sexta-feira, 5 de março de 2021

O valor como substância – e outras reflexões

 

O VALOR COMO SUBSTÂNCIA – E OUTRAS REFLEXÕES

 

Por muito tempo, a categoria valor foi confundida com a categoria preço. Apenas teóricos posteriores absorveram a noção de valor como algo qualitativo, além do mais, que não é o preço, embora também o seja… Um raciocínio que, vale observar, causa espanto entre aqueles fora da tradição e do pensamento dialéticos. O valor é material enquanto o preço é ideal.

Os teóricos da crítica do valor e, especialmente, Postone recuperaram ao seu modo o caráter de substância do valor. Mas tal concepção tem validade segundo a letra da obra de Marx? A resposta é sim. Vejamos um caso:

 

Além disso, quando ele enfim se processa, portanto, quando a mercadoria não é invendável, sua mudança de forma ocorre sempre, ainda que, nessa mudança de forma, possa ocorrer um acréscimo ou uma diminuição anormal de substância – de grandeza de valor. (Marx, 2013, p. 182, grifo meu.)

 

O valor para Marx poderia ser subjetivo ou metáfora, uma ficção útil? Vejamos em outra ciência. Ainda hoje, os físicos insistem que o conceito de energia é apenas para uso prático, que ela, a energia, não existe no mundo real… O alemão, ao contrário, dá estatuto ontológico, material, à categoria mais essencial da economia:

 

O valor do ferro, do linho, do trigo etc., Apesar de invisível, existe nessas próprias coisas... (Idem, p 170.)

 

Tal citação aparentemente é contraditória com uma famosa afirmação de Marx na mesma obra, no primeiro capítulo: nenhum físico ou químico encontrou valor nas mercadorias por mais que a mexesse e a remexesse. É uma substância social que deriva de relações sociais, deriva do trabalho.

Leiamos outro trecho que deixa clara a posição de Marx:

 

"Aqui ele [o valor] se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras formas." (Idem p. 230, grifo meu.)

 

O grande marxista brasileiro Eleutério Prado erra ao tratar a categoria substância em outro significado. Ele parte da relação substância e acidente na dialética, onde aquele, a substância, se expressa neste, nos acidentes. A substância seria suporte dos acidentes, mas, o economista observa, o valor não é suporte do valor de uso – ao contrário: o valor de uso é suporte do valor. Porém a confusão logo se desfaz. O problema aí é que ele trata de outro universo categorial, embora também dialético. A substância valor é o que permeia suas formas, passa por elas, transfere-se de uma forma a outra (com a troca e com o trabalho).

Aqui, observa-se com clareza como a profunda educação filosófica de Marx o permitiu aproveitar as décadas de dedicação teórica ao estudo da economia política. Em tempo de “doutores” formais cuja prática da ciência é algo apenas “casual” para conseguir algum emprego, vale comparar com o grande conhecimento do sujeito alemão.

 

UMA HIPÓTESE DE TRABALHO

Se o valor existe mas é empiricamente invisível, o que, de fato, é ele? Além de substância social, podemos conformar mais uma resposta. A mercadoria ou o capital é o ser – enquanto o valor é o nada. O nada está dentro do ser, são unidade e diferença em devir, em vir a ser, em movimento. O processo de valor que se autovaloriza, ou seja, capital, encontra-se como outro aspecto:

 

O devir dentro da essência, seu movimento reflexionante, é, por conseguinte, o movimento do nada para o nada e, através disso, de retorno a si mesmo. (…) O ser é apenas como o movimento do nada para o nada, assim ele é a essência… (…) Essa pura e absoluta reflexão, que é o movimento do nada para o nada, determina ulteriormente a si mesma. (Hegel, 2017, p. 43, grifo meu.)

 

Quando um crítico diz que o valor não é nada ao afirmar sua inexistência, de certa forma tem razão ao mesmo tempo em que erra completamente. O valor é nada que, no entanto, em nossa sociedade, é tudo – logo é o seu oposto, o ser.

Capital é a forma de ser do valor, do nada. Marx destina uma seção inteira a um único capítulo chamado “A transformação do dinheiro em capital”, que, visto pela essência, é transformação do valor em capital, em valor-capital.

Que exista mercadoria sem valor (terra virgem, etc.) e capital fictício, também sem valor, apenas mostra que a substância ou o nada impera, domando a natureza do ser como mercadoria ou como capital.

Ainda sobre ser e nada, destacamos que a citação de Hegel anterior é presente na Doutrina da Essência, livro II da trilogia em Ciência da Lógica. Porém o ser-nada inicia a primeira obra, A Doutrina do Ser. Por que fazemos tal observação? Ora, o nada é deduzido do puro ser, do ser sem determinações. Como, por outro lado, é extraído o valor do valor de uso? O leitor já deve imaginar: pela exclusão de todas as características das mercadorias:

 

Abstraindo do valor de uso dos corpos-mercadorias, resta nelas uma única propriedade: a de serem produtos do trabalho. Mas mesmo o produto do trabalho já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos de seu valor de uso, abstraímos também dos componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. O produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou qualquer coisa útil. Todas as qualidades sensíveis foram apagadas. E também já não é mais o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho desaparece o caráter útil dos trabalhos nele representados e, portanto, também as diferentes formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns dos outros, sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato. (Marx, 2013, 116.)

 

E Mais:

 

Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Não restou deles a não ser a mesma objetividade fantasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendida. O que essas coisas ainda representam é apenas que em sua produção foi despendida força de trabalho humano, foi acumulado trabalho humano. Como cristalizações dessa substância social comum a todas elas, são elas valores — valores mercantis. (Idem.)

 

De agora em diante, o ser e o nada estão em comunhão com o valor e o capital. Não por acaso, valor e valor de uso (mercadoria) iniciam O Capital assim como ser e nada iniciam a Ciência da Lógica.


A ORGANIZAÇÃO D’O CAPITAL

Muitas são as formas de ver as três obras de O Capital. Penso, no entanto, que falta observar uma em específico. O capital I trata da formação do capital como fundamento de uma sociedade nova, por isso foca na produção, não nas formas pré-capitalistas do capital. Vai avançando pela formação da mercadoria e do dinheiro para a circulação simples, e aí, para a produção de capital em seu amadurecimento histórico-lógico. No livro II, já temos um capital industrial maduro, robusto, saudável – nesse aspecto são expostas as categorias e as ideias. No livro III, trata-se do capital produtivo mais maduro, em vias de seu fim – daí tratar das crises, das mudanças que estão a ocorrer no capitalismo de sua época e a exposição da queda tendencial da taxa de lucro. Aqui, trata-se do envelhecimento do sistema. É análogo ao ciclo de amadurecimento de um corpo, de um ser vivo. Mas este é apenas um dos ângulos para observar tal trindade.


Bibliografia

Hegel. (2017). Ciência da Lógica - a Doutrina da Essência. Bragança Paulista: Vozes.

Marx, K. (2013). O capital I. São Paulo: Boitempo.

 

 



2 comentários:

  1. Olá,
    volta a falar de musica, mano!

    ResponderExcluir
  2. Muito boa a homologia estrutural reconhecida nos começos da Lógica e do Capital, ser/nada e valor de uso/valor

    ResponderExcluir