quarta-feira, 15 de março de 2023

COMO SER UM POETA POPULAR

 J. P.

COMO SER UM POETA POPULAR

O título deste texto tem duplo sentido. De um lado, visa oferecer uma base para ser um bom poeta, para ir mais longe. De outro, trata-se de um poeta do povo, não um erudito que viveu entre livros e morreu virgem. No Brasil e no mundo, mas especialmente aqui, surgiu um novo tipo social, uma juventude popular com mais instrução relativo aos seus pais. Portanto, se és uma pessoa que estudou nas melhores escolas ricas da cidade, este espaço não é para ti; se tens dificuldade sobre onde e quando colocar aquela vírgula, se aqui ou ali, então somos camaradas na poesia.

Feita a introdução, avancemos.

 

O QUE NÃO É POEMA

Na internet, tornou-se comum apresentar a frase “Na verdade, sinto saudade de tu” como:

 

Na verdade,

Sinto

Saudade de tu.

 

Pois bem; isso nada tem de poesia, nenhum poema aí.

O que o “poeta” fez foi tomar uma frase clichê, pouquíssima criativa, e a quebrou ao meio – apenas.

O nome disso é “frasismo”. Os frasistas são, ou devem ser, mestres na elaboração de grandes frases, de sacadas geniais. É uma arte nobre, embora desvalorizada entre nós – mas frasistas não são, em si, poetas.

Boas frases, bons versos, são vitais para o bom poema. Veja este:

 

“Ah, um urubu pousou na minha sorte!”

(Augusto dos Anjos)

 

Frases de efeito, ou de contraefeito, são vitais ao fazer poético.

Mas há muito mais.

 

RITMO, RITIMO!

Uma das bases de quase todos os bons poemas é seu ritmo, sua musicalidade, seu uso do tempo e da sonoridade.

Que tal simularmos, no conteúdo e na forma, o som de um trem?

 

Muita força, pouca terra

Muita força, pouca terra

(Da Costa e Silva)

 

O conteúdo da mensagem está claro. O grande salto é o ritmo dos versos (repita-o algumas vezes para sentir a musicalidade). Simula bem o avançar de um trem porque faz as palavras assim:

 

MUIta FORça, POUca TErra

MUIta FORça, POUca TErra

 

Uma sílaba tónica com uma fraca, uma sílaba forte com uma fraca, e assim por diante.

Aí já temos poesia!

Vejamos outro caso de poema sobre trem:

 

 

Café com pão

Café com pão

         (Manoel Bandeira)

 

É um poema cujos versos destacados aqui são inferiores aos versos de Da Costa e Silva, que é forte tanto no conteúdo quanto na forma. De qualquer modo, serve bem para vermos o ritmo, a sonoridade.

Nestes últimos, fica claro que as sílabas fortes e fracas são o inverso das do poema anterior.

Para concluir este ponto, outro exemplo de trem:

 

Vai vem sai sua

Noutra rua é o trem

Que passa (e passa)

Para ver ninguém

 

Se o verso é falado, recitado, percebemos outro meio de simular o som de tem para um poema cujo conteúdo é… trem.

Em geral, poema é o trabalho sobre as palavras para alcançar um ritmo!

 

UM CASO PRÁTICO

Agora, apresentarei um poema meu, do esboço dele até sua conclusão.

Lembre-se que as coisas melhoram com o esforço, com dedicação – tu estás construindo.

Então, a lição segue válida: primeiro, normalmente, somos pura inspiração para depois acrescentarmos a transpiração, a reforma daquilo escrito.

 

Vejamos o poema ainda cru:

 

DEVIR ESBOÇO

 

Em meus passos difíceis

Percebo a morte sobre mim

E tenho apenas algum tempo

 

Sou lento

Como se meu corpo avisasse

Que estou quase por me tornar

O imóvel inorgânico

 

Meus olhos falham

Porque já não desejam ser olhos

 

Não há espelho capaz de melhorar minha imagem

 

Tenho cabelos brancos

E apego-me ao fato de ainda ter cabelos

 

Qual dentre meus órgãos internos

Falirá primeiro?

 

Daqui em diante, cada aniversário anuncia o final

A comemoração daquele não ainda

 

Sou incapaz de contar quantos amigos

Deixaram de existir

 

Tenho inveja da criança a pular e a correr

 

Como disse, um poema cru – quase pura inspiração, escrito num susto qualquer.

Mas o resultado tem de ir do menos perfeito para o mais perfeito. Vejamos como. A revisão de um poema é quase caótico, mas aqui vamos partir da primeira estrofe para a segunda, para terceira etc. Assim fica tudo mais claro.

Primeira estrofe:

 

 

Em meus passos difíceis

Percebo a morte sobre mim

E tenho apenas algum tempo

 

Passei para:

 

Em meus passos difíceis

Deduzo a morte montada sobre minhas costas

E tenho apenas algum tempo, tempo algum

 

Além de oferecer um texto melhor, como com a palavra “deduzo”, bastante sugestiva, percebi um recurso para todo o resto do poema: a repetição – “algum tempo, tempo algum”. Isso ajudará a manter um ritmo lendo nos versos como é lento um senhor de avançada idade.

 

Segunda estrofe:

 

Sou lento

Como se meu corpo avisasse

Que estou quase por me tornar

O imóvel inorgânico

 

Passei para:

 

Sou lento, mais lento

Como se meu corpo avisasse

Que estou quase por me tornar

O imóvel, por si, inorgânico

 

Usei o recurso da repetição com “sou lento, mais lento”. Além disso, o último versos tornou-se uma frase “quebrada” para desacelerar o poema – “o imóvel, POR SI, inorgânico”.

 

Terceira estrofe:

 

Meus olhos falham

Porque já não desejam ser olhos

 

Nenhuma alteração eu fiz! Por quê? Porque já são ótimos versos! Veja que dizer que os olhos, eles mesmos, já não desejam ser olhos é algo muito superior a dizer qualquer coisa de óbvio. Não dizer apenas o evidente, o óbvio – exceção quando for o caso assim ser – é a grande tarefa do poeta. Além disso, veio de graça a repetição, estilo deste poema, com a palavra “olhos”.

 

Quarta estrofe:

 

Não há espelho capaz de melhorar minha imagem

 

Passei para:

 

Inexiste espelho capaz de aprimorar minha fenomenologia

 

Percebe que ficou mais agradável? O mero evitar da palavra “não” ajuda a segurar o leitor no poema – pode-se escrever algo de modo “positivo”, nem que seja uma “exclamação negativa, porém ainda exclamação”. Além disso, há um estilo pessoal aí, meu contato com a ciência e a filosofia.

 

Quinta estrofe:

 

Tenho cabelos brancos

E apego-me ao fato de ainda ter cabelos

 

Passei para:

 

Tenho cabelos brancos

E apego-me ao fato de ainda ter cabelos

Estou instalado neles como, antes, eles em mim

Pois a planta decai se o seu solo decai

 

Árvore que não dá fruto

 

A estrofe anterior já estava boa, mas curta para meu sabor. Por isso, procurei imagens que dessem ideia da decadência da velhice com a metáfora da planta, da árvore. Além disso, reforcei a repetição com a palavra “decai”.

 

Sexta estrofe:

 

Qual dentre meus órgãos internos

Falirá primeiro?

 

Passei para:

 

Qual dentre meus órgãos internos

Declarará, primeiro, falência?

 

A primeira versão ficou fraca, mas tinha uma ideia forte. O conteúdo sugere a morte comum “falência múltipla dos órgãos do paciente”. Como sou um poeta urbano, quis aproximar o corpo do velho com uma fábrica que fecha as portas. Parece que deu certo. Além disso, no segundo verso, colocar “primeiro” entre vírgulas ajudou a oferecer o ritmo desejado ao poema, lento, pausado, e deu um bom efeito.

 

 

Sétima estrofe:

 

Daqui em diante, cada aniversário anuncia o final

A comemoração daquele não ainda

 

Passei para:

 

Daqui em diante, cada aniversário é a profecia do fim

A comemoração do não ainda

 

Mudei pouco: 1) substitui “anuncia” por “profecia”; 2) substitui “daquele” por “do” – penso que soou um pouco melhor e mais concreto.

 

Oitava estrofe:

 

Sou incapaz de contar quantos amigos

Deixaram de existir

 

Passei para:

 

Sou incapaz de contar quantos amigos

Já nada são de amigos já que nada são

Sistemas orgânicos abertos colapsam, colapsaram

 

Melhoria enorme, de uma frase quase óbvia para uma construção dentro da ideia do poema. Primeiro, veja a repetição com o jogo de palavras e sentido no segundo verso – grande mudança. Em segundo, acrescentei mais um verso, também com repetição ou quase repetição, dentro do meu estilo de conteúdo, o que ofereceu maior profundidade ao poema.

 

Última estrofe

 

Tenho inveja da criança a pular e a correr

 

Passei para:

 

Tenho inveja da criança a pular e a correr

Enquanto pula e corre

 

Ainda

Quase

Apenas

 

Eu continuo desejo

Eu continuo desejo

 

So'um império decadente

 

Isso merece muitos comentários – mesmo. Primeiro, via de regra, é bom terminar um poema com um grande salto, com algo máximo, com uma chave de ouro. Aquele único verso final tornou-se uma estrofe com dois versos que reforçam o uso da repetição no poema. Já as palavras solitárias e duras, secas “ainda quase apenas” passam uma ideia fina da vida perto da morte, como se “ainda vivo”, “quase morto”, “apenas isso”.

E mais. O ritmo do poema é bastante pausado, mas na penúltima estrofe eu acelero e, ao mesmo tempo, repito “Eu continuo desejo”. Ora, desejo é algo ativo, acelerado, por isso um ritmo também mais acelerado e ativo, com repetição para deixar clara a vontade.

Por fim, o último verso. Nele cabe um conselho: tenha um caderno com anotações de ideias, de versos soltos, de palavras, de improvisos etc. Logo algo “solto” pode caber bem num poema teu, como foi caso acima.

Assim como o pintor deforma as formas e as cores para passar uma mensagem, para um conteúdo – o poeta deforma a palavra, os sentidos, o verso, brinca com eles, trabalha com eles, para produzir algo novo, de fato novo.

Vejamos o poema pronto, ou quase pronto:

 

DEVIR ESBOÇO

 

Em meus passos difíceis

Deduzo a morte montada sobre minhas costas

E tenho apenas algum tempo, tempo algum

 

Sou lento, mais lento

Como se meu corpo avisasse

Que estou quase por me tornar

O imóvel, por si, inorgânico

 

Meus olhos falham

Porque já não desejam ser olhos

 

Inexiste espelho capaz de aprimorar minha fenomenologia

 

Tenho cabelos brancos

E apego-me ao fato de ainda ter cabelos

Estou instalado neles como, antes, eles em mim

Pois a planta decai se o seu solo decai

 

Árvore que não dá fruto

 

Qual dentre meus órgãos internos

Declarará, primeiro, falência?

 

Daqui em diante, cada aniversário é a profecia do fim

A comemoração do não ainda

 

Sou incapaz de contar quantos amigos

Já nada são de amigos já que nada são

Sistemas orgânicos abertos colapsam, colapsaram

 

Tenho inveja da criança a pular e a correr

Enquanto pula e corre

 

Ainda

Quase

Apenas

 

Eu continuo desejo

Eu continuo desejo

 

So'um império decadente

 

MÉTRICA

Até agora falamos de versos livres, sem quantidade fixa de sílabas poéticas. Sobre este assunto, saiba, primeiro, que ao contar o tamanho de um verso, contamos até a última sílaba tônica, forte. Vejamos um caso:

 

“Vês! Ninguém assistiu ao formidável” (Augusto dos Anjos)

 

Um professor qualquer fará você contar como um poeta tais versos enquanto eu te mostrarei uma forma mais pura e simples de contar.

Primeiro, qual a última sílaba do verso? É o – ”dá”.

 

“Vês! Ninguém assistiu ao formiDÁvel”

 

Para contar, são aí 10 sílabas poéticas, com “força” na sexta e na décima. Algo assim:

 

Pa pa pa pa pa PÁ pa pa pa PÁ (pa pa pa)

 

A forma como falamos determina a forma como contamos. Já viu alguém de Portugal falando? Eles “comem” palavras e, em vez de dizer “liberdadE”, dizem liberdaD”. A último “de” ou “d” é anulado, é zero.

Assim, fica:

                1       2       3     4    5     6    7     8    9   10

“Vês!/ Nin/guém/ a/ssis/tiu/ ao/ for/mi/DÁ/vel”

 

Ou, outra forma de ver:

               Pa /  pa / pa /  pa /pa/PÁ/ pa /pa /pa /PÁ / (pa pa pa)

“Vês!/ Nin/guém /a/ssis/TIU/ ao/ for/mi/DÁ/vel/”

 

Certa vez, vi um canto de protesto assim:

 

Leon! Leon! Soldados de Leon!

 

Por coincidência, têm também 10 sílabas, com a segunda e quarta também fortes. De modo puro fica desta forma:

 

paPÁ paPÁ papapapapaPÁ

 

Então adaptei minhas ideias de verso para fazer um poema, uma canção – para caber na métrica, na contagem.

Surgiu:

 

MarCHAR aTÉ – de tudo transforMAR

MarCHAR de PÉ – o povo a canTAR

CanTAR e aSSIM – o mundo acorDAR 

CanTAR o SIM – e revolucioNAR

 

Cabem muito bem em:

 

paPÁ paPÁ – papapapapaPÁ

 

Veja que em “cantar e assim” o “e a” são uma só sílaba poética. Por quê? Se falamos juntos ou quase juntos duas sílabas, então elas contam como uma só. O critério é o modo como dizemos; se dizemos “engolindo” ou “fundindo” letras diferentes, então são somente um.

No verso anterior vemos:

 

“Vês! Ninguém assistiu ao formidável”

 

Eles estão juntos, o “ao”, como “a” forte, tônico, e o “o” fraco, ligado àquele.

 

INTENSIVO E EXTENSIVO

Em geral, os poemas grandes têm mais valor artístico porque exigem mais criatividade e mais esforço. Os poetinhas, comuns na internet, fazem rimas fáceis (pobres) e rápidas, trocadilhos, quebram a frase para dizer que é verso, deixam de perceber o ritmo e assim por diante. Vejamos o caso primeiro deste texto:

 

Na verdade,

Sinto

Saudade de tu.

 

Ele pode ser melhorado assim:

 

Na verdade,

Sinto

Saudade Sua.

 

Veja-se que o “S” repetido – chama-se aliteração – algo melhor torna o material. Via de regra, se um poema é curto, pouco extensivo, deve compensar sendo mais intensivo de forma e de conteúdo. Um caso:

 

Esta minha distração

É revolta contra o ritmo

E as inúteis explosões

 

Isso mais do que dizer “estou distraído” ou “tenho TDA”. Um “revolta contra o ritmo” de modo algum é algo que escutamos enquanto esperamos o próximo ônibus. E uma explosão é qualquer coisa diferente de inútil, porém ambos os opostos estão relacionados um com o outro para produzir um bom efeito no leitor.

Enfim, para que serve produzir um CD de rock se não for para fazer algo com alta qualidade, capaz de impressionar o ouvinte? Ou um quadro sem grandes metas? O mesmo é um poema ou um livro de poesia: deve ser algo grandioso, alterador dos estados de espírito, mesmo se focado nas pequenezas.

 

PROPOSTAS

1.      Leia muitos poemas de diferentes estilos e de diferentes poetas;

2.      Estude vícios de linguagem;

3.      Estude os recursos linguísticos, figuras de linguagem (metáfora, aliteração, etc.);

4.      Estude as escolas literárias, as estéticas;

5.      Treine, treine, treine;

6.      Evite, quase sempre, escrever o óbvio;

7.      Escrever é reescrever;

8.      Música também pode ser rima (veja tipos de rima);

9.      Estude os chamados “pés”;

10. Se não conseguir decorar os nomes dos elementos dos poemas, tudo bem – o importante é aprender a usá-los na prática;

11. Este pequeno manual busca oferecer o que não existe fácil encontrar na internet, mas, no mundo virtual, quase tudo necessário para aprender está já disponível.

 

J.P.







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