quarta-feira, 25 de maio de 2022

Freud: sonhos, empirismo e dialética

 Freud operou uma revolução ainda insuperada na ciência da psicologia. Por inevitável, cada ciência particular alcança um momento em que é possível profundas reformas, mas não mais rupturas de pensamento, revoluções. Sequer a neurociência, que ainda engatinha, foi capaz de tirar o lugar da psicanálise.

O núcleo inicial da teoria freudiana foi sua intepretação dos sonhos. Em resumo, os sonhos são realização fantasiosa de desejos, claros ou ocultos, para manter o corpo em repouso. Freud sempre deixou claro, contra a crítica vulgar, que o conteúdo dos sonhos não são sempre e necessariamente sexuais; se dormimos com sede, sonhamos algo relacionado a isso, como, por exemplo, estar dentro de um rio.

Feito o resumo de uma teorização que parece irrefutável pelo avanço científico, portanto correta, vamos ao método. Em geral, Freud usa o método indutivo (empirista), ou seja, opera generalizações por repetição de padrões. Na associação livre, porém, usa o método empírico-dedutivo, quando as falas do analizante, desconexas na aparência, demonstram ter um nexo interno; mas não é o nosso foco aqui. A relação freudiana com o empirismo revela-se na seguinte citação:

 

Nosso primeiro passo no emprego desse método nos ensina que o que devemos tomar como objeto de nossa atenção não é o sonho como um todo, mas partes separadas de seu conteúdo. Quando digo ao paciente ainda novato: “Que é que lhe ocorre em relação a esse sonho?”, seu horizonte mental costuma-se transformar-se num vazio. No entanto, se colocar diante dele o sonho fracionado, ele me dá uma série de associações para cada fração, que poderiam ser descritas como os “pensamentos de fundo” dessa parte específica do sonho. Assim, o método de interpretação dos sonhos que pratico já difere, nesse primeiro aspectos importante, do popular, histórico e legendário método de interpretação por meio do simbolismo, aproximando-se do segundo método, ou método de “decifração”. Como este, ele emprega a interpretação em détail e não em masse; como este, considera, desde o início, que os sonhos têm um caráter múltiplo, sendo conglomerados de formações psíquicas. (Freud, 2001, pp. 118, 119; grifo nosso.)

 

Nenhum método científico é, em si mesmo, errado – nem é o critério da verdade. Com métodos inferiores pode-se chegar à verdade ou parte dela. Mas o método superior, a dialética, faz uma crítica ao empirismo como crítica da citação acima:

 

Ora, a percepção é, mais, precisamente a forma em que se deveria conceber; e esse é o defeito do empirismo. A percepção, como tal, é sempre algo singular e transitório; contudo o conhecer não permanece aí, mas busca, no universal percebido, o universal e permanente; essa é a progressão da simples percepção para a experiência. Para fazer experiências, o empirismo se serve principalmente da forma da análise. Na percepção, tem-se algo variadamente concreto, cujas determinações devem ser separadas umas das outras; como uma cebola cujas cascas se tiram. Essa decomposição tem assim o sentido de que se desprendem e decompõem as determinações que “cresceram-juntamente” [con-cretas]; e de que nada se acrescenta a não ser a atividade subjetiva do decompor. A análise contudo é a progressão da imediatez da percepção até o pensamento, enquanto as determinações que, em si, o objeto analisado contém reunidas recebem por serem separadas a forma da universalidade. O empirismo ao analisar os objetos encontra-se em erro, se acredita que os deixa como são; pois de fato ele transforma o concreto em um abstrato. Por isso ocorre, ao mesmo tempo, que se mata o que é vivo, porque vivo é só o concreto, o uno. No entanto, deve haver essa separação para conceber; e o espírito mesmo é em si a separação. Mas isso é apenas um dos lados, e a coisa mais importante consiste na reunião do [que foi] separado. Enquanto a análise fica no ponto de vista da separação, vale a seu respeito aquela palavra do poeta: “Isso a química chama ‘Encgeiresin naturae’ que zomba dela mesma e que não sabe como; em suas mãos possui as partes. Mas, que pena! Está faltando só o vínculo do espírito.” A análise parte do concreto, e esse material tem muita vantagem sobre o pensamento abstrato da velha metafísica. (Hegel, 1995, p. 105; grifos nossos.)

 

Caiu o freudismo no erro do empirismo? Em parte… Ao fazer interpretação, foi além do mero empírico colhido, foi do sensível ao suprassensível. Mas ficou no meio do caminho. Minha tese é a de que os sonhos podem, sim, ser analisados desde sua totalidade. Em minhas análises de sonhos, todos os fatos sonhados eram incompreensíveis e aparentemente desconexos – até que, com esforço, o sentido do TODO aparecia para minha razão. Assim, as partes tinham um conteúdo geral e um sentido comum. Certa vez, sonhei estar num sítio com jacarés, logo depois, ato contínuo, dirigindo em marcha ré por uma estrada com minha mãe e minha namorada. Acontece que, tempos antes, havia viajado com elas e meu pai, este dirigindo para o sítio de uma familiar… O sonho aconteceu do final para o fim, de trás para frente, além de revelar o conflito edipiano com o pai dominante. Pois bem; o sonho só faz sentido como uma totalidade, não por análise isolada das partes apenas e principalmente. Além disso, somente pode ser entendido como narrativa, como história – não como conteúdo fixo e estático. Eis a estrutura e o processo, a verdade é o todo.

 

Bibliografia

Freud, S. (2001). A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago.

Hegel, F. G. (1995). Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. São Paulo: Loyola.

 




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