J. P.
COMO
SER UM POETA POPULAR
O título deste texto tem duplo
sentido. De um lado, visa oferecer uma base para ser um bom poeta, para ir mais
longe. De outro, trata-se de um poeta do povo, não um erudito que viveu entre
livros e morreu virgem. No Brasil e no mundo, mas especialmente aqui, surgiu um
novo tipo social, uma juventude popular com mais instrução relativo aos seus
pais. Portanto, se és uma pessoa que estudou nas melhores escolas ricas da
cidade, este espaço não é para ti; se tens dificuldade sobre onde e quando
colocar aquela vírgula, se aqui ou ali, então somos camaradas na poesia.
Feita a introdução, avancemos.
O QUE NÃO É POEMA
Na internet, tornou-se comum
apresentar a frase “Na verdade, sinto saudade de tu” como:
Na
verdade,
Sinto
Saudade
de tu.
Pois bem; isso nada tem de
poesia, nenhum poema aí.
O que o “poeta” fez foi tomar
uma frase clichê, pouquíssima criativa, e a quebrou ao meio – apenas.
O nome disso é “frasismo”. Os
frasistas são, ou devem ser, mestres na elaboração de grandes frases, de
sacadas geniais. É uma arte nobre, embora desvalorizada entre nós – mas
frasistas não são, em si, poetas.
Boas frases, bons versos, são
vitais para o bom poema. Veja este:
“Ah,
um urubu pousou na minha sorte!”
(Augusto
dos Anjos)
Frases de efeito, ou de
contraefeito, são vitais ao fazer poético.
Mas há muito mais.
RITMO, RITIMO!
Uma das bases de quase todos
os bons poemas é seu ritmo, sua musicalidade, seu uso do tempo e da sonoridade.
Que tal simularmos, no
conteúdo e na forma, o som de um trem?
Muita
força, pouca terra
Muita
força, pouca terra
(Da
Costa e Silva)
O conteúdo da mensagem está
claro. O grande salto é o ritmo dos versos (repita-o algumas vezes para sentir
a musicalidade). Simula bem o avançar de um trem porque faz as palavras assim:
MUIta
FORça, POUca TErra
MUIta
FORça, POUca TErra
Uma sílaba tónica com uma
fraca, uma sílaba forte com uma fraca, e assim por diante.
Aí já temos poesia!
Vejamos outro caso de poema
sobre trem:
Café
com pão
Café
com pão
(Manoel Bandeira)
É um poema cujos versos
destacados aqui são inferiores aos versos de Da Costa e Silva, que é forte
tanto no conteúdo quanto na forma. De qualquer modo, serve bem para vermos o
ritmo, a sonoridade.
Nestes últimos, fica claro que
as sílabas fortes e fracas são o inverso das do poema anterior.
Para concluir este ponto,
outro exemplo de trem:
Vai
vem sai sua
Noutra
rua é o trem
Que
passa (e passa)
Para
ver ninguém
Se o verso é falado, recitado,
percebemos outro meio de simular o som de tem para um poema cujo conteúdo é…
trem.
Em geral, poema é o trabalho
sobre as palavras para alcançar um ritmo!
UM CASO PRÁTICO
Agora, apresentarei um poema
meu, do esboço dele até sua conclusão.
Lembre-se que as coisas
melhoram com o esforço, com dedicação – tu estás construindo.
Então, a lição segue válida:
primeiro, normalmente, somos pura inspiração para depois acrescentarmos a
transpiração, a reforma daquilo escrito.
Vejamos o poema ainda cru:
DEVIR ESBOÇO
Em
meus passos difíceis
Percebo
a morte sobre mim
E
tenho apenas algum tempo
Sou
lento
Como
se meu corpo avisasse
Que
estou quase por me tornar
O
imóvel inorgânico
Meus
olhos falham
Porque
já não desejam ser olhos
Não há
espelho capaz de melhorar minha imagem
Tenho
cabelos brancos
E
apego-me ao fato de ainda ter cabelos
Qual dentre
meus órgãos internos
Falirá
primeiro?
Daqui
em diante, cada aniversário anuncia o final
A
comemoração daquele não ainda
Sou
incapaz de contar quantos amigos
Deixaram
de existir
Tenho
inveja da criança a pular e a correr
Como disse, um poema cru –
quase pura inspiração, escrito num susto qualquer.
Mas o resultado tem de ir do
menos perfeito para o mais perfeito. Vejamos como. A revisão de um poema é
quase caótico, mas aqui vamos partir da primeira estrofe para a segunda, para
terceira etc. Assim fica tudo mais claro.
Primeira estrofe:
Em
meus passos difíceis
Percebo
a morte sobre mim
E
tenho apenas algum tempo
Passei para:
Em
meus passos difíceis
Deduzo
a morte montada sobre minhas costas
E
tenho apenas algum tempo, tempo algum
Além de oferecer um texto
melhor, como com a palavra “deduzo”, bastante sugestiva, percebi um recurso
para todo o resto do poema: a repetição – “algum tempo, tempo algum”. Isso
ajudará a manter um ritmo lendo nos versos como é lento um senhor de avançada
idade.
Segunda estrofe:
Sou
lento
Como
se meu corpo avisasse
Que
estou quase por me tornar
O
imóvel inorgânico
Passei para:
Sou
lento, mais lento
Como
se meu corpo avisasse
Que
estou quase por me tornar
O
imóvel, por si, inorgânico
Usei o recurso da repetição
com “sou lento, mais lento”. Além disso, o último versos tornou-se uma frase
“quebrada” para desacelerar o poema – “o imóvel, POR SI, inorgânico”.
Terceira estrofe:
Meus
olhos falham
Porque
já não desejam ser olhos
Nenhuma alteração eu fiz! Por
quê? Porque já são ótimos versos! Veja que dizer que os olhos, eles mesmos, já
não desejam ser olhos é algo muito superior a dizer qualquer coisa de óbvio.
Não dizer apenas o evidente, o óbvio – exceção quando for o caso assim ser – é
a grande tarefa do poeta. Além disso, veio de graça a repetição, estilo deste
poema, com a palavra “olhos”.
Quarta estrofe:
Não há
espelho capaz de melhorar minha imagem
Passei para:
Inexiste
espelho capaz de aprimorar minha fenomenologia
Percebe que ficou mais
agradável? O mero evitar da palavra “não” ajuda a segurar o leitor no poema –
pode-se escrever algo de modo “positivo”, nem que seja uma “exclamação
negativa, porém ainda exclamação”. Além disso, há um estilo pessoal aí, meu
contato com a ciência e a filosofia.
Quinta estrofe:
Tenho
cabelos brancos
E
apego-me ao fato de ainda ter cabelos
Passei para:
Tenho
cabelos brancos
E
apego-me ao fato de ainda ter cabelos
Estou
instalado neles como, antes, eles em mim
Pois a
planta decai se o seu solo decai
Árvore
que não dá fruto
A estrofe anterior já estava
boa, mas curta para meu sabor. Por isso, procurei imagens que dessem ideia da
decadência da velhice com a metáfora da planta, da árvore. Além disso, reforcei
a repetição com a palavra “decai”.
Sexta estrofe:
Qual
dentre meus órgãos internos
Falirá
primeiro?
Passei para:
Qual
dentre meus órgãos internos
Declarará,
primeiro, falência?
A primeira versão ficou fraca,
mas tinha uma ideia forte. O conteúdo sugere a morte comum “falência múltipla
dos órgãos do paciente”. Como sou um poeta urbano, quis aproximar o corpo do
velho com uma fábrica que fecha as portas. Parece que deu certo. Além disso, no
segundo verso, colocar “primeiro” entre vírgulas ajudou a oferecer o ritmo
desejado ao poema, lento, pausado, e deu um bom efeito.
Sétima estrofe:
Daqui
em diante, cada aniversário anuncia o final
A
comemoração daquele não ainda
Passei para:
Daqui
em diante, cada aniversário é a profecia do fim
A
comemoração do não ainda
Mudei pouco: 1) substitui
“anuncia” por “profecia”; 2) substitui “daquele” por “do” – penso que soou um
pouco melhor e mais concreto.
Oitava estrofe:
Sou
incapaz de contar quantos amigos
Deixaram
de existir
Passei para:
Sou
incapaz de contar quantos amigos
Já
nada são de amigos já que nada são
Sistemas
orgânicos abertos colapsam, colapsaram
Melhoria enorme, de uma frase
quase óbvia para uma construção dentro da ideia do poema. Primeiro, veja a
repetição com o jogo de palavras e sentido no segundo verso – grande mudança.
Em segundo, acrescentei mais um verso, também com repetição ou quase repetição,
dentro do meu estilo de conteúdo, o que ofereceu maior profundidade ao poema.
Última estrofe
Tenho
inveja da criança a pular e a correr
Passei para:
Tenho
inveja da criança a pular e a correr
Enquanto
pula e corre
Ainda
Quase
Apenas
Eu
continuo desejo
Eu
continuo desejo
So'um
império decadente
Isso merece muitos comentários
– mesmo. Primeiro, via de regra, é bom terminar um poema com um grande salto,
com algo máximo, com uma chave de ouro. Aquele único verso final tornou-se uma
estrofe com dois versos que reforçam o uso da repetição no poema. Já as
palavras solitárias e duras, secas “ainda quase apenas” passam uma ideia fina
da vida perto da morte, como se “ainda vivo”, “quase morto”, “apenas isso”.
E mais. O ritmo do poema é
bastante pausado, mas na penúltima estrofe eu acelero e, ao mesmo tempo, repito
“Eu continuo desejo”. Ora, desejo é algo ativo, acelerado, por isso um ritmo
também mais acelerado e ativo, com repetição para deixar clara a vontade.
Por fim, o último verso. Nele
cabe um conselho: tenha um caderno com anotações de ideias, de versos soltos,
de palavras, de improvisos etc. Logo algo “solto” pode caber bem num poema teu,
como foi caso acima.
Assim como o pintor deforma as
formas e as cores para passar uma mensagem, para um conteúdo – o poeta deforma
a palavra, os sentidos, o verso, brinca com eles, trabalha com eles, para
produzir algo novo, de fato novo.
Vejamos o poema pronto, ou
quase pronto:
DEVIR ESBOÇO
Em meus passos difíceis
Deduzo a morte montada sobre
minhas costas
E tenho apenas algum tempo,
tempo algum
Sou lento, mais lento
Como se meu corpo avisasse
Que estou quase por me tornar
O imóvel, por si, inorgânico
Meus olhos falham
Porque já não desejam ser
olhos
Inexiste espelho capaz de
aprimorar minha fenomenologia
Tenho cabelos brancos
E apego-me ao fato de ainda
ter cabelos
Estou instalado neles como,
antes, eles em mim
Pois a planta decai se o seu
solo decai
Árvore que não dá fruto
Qual dentre meus órgãos
internos
Declarará, primeiro, falência?
Daqui em diante, cada
aniversário é a profecia do fim
A comemoração do não ainda
Sou incapaz de contar quantos
amigos
Já nada são de amigos já que
nada são
Sistemas orgânicos abertos
colapsam, colapsaram
Tenho inveja da criança a
pular e a correr
Enquanto pula e corre
Ainda
Quase
Apenas
Eu continuo desejo
Eu continuo desejo
So'um império decadente
MÉTRICA
Até agora falamos de versos
livres, sem quantidade fixa de sílabas poéticas. Sobre este assunto, saiba,
primeiro, que ao contar o tamanho de um verso, contamos até a última sílaba
tônica, forte. Vejamos um caso:
“Vês!
Ninguém assistiu ao formidável” (Augusto dos Anjos)
Um professor qualquer fará
você contar como um poeta tais versos enquanto eu te mostrarei uma forma mais
pura e simples de contar.
Primeiro, qual a última sílaba
do verso? É o – ”dá”.
“Vês!
Ninguém assistiu ao formiDÁvel”
Para contar, são aí 10 sílabas
poéticas, com “força” na sexta e na décima. Algo assim:
Pa pa
pa pa pa PÁ pa pa pa PÁ (pa pa pa)
A forma como falamos determina
a forma como contamos. Já viu alguém de Portugal falando? Eles “comem” palavras
e, em vez de dizer “liberdadE”, dizem liberdaD”. A último “de” ou “d” é
anulado, é zero.
Assim, fica:
1 2 3
4 5 6
7 8 9
10
“Vês!/
Nin/guém/ a/ssis/tiu/ ao/ for/mi/DÁ/vel”
Ou, outra forma de ver:
Pa / pa / pa / pa /pa/PÁ/ pa /pa /pa /PÁ / (pa pa pa)
“Vês!/
Nin/guém /a/ssis/TIU/ ao/ for/mi/DÁ/vel/”
Certa vez, vi um canto de
protesto assim:
Leon!
Leon! Soldados de Leon!
Por coincidência, têm também
10 sílabas, com a segunda e quarta também fortes. De modo puro fica desta
forma:
paPÁ
paPÁ papapapapaPÁ
Então adaptei minhas ideias de
verso para fazer um poema, uma canção – para caber na métrica, na contagem.
Surgiu:
MarCHAR
aTÉ – de tudo transforMAR
MarCHAR
de PÉ – o povo a canTAR
CanTAR
e aSSIM – o mundo acorDAR
CanTAR
o SIM – e revolucioNAR
Cabem muito bem em:
paPÁ
paPÁ – papapapapaPÁ
Veja que em “cantar e assim”
o “e a” são uma só sílaba poética. Por quê? Se falamos juntos ou quase juntos
duas sílabas, então elas contam como uma só. O critério é o modo como dizemos;
se dizemos “engolindo” ou “fundindo” letras diferentes, então são somente um.
No verso anterior vemos:
“Vês!
Ninguém assistiu ao formidável”
Eles estão juntos, o “ao”,
como “a” forte, tônico, e o “o” fraco, ligado àquele.
INTENSIVO E EXTENSIVO
Em geral, os poemas grandes
têm mais valor artístico porque exigem mais criatividade e mais esforço. Os
poetinhas, comuns na internet, fazem rimas fáceis (pobres) e rápidas,
trocadilhos, quebram a frase para dizer que é verso, deixam de perceber o ritmo
e assim por diante. Vejamos o caso primeiro deste texto:
Na
verdade,
Sinto
Saudade
de tu.
Ele pode ser melhorado assim:
Na
verdade,
Sinto
Saudade
Sua.
Veja-se que o “S” repetido –
chama-se aliteração – algo melhor torna o material. Via de regra, se um poema é
curto, pouco extensivo, deve compensar sendo mais intensivo de forma e de
conteúdo. Um caso:
Esta
minha distração
É
revolta contra o ritmo
E as
inúteis explosões
Isso mais do que dizer “estou
distraído” ou “tenho TDA”. Um “revolta contra o ritmo” de modo algum é algo que
escutamos enquanto esperamos o próximo ônibus. E uma explosão é qualquer coisa
diferente de inútil, porém ambos os opostos estão relacionados um com o outro
para produzir um bom efeito no leitor.
Enfim, para que serve produzir
um CD de rock se não for para fazer algo com alta qualidade, capaz de
impressionar o ouvinte? Ou um quadro sem grandes metas? O mesmo é um poema ou
um livro de poesia: deve ser algo grandioso, alterador dos estados de espírito,
mesmo se focado nas pequenezas.
PROPOSTAS
1. Leia
muitos poemas de diferentes estilos e de diferentes poetas;
2. Estude
vícios de linguagem;
3. Estude
os recursos linguísticos, figuras de linguagem (metáfora, aliteração, etc.);
4. Estude
as escolas literárias, as estéticas;
5. Treine,
treine, treine;
6. Evite,
quase sempre, escrever o óbvio;
7. Escrever
é reescrever;
8. Música
também pode ser rima (veja tipos de rima);
9. Estude
os chamados “pés”;
10. Se não
conseguir decorar os nomes dos elementos dos poemas, tudo bem – o importante é
aprender a usá-los na prática;
11. Este
pequeno manual busca oferecer o que não existe fácil encontrar na internet,
mas, no mundo virtual, quase tudo necessário para aprender está já disponível.
J.P.
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