrar-descrever; além disso, obras descritivas também causam cartase estética. Se separados, dialético negativo: a descrição é a narração no simultâneo; a narração é a descrição no tempo.

Complementamos que uma análise profunda na arte funde o aspecto marxista, materialista histórico e dialético, da percepção da obra com a tradição formalista, da produção em si em seus aspectos internos.

[23] Parte dos pensadores atuais afirmam que basta ao cientista reconhecer a influência de sua posição social sobre sua prática teórica para que o problema esteja resolvido. Jamais um economista oficial, burguês, chegaria às conclusões profundas de Marx. Claro, nem tudo depende do ponto de vista e do olhar crítico, pois outros fatores influenciam: a disciplina de pesquisa, o perfil pessoal, o acesso a recursos, o grau de desenvolvimento técnico e histórico, etc.

[24] Resumo, primeiro contato: “Conforme Cunha (2002), Piaget considera que o processo de construção do conhecimento inicia-se com o desequilíbrio entre o sujeito e o objeto. Para ele, a origem do conhecimento por parte do sujeito envolve dois processos complementares e por vezes, simultâneos. O primeiro é chamado de Assimilação e o segundo a Acomodação.”

“Em Mussen (1977), a assimilação é tomada como a capacidade de o sujeito incorporar um novo objeto ou ideia a um esquema, ou seja, às estruturas já construídas ou já consolidadas pela criança. Já a acomodação seria a tendência do organismo de ajustar-se a um novo objeto e assim, alterar os esquemas de ação adquiridos, a fim de se adequar ao novo objeto recém-assimilado.”

“Para Cunha (2002), após algum tempo, a criança passará a dominar o novo objeto assimilado e acomodado, chegando a um ponto de equilíbrio. Assim, “a criança que atinge esse patamar não é a mesma, pois o seu conhecimento sobre o mundo agora é outro, maior e mais desenvolvido”. (p. 77).” (Piaget e os conceitos de assimilação, acomodação e equilibração)

[25] Um oferece dialética ao materialismo do outro, não sendo resumíveis suas contribuições a esse encontro.

Moreno vê apenas o lado positivo de Piaget, de fato impressionante. Além do mais, ele perde a oportunidade de desenvolver e consolidar o básico, como fizemos, dentro dos limites do objetivo desta obra, a questão das etapas no indivíduo e na ciência.

[26] Na arte, assim ocorre: 1) o novo surge do aprofundamento, radicalização como do romantismo ao simbolismo; 2) vem da oposição: como do romantismo para o realismo; 3) vem da fusão. Eles permitem transição na passagem de um por outro, como o romantismo de terceira fase, crítico social e erótico, antes do realismo. Mas a origem de fundo das escolas, ainda que indireta, são as mudanças na sociedade.

[27] Vale notar que os arquétipos existem não por razões – em si, em primeiro ou em principal – biológicas, genéticas, naturais ou inconscientes, como pensa o limitado Jung, mas porque a realidade exige tais tipos humanos na história e, fundamentalmente, por isso, gira a educação da personalidade, desde cedo, para este ou aquele caminho (como com a especialização, às vezes unilateral, que costuma passar dos pais para os filhos – o arquétipo do sábio por devir de uma educação centrada no trabalho intelectual, desde os pais professores universitários, e assim por diante). Jung ofereceu a classificação, mas não a razão correta dos tipos humanos. O TDA deixará de ser o rebelde total quando o mundo deixar de produzir e necessitar de rebeldes totais. O arquétipo da meretriz existe nas mulheres porque há dura repressão sexual sobre elas, exagerando uma pulsão interna. Isso não nega certo substancialismo, junto e ao lado do relacionalismo, quanto ao tema; pois parece ser, por exemplo, natural, genético, que em torno de 4% da população mundial seja TDAH, com perfil geral que tende a ser o poeta ou o astrônomo da comunidade indiana antiga etc.

[28] “Direta ou in” – vemos que a arte e a ciência podem atualizar relativamente a gramática, ou produzir algo colateral, nesse caso por redução, sem cair no sofismo obscurantistas dos mal chamados “continentais”, em especial dos irracionalistas.

[29] Para evitar qualquer acusação de determinismo genético, aprofundamos que a genética tem efeito parcial e mediado na personalidade. A coisa se dá, por exemplo, assim: o conteúdo relativo da genética pode ser desenvolvido e expresso das mais diferentes formas, que derivam da adaptação e mediação social.

[30] Pessoas mais altas e belas tendem a ter mais destaque em cargos.

[31] Num filme típico de romance, observei a cena final de um quase casamento da protagonista com o próprio primo, que discursou, causando anticlímax, o fato de se conhecerem desde sempre, cresceram juntos, etc. até que o amor real, recém-conhecido, aparece e salva a noiva do desastre.

[32] Tomo tal conclusão de uma palestra do historiador Leandro Karnal, que, por sua vez, cita de Michel Foucault. Este registro visa evitar plágio.

[33] Ao que parece, análogo à teoria do fetiche de Marx, quando algo social aparece como natural, fenômenos aparentemente de todo naturais são, na verdade, relacionais. Vejamos um exemplo. Nossos ancestrais primatas viviam em ambiente abertos de savanas, o que facilitava ver os predadores (especialmente quando em posição ereta); hoje, quando obtemos um terreno, capinamos seu entorno, diminuímos o mato em volta da casa, semelhante ao como nas antigas savanas – isso parece uma forte repetição, um padrão, indicando algo natural, quem sabe genético, na nossa forma de lidar com o entorno, o espaço. No entanto, há algo aí, na verdade, relacional, do perfil humano com o perfil do ambiente, da interação de ambos, da forma de reação, semelhante ao com nossos ancestrais evolutivos. Tanto nós como nossos ancestrais preferem ambientes com água próxima, como nossos riachos e piscinas sempre que possível nas chácaras e sítios, por uma questão prática, relacional, corporal e ambiental. Evitando negar que existam efeitos genéticos sobre a psique e sobre o comportamento, vejamos um exemplo outro. Tanto entre os homens primitivos, que viviam em bandos nômades, como entre os homens atuais temos um limite de, mais ou menos, 50 pessoas próximas realmente de nós. Isso pode parecer genético, já que se repete antes e agora, uma herança de tais tribos, mas é um limite numérico prático, da capacidade real de ligação com outros, relacional.

A ciência comum caiu na armadilha do fetiche. O que é relacional aparece como individual ou coisal. O que é fruto de condições, aparece como independente. Respeita-se por demais a empiria, que muitas vezes esconde e engana.  Marx diz que há certa metafísica real no fetiche da mercadoria, ou seja, o valor parecer uma propriedade natural e da coisa quando é, na verdade, social. Seu amigo Engels tomou nota pessoal de que a metafísica foca nas coisas; a Dialética, nos processos. Ora, melhor se ambos! Mas o processo é o dominante. Temos a ciência fetichista. O materialismo, percebeu Lukács, é muito mais do que apenas coisas ou objetos – inclui processos, condições etc.

O erro oposto é pensar que tudo é diretamente relacional, nada é em si. Na economia, pensa-se que o valor surge na circulação de mercadorias, na relação entre elas, não na produção. Pensa-se que o dinheiro deriva de uma escolha racional, logo relacional, não uma imposição material. O marxismo vulgar pensa que tudo é construção social, como se não houvesse biologia e genética também entre os homens.

[34] Descobrimos a unidade, interpenetração e contradição dos opostos no córtex subcortical, responsável tanto pelo sexo quanto pela agressão. O exemplo destacado, a natureza dupla de tal parte do cérebro, resolve uma polêmica (há vários aspectos semelhantes no cérebro, como adrenalina servir ou para o confronto ou, o oposto, para a fuga). No debate sobre as opressões, o setor pós-moderno destaca que o estupro é uma questão de poder e domínio masculinos (com empiria de casos absurdos, como quando um homem impotente usa um pedaço de madeira para violar uma mulher etc.) e, na outra ponta argumentativa, o biologismo destaca a necessidade de satisfazer as pulsões (com outros dados empíricos, como a redução de estupros onde surgem casas de prostituição); nesta outra consideração da psique humana, que ademais inclui o aspecto físico do cérebro, percebemos que a exclusão mútua de ambas as teses tem uma base comum, uma unidade, que encerra as concepções opostas. É tanto uma questão de poder, cuja base é a violência, quanto uma questão sexual e ambos, pela tensão causada pela demora em satisfazer-se, misturam-se, interpenetram-se. A partir daí, façamos alguns complementos. Lacan afirma que o sexo tem algo de violência, o que é explicado materialmente por esta observação. O lema “faça amor, não faça guerra” expressa inconscientemente esta relação dialética (Em A Interpretação dos Sonhos, Freud diz da expressão “nem nos meus piores sonhos eu desejaria isso”, sendo o sonho a realização fantasiosa de um desejo, que demonstra certo “platonismo”, não saber que sabe, no conhecimento da psique). O tipo Incel, celibatário involuntário, ao concentrar energia libidinal em excesso, tem raiva do sexo oposto, origem de seu desejo sexual. Vale o destaque de que os chimpanzés e os bonobos são os seres mais próximos geneticamente dos humanos; os primeiros usam a violência como meio de poder, sendo patriarcais, e os segundos, o sexo, sendo matriarcais (a origem é que o ancestral comum a ambos dividiu-se em um local onde havia pouca disputa de recursos e abundância enquanto no outro local, separado do primeiro por um rio, faltavam recursos e havia disputa com os gorilas por alimentos). Regina Navarro afirma que usamos o mundo sexual nos xingamentos, nessa violência verbal; para ela, isso é preconceito; para nós, isso deriva, também, da unidade cerebral.

[35] Isso nos dá uma deixa teórica. A obra de Engels Origem da família, da propriedade privada e do Estado deve ser reescrita, atualizada; mas a base e as conclusões continuam válidas, confirmadas pelo avanço científico. Por exemplo, teoriza-se que, com a urbanização, com a vida sedentária, iniciou-se a monogamia para evitar doenças sexuais, antes incomuns. Ora, as diferentes causas amadurecem mais ou menos juntas porque possuem uma causa comum, uma estrutura e um processo. Porque desenvolvemos a agricultura e a pecuária, além da formação das classes, precisou-se da subordinação das mulheres e da família monogâmica por questões de adoecimento sexual, para controlar a origem dos filhos, para manter a propriedade privada etc. As novas descobertas aprofundam as conclusões de Engels. O erro seria, portanto, a concepção unicausal ou deixar de avançar para a causa comum das diferentes causas.

Há ainda a contribuição de Freud. Outras causas da homossexualidade são: 1) nascemos todos bissexuais, logo somos isso em alguma, e móvel, medida; 2) o narcisismo de tipo exacerbado por ter como consequência a homossexualidade, como o amor por um igual a si; 3) o complexo de édipo*, que não é uma doença, pode se "mal“ elaborado, como com excesso de repressão do desejo pela mãe ou pai.

 

* Deve-se considerar o inverso, no adulto, do complexo de Édipo, o complexo de Cronos, como nomeio. A experiência edipiana está guardada dentro do individuo adulto, não ficou apenas na infância, e a revive em nova posição quando lidera uma família. O pai oprime o filho ao disputar o amor da esposa-mãe; a mãe oprime a filha ao disputar o amor do esposo-pai. Isso se dá de modo inconsciente e com certo grau de consciência. Mas costuma-se focar apenas na “birra” dos jovens em suas oposições contra os familiares. Quando a criança ganha forma corporal mais autônoma, começa a intensificação da disputa. Temos o pai que sempre diminui o filho, mas diz que é para seu próprio bem; temos a mãe que, perdendo a beleza com a idade, inveja a saúde corpórea da filha, então a oprime. O pai desenvolve carinho especial pela filha; a mãe, pelo filho; há casos extremos como o lado doentio de um pai que controla por demais a vida amorosa da filha, como com casos de assassinatos, ou pedofilia. Os casos empíricos são muitos e de diversos tipos. Os contos de fadas também tratam desse tipo de exagero no Complexo de Cronos (destaca-se, por ex., a versão nova de Rapunzel, no filme Enrolados, e Caroline e mundo secreto). Na mitologia, Kronos era um Deus que cortou os testículos de seu pai, Urano, mas, no poder, temeu ser destronado por seus próprios filhos deuses, então os comia – até que sua esposa, a mãe deles, salvou um dos novos deuses. O tempo, o envelhecimento, pesa muito na ativação deste complexo.

[36] Como o adjetivo “plástico” realizou, no grande desenvolvimento das coisas, sua substantivação por meio do material chamado “plástico”, com variadas possibilidades de uso, derivado do petróleo.

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