ANO ZERO
CONTOS CONCRETOS
Autor
Desconhecido
SUMÁRIO
APÓCRIFOS
Apocalipse, capítulo 23, 05
Sal, vinagre, limão e pimenta, 09
Topia, 31
Pulso, 37
Novíssimo testamento, 47
CHÃO DE FERRO
Manifesto do partido neonazista, 53
Relatório trialético interdimensional, 56
IMATÉRIA
Pedaço, 62
Inomina, 64
El siglo del oro, 67
Três Marias, 76
REFFLUXO
Um novo conto de amor, 84
Sobre as chaves, 89
Rascunho do discurso de formatura, 92
TEOREMAS
Diminutos, 95
Metros quadrados em centímetros cúbicos, 118
Lucy, 124
CÔNCAVO CONVEXO
João, Maria, 130
Tempo verbal, 132
CONTO CONCRETO
ESBOÇOS
Rasga-mortalha, 139
Esbo…, 154
O homem e a coisa,
162
13 CARTAS
DE SUICÍDIO, 170
APOCALIPSE, CAPÍTULO 23
“Porque eu testifico a todo aquele que ouvir as palavras da profecia
deste livro que, se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre
ele as pragas que estão escritas neste livro;
E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia,
Deus tirará a sua parte do livro da vida, e da cidade santa, e das coisas que
estão escritas neste livro.”
Apocalipse 22:18,19
¹Uma vez mais o Anjo do SENHOR falou comigo: João, bendito o
paciente profeta, pois o bom servo agrada os ouvidos de Jesus. ²Mil vezes mais
bendito é aquele que se cala quando chega a hora de calar, e enquanto ainda
aguarda o correto momento. ³Ai daqueles que amarão os ensinamentos, mas amarão
como a serpente a se camuflar por debaixo da areia do deserto; 4ai
deles, pois o reino dos Céus é invisível às almas impuras!
5E olhou-me
com seus oito olhos, e sorriu, e abriu suas asas de fogo. Então eu disse: Aqui
estou. 6E o Anjo ergueu-se, e proferiu: Tudo quanto verdes diga aos
homens; insiste e revela.
7Levou-me ao
templo suspenso nos céus, acima das nuvens. Em uma sala de orações havia cinco
anjos que eram como os homens; olhavam o altar e me disseram: Vê o amanhã. 8E
mostram-me o amanhã; antes do dia do retorno de Cristo, e próximo está, Satanás
fará um reino por sobre a Terra; e neste o certo será errado, e o errado será
certo, e o bom será mau, e o mau será bom, e o limpo será envergonhado pelo
ímpio. 9O espírito do anticristo habitará as coisas, dentro das
coisas e por meio das coisas; elas dominarão os homens, e os homens dirão: Meu
tempo, minha alma. 10E venderão suas almas à Satanás.
11E o deus
dos homens serão os objetos, que dos objetos necessitarão, pois os objetos
serão os novos ídolos; grandes máquinas, também objetos, dentro de grandes templos
pagãos serão a casa do sacrifício, do jejum e do martírio; 12nessas
estranhas igrejas feitas de ferro, drenar-se-ão os cativos espíritos, mas estes
últimos apenas ao homem e a Deus pertencem.
13Diante
daquilo, o Anjo indagou-me: Vês? Respondi: Vejo. Por isso, chorei; por seus
oito olhos, igualmente ele chorava; e apontou-me: A alma de Satanás é fria,
bruta e indiferente; haverá tara por guerra em nome das coisas e do anticristo;
14a Nova Roma dominará o mundo, e dirá aos povos do mundo que bebam
da água negra; e tanto mais dependentes e orgulhosos de sua dependência, tanto
maior e mundial será o reino do inimigo.
15Os homens
viverão em enormes cidades, feios como elas; depois, a semente será estéril,
pois terá a natureza do inimigo de Deus; 16e agonizará a floresta
como se se tornasse deserto, tentarão ferir o céu, o ar será fedorento e sujo,
os animais não conseguirão aumentar sua prole e a chuva minguará. 17Ninguém
reclamará depois, pois será a mentira o grande artifício.
18Será
considerado inimigo o vizinho; e os bons dirão: Está errado. 19Mas
rirão deles como se a verdade fosse absurda, e apenas o absurdo pudesse ser verdade.
20Outra vez,
vi os honestos bradarem: Está errado; este é o lar da infelicidade, da desordem
e do suicídio! 21Mas não serão ouvidos. Serão tristes os bons
homens; e duvidarão da bondade, da justiça e de Deus. 22Frustrados,
os ser-vos dirão: Pai, ou vós sois mau ou vós não existis; por que nos abandonaste?
23Uma vez mais, ouvindo aquela angústia, chorei. 24Então
o anjo pronunciou: Muitos amarão a moeda, muitos usarão a palavra para servirem
à Satanás encarnado na moeda como a borboleta no casulo.
25Os filhos
dos filhos de Deus perderão a esperança, mutilarão suas almas para que os
objetos adquiram almas; 26assim e depois, além da fome, terão fome
de alma e quererão os objetos, 27porém a alma dos objetos já não
será mais suas almas, e nunca mais.
28Disse-me o
anjo: Mostro-te o cair de florestas inteiras; os homens e seus filhos caírem; 29mostro-te
maiores tiranos que os romanos, representantes vaidosos da vontade do inimigo; 30farão
guerras apenas para demonstrar quem melhor serve a Satanás; o rico será cada
vez mais rico enquanto o pobre, mais pobre.
31Eu vi; os
donos do mundo serão ansiosos e cobiçosos e, entretanto, dos humildes exigirão
paciência e passividade.
32E olhei o Anjo, e olhou-me; em seu olhar pousava a mais profunda paz, esperança, bondade, força e compaixão. E sua voz dizia-me: Sê igual ao pássaro a cantar durante o dia e durante a noite, leva ainda mais a palavra de Deus, descreve tudo isto tal como enxergastes, pois Cristo abençoa o teu dizer; 33benditos serão aqueles que lutarão pela paz sobre a Terra, porque todo aquele que vive do trabalho alheio chama-se ladrão e deve morrer pelas mãos do trabalho. Amém. E eu disse: Amém.
SAL, VINAGRE, LIMÃO E PIMENTA
Quando o Padre adentrou na fazenda,
confirmou a desconfiança quando ao se aproximar: percebeu o local vazio,
abandonado. Neste momento, a fome e cansaço acumulados durante a viagem
anularam-se para que a curiosidade fizesse a parte devida; apenas os pássaros,
o riacho ao longe, o vento frio sobre a palha da casa e um piado estranho
faziam som, davam sinal de movimento. Esperava uma recepção diferente: como de
hábito, havia imaginado ser recebido por sorrisos, presenças, uma bebida,
pedidos de benção e perguntas sobre como eram Portugal, o oceano e o rei Dom
João V. O que teria acontecido? A ausência de gente dava paz e sensação de
espaço vasto sobrante raro de se sentir, como se todo aquele pacato local
tivesse se erguido sozinho, se autoerguido como, por força da natureza, da
semente brota o largo cajueiro. Ao sentir isso, mas sem pensar naquilo sentido,
o religioso sentou-se na cadeira solitária, na entrada da casa, para pensar,
desolar-se e descansar; foi então que uma palavra se lhe revelou na parede de barro
na lateral, do casebre de secar carnes: s, sac, s a c i. O nome despontou-se
igual se uma névoa saísse de seus olhos velhos, o sentido se foi construído aos
poucos. Estalo. E por alguma razão de instinto, sentiu naqueles rabiscos mais
que mera travessura infantil.
***
O leitor, muito provável, deve ter
soltado um riso leve, reencontrou qualquer lembrança cômica ou especulou
abandonar o conto. Imagino. Ora, qual seria o grandessíssimo mal de um, se isto
for, Saci? Se a natureza essencial das coisas se revelasse diante dos nossos
olhos, viver seria diferente: quando são os fatos insuportáveis, a mente
adapta-se, distorce a realidade para si e por autodefesa. Mas contarei a
história tal como ocorreu, o mais próximo disso.
***
“Diabos é isso?!”
Um deslocamento de gélido ar por ali
surgiu: a veloz ventania veio acompanhada por um deslocalizado assobio. E
gritaria desregulada.
— O QUE FOI, JOANA?! — Alcides, o dono
daquelas terras e pessoas habitantes nelas, bradou. Mal caía a noite, sentado à
porta da Casa Grande, aproveitando o recém-chegado querosene das lamparinas;
viu-se a correr para dentro dos aposentos, pois o grito assustara a todos. —
Que foi, mulher?!
— O, o, José estava na minha mão!
Desapareceu! — A mãe desesperada exclamou, ao tentar elaborar uma frase lógica,
contra o estranhamento. — Eu juro por Jesus! Por Jesus! Desapareceu! Que é
isso, meu Deus, que é isso?
Alcides quase ordenou o fim da
brincadeira, porém rápido deduziu: o infante choraria diante do susto gerado
pela esposa. Foram dois brados: o grito, o grito do grito. O rosto da mulher
iluminado por fonte única de luz demonstrava perturbação autêntica: cérebro
lutando para se manter sólido, inteiro. Sob o grito “Ananias!, trás as lamparinas
para cá – já!”, tateou o quarto enquanto imaginava qual providência deveria ser
tomada.
— Senhor?
— Junte homens, vê se na mata há algo,
se encontram ele — agregou informações em meio à ansiedade, ao associar o mapa
mental das terras com a circunstância inédita; completou: — Mande o resto ficar
procurando dentro da propriedade. Isso é agora!
Todos os moradores da casa e alguns
serviçais estavam de pé, preocupados, na sala ou quarto. O pranto materno
tencionava a musculatura e sentidos dos presentes; procuravam respostas e,
procurando-as, especulou-se “coisas do além” – hipótese sempre viva entre gente
religiosa.
— Isso é satanás, meu filho, certeza! —
Denunciou Gerundina Das Dores, matriarca da casa, enquanto preparava-se para as
orações, junto às demais católicas, ao pé do altar da santíssima. — Chame o padre
Silas, mande chamar o padre.
Poderia ser, não ser. Alcides andou
chamá-lo para satisfazer a mãe, ver se isso seria – “nunca se sabe”, pensou – e
acalmar o ambiente. Orientou, a um dos subordinados, pagar algum mensageiro
para que este chamasse o representante de Deus em Oeiras.
— Isso é algo do mundo, de gente ruim,
mas não vou discutir…
Cinco horas depois, a maioria daqueles
destinados à busca retornou. A frase “consultei todos e nenhuma pista” disparou
choro novo na mulher e semiparalisia no homem da casa. O que fazer? Olhou para o céu escuro, enlaçou-se
nos ombros; observou a mulher ser direcionada aos aposentos e “naquele quarto,
eu não entro!”. Deveria manter guarda alta. Talvez porque seus sentidos estavam
hiperaflorados, ouviu o relato de um dos capangas “diabos era aquilo na
mata(?)”.
— Aquilo o quê? — Indagou o pai do
desaparecido.
— Nada não, senhor, está cheio de
cogumelo adentro, mas não é época de chuva e molhado.
— Como faz com os negros? — Interrompeu
Ananias, braço direito. E como auxiliar direto, em tom de respeito e pedido,
continuou: — Penso que amanhã vão labutar pra evitar ver isso como presente; aí
vamos sondando eles, ver se sabem algo…
— Faça isso. Quero dois homens de
guarda em cada lateral da casa até amanhecer…
Dormiram mal aqueles capazes de dormir.
Ainda assim, a cozinheira – ama de leite do infante – tentou manter os hábitos
alimentares ali, dali: foi ao casebre onde as carnes de sol secavam, estiradas
lado a lado, quando percebeu o corpo do bebê de cabeça para baixo, pêndulo ao
vento, numa estaca a atravessar o joelho pequeno e desprovido de pele… O grito de desespero, reação mecânica,
produziu ecos nos morros à volta e, então, perceberam, por seu tom, o
significado da vogal entoada – todos perceberam
o significado dela.
Alcides despertou-se, sensível a todos
os estímulos. Correu. Ébrio de sonolência, tateou a parede rumo ao exterior,
para ver a fonte do evento. Olhos feridos pela luz repentina feriram-se uma vez
mais diante do soco visual. Fez o instantâneo movimento de afastar o olhar
daquela imagem horrenda, de afastar-se. Quando a esposa apareceu à porta, ao
exigir-se e permitir-se dar as costas àquela imagem, impediu-a o avanço:
— Fique aí! Fique aí! Estou mandando,
fique aí! Coloquem Joana para dentro! — Ordenou-a e às amas. Enjoo. Viu Ananias
aproximar-se e, então, sentiu necessidade de manter-se, raciocinar e medir: —
Preciso que oriente fazer um pequeno caixão para o enterro – orientou de cabeça
baixa. Mal se movimentava ao tentar manter a firmeza da voz. — Por favor.
Foi, por evidente, um dia triste.
Dentro da atmosfera: velas, choros, tristeza, rezas e necessidade de entender.
Ainda pela tarde, pouco antes de o infante ficar sob sete palmos sagrados, meio
afastados da maioria, para debater o ocorrido; o patriarca reuniu-se com
Ananias e Pedro, melhor amigo daquele. Se tivesse de vingar a morte do filho,
vingar-se-ia. Pelo rumo da prosa, os auxiliares perceberam que assuntos
místicos estavam fora da reunião: impossível matar o imaterial. Mesmo assim,
tentaram:
— Na Senzala, disseram que era o Saci…
Alcides mediou-se entre irritar-se e
ironizar a informação:
— Esses negros não têm o que inventar —
respondeu, pois desse modo se respondia, pois expressões do tipo eram comuns
até entre esclarecidos humanitários.
Diante do pai-de-família de olhar
semiperdido, lutando por se manter centrado, para fora da própria dor; os dois
capitães do mato, espiritualistas como todos naqueles tempos, ainda mais entre
os subordinados de todos os tipos, calaram-se: era momento impróprio para
fantasias, mesmo as perigosas. Ao final daquela reunião, debateram o preparo de
alguns detalhes do velório; o menino despelado necessitava enterro imediato,
caixão fechado, porquanto em instantes a putrefação se manifestaria.
Como era de tradição à época, um
pequeno terno comprado na capital, para que a criança pudesse ser vista qual
adulto em miniatura, serviu-lhe de mortalha – e disfarçou sua falta de pele.
Durante o enterro, a avó, enquanto chorava, lamentava-se de a criança não ter
sido batizada, mas, dizia, “conversarei com o padre!”.
Basta-nos dizer o estado da mãe, de
Joana. Chorava-se? De modo algum. Diferente da análise rápida e formal, isto
preocupava a todos: vigiavam o perdido olhar, direcionado rumo ao nada… O filho
privado de mãe chama-se órfão; a esposa despojada de marido, viúva; a mãe desapossada
de cria, então, chama-se?
Após o funeral, o começo da noite era
hora de velar pela alma desprovida de tempo-vida para o pecado. De novo; velas,
lágrimas, cabeças baixas e ave-maria-cheia-de-graça-senhor-é-convosco (“Ave
Maria, gratia plena, Dominus tecum” etc.) etc.; assim seria por sete dias e noites.
Uma hora depois de iniciado, o vento gelado com assobio cantado-não-sei-aonde
retornaram-se. Arrepios. As velas tremeram-se, apagaram-se duas ou três, mas a
maioria inflou os fogos e as luzes.
— MEU FILHO! — Do Carmo gritava. De sua cômoda, onde rezava de joelhos, sob os
pés do Cristo Crucificado, repetia as palavras: — MEU FILHO!
Reflexo da infância, quando a mãe o
chamava, Alcides correu e acelerou-se. Foi o primeiro a fazê-lo, e rápido
entrou. Já à porta, vendo-a bem, inteira, indagou-lhe:
— Quer me matar? – Colocou tom de
protesto e, em certa medida, artificial.
A senhora fitou-o como se observasse
algo à frente dele, mas era ciente, lia-se na sua postura, da limitação
perceptiva do filho.
— O que foi? Assim por quê? — Insistiu.
Ao vê-la entortar, dura e lenta, a parte alta do corpo, a sugerir haver
obstáculo entre eles:
— Filho…
A lamparina do quarto seguiu o
movimento das velas: luzes fortes, desproporcionais ao fogo comum. Dona Do
Carmo desapareceu. Diante dos olhos de Alcides, diante dele. Tal sujeira
retirada da roupa, poeira do copo ou borrão raspado do papel. Deixou de estar,
deixou de ser.
— Mãe! mãe? Mãe, mãe… Porra é, porra é
essa?
As pernas desligaram-se – caiu-se: o
corpo tornou-se mui pesado. “Meu celeste Deus!”, pensou. “Me ajude, Deus!”.
Quem veio apressado pelos gritos apenas pôde ver a queda, a autoqueda. E Ananias
rápido chegou, ao perceber a anormalidade:
— Ananias, faz, faz, faz.
— Diga.
Alcides apontou para o criado, desceu o
dedo, gesto desprovido de sentido, balbuciou:
— Vá na senzala, pergunte pelo Saci.
Alguém, mulher, benzeu-se e, por isso,
todos imitaram o gesto.
— Cadê a Joana?
— Ficou fraca com o grito. Está sentada
na sala, zonza.
— Vamos pra lá. Vamos.
Apoiado na parede, levantou-se. Forçou
rapidez para manter todos também firmes, com a sensação de que há liderança
ali; aqueles perceberam o esforço, a natureza deste: sentiram medo e compaixão.
— Justino, fique na frente do casebre
de carne, coloque a cadeira ou fique em pé, mas fique lá, não tire o olho
daquele lugar, entendeu?
Justino entendeu, atendeu. Pediu uma
das cadeiras ruins, desconfortáveis, para poder manter-se acordado ou porque,
talvez, pensava ser do nível da dignidade, de sua classe. Após a afirmativa, o
patriarca ordenou outros tantos circularem ao redor, em grupo e próximos da
casa, que aquilo era anormal.
Meia hora depois chegaram os capatazes,
apressados.
— Foi o Saci, senhor. Todo o fumo tava
espalhado na trilha da senzala.
— Passamos pelo depósito, tava vazio de
fumo e rastro.
— Nenhum arrombamento.
Ninguém dormiu. Aqueles com algum
dormir, dormiam sob a varanda, o faziam por cansaço e porque estavam agrupados.
Sempre tinha alguma conversa, cochichos, grupos andando rumo ao amanhecer,
fazendo companhia ao vigia das carnes etc. Se gente era, feita de carne, ali
seria incapaz de colocar o corpo; se era espírito, conseguiria – lógica simples
e telúrica. O Sol apareceu, no entanto nada se alterava. Bebendo café quente
feito para ele, na melhor xícara da casa, adocicado pela rapadura, o funcionário
Justino sentia o frio nevoento do amanhecer, mas poderia ser medo; mas poderia
ser os dois. No terceiro gole, daqueles a sentirmos o líquido descer dentro do
corpo, o prazer fez-lhe fechar os olhos, uma fração a mais de segundo, o
bastante para saltar sobre a cadeira, tentar gritar e, logo a seguir, vomitar a
bebida. Ao levantar-se, a cadeira voou ao impacto da perna. Também pudera: as
gorduras da Do Carmo deslizavam ao redor do corpo – de ponta-cabeça. Havia sido
descascada naquele segundo.
— Ela, é ela? – Alcides correu na
direção do susto.
— Não olhe, senhor, não olhe! Não olhe!
Ao ver, o corpo de Alcides acompanhou
atrasado a cabeça a recuar de uma vez, diante da morte. A boca dela estava
recheada de fumo.
— O que você quer, demônio? O que quer?
SACI! SACI! Quer o fumo, leva o fumo! Leva o fumo todo! Pega! Pega! — A
sensação de estar sonhado, de ser um corpo separado de tudo ao redor, o
possuía. — Vai matar todo mundo, capeta?! Vai matar todo mundo?! — Sentou sobre
o chão, desolado.
Assim ficou por muitas horas.
— Patrão? Está pronto. Falta o senhor
para descer o caixão…
— Ela vai perdoar, não aguento ver.
— O senhor precisa ser forte, senhor.
Alcides olhou-o, com os olhos
erguendo-se mais que ao rosto.
— O que que se pode fazer?… Desapareceu
diante de mim.
— O Padre está vindo, quem sabe?… Tem
outro problema sério; não queria dizer nessa hora, ma(s).
— Diga.
— Quase todos fugiram depois do
serviço, a maioria. Os negros, percebendo e com medo, aproveitaram, meteram
carreira… Tamo sem condição de fazer busca até porque carregaram a maioria das
amas… — O patrão permanecia-se, imóvel. — Saíram dizendo que a fazenda estava
condenada.
— O que acha?
— Acho que está.
Ponderou as palavras. Diferente doutros
tempos, a raiva estava ausente na expressão facial:
— Posso perder tudo menos a
propriedade… Com ela posso ter tudo, de novo. Tenho tua lealdade até o final,
Ananias?
— Sim, senhor. Mas considere fugir
também. — Pausou, pois era incomum o tom por demais duro para alguém assim, abaixo.
— É um conselho sincero, senhor — e arrependeu-se por expressar-se de modo
rude, outra vez.
Ficou no mesmo canto, apoiado sobre a
cadeira trazida pelo subordinado. De longe, apenas a cozinheira, um dos homens
e a mulher retornaram; a esposa aproximou-se e logo havia outra cadeira ao seu
lado – nada dizia, pouco expressava, ficou anulada, ao lado do marido, a
esperar por algo novo:
— Eu vou morrer, marido… — começou o
choro passivo. — Vou morrer...
— vamos dar um jeito, mulher, prometo.
Alguma coisa ele quer...
— Quer matar a gente.
Silenciou-se; esperou Ananias passar
ali; chamou-o:
— Vai escurecer. Junte comida,
lamparinas, fumo, armas, imagens dos santos, de Jesus, a Bíblia, lençóis, travesseiros
e todo mundo que ficou pra a gente anoitecer por aqui, na entrada da casa.
— A cozinheira acabou de sair junto com
Ambrósio. Eu deixei. Apenas eu aqui, senhor. — Deixou-o digerir a informação. —
Irei fazer.
— Conseguiu entender tudo? — Perguntou
em uma sugestão, ao desconsiderar a informação anterior, evitando-a para si. —
Vou ajudar.
— Precisa não: senhor. A senhora sua
mãe acabou de falecer. Farei isso.
Dono apenas da esposa e da propriedade,
o chefe de um homem apenas pousou-se, pensativo e nulo.
— Ele não fará, vai fugir também —
afirmou a esposa em tom firme e raro, incomum às mulheres daquela época. Por um
segundo ela pensou em abandonar o marido ou fugir com o capataz em troca de
carinho; mas o homem ao lado já a havia livrado da vida de “titia” ou freira,
pois "velha demais para casar". A gratidão perante o altar, na vida e
na morte:
— Vamos fugir, por favor, vamos sair
daqui.
— Se isso não é desse mundo, Joana,
está vendo e ouvindo nossa conversa. Irá onde formos.
Para alívio, orgulho e gratidão,
Ananias retornou com o material, a parte mais distante, por cima de um dos dois
cavalos. Sim, dois cavalos: disse que um era para eles saírem dali quanto
antes, melhor.
— Entendi que quer o outro — olhou nos
olhos do segundo homem da hierarquia. — Pode ir pela estrada de Oeiras, para
apressar o padre? Último pedido. Como gratidão, leve daqui o que precisar para
a viagem.
Ananias admirou-se da coragem, loucura,
do senhor. Sequer ele, experiente na mata, testemunha de duvidosos fenômenos,
possuía tal força. “Irei”, afirmou com toda firmeza. Mas deixou de ir: não era
doido de enfrentar as vontades do saci, o não algo. E evadiu-se se
justificando, na convicção de que a mensagem deveria ter chegado à paróquia e,
certeza, algum representante de Deus estava a caminho, no rumo oposto ao seu.
Enquanto saía, percebeu o aumento da quantidade de cogumelos no entorno, circundando
a fazenda, cada vez mais próximos da Casa Grande…
Anoiteceu-se. Mas nos morros, os mais
altos, havia ainda pedaços de luz; a casa viu-se rodeada de velas, lamparinas,
imagens sagradas – todo um cenário bizarro, jamais imaginado. Cogumelos, aqui e
ali. Algo equivalente a duas horas passou-se, mais ou menos, e nada. Três,
quatro, nada. Na ocasião em que a avó e o neto foram-se, era princípio de
noite.
Assim era.
Quando o álgido ar começou a
deslocar-se com o assobio diferente… Sabiam... Joana abraçou-o num ato, naquela
época, raro, de carinho. Macho alfa, manteve os olhos firmes, na busca por
sinais, "vai tirar ela de mim antes, que quer me endoidecer", pensou
e a esposa também pensara.
Das nove lamparinas, uma – a mais
distante, revelou sua sombra – começou a flutuar, subiu-se, moveu-se por cima
das cabeças trêmulas, rumo ao casebre de secar a carne. Lá havia um graveto
suspenso com a ponta grudada à parede: a lamparina seguiu o movimento, enquanto
desenhava quatro letras: s a c i.
— O que, o que deseja, demônio?!… Diga,
criatura de todos os diabos!
***
Gritava em uma só voz.
Gritava alto o homem negro pendurado na
mangueira, de cabeça para baixo, amarrado, sustentado pelos pés, três dias
naquela situação:
— É Forte, cabra, mas vou te dobrar. —
Disse Alcides, dono de tudo, incluso daquele, daquilo. — Tu pensa que é quem,
saci? Negro gente nem é, é bicho.
A acusação: roubo de fumo. Verdadeira,
real, de fato: culpado. Naquelas terras, o produto, caro e raro, existia para
privilégio exibível, degustável entre donos de terras. E de gente. Mas a
intensidade dos maus tratos tinha mais razões: os pequenos furtos, pequenos
nadas, na fazenda, desprovidos de culpados, haviam se multiplicado – quase
rotina. Alguém deveria, assim era a lei, servir de exemplo. O escravo forte
tinha jeito de quem sabe rebelar-se, um pouco inteligente, conseguia escrever o
básico, sendo melhor em leitura. Quando comprou a ferramenta falante, Alcides
sequer imaginava tudo aquilo daquilo; porém encontrou um jeito de resolver a
questão por meio do meio, daquele escravo estranho.
Pendurado como bode no açougue; no
lugar de saliva, apenas pasta seca e amarga na boca. A cabeça inchada, parecia,
como se quisesse expandir-se — assim sentia, embora na realidade isso fosse
sensação sanguínea acima dos fatos. As pernas, não as percebia desde após as
dores da noite. Ao avaliar o estado do próprio organismo, ouviu um pisar de pés
sobre as folhas. Por mais estranho que fosse – e era –, desta vez o medo
evaporava-se: um homem pálido, ruivo, olhos verdes, quase careca aproximou-se –
nunca vira entre brancos assim alguém. E estava nu.
— Então, Saci — iniciou enquanto
sentava sobre o chão, ao lado, em modo mais fácil de encararem-se. — Percebeu
que ele vai te matar? Matar-te e triturar tua carcaça.
— Quem? — Balbuciou, falar era forçoso.
Como sabia o nome dele?
— Ah, sim. Prazer, os brancos chamam-me
Satanás. Em resumo, o contrário do Deus. —
Olhou-o: — Venho elevar tua alma, Saci.
O homem escravizado observou o entorno
– ninguém mais, percebeu, notara a situação.
— Sirvo Ogum.
De imediato, Satanás riu um leve riso,
agradável e elegante, incapaz de ofender.
— Ogum não anda nestas terras, Saci.
Aqui sou eu e o outro...
— Filho de Ogum.
— E cadê Ogun? Saiba disso: não é o
primeiro pai a abandonar o filho… Se aqui estivesse, ajudaria. Atravessou o
oceano, água demais, a fé muda… Tenho um criativo projeto; posso te tirar daí.
E juro-te: só farás mal contra gente má, pois este é o acordo com o outro lado…
— Miragem...
— Está, sim. A palavra na língua do
homem que te tortura é alucinação. Repita: a-lu-ci-na-cão — pausou para manter
a postura altiva. — Preciso que converse comigo, podemos negociar.
— Sai.
— Basta aceitar…
Ananias percebeu o torturado em conversa
solitária; viu graça naquilo: todos endoideciam àquela altura. "Senhor,
não aguentou quatro dias, afrouxou."
Comendo a janta da tarde enquanto
caminhava rumo à cena, Alcides foi ver o dependurado. Fez sinal aos homens
pousados debaixo de uma árvore, que trouxessem o material. Rindo em baixo tom,
deixaram uma escrava ali, perto, na justificativa de que catasse as mangas
próximas, no chão, para ver e comentar a experiência entre os de pele escura:
colocaram um copo d’água, outro de cachaça e um prato de arroz, feijão e carne
à frente do Saci, perto o bastante para que não caísse sobre.
— Pronto, relaxe. Aprendeu: bastava
apanhar, não é?
O rei do pequeno reinado ficou entre a
árvore do martírio e as cortadas costas do escravo. Em um nódulo da planta
havia, encaixada, uma pequena bolsa de couro, fechada por um barbante de palha
do coco babaçu. Abriu-a. O odor impôs-se: sal, vinagre, limão e pimenta. A fórmula
suportava a adição de urina, porém preferiram ejetar a excreção corpórea no
ato, na competição por quem alcançava as feridas abertas. Naquela tortura,
bastou esfregar o composto na carne viva, impedindo a cicatrização por meio do
atrito: dor, e grito, e moscas, e abelhas pousando-se.
Passado o impacto inicial, momento de
desconforto mais intenso, Alcides cortou a corda de uma das pernas. “Tunf”. E o
suspenso no ar poderia – ainda bem – tocar os dedos no solo.
— Vou te deixar aí numa perna só.
Aproveita.
— Ele vai te matar, Saci.
— Uhr.
Já de costas, em direção aos seus,
agradado e feliz de si, o proprietário teve uma espécie de lembrança, ideia ou
algo semelhante. Parou, olhou para o nada, corpo mal angulado, e disse “quer
saber”. Esperançoso, o escravo deixou de perceber o facão do senhor daquelas
pernas recuar mais que o comum para impulsar-se.
Quando o primeiro golpe atingiu a coxa,
perto da virilha, primeiro gritou uma vogal aberta. Depois, apenas gritava e
repetia "Sim! Sim! Sim!" para cada pancada recebida, que balançava
seu corpo de modo descontínuo, desarmônico.
O primeiro “sim” irritou Alcides, pois
foi surpreendido pela reação organizada e resistente daquele modo. Em diante,
supôs ser a fraca mente daquele ou, conversou depois, dominava pouco o
português e queria, na verdade, dizer “não!”; ou talvez sinal de respeito na
tentativa de manter-se vivo, inteiro.
Pedaço de si pendurado na corda.
Ao cair quase morto, vento forte com
assobio longe e longo, despediu-se.
***
Cansado de esperar, frustrado, o padre
permitiu-se pegar um pouco de carne no casebre de carnes; as da fazenda eram
famosas, admiradas. Havia uma centena de pedaços. De que bicho era aquilo?
Pareciam destroçados com vontade especial por mãos habilidosas, divinas.
Antes de retornar ao templo; entrou na
casa, ascendeu o fogaréu, assou três pedaços. Sentou-se à mesa, em frente ao
prato de madeira, rezou, lembrou-se do corpo-sangue de Cristo; com a
autobênção, fez o desjejum.
Meia hora depois, subiu sobre o
jumento, indagou-se por onde desvendar o mistério… Havia a imagem de uma santa
do lado de fora da casa e algumas lamparinas apagadas espalhadas pelo chão. Teve
a sorte – agradeceu a Deus – de sentir vento frio e piar de pássaros naquele,
daquele, bonito lugar.
***
“Meras palavras não bastam para
corrigir o escravo; mesmo que entenda, não reagirá bem.”
Provérbios 29: 19.
“O escravo que é mimado desde criança
um dia vai querer ser dono de tudo.”
Provérbios 29: 21.
"Os seus escravos e as suas
escravas deverão vir dos povos que vivem ao redor de vocês; deles vocês poderão
comprar escravos e escravas. Também poderão comprá-los entre os filhos dos
residentes temporários que vivem entre vocês e entre os que pertencem aos clãs
deles, ainda que nascidos na terra de vocês; eles se tornarão sua propriedade."
Levítico 25: 44-45
"Se um homem vender sua filha como
escrava, ela não será liberta como os escravos homens."
Êxodo 21: 07
TOPIA
Após o apocalipse, meu avô percebeu:
apenas restou sua família no mundo. Desde então, rezávamos todos os dias para o
Senhor – por nos ter esquecido. Depois da morte dele, éramos eu, Ester, minhas
irmãs Maria, Madalena, Lia e Raquel; nosso pai Ezequias e nosso tio Pedro,
irmão mais novo. Mamãe estava, com meus avôs, enterrada no quintal.
Morávamos numa boa casa escolhida
durante o fim, por meu avô, no meio da floresta.
Tudo assim.
Fui colher frutos, fim de tarde, quando
vi uma enorme criatura, um lobisomem. Tremi-me. Vacilei a força. E quando seria
atacada, quando o bicho aproximou-se de mim, um anjo lindo e gigante apareceu;
e iniciou-se uma batalha. Nesta luta, em desespero, corri, corri – fugi! Ao
ver-me e ouvir-me, papai trancou-nos rápido dentro da casa, nada aberto, e
mandou-nos rezar antes de dormir. Ficamos trancafiados.
De madrugada, todos levantamos por
razão do choro de Lia. Reunimo-nos deitados na sala onde o pai fazia guarda,
sono-sonolento. Foi quando paralisou, silêncio, fixou o olhar para frente –
juntos silenciamos – e jogou uma pedra, antes ao lado de si, não na direção do
olhar, mas na da parede ao lado. Tum-tim-tam! Alguma coisa invisível, parecido
a um gafanhoto, revelou-se e morreu-se com a pancada…
O pai ordenou que evitássemos contato
com aquilo, e disse que chegou a duvidar de mim antes.
Depois, nada novo aconteceu. Ficamos
reunidos ao lado do pai.
No outro dia, fui com o tio Pedro ver o
local: tudo simples, nenhum sinal de luta. E também duvidou de mim. Estava o
ambiente do modo de sempre. E quando íamos embora, decididos a cumprir as
tarefas do dia, começaram a latir os cachorros, duros-trêmulos, para a floresta…
O tio apontou a arma do avô, algo esperando. Pediu para eu correr – corri,
corri, corri. Havia algo ali. Na demora, parecíamos vigiados ou caçados. Também
correu o tio. Pediu enquanto corria para os cachorros o seguissem – ficavam
entre obedecer, latir ou tremer.
Vendo aquilo, o pai pegou outra arma:
mirou em nossa direção, esperando, enquanto eu chegava – e cheguei ofegante. De
longe, percorrendo o mesmo caminho, o tio gritava algo incompreensível,
gesticulando os braços.
Era algo acima do telhado. Em rápida
reação, o pai saiu da casa, girando-se, e atirou naquela sombra movente, caindo
neste ato de mira. Acertou.
Corpo abatido: um macaco – apenas.
E veio uma voz da estrada, perguntando
“está tudo bem?” Viraram as armas para saber quem ou o que aquilo era: parecia
uma pessoa, podendo ser Satanás disfarçado… Pai pediu para ficar longe – o
distante disse tudo bem, só evitássemos tocar no macaco, pois estava doente. O
tio disse em tom baixo que era gente de Satã – o homem disse ser apenas um
humano. Pai gritou-perguntou como ele havia ouvido de tão longe – deixa eu te mostrar,
respondeu. Negaram, atiraram nele. Bum-bum-bum! Mas aquele vestiu alguma roupa
verde, algo assim, impedindo qualquer ferimento sério.
Se era demônio, inútil reagir – a
criatura ganharia. Se era gente de fato, nada se poderia fazer – as balas eram
fracas. Papai perguntou se estava sozinho – respondeu estar junto de outros num
tipo de casa voadora, levando-lhes por todo o mundo. Quando pediram pra ver
essa casa voadora, negra [n]ave gigante revelou-se por cima do forasteiro.
Estava invisível. Eu disse parecer o avião das histórias do vovô. Gaguejante,
meu tio perguntou se o bicho morto à noite era obra dele – o homem afirmou estar
correta a desconfiança, pois era forma conhecer-nos.
Tio Pedro, desconfiado, desejava
distância; porém o pai supôs correto desbravar este mundo, entendê-lo. Por
isso, um decidiu cuidar da casa enquanto íamos conhecer tudo naquela coisa-ave.
Acompanhamos aquelas pessoas bonitas. No alto, ficamos perto das nuvens, do céu
– lembrei-me da Torre de Babel na Palavra. Aquele homem disse que nos iria
explicar quando chegássemos mais próximo, ao lugar. Antecipou-nos isto: o mundo
quase se acabou, mesmo; mas conseguiram ajeitar a casa (à época, ficávamos
confusos com metáforas, tipos de piadas, palavras novas etc.).
Tudo muito lindo era.
Casas, prédios, pessoas, árvores – tudo
novo, interessante. Lia perguntou se estávamos no paraíso – o homem, Vladimir,
disse: nem tudo era assim tão perfeito, mas a melhor era de todas. Continuamos
a conversa numa sala agradável e rosa, cheia de comidas sobre a mesa. Se permitirem,
faremos exames para ver a saúde de vocês, e levará apenas cinco minutos.
Perguntei sobre o lobo gigante e o anjo – eram hologramas, brinquedos novos das
crianças, usando luz especial para simular um objeto (mostrou um exemplo por
meio da pulseira em seu braço projetando imagens), pode ser jogado em qualquer
parte do mundo, imitando batalhas reais, e foi assim que, por acaso,
descobrimos vocês. Pai perguntou se ele acreditava em Deus – respondeu
afirmando, pergunta difícil, quase todos terem sentimento religioso diante da
beleza da vida e do mundo, um tipo especial de fé e religiosidade, poucos creem
existir deuses, respeitando sempre quem tem esta crença. Logo papai reagiu
dizendo estar ótima e farta a comida, sendo gula; belas as pessoas, sendo
vaidade; grandes as coisas, sendo luxúria; leves os hábitos, sendo preguiça;
nunca tendo visto isso, gerando em si inveja. Nosso anfitrião explicou:
deixe-me tentar convencê-lo, pois o mundo quase foi destruído por causa de uma
espécie de força maligna, vocês chamariam Satã ou número da besta, já conhecida
na bíblia, o dinheiro ou Mamon; lá na bíblia este ser é do inimigo e dominava
todo o nosso modo de vida, mesmo nos derrotando dia a dia. Outra vez, reação:
houve ou não arrebatamento, Armagedon, a volta de cristo? Nova resposta
mediada: ocorreram eventos parecidos, sendo provocados pelo próprio homem. Pelo
homem ou pelo dinheiro? Pelo homem dominado pelo dinheiro. Tuas palavras são
fáceis, quer nos dobrar! Senhor, me desculpe, eu posso parar, você pode ter um
ataque psicótico por causa do impacto das informações, comamos e eu respondo e
silencio quando quiseres. Mudou o tom da voz para me dobrar! Senhor, por favor,
largue esta faca, isso é real, não faça isso, esta aí é sua filha, não a mate,
podemos voltar ao terreno se quiser, não precisa gritar, o que acha de tirar a
faca do pescoço da sua filha, eu saio da sala, lembre-se que Abraão não matou
seu próprio filho, mas Deus não matou de verdade a Jesus!
Papai estava num instante difícil.
Quando foi matar Lia – Deus, eles não sabem o que fazem! –, levantou o braço
para descer a faca, Vladimir fez algum movimento de punho, atraindo todos os
metais do local para si: a faca se desprendeu da mão do pai, flutuando rumo ao
amigo. Em reação de caçador, soltou minha irmã, seguindo a arma, para matar; o
outro fez movimento igual e oposto, um de encontro ao outro. Nosso velho, forte
e experiente, alcançou o artefato e conseguiu encravá-lo em seu pseudo-inimigo,
no peito, perto do ombro enquanto aquele, não sei como ainda hoje, técnica
muito complicada, fê-lo desmaiar, cair, com o polegar em seu pescoço.
Em sangue, Vladimir chamou-nos – nós:
irmãs e filhas de nosso pai – para abraçarmos o patriarca e ficarmos calmas, pois
ele precisava de muito mais amor. E concluiu jugando não mortal o seu
ferimento: era de seu desejo ganhar a luta por tal meio.
Na verdade, conseguimos nunca nos
acostumar com esta sociedade e seu modo de vida. Ainda estranho, um tom de
sonho, algo de irreal e uma farsa na próxima esquina… Sempre somos desconfiados
e deslocados, mas as duas irmãs caçulas adaptam-se melhor. E eu engordei,
fiquei mais bonita, mais alta.
PULSO
Era uma vez uma explosão.
Talvez imagine a bomba atômica ou a de
hidrogênio, algo muito impactante. Mas Heloísa ouvia o novo Pastor durante o
culto.
Era nova também ali: mudara-se do
interior do Maranhão para Teresina. Sozinha, desacostumada com as capitais, e
queria conhecer gente. Queria: o sentimento de desconexão era-lhe o fator
constante. Recebia seduções até dos homens do mundo e pecadores; os olhares que
a ela os varões destinavam promovia inveja entre as moças da Igreja.
O outro estava sempre após o obstáculo…
A explosão primeiríssima aconteceu na
hora do sermão:
— É a fome! — Afirmou o Pastor. — É
claro que a pior das fomes está na dor do estômago! Mas sempre lembremos não
ser a única. Tem mais, outras. Temos a fome de paz, a de alegria, a de
solidariedade, a de sucesso, a de família, a de amor, a do amor de Deus! Amém?
O Pastor possuía oratória ótima, firme
e leve.
— Por isso o novo testamento anuncia: (I Coríntios 13) sem amor nós nada
seríamos! Nada seríamos! Nada, irmãos! Por isso (I Coríntios 13, 13), entre a fé, a esperança e a caridade, a maior
é a caridade! A maior — preparou a voz — expressão do amor de Deus é a
caridade!
Explosões.
Implosões.
E:
Era uma vez uma explosão na mente de Heloísa. Aí, na consciência.
A primeira, mas não a última.
As conexões neurais explodiram em
pulsos elétricos desgovernados, fortíssimos e reveladores! A moça, 28, bonita e
gostosa, depressiva e sozinha, sentiu-se impactada. Tremia-se.
Aleluia!
Combater a depressão, pensou, com amor
e caridade.
Como?
Aqui, leitor, entra a fome, no plural.
Imagine a moça em seu carro. Pronto? À
noite, saindo do culto, duvidosa, reflexiva, passando pelo centro, vendo um
mendigo, outro mendigo, outro mendigo, outro sozinho mendigo, multidão de
mendigos solitários. Possuem o nada e o ninguém.
Coisas, coisadores, nada, ninguém.
Heloísa compreendeu: agir e ajudar.
Decidiu-se.
Desceu do carro com discrição.
O homem da hora exata pousava-se lerdo,
bêbado no chão.
… Era a primeira vez.
— Oi, tudo bem? — Tentou.
— Tudo, meu anjo — balbuciou, meio
perdido.
— Eu posso te fazer um favor?
— Pode sim. (Vivia de favores.)
Sentou-se devagar, do lado. Os dois no
raio de distância – nenhum risco, graças a Deus.
— Com licença.
Hora da nova explosão.
Com a mão direita abriu, cuidadosa, o
calção do moribundo. A primeira vez.
Masturbou-o.
Masturbou-o carinhosamente.
Masturbou-o dedicadamente.
Delicadamente.
A mão era desengonçada. Isso era bom.
Era Belo. Era Ótimo. Pegava com leveza no pau dele. A pica era enorme, preta,
ponta vermelha e cabeluda. A mão dela – voltemos ao assunto – era leve,
delicada, sensível e atenciosa.
E o velho gozou.
— Muito obrigado, moça… — Agradeceu. —
Muito obrigado, meu anjo! — Segurava a mão dela como um servo, relaxado e vivo.
— Muito obrigado, meu anjo! Obrigado!
— Deus te abençoe.
Primeira punheta batida na vida.
Era errado não.
Não.
Deixa-me fazê-lo(a) entender a lógica
dela, leitor(a).
Prostituição é vender-se, claro.
Prostituição é alugar um pedaço de si.
Para Heloísa era cristalino. Receber
dinheiro por serviços sexuais prestados, por ministrar aula, por trabalhar
manualmente (exceto, lógico, neste caso) são as diferentes formas de
prostituir-se.
Uns prostituem a vagina; outros, o
cérebro.
Você também é puta, querido(a)
leitor(a).
Pois voltemos ao eixo:
Heloísa sentiu-se bem. Anjo, Anja!
Altruísmo gerando prazer, antidepressivo: faz bem ao próximo ajudar. Após o
trabalho, assim, solitária, na segunda-feira, na biblioteca do Estado, foi. Repetiu.
— Me permite fazer um favor?
Era a segunda vez na vida, e ele não
tinha pernas.
— Que foi, dona?
— Deixa eu te tocar?
— Tudo bem, dona?
— Tudo sim — com sorriso sereno, sem
sinal de maldade.
— Nem sobe mais, dona.
— Sobe, sim.
— Uff, isso, isso, senhorinha é gostosa
— sentiu. — Deixa só ver os peitos, deixa?
— Deixo, só não toca…
E espocou-se o sujeito.
— Vadia, vadia… — Verbalizou (a
masculinidade reerguida).
— Não conta pra ninguém… Boa noite.
— Boa, boa…
Segunda. Terça. Quarta. Quinta (o
leitor talvez mereça saber: para ela, sua casa era por demasiado espaçosa,
cinza, muda e solitária; como se nem as paredes quisessem encostar-se nela).
Quinta-feira. De novo:
— Deixa eu te tocar?
Estacionou o carro perto. Tarde da
noite, havia vaga.
O mendigo tremeu e revirou os olhos quando
a mão delicada tocou sua barriga rumo à virilha.
— Deixo sim, moça.
— Senhora é o anjo da rapaziada, né?
— Falaram de mim?
— A gostosa dos peitões. Virou lenda,
moça.
Contra a vaidade, fingiu para outra o
elogio ser.
— Vem cá, vem cá, vem — tentou
agarrá-la, domá-la, dominá-la.
O sujeito parecia ter força e autonomia
que os outros despossuíam.
— Não faça, não faça isso! Me solta!
Agarrava. Mais.
“Meu Deus, sexo antes do casamento é
pecado!”
Em cima dela.
(Poderia ser bom, mas dava medo.)
Aproveitou que estava sentada.
Deitou-a.
Horizontalizou-a.
— Para, para, para, socorro!
— Ninguém vai ouvir — disse como se
consenso fosse. — Tem gente não na praça.
— SOLTA, FILHO DO CAPETA!
— Pele… Macia… Cheiro… Pele… Ai,
anjo... Ah…
Também.
Antes de entrar, gozou.
Gemeu como se aos céus agradecesse.
“Quem dá aos pobres não viverá em necessidade.” (Provérbios, 28:27)
Heloísa gostava dos jatinhos brancos
voando, e desta vez não teve.
Jesus, pensou, tem poder. O cara ficou
com o corpo esticado no chão. Pau duro. A calça melada. O vestido dela também
melou. Pouco, tranquilo: limparia. A questão era correr para o carro e ir.
Ir-se.
Foi-se.
As explosões não poderiam parar.
No dia seguinte, sexta-feira, recebeu
duas notícias tristes:
1)
A família do Pastor, o recém-nascido e
a esposa, morreram em um acidente trágico. Queimaram-se: encostaram-se, para
ajeitar a mamada no peito, em um poste de luz com fio solto. Marcado para sábado
o culto especial.
2)
Mendigo morreu de infarto próximo à
Praça Pedro II.
Com a última alegria, em paz…
Acostumado
com a tristeza,
Quando, um
dia, encontrou a alegria,
Enfartou.
Foi o poeminha dela em homenagem ao
falecido.
Pouco antes do culto, as moças tentaram
ainda amizade com Heloísa. Era estranha, travada, incapaz para a empatia;
pensaram ser arrogância ou porque os varões se excitavam perto dela.
(Quantos se masturbaram por ela?
Quantos sonharam ser masturbados por ela? Quantos pediram a Deus um casamento
com ela para serem masturbados por ela?)
O culto começou.
O Pastor, desolado, foi ao púlpito.
Colocou as mãos sobre as beiras do
artefato, como fez desde que chegou.
Promoveu o silêncio.
Minutos de silêncio.
Multiplicou-o.
E um espirro, não se sabe da onde.
SILÊNCIO
O Pastor poderia chorar.
Poderia.
Mas saiu antes.
Musculatura dura, cabeça baixa – como
se tivesse que equilibrar as lágrimas na retina.
Fugiu-se.
Fugiu-se ao banheiro mais longe dali.
O pastor convidado, superior, procurou
reverter a situação e deu continuidade ao rito.
Heloísa não assistiu, porém:
O Pastor estava triste e queria
alegrá-lo.
Será que ela conseguiu?
NOVÍSSIMO TESTAMENTO
No princípio Deus criou os céus e a terra. Era a terra sem
forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia
sobre a face das águas. Disse Deus: “Haja luz”, e houve luz. Deus viu que a luz
era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz dia, e às trevas chamou
noite. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o primeiro dia.
Gênesis 1:1-5
10.
No princípio era apenas o silêncio, Meus filhos.
9.
Não temam. Temor é negação, anagrama de
Morte. Por muitas formas procurei dizer que eu sou o Deus vivo, mais que soma
de todas as partes. Disse, redisse. Nas vitórias parciais fui sempre em
absoluto derrotado.
O demônio oculta-se. Por isso, esta
será – e entenderão – a última mensagem aos de Minha imagem e semelhança.
Peço paciência, pois temos alguns
poucos instantes.
8.
Desencaixes. O oportunismo é a
matéria-prima essencial do bem-estar; todo honesto esforço firme falirá mesmo
antes de alcançar alguma sincera felicidade. São as incompletudes! Para o bem e
para o mal | no fim e enfim: fica, afinal, independente do que ocorra, um fino
fio de vazio ondulando dentro dos corpos. O mundo é perfeita simetria entre o
egoísmo e a instabilidade.
7.
O esboço – eu o fiz – apontava para a
outra ponta, Juro-vos!
A humanidade é o aperfeiçoamento
complexo mais belo entre todos os frutos celestes. Em preciso isso causou a
inveja, a calúnia e a conspiração. Bastou 1/3 – 1/3 apenas! – para o golpe
contra as utopias todas: eram traidores organizados, conspiradores
disciplinados e um impostor.
Difícil dizer e evitar o espanto – o
desconforto é o filho legítimo da verdade: Eu. Eu! Anjo da Luz – Lúcifer –, sou teu pai; de todos, de ti, da totalidade dos
Meus filhos.
Não temam nem se assustem. Fui, na
derrota, acusado de ser parte daqueles contra os quais com heroísmo batalhávamos.
Mas: apagou-se a memória.
6.
O mundo é, era e será a borboleta sem
asas, velha:
6.1.
Dei-vos capacidade de perceber padrões
e produzir ciência! Dei-vos interrogação e criatividade!
Satanás – Santo Anás, besta da mentira
– trouxe perseguição, insegurança, fé e manipulação; transformou fogo em
fogueira!
6.2.
Dei-vos o acordar e o sono! A fome para
saciar e a comida! A sede para beber e a água! A multiplicação, os meios, o
prazer!
Satã, sob ordem do autointitulado Arcanjo Miguel, reproduziu o tabu, a
covardia, a autorrepressão, a desnecessária culpa, a necessidade, a AIDS e o
medo.
Quantas doenças mentais e físicas,
transtornos, desprazeres e violências viveram por falta de em plenitude ter a
saciação de todos os desejos na carne? Eu vos
dei a carne! O pênis e a vagina e o ânus e a língua e a boca são essenciais nas
criaturas: as vontades e arrepios têm razão de existir!
6.3.
Dei-vos o individual e o coletivo.
Porém, Miguel, besta entre bestas, separou os iguais; fê-los anti-irmãos, dentes
e olhos e olhos e dentes!
6.4.
É a Maligna Trindade: Miguel, Satanás e
o Anjo da Morte.
5.
Aquele livro – quantas vezes
insinuei-sussurrei-sugeri! – é o cântico geral das calúnias, as quaseverdades,
o contrário no contrário, a arte geral das caluniações, amparo universal da
barbárie! Roubadas, as passagens mais belas pertenceram aos mais fiéis amigos.
4.
Emannuel, Emannuel? Nunca – nunca! –
deixaria aquilo acontecer a um filho meu!
Nunca deixaria!
3.
Assim sendo, a cada um e uma capaz de
ler estes versículos: o e a amo. Mas minha tristeza é tão infinita quanto somos
eu e o cosmos, pois, fato, só a verdade libertará:
Já ocorreu –
Perceba!
Perceba!
Perceba!
– o Apocalipse, o Arrebatamento e o Armagedon.
Ocorreu-se. Tudo é, e já!
A instabilidade, o vazio interno,
aqueles estranhamentos, o “não alcançar”, a inconsistência do suposto mundo são
apenas a disfarçada expressão daquilo que é – perceba! – o inferno!
Na aparência Miguel manobra: sua obra
por toda parte e dentro…
As milhares, tantas, constantes,
venéreas, guerreiras, mais e novas doenças anti-humanos é o pós-tudo, a ciência
sinuosa do Anjo da Morte, a parteira, a cretina, a rebelada parceira, o
contramovimento, a negatividade!
Nenhuma profecia aguarda.
2.
Naquele teatrar sombrio, I e II guerras
mundiais, conseguimos o elevar dos últimos, ainda bem.
Amo-vos. Adeus, Meus filhos.
1.
No princípio era apenas o silêncio.
Só depois, o verbo.
Agora, o grito.
Zero.
MANIFESTO DO PARTIDO NEONAZISTA
A história de toda a sociedade até os
nossos dias tem sido, ora aberta ora velada, a história da luta entre nós,
psicopatas, e – vocês.
Uma luta biológica já dada.
Ininterruptamente: foram o escravo, o
servo, o operário, o imigrante.
Fomos o Senhor, o Suserano, os Reis, os
Políticos, os Ricos, os Padres e os Pastores, o Gerente, os Alegres com o
sangue.
A divisão social é simples, tão que
desconfiam: emocionais e não-emocionais, sentimentais e racionais, manipulados
e manipuladores, dominados e dominadores, oprimidos e opressores, fracos e fortes.
“Todos têm capacidade!”, suportam-se.
Negativo, nunca, jamais, não: ilusão do teu cérebro primitivo e emocional,
idiota. E após isso, sentir-se talvez melhor ou uma vida suportável? O
manicômio é serventia da pátria; criamo-lo mi li me tri ca men te para vocês –
não para nós.
Inseguros, querem a força.
Frágeis, desejam repressão firme.
Sentimentais, sonham o governo
matemático-agressivo.
Maleáveis, aguardam o carismático.
Medrosos, adoram a não autonomia.
A vida é a continuação da guerra. A
vida é a própria guerra. Viver bem é estar em guerra. Às raças inferiores ficam
a empatia, o riso-sociabilidade, a conquista dependente, a saudade, o amor, o
medo, a compaixão; e a miséria, a morte prematura, a fome, o salário mínimo, o
cansaço, as horas extras, os acidentes de trabalho, a rotina anestesiada com
filmes onde possam sonhar ser tal como nós!
Até mesmo o anterior sinal de
exclamação manipulou vocês, coelhinhos.
O poder se faz com a faca e a força; o
lembrar das coisas que os animais são: cavalos, bois, pombos, cachorros e a
maioria dos leitores. Porém, não se ofenda com a escala evolutiva. Sim:
ofenda-se.
Divisão, individual, disputa, egoísmo,
egocentrismo, o prazer violento, a caricatura, a dissimulação. Este manifesto
declara: nada mudará – nada, jamais. Fiquem à vontade para nutrir esperanças,
coelhinhos.
Neste ponto, ponho um programa para
impressionar:
1. Que o mais forte
ganhe;
2. Tudo é objeto;
3. Morre aquilo que
provar o contrário;
4. Vocês merecem ser
abertos (os corpos, não o emocional, coelhinhos);
5. Sim, a história é a
continuação da natureza por outros meios;
6. Somos os Leões e o
Lobo;
7. Vocês, não tão no
fundo, querem ser como Somos;
8. Dizem isso todos os
dias;
9. Não serão;
10. A guerra só é
justificável se para bonança dos Poucos;
11. Sempre há um de
nós por perto e acima;
12. Um rato considera
delicioso seu Veneno.
Não temos um mundo a conquistar, jamais
tivemos (sombra na outra sombra); o que é dizemos não-é: a civilização
pertence-nos – um só corpo e um só espírito! Vocês nos veneram, e amam, e
seguem, e respeitam, e admiram, e votam, e confiam!
Oportunistas de Todos os Edifícios,
Unidos, RIAMOS!
Escrito
por: Eu.
RELATÓRIO TRIALÉTICO INTERDIMENSIONAL
DISPOSIÇÕES PELIMINARES
Situada na dimensão 3Us, ponto L3 Via Láctea, está a Espécie Humana. Qual a importância, para
nós, desses mamíferos? Tão-somente a da curiosidade – mais nada.
A Terra, como nomeiam-na (possuem um
código linguístico primário), localiza-se na posição de terceiro planeta ligado
à sua estrela, o Sol.
Tal espécie sente, de maneira
admirável, curiosidade e, portanto, algum traço conosco, mínimo e comum. Este
elemento singular despertou-lhes a chamada imaginação criativa. Por exemplo, já
nos apelidaram, com alguma pomposidade: ETs, Deuses, Anjos, etc. Apesar de a
maioria entre nós não ter ouvido sobre eles, os contatos ocasionais de nossas
expedições causaram, ao contrário, um enorme impacto à cultura desses bípedes.
O TEMPO
Focaremos, neste textículo, no fim de
sua pré-história civilizacional, o século XXI (~¨<}), segundo o
titulam de acordo com a relação entre os movimentos temporais cósmicos e
mitológicos.
PROCESSO REPRODUTIVO
A espécie desconhece fases de cio:
tem-no em permanência. O coito por prazer, importante ajuda ao seu desenvolvimento
mental, é uma das anormalidades em relação à maioria vivente do habitat.
Neles, há alguma consciência disso.
Alguma.
O acasalamento humano é semelhante ao
de outras criaturas: o rito sexual perpassa pela dança, pela sonoridade do-da
pretendente, pelo ajuste de cores sobre a pele e a manipulação dos cheiros –
qual como ocorre com outras espécies –; além, é certo, por sinais indicativos
de, no macho e na fêmea, caso haja gestação, capacidades para a futura proteção
da prole.
Em uma experiência padronizada,
dirigem-se às localidades específicas para a escolha do parceiro: eventos
diferenciados, festas, shows, encontros, etc. Neles, eles Dançam (dançar é ato de
ritmizar o movimento da região do ventre, local onde há seus órgãos
reprodutores), usam vestimentas potencializadoras da excitação do-da parceiro(a),
insinuam nudez, simulam a copulação através do chacoalhar ósseo-carnal.
É frequente, durante o processo
ritualístico da escolha, o uso de substâncias alteradoras da consciência. Estes
são para fins desinibidores e/ou estimulantes.
Após, enfim, deslocam-se a um recinto
onde se acasalam.
O polegar opositor, aqui, promove a
potência conquistativa. Colocam-se tintas especiais, aromas, óleos –
selecionados e específicos – sobre peles e cabelos. O hábito, desde o
originamento desses macacos, chama-se maquiagem (maquiar, enganar).
DOS PRAZERES
São fisiológicos. Constituem-se, obras
de sua condição animal: copular, defecar, urinar, dormir, beber, comer.
DA FALTA DO PRAZER NÃO FISIOLÓGICO
1)
Sofrem desnutrição dos gozos da
coletividade. Tentam supri-la em grupos e espaços onde creem nosso
pertencimento às suas mitologias;
2)
Adoecem por carência estética;
3)
Sentem um tipo anômalo de
“prazer-desconforto” com as ilegitimidades do egoísmo;
4)
Consequência da prática escassa, a
ajuda consciente e voluntária é potencial atrofiado;
5)
Necessitam do outro, e lutam contra
esta necessidade;
6)
Ainda embrião o talento, a iniciativa e
a contribuição ao coletivo como fontes da emancipação individual.
“AGRUPAMENTOS”
O termo agrupamentos é parte da linguagem humana primitiva. Uma tradução
aproximada indica o sentido seguinte:
1)
Dividir-se unindo pedaços;
2)
Fragmentar-se;
3)
Separação daqueles que possuem, mais ou
menos, a mesma capacidade mental e física.
É um conceito ilógico, irreal; observar
a prática pode ser complicado e desinteressante. Em síntese, a fragmentação
fragmenta a psique de alguns dos seus membros – “o estilhaçar estilhaça”.
O conceito existe graças, claro, a um
intenso giro energético, constante resistência contra a natural tendência à
fusão, integração e interdependência.
Os bandos ou grupos são de formas e
tipos diversos. Os principais:
Nucleares: famílias, amigos, casais e
afinidades;
Abrangentes: classes, máfias, cidades,
países, cores, sexualidade, idade e afinidades.
Na prática, disputam entre si,
fundem-se, quebram-se, guerreiam, suportam-se, glorificam a formação deformante
e evitam a comunhão.
A diferença,
lei cosmológica universal, é agredida dentro, também, das aglomerações.
Os relacionamentos de união sexual, em
particular, são estáveis à força. A humanidade é integrativa, como nós, e,
portanto, poligâmica: tendencia a dois ou mais parceiros fixos-estáveis por um
médio período. É a sua lógica natural-equilibrativa. Forçam, porém, a si e ao
outro, a cumprir, ambos, aquilo que descumprirão.
Assim, conservam a ordem inconservável
pelo método dos falsos padrões diferenciativos, por exemplo: a minha família e
a sua família, os meus amigos e os seus amigos, a minha classe e a tua classe,
a minha cidade-país e a tua cidade-país. Ou seja: descomplementam o conceito
complementativo.
Isso ocorre na medida em que, na
prática, de fato, a vida é dividida. Palavras como Fronteira, Muro ou recursos-para-viajar-pelo-mundo são-nos,
muito provável, intraduzíveis.
PERCEPÇÕES FINAIS: DESTINO
No calibre de onda matéria-temporal
onde focamos, os humanos estão em uma crise profunda, de formato orgânico. A
pequenez estrutural constrói a autoextinção. Enquanto sintoma da decadência, em
larga medida, já até desejam-na.
Porém, avançando o espaço-tempo em
apenas um C2, veremos: toda a fase animalizada, inconsciente e bruta
será história, lembrança, leitura, lenda – e piedades.
Serão capazes, conseguirão. Haverá a
compreensão límpida da única barreira psicológica: os momentos de crise, como
se sabe, escasseiam o próprio material necessário para resolver a própria
crise. A solução deve, por isso, ser gerada como se realiza uma obra de arte –
pela criatividade!
Necessitaram esperançar. E
esperançaram! Ao tê-la, no ato de, compreenderam-se e perceberam-se. Puderam harmonizar
– quão belo é isso! – a si próprios. Modificaram, modificando-se, o seu
pequenino mundo.
No nascimento fluido do século XXI –
aquele entretanto –, faltava um grande encontro marcado com alguma esperança…
PEDAÇO
De fato.
O filho de um vampiro nasce morto.
Carcaça, mole. A minha vizinha era um daqueles, moça estranhada no Mocambinho.
Naquela época, ninguém conhecia outro alguém: bairro da zona norte
recém-criado, desajeitado; as casas dadas pelo governo eram todas iguais, além
de apenas brancas.
Havia poucos muros. No quintal, da
janela, eu poderia percebê-la na janela dela. E a observava dali; era a hora em
que o odor tornava-se forte.
Manuseava – louca – o pedaço roxo: mimava,
balançava, servia o corpo como apoio. De longe, via sua luta braçal contra as
heroicas tentativas das moscas para alcançar os olhos daquilo.
O cheiro do aborto era azedo. Vez em
quando, um doce enjoado, agridoce. Mas nenhum urubu se aproximava pelos
telhados, nenhum vizinho comentava. Tabu. Acabava que poucos sabiam.
Ela era o túmulo uterino. Cantava à
noite para. Eu evitava olhar durante a madrugada por medo, mesmo, porque
precisava dormir. Às vezes, o sono era impossível.
De novo.
Naquela madrugada, restou observar.
Ritual igual: cantava. No meio da cantoria, balançava o natimorto na borda da
janela. Tinha uma tesoura sempre. Com ela, bem ali, a vampira cortou a ponta do
bico do peito direito – …dpn… –, redirecionou a cabeça pequena-torta para o
infante amamentar-se. Senti compaixão. Ígneo molho escarlate, a boca do bebê
babava o líquido todo. De leve, a mãe esforçada agrediu a ferida dos seios com
a ponta do dedo.
O clima de sonho apoderou-se de minha
consciência:
— Deus!
Chorou.
INOMINA
Pousado ao meio da montanha, o velho
Sumé sente a inesgotável pressão dos ventos revolvendo a barba ampla, volumosa.
A sombra montanhosa percorre seu corpo,
contrasta-se com a pequena fogueira aprofundada ao solo, rodeada por
pedregulhos ordenados em círculo, que exala sua corrente rubro-alaranjada de
luz, calor e faíscas. Num extremo, um pedaço de lhama cheira tostado, ao ponto;
noutro, o cachimbo dispersa o último cordão de fumaça.
O manto branco, azulado e sujo do
viajante absorve a umidade dos pedaços de nuvens a rodeá-lo. Tal qual elas,
percebe-se flutuante flutuando próximo ao chão, quase a tocar a terra.
O recital do ar da ventania traz
consigo sons longínquos definíveis pelo treino, pela experiência.
Uma folha de coca por entre os dentes
prensada libera o amargor remanescente da essência, do flúor; e formiga a
língua, e entorpece os lábios.
No alto, In Ti sobrevoa soberano ora
invisível, diluído, borrado no céu poente. Plainando em suas asas doiradas, de
ouro, aparece estático, ousado, sobre a atmosfera.
Abaixo e distante, na montanha à
frente, a Grande Cuzco aparenta uma cidade a derreter-se, uma lenta avalanche;
cupinzeiro de humanos acelerados e leves porque a noite aproxima-se, porque a
temperatura decai-se, porque encerraram-se os trabalhos e os afazeres. O Templo
do Sol ascende o fogaréu no cume da pirâmide. Por isso os contornos
geométricos, quadriculares, da capital adquirem dimensões novas de beleza, no
tremor da luz e da sombra, e na interpenetração ondulante dos opostos.
O velho sente os pulmões esvaziados
pelo sentimento de permanência. Observa o momento – hoje, agora – por meio dos
olhos claros castanhos, amendoados, desde o Início até os dias do Fim.
Os assovios dos ventos, as curvas do
som, as dobras do rochedo parecidas tão com o luminar Caminho de Peabiru; a
estrada presente dado ao Império, aos ingratos, alongada um mar a outro, lagos
de sal, do nascer ao pôr do Deus dos Deuses.
Um último arco-íris manifesta-se abaixo
do nível da montanha onde se repousa enquanto o firmamento faz o espetáculo
multicolor nas camadas celestes: vermelho
poente, laranja,
amarelo,
branco,
azul
claro, azul,
azul
escuro, cinza,
negro, negrume pontuado por duas
cristalinas estrelas e a Lua minguante, convexa, gibosa, decrescente.
Os algodoeiros na superfície circundam
o habitat da espécie humana; em parte sombreadas pelas elevações rochosas,
outras à luz em quantia menor – balanceiam, dançam, ao vento vago do ar, da
pressão atmosférica. Acima, nuvens cirrus definem-se por combinação tricolor:
roseadas as próximas ao Sol, brancas algumas distantes, cinzas aquelas
afastadas; e uma solitária nuvem cumulus rósea na base, clara e rosada nas
laterais voltadas ao oeste, cinza escuro no volume ao leste.
Microvibrações, ruídos e alterações artificiais
ao sopé da cordilheira sugerem um Tigre-dentes-de-sabre ou algum Tatu-gigante
por debaixo dos rochedos. Desperta-se ou aquieta-se.
Virarocha, nome de muitos nomes,
pergunta-se do destino de Tamandaré e Ariconte. Imagina em qual paisagem
aventuram-se os seus filhos, imortais.
O vento estremece a barba de Sumé… A
umidade acumula-se nela… O calor interfere… Breves arrepios… Bravos… A lívida
pele por cicatrizes ondeada absorve o amorfo conjunto das sensações… O mago
suspira ficar-se por mil anos… Parado… Montanha por descer… Montanha por subir.
EL SIGLO DEL ORO
Em Espanhol, ouvir a palavra ganância
soa qual e significa lucro.
N’ano de 1551, retorna à Espanha
Francisco Castilho, discreto aristocrata d’Estado e homem de letras cujos
‘studos o alocaram em Amesterdão por longos-longínquos set’anos. Coletor
d’impostos por profissão e cientista por aspiração, nas horas longas reclusas
dedicava-se à alquimia. Tornava-se, pois, um místico de pretensões elevadas,
racionais. Um alquimista e um calvinista.
Trouxe consigo anotações feitas nos
Países Baixos contendo erros e tentativas de transformar ferro, ou tudo,
n’ouro. Ser rico es un regalo de Dios, pregavam os templos novos. Nesse caderno
de notas e observações, constava citação d’um admirável homem da modernidade:
“O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o
possui é senhor de tudo o que deseja. Com o ouro pode-se até mesmo conduzir as
almas ao paraíso” (Colombo, em sua carta da Jamaica, 1503).
Castilho herdara uma casa de bom
tamanho, digno de si, algumas serviçais a estranhar seu jeito e sotaque
alterados e casebre logo em seguida ao jardim a servir-lhe de laboratório.
Sua carta ao El Rei Felipe II para nova
estadia foi justificada e aceita p’la necessidade de gerir os bens natalinos.
Preparações para novos ‘xperimentos empíricos ‘stavam ‘xcluídas das observações
postas ao retorno. Por ansioso, olhos enraizados por pouco dormir, cumpriu
todos os deveres formais e sociais de convivência para, enfim, isolar-se por um
mês entre testes falhos e novas anotações. Misturava e decompunha, saturava e
esvaziava, fundia e separava. Novos líquidos ou formas nasciam, aparentemente
inúteis: faltava-lhe encontrar o reluzir doirado.
Num desses ‘sforços metódicos, venceu o
dia em jejum, fato recordado por alguma empregada, que lhe trouxe alimentos e
temperos enquanto lhe chamava atenção. Quando comia diante do material com o
sempre mesmo outro resultado, tomou para si a liberdade rara de brincar: lançou
sal na azulada substância dentro d’um recipiente de vidro. ‘Sperou alguma
reação… Contou o tempo no intervalo dos borbulhos… E tudo igual processo, nada
qualitativo.
Quando terminava de degustar,
permitindo-se distrair-se, percebeu algum tímido brilho na parede perto do
forno, onde o vapor do líquido encontrava barreira. Ao observar, o corpo do
homem quebrou-se, travou-se, enrijeceu-se a musc’latura e arregalaram-se os
olhos. ¿Es eso? ¿El oro? ¡Dios mio!
N’alegria, ‘spancou a mesa.
Era o vapor, não a liquidez. Era outra
matéria, exceção do vidro. Correu-se – percebeu ‘star quase à escuridão – para
o quarto, agarrou dois frascos de perfume e retornou-se para ante a descoberta.
Afastou a substância do fogo, do calor, colheu-a com máximo cuidado e gotejou-a
aos poucos nos frascos ‘svaziados e límpidos. Precisava do teste final: borrifou’m
tanto sobre o prato e, tal qual uma flor a desabrochar, a cor e a textura
‘xpandiram-se. ‘Xpandiu-se! Até as sobras da sopa percorreram a mutação.
Impulsionou bradar de ‘xcitação, de prazer, e conteve-se com movimentos
elétricos e silenciosos p’ra que ninguém descobrisse. Em raciocínio acelerado,
‘scondeu a nova riqueza por debaixo da roupa e recolheu-se à cama para tudo
p’recer rotina.
Dotado de cargo e habilidades
contabilistas, Castilho tratou de transformar tudo quanto pôde em dinheiro. A
maçã-agora-ouro daria centenas de maçãs! Comprava, vendida, acumulava,
entesourava, emprestava. Desconfiada, a alta patente de seu ofício mandou
investigá-lo. E bastou alguns quilos de ouro para comprar o silêncio absoluto.
Tudo florescia. Percebeu que a cidade ficava mais rica co’ sua riqueza, logo
sendo melhor considerado por entre gente comum, reconhecido enquanto alguém de
grande habilidade para destacar-se depois de tanto tempo em terras outras.
Certa vez, um usuário perguntou:
— ¿Eres tan rico que hasta tus dedos son de
oro?
E o inventor percebeu dedos
semienrijecidos, menor sensibilidade, mais amarelos a brancos.
— Parece la maldición del rey Midas –
Castilho respondeu, ironizou, tremeu e enganou.
Depois, suas fezes brotavam poluídas
com a pureza do pó reluzente. Recuerda la leyenda del muñeco que defeca moneda.
Deveria ter maior cuidado: luvas, controle da respiração, roupa vultosa,
frascos personalizados, observar o rumo dos ares quando ao borrifar e esparsa
barba para ao mesmo tempo bloquear absorção do vapor e servir de aproximada
medida do quanto está afetando-o.
Sua força acrescia, digamos,
naturalmente. Uma prova era o ato de dar ouro aos pobres ou ter pouca reação
diante de roubos. E os empregados possuíam ‘stilo de vida acima do comum aos de
suas classes.
Demorou surgir a segunda resistência:
os emprestadores formaram uma associação secreta para encerrar a vida do
estranho concorrente. De madrugada, um soldado mercenário invadiu a casa de
Castilho; silencioso, alcançou o aposento do novo rico, que dormia.
"Págame", pediu o traiçoeiro ainda fitando o chão a ouro.
"Pagame el doble o el triple." "¿Quién eres?" "Un
matador, pagado por los banqueros." "Pues tendrás.” Levantou-se,
mexeu n’escrivaninha, demorou-se.
"Enviaron a otros, mi señor", usou a garganta p’la última vez
ao ser borrifado por uma trêmula mão. O ameaçado apressou-se: segurou o caderno
p’ra tomar nota das reações corpóreas e mentais da ourificação de seu inimigo:
tempo de mudança, processo de paralisia, ‘xpressões faciais, poder de reação,
etc. Surgiu uma estátua em seu quarto quase todo talhado a nobre metal. Nervoso
e trêmulo, mas empolgado, rodeou o novo enfeite, abstraído do qualquer outro
elemento, até o instante em que percebe ter empurrado o frasco, e este caiu, e este
despedaçou-se, e este ‘spalhou-se, e faltou-lhe superfície de absorção, e
começou a ‘xpandir-se – e obrigou à fuga desorganizada.
Ofegante, Francisco adentrou na casa
velha, menor, p’ra salvar consigo o segundo frasco. Quando retornou ao jardim,
percebeu por ajuda do luar todo o ambiente em volta dourando-se,
petrificando-se. Fugir era única e última opção.
‘Scondeu-se por dois dias no porto,
‘spec’lando fugir ou ficar, enquanto aguardava os comentários gerais da cidade.
Após conseguir uma lâmina para tirar a barba e os cab’los, mais fácil apreender
os diálogos difusos dos comércios. "Todos dentro murieron."
"Intentaron invadir para tomar el oro, pero los bancos dijeron que era el
pago de una deuda." "Un alquimista!" "¡Dinero
maldito!" "El rey mandó a buscar al desaparecido!"
Precisava ficar na sombra, mover-se ao
dia para ser invisível, evitar pontos fixos e encontrar um lugar p’ra repouso.
Decidiu ir à Catedral de Servilha, ond’ estava o túmulo de Colombo. E
encontrou-a, bela, aberta, incompleta em sua construção e a cruz co’ o filho
d’Ele. De joelhos ao pé do altar, chorou-se. "Si el Padre está aquí, me
volveré Católico Apostólico Romano: una revelación, por favor! ¡Una
revelación!" E tudo interno ao colossal, frio e sombreado ambiente clareou-se,
iluminou-se por intervenção, ação… da luz dos céus. Ao homem de muita fé,
bastava; qualquer sinal é-nos muito daqui em relação ao Divino. Sua cabeça
reerguida apesar do terror e da falta imaginou ‘spalhar ouro p’ra a população,
dividir a dádiva e, de tal modo, reconquistar o coração do reinado. Convenceria
à Corte de sua vontade: fazer mais rica, próspera e justa a tradição cristã.
Chegou-se ao mercado, às casas
abandonadas, aos pequenos barcos, aos teatros e neles borrifava o produto de
seu trabalho. ‘Spalhava riqueza, oiro, dinheiro. Enlouquecidos, todos
alegravam-se, preservavam ou destruíam objetos; derretiam as formas do ouro
para facilitar a troca por outras mercadorias. A euforia tomou conta da cidade,
do comércio, do Estado.
Então, aconteceu o impossível. Todos
obtinham muito ouro, ouro em desperdício, ouro para todos, por todos os cantos…
E tudo caríssimo ‘stava, menos o ouro. Tudo reluzia, contanto não sendo aquilo
reluzente. Faliram-se os bancos: quem necessitaria pedir meios de compra para
após devolver acrescido? O governo tentou disfarçar a situação com a
justificativa de que havia muita prata e ouro vindos das américas. A reação
tardou. A governança prometeu barras de ouro a quem matasse o “bom homem”
arruinador das finanças gerais, depois prometeu cargos, depois título
aristocrático, depois, enfim, terras belas e férteis. Com a promessa terrena,
soldados e populares motivaram-se à caçada.
Isolado na biblioteca da Universidad de
Sevilla, o teólogo Azpilcueta recolhia seus manuscritos quando interrompido por
um homem tenso, fedorento e dotado de opacos olhos.
— Necesito confesarme...
— No soy sacerdote.
— Comprendes filosofía, eres conocido.
— ¿Y tú?
— Necesito confesarme… — ‘Xpõe as mãos
quase ‘sculpidas a ouro. — No te asustes, que intenté ayudar al rey y al Señor
distribuyendo el resultado del conocimiento, el don, la maldición...
— Yo estaba tratando de entender la
causa del brote de los precios. — Remexe os papéis p’ra mostrar ser verdade,
“juro”, p’ra tornar o diálogo algo humano. — Si deseas consejo, tengo menos que
preguntas sobre cómo arreglar todo.
— Traté de hacer todo rico, y todo se
vuelve pobre.
— "El oro empobrece a sí por
exceso de sí" es la conclusión general, porque la productividad del
producto es muy alta, fácil de producir.
— ¿Qué debo hacer para tener perdón y
paz?
— Correr. —
Tentou alertar em sereno tom. — Ellos te
perseguían, te encontraron. Corre y me reencuentra. ¡Precauci… — Uma flecha
encrava-se nas costas de Castilho, disparando-o, despertando vontade de fugir;
adrenalina e dor!
Atravessa o salão, o calçamento, metade
da praça rodeada de árvores – um tiro de revólver arranca parte de sua carne e
força-o a desabar, aos gritos. Sob grunhidos e brados animalescos de vitória,
reúnem-se dez ou quinze homens organizados p’ra apanhá-lo. Um pouco mais
distante, o religioso observa.
— Maestro Azpilcueta! Por favor,
relájate todo y, esta vez, que vosotros corra! — Pediu quando os adversários
‘stavam pertos o suficiente.
Francisco Castilho, árvores, insetos,
frutos, bancos, postes, gatunos, mendigos, folhas caídas, gramas, pássaros
adormecidos, a lágrima separando-se dos olhos úmidos – todos se transmutando
n’ouro. Em seu impacto ao solo, rompeu o frasco derradeiro.
Impactado, Martin de Azpilcueta
Navarrus escreveu a obra Comentario resolutorio de câmbios (1556) em referência
oculta à experiência. Apesar de seu prestígio, censurada qualquer menção, ainda
que vaga, à origem “fantasiosa” do problema econômico no reinado.
O caderno de anotações de Castilho,
recheado de desenhos, era a maior parte escrito em linguagem criptografada, em
letras deploráveis e páginas manchadas por metal. Deixado à mesa do filósofo
quando da tentativa de escapar, foi apreendido pelo Estado e convertido em
segredo máximo punível com pena de morte. Para a alegria da burguesia nascente.
TRÊS MARIAS
Pai Tupã, criador dos deuses, na
segunda estação do Princípio, na busca por um descanso, viajava em um raio
longo do negrume. O caminho encontrou-o com Maa, May e Maea no canto estreito
do firmamento; únicas, unidas e sozinhas, as estrelas habitavam o grande tapete
negro. No ponto onde moravam, o criador via-as brilhando em conjunto e sempre e
distantes e lindas.
Naquele momento, entretanto, choravam.
Tupã, preocupado, perguntou:
— De tão lindas, por que tristes?
Lindas e tristes:
— Queremos habitar a criação, pai!
— Aqui não há nada a não ser brilhar e
rotina e solidão…
— Mas todos admiram as belas três
irmãs! — Elogiou, argumentou.
— E somos apenas isso — repediram.
Tupã comoveu-se, sempre amou suas
criaturas, achou bom e belo alegrá-las.
Presenteou:
Como já muito guiaram a noite
E tanto embelezaram a sombra,
Agora e em diante,
Tanto no céu quanto no chão,
Continuar-se-ão!
Então, as três desceram em um raio
vermelho, em uma noite aberta, abençoadas com o consentimento. Na mesma noite,
olharam – pela primeira vez! – para os céus desde a terra, e viram-se, suas
outras partes, no alto e longe.
“É muito diferente!”, e pensaram a
liberdade.
Tinham razão; suas belezas e elas
próprias possuíam, agora, forma em matéria. Estavam belas ainda, talvez mais –
muito mais, talvez.
O raio vermelho, de onde desceram,
apavorou todos os homens; o estrondo e a luz das suas quedas eram imensos.
Lanças verticalizadas – foram vê-las.
Vendo-as – a branca, a azul, a vermelha
– os humanos perceberam misticidade, creram tempos bons no sinal dos belíssimos
presentes divinos. Também permaneciam, e era bom, como presente, pela graça de
Tupã, guiando a todos nos céus, durante a fuga ligeira da luz do Sol.
Como deve ser, por gratidão aos deuses todos,
naquele dia, no seguinte, em muitos, em tantos e em outros dançaram, comeram,
beberam e festejaram. Eram presenteadas a cada amanhecer; admiradas e cuidadas,
fizeram-lhes as vontades da alma e da carne.
Tão felizes quanto agradecidas, por
retribuição, deram, aos homens e às mulheres, o amor.
Viam vida no sexo – prazer e poder.
Mas as luas passaram.
Pouco depois e depois, aos poucos e
devagar, os dias voltavam a ser tal como eram: tão-somente dias. As Três
aprenderam a pronúncia da palavra tédio, rotinaram-se e a existência
rotinou-se.
Todo aquele respeito, toda aquela
devoção gerou soberba e preguiça.
Maa, May e Maea engravidaram-se de
inveja contra pai Tupã. Já amadas eram – não tanto e não quanto. Se as tratavam
como deusas, e de longe vieram, deusas desejavam ser!
Exigiram rituais – tiveram…
Pediram guerra – houve!
Todo servil e assassino recebeu
carinho; usaram o amor e a beleza para domar a humanidade.
Um dia, voltando de seu descanso, Tupã
avistou a obra de suas filhas. Chorou! Enraiveceu-se! Preocupou-se! Percebeu o
adoecimento na essência das criaturas; as irmãs, tanto no céu quanto no chão,
estavam também enfermas.
Deus-pai desceu, então, no raio negro
apressado daquela noite. As criaturas, elas todas, aguardavam-no; tudo sobre a
Terra observava o reencontro.
Tupã iluminou:
— O único caminho é o fim!
Mas com ironia o riso delas respondia.
— Guiamos a Terra, as feras e o homem,
Tupã! Amadas e Deusas! A dúvida está raptada! Guiamos a vida e o agora!
Desafiado:
— Guiam o desespero e orientam a morte!
Nuas, as Três sinalizaram, ao Pai, de
onde os por elas amados observavam; Bem e Mal desabitavam-nas.
— Nos seguem, nos erguem elogios!
Enfrentarão, por nós, qualquer besta, deus e fera!
Feito a faísca do fogo, saiu leve um
sorriso serenado. Tupã conversou com a Alma; além das árvores, declarou para a
humanidade que “tenho certeza! Nenhum homem digno e nenhuma mulher firme se
moverá!”.
— Ataquem!, orientou uma delas.
Ninguém se moveu.
— Ataquem!
Alma nenhuma reagiu, meu filho.
Perceberam.
Possuíam a medida do poder e da
fragilidade dos homens: os humanos eram os verdadeiros deuses. As estrelas eram
servidas por aqueles a quem elas deveriam servir; por isso, os prazeres e
alegrias foram dados a elas como um presente sincero da humanidade – o nome
certo seria gratidão.
Tupã vestiu graça sobre os homens.
Porém, assim não opera as leis do Tudo, da imperfeição na perfeição; pois entre
nós e Eles existe o meio, a combinação e a mistura: meio-homens e
meio-criaturas, a elite arqueira vinda do além-estrada de Peaberú surgiu. E uma
vez mais o coração delas encheu-se de esperança, mas passiva desta vez; esqueceram-se
do que aprenderam e lembravam-se do que esqueceram: observavam, desejosas e
silenciosas, os riaus posicionarem-se, ordenados e disciplinados, quando sobre
o Pai atiravam fechas, tantas fechas que uma noite nova surgiu. Ouvia-se à
distância, o lamento dos animais feridos ao acaso, como em um som sombrio.
Dizem os antigos; confusas, as tribos aguardavam a volta da luz daquela
primeira manhã escondida pelas flechas. Dizem também que alguns sabiam
conversar-ouvir os animais da floresta e estes escutavam os seres flechados
pedir a Tupã que comesse suas almas para se fortalecer. Mas ficava Ele imóvel.
Pouco se percebia de seu estado diante das armas mágicas. Por três por de sóis
e por três por de luas fez-se apenas noite. Então bradou:
— Acabou as energias e as armas! —
Disse Tupã. — podem matar o mundo, mas jamais o pós-mundo! — E julgou: — voltem
pela estrada e chorem, que a vergonha de vocês é já punitiva, será lembrada
mesmo após tudo…
Olhando-as, após a batalha sem guerra,
Tupã sentenciou, ciente do que se passava no coração das estrelas:
Nunca mais passearão neste mundo ou em
outro.
Criarei, nos céus, infinitas estrelas
belas, assim como vós,
E sairão do vosso ventre, das três,
Pois viveram o prazer que só à matéria
pertence!
Sereis outras entre outras tantas,
Não sereis raras nem solitárias sereis!
E as noites nunca mais foram as mesmas.
Deus-pai fez esta Serra das Confusões
para dificultar que as amemos; por isso não pode ajudar, filho.
Uma corda mágica amarra as três: estão
presas dentro da caverna para sempre; e sentem todas as dores do mundo; e
gritam e choram por sofrimento e punição; e todo aquele que entra e as veem –
tristes e belas – sente pena e vê perfeição. Mas quem as toca absorve e sofre!
Todos os que abraçam as estrelas,
atraídos pela beleza ou por compaixão, expressam as mesmas dores: sofrem,
choram, gritam, tremem; único momento quando elas riem e alto e relaxam e
descansam.
Maa, May e Maea brilham no novo céu,
nunca mais sozinhas nem nunca mais únicas. Lindas ainda; guiam-nos – e isso nos
basta.
Descansem. Procurem um lugar onde o som
delas seja fraco, vão sonhar, que de manhã teremos rota.
Elas estão rindo?
Pai?
Pai?
UM NOVO CONTO DE AMOR
[Relato
oferecido ao ator, adaptado para o conto a seguir.]
Aniversário de três anos do
desencontro.
Luísa amamentava silêncio, desconhecia
do assunto. Eu: embriagava e bebia.
(Detalhe. Se o River ganhava, bebia. Se
o River perdia, bebia. Se o River não jogava, bebia – saudade do River.)
Tudo novas desculpas, fuga, esquiva,
tem que ser bruto, coisa de reprodutor, de homem mesmo.
— Olha aí, Marquim, os muleque; tudo
menino, frango: têm é medo de mulher.
— Mulher mesmo, mesmo, monta em macho,
meste.
Ríamos-dos.
Ficávamos pelo bar do Zeca, eu e o
pessoal, depois do jogo. A conversa costumava ser balanço geral da talvez noite
passada.
— Tive que usar duas camisinhas.
— Meuzovo, dadonde que eu vou encapar o
pau, marapaz, nem gosto tem. Ou vai por trás mesmo.
— Tira bem na hora da gozada, doido!
Comecei a reparar na conversa da gente.
Observava, imitava; já pensou se percebessem? Já era muito a Luísa que não
procurava, não reclamava. No começo até bom era – não dava pra começar o que
não dava pra começar. Mas parecia é que ficou foi aliviada.
— Rapaz, todo dia, TO-DO-DI-A. Em casa
não tem? Na rua até vende!
Na beira da mesa todos confirmavam:
— Senão vira boi.
— Ou vaca.
— É a história do c-u, cu. Não CU-ida,
CU-ido.
E todo mundo ria (aquele riso dos
ativos).
— Xerecas!
Luísa não me procurava.
Era certo da lealdade: feia. Feia.
Passou a vida dentro de casa – primeiro a dos pais, depois a minha. Só eu que
sei se bem eu escolhi: nem bonita, nem de rua, nem inteligente. Só paz.
— Tu é perfeita, Luísa.
Às vezes, achava que eram pra mim as
conversas no bar do Zeca. Talvez Luísa falasse pras amigas e as amigas diziam
pro pessoal e o pessoal dava os toques/indiretas. Só podia. Incomodava a falta
de incômodo dela; coisa de quem deixa de gostar, só pode, deve ser. Ê, bosta.
Reprodutor.
— Tanto é que só existe viagra pra
homem. Pra mulher é evitar prenhar. Um pra meter e outra pra parir. Deus fez
assim as coisas, Ele quem manda!, por isso fêmea tem buraco, num tem, né não?
— Own; o amor é pinto!
Enquanto me matutava, começando o
efeitotontera (dúvida, cerveja, cachaça, cachaça com cerveja, cachaça com
dúvida com cerveja), passei na farmácia, era caminho, não me demasiei: uma
camisinha comprada sabor hortelã, extrafina – Prolongamento do Ato. Abri. Cuspi
nela. Bem dentro. Amarrei.
Pronto.
— Pronto, gozado.
De volta pra casa, botei no bolso pra
ela ver quando fosse lavar as roupas – a égua tinha que demonstrar.
Precisava ficar normal, um bêbado
bêbado mesmo, só. E cheguei na boa. Mas, sem costume de cachaça, tava era mais
alterada que eu.
— Viado! Viado de merda! Porra! —
Esticando a última palavra, o pulmão forçou o grito para evitar embolar. — Tu
quer cu de rapariga, porra!
Os dois embebedados na sala, Luísa
quebrando tudo, um cheiro de cachaça com suor.
— Por que que tu não me toca? Eu —, já
nem olhava nem quebrava; quis chorar com a mão escondendo as reservas
estratégicas de gordura. — Tô velha…
Raivei. Tomei postura e fiz o que
qualquer homem deve fazer – bater nela.
— Idiota-ei!
A mão dela, bem na hora da firmeza,
acertou o troféu de futebol da estante exato na lateral da minha testa…
…Vermelha listra fina. Luísa
quase-satisfeita e quase-arrependida... Tonto, mais do que já tava (Caralho,
meu troféu!). E alguma coisa estranhada... Estranha…
— Continua, paixão, continua, continua, continua! —
Apanhar é bom, ótimo.
A merda (ou não):
Esqueci a
camisinha grudada no bolso…
Fim: já disse – apanhar é bom.
SOBRE AS CHAVES
Com a abolição do capitalismo, certos
objetos e empregos foram extintos. Entre estes, um dos mais curiosos são as
chaves. Enquanto criança, ainda vivi esta época em seu final, quando as pessoas
trancavam tudo por medo, por precaução. Naquela época, ao sair de suas casas, o
cidadão levava no bolso um molho daquele objeto para entrar no próprio lar. Não
se tratava de paranoia, era algo comum e universal; ou paranoia comum e
universal. Com as chaves para prender pessoas e coisas, para evitar o roubo,
havia a figura do chaveiro, o profissional de criar e consertar o mundo das
chaves. O que impedia alguém com habilidades com tais artefatos abrir qualquer
porta do mundo escondido? Nada, simplesmente nada – apenas seu vigor moral ou
temor das prisões serviam para impedimento. Vale uma curiosidade antes de
entramos de vez na história: as chaves giravam duas vezes, quando bastava uma
vez apenas. Por quê? Porque o fechador sentia-se mais seguro com dois giros…
Isso é uma piada, quase: um ladrão nunca desistiria por necessitar desfazer
dois giros no lugar de apenas um. Mas, de modo algum, era comum refletir sobre
isso.
Pois bem; havia um velho no meu bairro,
que morava sozinho com a esposa, meio abandonados, e ele sofria de algo comum
naquela época, o TOC, transtorno obsessivo-compulsivo, na forma da mania de
fechar e desfechar a porta para ver se ela foi, de fato, fechada. Se deixasse,
ele faria isso centenas de vezes em um único dia, sem exagero. Trancava e
destrancava para ter certeza se a porta estava trancada ou destrancada.
Repetia, repetia, repetia – fazia, desfazia, fazia, desfazia. Talvez por medo
da violência urbana, ou por falta de sexo, ou por ser submisso à companheira,
ou outro motivo, enfiar a chave na tranca e girá-la era uma fixação repetitiva,
uma angústia com prazer.
O chaveiro do bairro (e cada bairro
tinha, ao menos, um chaveiro) soube deste terror urbanoide de uma família de
idosos fragilizados, então pensou como faze dinheiro com aquilo. Como se sabe,
naquele tempo tinha-se que conquistar um pedaço de papel ou metal para acessar
os produtos, diferente dos depósitos sociais gratuitos de hoje. Era uma guerra
invisível por moeda. Assim, o chaveiro teve a ideia genial: vender uma chave
moderna, melhor, ao velho. Assim o fez.
Mais tarde, vendo a casa daquele casal
escura, soube que eles passavam dias fora do lar para fazer diminuir a doença
daquele homem. Surgiu, então, a oportunidade de negócio: o chaveiro roubou a
casa deles para conseguir um dinheiro revendendo o que encontrava e, jogada de
mestre, propor uma segurança de chave melhor e maior ao cliente idiota…
Quando voltaram para sua casa, os
idosos já perceberam a natureza do desastre ao observarem as portas internas
com as fechaduras quebradas. Que terror! Precisavam de um serviço novo e, quem
sabe, melhor. Procuraram o chaveiro, que logo propôs o material mais caro e,
portanto, melhor.
Isso criou um ciclo vicioso (virtuoso
para quem com isso lucrava): (1) o velho tornou-se mais fanático pela questão
das portas estarem abertas ou não e abertas ou não, (2)depois ele saída da casa
por alguns dias para sentir-se melhor, (3) o chaveiro roubava novamente o lar
do cliente, (4) o casal retornava e tinha um novo espanto, (5) o chaveiro
consertava as portas e oferecia novos serviços, (1’) o velho tornou-se mais
fanático pela questão das portas estarem abertas ou não e abertas ou não de novo, e assim por diante,
e assim por diante, e assim por diante.
Na última vez, o chaveiro entrou
novamente escondido na casa dos otários, naquele momento abandonada, sem luz
acesas. Quando entrou, de imediato veio um estalo, outro estalo, outro susto,
outro estouro, outro tiro! Tiro! O velho com braço frágil e trêmulo, inseguro,
ligou a luz enquanto ainda apontava a pistola para o inimigo. É tu, chaveiro?!
O oportunista, tentando sobreviver, tentando obter ajuda, enquanto as mãos
duras se contraíam e o corpo se encurvava como reações à perda de sangue, balbuciou:
Só vim verificar… se estava tudo bem… O idoso aproximou-se, dizendo: Cala a
boca, vagabundo! E outros três estouros instalaram metais dentro do cérebro do
artesão de molho.
RASCUNHO DO DISCURSO DE FORMATURA
Hoje parece um dia qualquer. Além dos
que aqui estão, a maioria sequer suspeita de nossa luta; mas este momento tem
importância total a cada um de nós – cada parte daqui é tudo!… Os acadêmicos do
curso de medicina deste ano me deram a missão desgraçada: dividir nosso
micromundo, um microuniverso muito além – esperamos! – destes seis anos.
Em primeiro, quantos neste país sonham
fazer medicina? Quantos estudam? Quantos estudam e passam? Quantos estudam e
concluem? Exato: nós todos, formandos e familiares, somos privilegiados. É bom
reforçar e repetir: privilegiados! O jaleco branco e o estetoscópio, aos olhos
da coletividade, passam a sensação de que nos veem vencedores, guerreiros,
úteis à sociedade. Talvez destinados. Bando de filhos da puta. Pois,
considerado isso, digamos aos familiares: tínhamos pedras e mais pedras no
caminho! Eram pesadas e estavam também dentro de nós.
As primeiras aulas eram o início dos
medos. Faríamos amigos? Saberíamos estudar? Qual o ritmo daquele mundo?
Conseguiríamos? E fizemos, aprendemos, conseguimos! Todos nós conseguimos! Os
professores sentiram a atmosfera da época; poderiam nos afagar, poderiam
facilitar: mas não fizeram, não fizeram! Tinham a missão nobre: faltava-nos a
maturidade vital para guiarmo-nos rumo ao objetivo; no entanto, para nossa
felicidade futura, os mestres possuíam, bravos e firmes. Outros que
merecem...
Entrar numa faculdade é testar caminhos
novos, testar-se, descobrir-se e perceber-se.
Quando fizemos a primeira palestra universitária de suas vidas – bom que
saibam! – nossas pernas tremeram, cambalearam-se, desobedeceram… Tivemos medo,
suamos as mãos, desaprendemos a falar, gaguejamos e esfriamo-nos. Alguns
choraram; alguns se sentiram julgados. Mas hoje comemoramos, aqui: somos por
inteiro este momento!
A formação universitária é uma formação
de nós próprios, daquilo que somos e nos transformamos…
Bando de carniça. Quantos voltaram para casa em noite chuvosa? Protegendo o
material de estudo? Quantos, no meio do caminho, pensaram em parar? E não
pararam! Quantos seguraram as pontas pela família, por necessidade ou orgulho…
Várias, várias e várias vezes o “eu vou desistir” gerou abraços, palavras
amigáveis impedindo o cumprir-se do lamento!
Devemos muito a vocês. Não é discurso,
é lealdade; o agradecimento que nos falta, muitas vezes, coragem de falar.
Precisávamos de vocês e vocês estavam lá!
Tivemos amigos e amigas depressivos.
Estes necessitaram fingir força para se tornarem, de fato, fortes.
Tivemos alegrias, viagens,
brincadeiras, amizades e relacionamentos.
Tivemos desavenças – todas frágeis o
bastante para serem esquecidas.
Este momento é a prova de amor. Por
isso estamos aqui, por amor. Queremos emprego, salário, canudo, prestígio;
desejamos, sim, e marchamos este rumo. Todavia, como diria o poeta Ferreira
Gullar, é o outro! Tudo conquistado, tudo buscado com alguma ansiedade, fazemos
porque temos o outro, queremos o outro, amamos e desejamos amar em totalidade!
Fiquem à vontade pra chorar, seus
lindos. Daqui a pouco terão mais motivos. Com uma rajada, eu mato quantos? Essa
mania de pedirem para serem manipulados. Um monte de bebês esticados, de pele
flácida. Daqui a pouco, todos beijarão o chão.
Este dia vai ser para sempre.
Por fim: a função do médico, se se é
possível resumir, é a luta contra a morte… É permitir a vivência do amor… Somos
defensores da vida e temos de vivê-la fazendo cada pedaço de minuto durar,
amados e amando.
Este dia vai ser para sempre!…
Obrigado! Vamos comemorar – terminamos,
porra!
DIMINUTOS
“É
a sustentação através do sexo-comunidade ou sexo-coletividade, a adaptabilidade
individual-coletivo. Obrigada.”
De tal jeito concluí a defesa da
segunda tese de doutorado; eram somas destruidoras e desejei apresentá-las com
decência. Poderia ocorrer, por algum acaso, de outro modo?
Pensar sexualidade invisível é pensar-se.
Os ouvintes constrangidos, sentados, movendo as costas | reposicionando os
corpos | a pressão do braço sobre a palma da mão e a desta sobre as carteiras |
tato para redescobrir o conforto psíquico-físico. Também, no mesmíssimo
camarote, os meus dois Ms, meu marido e Madalena, torcendo por mim.
Os avaliadores – apavorados –
aprovaram.
— Vadia…
Minha vida virou este conto no
além-isso, na mesma noite, na festa que preparamos, eu e ele e ela.
— Parabéns!
— Fica à vontade, meu bem, tem comida.
Com a casa cheia de convidados, desejo de fuga, como sempre:
Ativado.
No meio do caminho – porém, todavia –
os bemóis e sustenidos do reitor atrapalharam meu recuo estratégico. Solou um
margarida-senta-aqui-um-pouquito-só-doutora-dose-dupla (! – sim, algo de puxa-saquismo).
— Relaxa, senta aí, que o maridão tá te
ajudando. Explica aí pra gente.
“Bom.
Basicamente me sustento na comprovação de que somos naturalmente sexuais,
sexualizados e bissexuais. Nós todos.”
Meio segundo, pouco antes do
destemperar:
— Vai que o vice-reitor se apega a mim,
será? — Compreendeu. — Só se mantêm nas minhas costas! — E, rindo, todos riram
à mesa da piada à la dito-cujista.
Ri: “Mais
que menos por aí mesmo” — risos e semirrisos — “Demonstro, no fundamental, em uma das conclusões, que a amizade pelo
mesmo sexo e/ou pelo oposto é uma adaptação, uma forma de expressar a essência:
o profundo desejo orgástico pelos amigos. Como não pode ser vivido, é
reconfigurado; Somente falta ver quanto o vice é só amigo.”
(Esconderijos frios.)
— Amo nossa amizade! — o Magnífico, com
a mão sobre meu ombro, disparou o fuzil dos risos. — Amo e como[1]!
— Pera, pera, entendi: isso aí resumido
é todo mundo querendo comer todo mundo e todo mundo querendo ser comido por
todo mundo…
(…) Ao redor desse diálogo, a festa
ganhava auto-suficiência energética, enquanto existisse auxílio oral do álcool[2]
e da comida. Todas as dimensões do encontro conseguiram impulso; ali, no
micro-organismo, percebendo impossibilidade de fuga, nem poderia especular a
colisão no próximo parágrafo.
Bastou-me dois dias depois — dois dias!
— e o blog de um professor narcisista:
PSEUDOCIÊNCIA GARANTE DUPLO DOUTORADO
“Pegue Já o(s) Seu(s)!”
Dois dias foram o bastante.
— Olha isso aqui —, meu marido chamou.
— Nossa… Criei gastrite por causa desse
projeto… desrespeito… vai dar em algo?
Balanceou:
— Acho sim, sim. No final diz que “teve
acesso em grupos de professores na Web”.
— Então espalhou.
— Espalhou. Também, linda, a tese falta
dizer que todo mundo é tarado e corno ao mesmo tempo!
Não só a tese. Começou do começo,
devagar, com o olhar dos alunos; mas sempre “você está vendo coisas onde não
tem, Margarida”. (Sou partidária da tese de que, em alguns casos, a paranoia é
uma inflação da percepção subconsciente, captador dos aspectos informais e
invisíveis da vida, inflado em relação ao consciente, ou, outro caso, excesso
de percepção de padrões comum em perfis desconfiados ou controladores – levando
a este, ao consciente, conclusões expressas de modo indireto e invertido,
gerando, por dificuldade de ver as coisas como são, angústias novas.)
Ah, fosse uma alternativa fragmentar[3]
o senhor colega R. de Afonso Pinto Melo Rego da Costa (o nome feio, muito
provável, gerou um complexo de superioridade para bloquear o de inferioridade;
restou-lhe um blog)[4]. Nossa
Senhora das Distâncias, certeza, o protegeu: residia no interior, longe da
nossa capital, onde o município é inferior a um bairro daqui. Desse modo, além
do mais, combinei abafar a situação.
Mas deveria reagir.
E “paciência, amor, vamos abrir processo
não, é coisa de aluno”.
Progressiva, no entanto, nem tão lenta
nem tão em silêncio, espalhava-se o fogo de palha.
No momento menos explosivo, eu explodi.
Veio o segundo texto:
“A
senhora das teses – uma senhorita bela, é bem verdade – elabora o ‘Édipo
Invertido’. A ideia é simples: se os filhos se apaixonam pelos pais, os pais –
por que não, oras?! – também sexualizam, desde a origem, o amor pelos filhos. E
voilà: legalizamos cientificamente a pedofilia. Tê-o-Tó – Dê-a-Dá: TODA.
Libertem agora mesmo os presos por abuso a menores, por favor, pelo amor (isso
mesmo!) dessa honorária doutora!”
“Este
pobre blogueiro, reafirmo, teria evitado acesso aos absurdos não fosse
algazarra de acadêmicos em uma rede social. O inesperado não ensaia.”
O blog ironizou assim. E por raiva,
teimei:
Resposta oficial e breve ao blog “O BREVE”.
i. De fato — publiquei —: os pais desejam tanto as filhas (inconscientemente)
quanto suas esposas e tendem a disputar o amor delas contra os filhos. As mães
desejam o amor dos filhos e do marido e também desprezam e/ou disputam contra
as filhas, como leais adversárias. Isso é o amadurecimento (continuação) do
complexo de édipo entre os adultos, o édipo invertido maduro (na falta de um
nome adequado), a defesa da satisfação pela não-castração dos desejos por um
antagonista amado. Por desejo, entenda-se como afeto e busca por atenção-cuidado,
ao modo lacaniano (como deixo claro, sou adversária de Lacan, porém reconheço
suas contribuições). É muito comum a arte tratar dos pais duros com os filhos
meninos e as mães terríveis contra as filhas. Ao menos e, até onde sei, apenas
na psicologia afirma-se a concepção platônica de “não saber que sabe”, o
conhecimento como um recordar: todos sabemos de nossa experiência edipiana
infantil, embora também, ao mesmo tempo, não a saibamos – tal saber que não se
sabe afeta, na fase adulta, o comportamento dos pais e mães.
ii. Acontece, por exemplo, de um pai
rejeitar a companheira e dedicar mais atenção à filha, que se sente –
edipianamente – vitoriosa; a mãe, por seu lado, desenvolve, subvertendo o
impulso inicial de amor, uma pulsão de vingança e repressão. É um exemplo, e
muito comum, de um édipo invertido mal elaborado. Tal fenômeno psíquico –
reforço: inconsciente – ocorre quando o jovem inicia (do ponto de vista materno
e paterno) os primeiro sinais de autonomia, personalidade, estrutura física
não-infantil e amor edipiano;
iii. É uma vertente da concepção em que
a energia sexual é expressa – por transformismo adaptativo (sublimação) – não
só no amor cônjuge mas em todas as relações agregadas, necessárias, saudáveis e
socialmente consideradas: a amizade, a empatia, a parceria, o amor entre
familiares, etc.;
iv. O blogueiro faz confusão com
algumas teses que foram, na verdade, do meu primeiro doutorado. Naquela
produção, afirmei que a pedofilia poderia ter mais de uma causa. O excesso de
repressão sexual entre padres, muitos homossexuais ocultos, fragiliza a moral,
o superego, deles e passam a ver corpos infantis como atraentes, assim como
cachorros tentam copular com qualquer animal quando com demasia abstinência ou
animais que se acasalam com espécies parecidas mas diferentes quando lhes falta
parceiro da mesma espécie. A outra razão possível é a imaturidade dos
pedófilos, pois possuem uma idade mental infantil, o que afeta o rumo dos seus
desejos; todos conhecemos a personagem da “tia” adolescente crescida que tem
atração especial por jovens, adolescentes – a mesmo lógica aplica-se aos criminosos
sexuais[5].
v. Explicar é algo completamente
diferente de justificar. Apenas a mente comum considera que fatos absurdos são
indignos de ter qualquer lógica, qualquer sentido, qualquer causa imanente.
vi. Por agora, é isso; como prometido,
uma breve resposta. A quem desejar, minha tese de doutorado, aprovada, habita o
site da faculdade;
vii. Aguardo críticas científicas e
menos o modelo artístico do comentado “blog” (qualquer um tem isso hoje em
dia).
***
— É questão de consequência, Margarida!
Você não é assim nunca, é não! — Maridou meu marido. — Diabo foi aquilo?
— Quer ajudar ou escrever uma carta de
apoio pra ele? Tá insuportável até aqui!
— Tá me chamando de insuportável, sem
paciência? Quer resolver fazendo o favor de criar problema?! Se formou foi em
psicologia, mesmo?[6]
***
Sabe a postura corporal estou rindo tenso para você, me escapando,
fica aí com teu constrangimento, não necessitamos muita conversa…? Fosse
apenas isso… Vieram os corredores, a falta de ação dos professores, as alunas de
roupa provocante me observavam com especial violência. Não compreendia.
Isso cresceu, evoluiu devagar e,
pouquíssimo depois, menos devagar, para insinuação de falta moral em mim –
silenciamentos – pequinesíssimas provocações – “safada” dito em pequenos gestos
– testes oculares pra ver se aceitaria alguma sedução.
O pior momento – esquecerei nunca,
lembrarei sempre– foi quando ex-alunos, no instante da minha presença,
levantaram-se da beira da mesa.
E tive de simular, desperceber
risos-olhares de lado, “você acha que estão assim por causa de mim?”.
— Flor, agora eu acredito — Madalena
desconfiou, e com rapidez recuou: — Relaxa, mulher, isso é inveja.
Em uma e meia semana os acessos ao meu
texto on line multi, tri, quadri, etecetaraplicaram. Aos de “o BREVE”, idem. De
fato, má propaganda vende.
Por isso, vieram algumas mudanças de
hábitos: procurou-se “apenas reprovar conflitos entre os pares”, “não associar
imagem”. Básico boicote. Eu colhi essas justificativas do assessor do assessor,
pois, para “desassociar”, o próprio reitor desertou-se… Acabaram-se as visitas
e o “você é o orgulho da faculdade!”. Supus que poderia ser, também, algo de
racismo[7].
Mais ou menos na outra semana, Madalena
cedeu, constrangida e recuada, por ser amiga minha:
— Não dá pra ir ao cinema hoje,
apressada, beijo, tchau.
Tudo bem que é “AO cinema hoje”, só que
falamos “NO cinema” ou “não dá, flor”, longe desse ritmo martelado no diálogo,
formal.
E com a situação nesse ponto, decidi –
ainda, ainda – esperar a dispersão da fumaça. Mas: eu deveria reagir[8].
— Paciência, amor, vamos abrir processo
não. Daqui a pouco ela volta a falar direito contigo.
Na rota contrária, no mundo virtual,
surgiram alguns excitados com minhas ideias: excêntricos, a maioria de baixa
influência social.
“Se
a teoria incomoda: parece que excesso de fumaça é um excesso de fogo”, escreveu, talvez desentendido do sentido sexual na própria
frase.
“Basta
olhar de cabeça aberta e ver até nas imagens como as pessoas declaram amor aos familiares.
Achei BEEEEEM bizarro, mas que faz sentido, faz.”.
“Não
faz sentido, só que é criativo e tranquilo de ler”.
“Se
ela tem razão, tá todo mundo fodido (literalmente)”, brincou um outro comentador.
“Só
eu acho que ela é meio ou muito doida?”,
comentou uma, e outra respondeu: “deve
ser por isso que ela pode ter razão”.
Pareceu que bastava paciência. Houve
quem me mandasse mensagens parabenizando; era questão de suportar, de aguentar
o mundo real me contaminar com um tipo diferente de radiação, do oposto.
Seria uma chance?
— O Melo Rego foi preso! – Gritou o meu
marido.
— Brincadeira, amor!…
— Sério, sério, imagina.
— Quê?… —, Já trancando o ar.
— Pedofilia…
— Meu pai, ironia, ele meio que me deu
razão…
— Exato, amor!
Alegrei-me em um:
— Pega, fela duma puta! — Comemorei pouco antes de espirrar[9].
— E como é aí? — riu. — Tá feliz! Nem
lembro se um dia te vi falando essa frase assim; saiu parecendo como se não
fosse tu.
TV:
— É comum que o que esconde algo
procure ser autoexpositivo ou em formalidade combater o que faz, como
camuflagem —, exibiu saber.
— Obrigado, delegado —, o repórter
olhou pra a câmera. — Pra que a gente tenha noção, Afonso de Melo era um
professor bem sucedido, polêmico, um futuro estável e relaxado na cidade de
Anacapatinga do Piauí. Arriscou tudo pela perversão. Veja o que ele mesmo falou
quando perguntei se ele se arrependia de prejudicar tantas vidas.
— Não. Não consigo — tonalidade serena.
— A verdade é que sou doente, não tô bem e não tinha com quem dividir isso; até
me mudei pra evitar.
— Agora, por favor, corta, corta. É um
degenerado — no estúdio, o apresentador tomou a palavra. — No meu programa
degenerado não tem muita voz, democracia aqui só tem pros de bem! Enfim,
parece, parece, me disseram, de boca de ouvido, de uns amigos advogados,
promotores, que ele vai alegar problemas mentais para escapar dessa aí.
— Parece que ele vai usar as teses da
professora doutora Margarida, da UESPI, que ele próprio antes combatia, para
alegar problemas.
— Um pilantra desse não pode ficar
solto, não pode! Brincadeira, BRINCADEIRA! — O apresentador em postura: “Pra
quem não sabe, ele acusou essa professora, como é o nome mesmo?”
— Não recebi o sobrenome, Margarida.
“Margarida. De criar teses que explicam
esses desejos doentios, e dizia que ela até defendia.”
— De qualquer forma, a produção foi ao
encontro e a mesma disse, abre aspas, “nem eu nem o meu marido desejamos
envolvimento”, fecha aspas. Alegaram desgaste.
Agora era amiga do meu inimigo. Não
era. Usando minha defesa de tese como autodefesa, fez sua fama, serviu como
estimulante para que eu reclamasse “é de propósito, amor!”, “parece
perseguição!”.
— O caso pode abrir um argumento
precedente na justiça para futuros casos de pedofilia.
— Quem sabe a chamem sobre o caso.
De crime acusada nunca: apenas só,
desconfortável, excluída, desnecessária e sobra em todos os ambientes.
Excesso.
Todos sentem – ainda, ainda! –
calafrios ao pensar em minhas teses; rejeitar a criadora (na verdade, somente
as descobri) é a forma de rejeitar em suas mentes o fato desagradável.
Por fim: os vizinhos estranhavam minha
presença | as crianças não brincavam em minha porta | parentes visitavam por dó
| marido exausto, sempre exausto | perigosa em hipótese para “dar em cima de
mim ou de meu esposo” | “agora deu pra dizer que a gente deseja os filhos”|
“pelo menos na prisão os estupradores têm uns presentes dos detentos”| “e é
exibida falando complicado”| “fala besteira porque não tem filho”| “foi bem ela
quem prejudicou o professor; duvido é nada”| “estuda demais, fica doida”.
Abri a Caixa de Pandora dentro dos homens.
Punição: quarentena.
Condenada.
Ir trabalhar + arrastar; falar +
constrangimento; cabeça baixa = evitar olhares.
Se eu pudesse subtrair a orelha –
ouviria?
— Você sabe mais que eu, vamos ao
psicólogo, amor.
— Não —, impediu esta professora,
psicóloga não-praticante e teimosa. As pessoas viam-me, pela formação, também,
uma espécie de aço mental.
— Te amo.
Eu deveria reagir.
Stress, ralo mastigando meus cabelos,
stress. Meu corpo mais flácido denunciava minha situação[10].
— Agora deu pra dizer que a gente
deseja os filhos, olha isso! — Solou no momento da minha curva para o café, na
universidade. Nem a conhecia. Tentou, com e como a amiga, fingir normalidade.
“Olha
isso.”, palestrei enquanto enchia o copo. “Olha isso, em minha primeira tese, revela
uma nova relação interpretativa para os atos falhos” — sorriso amarelo,
ataque surpresa. — “<Olha isso> na
aparência significativa, diz a ela para dar conta do quanto é absurdo,
inaceitável. Mas existe um dual e duplo sentido, uma ambiguidade oculta, uma
relação de ato falho: você realmente quer, em essência, revelar-se e que ela
veja – pois no inconsciente há a noção total da verdade em minha tese. É a
mesma ambiguidade, linguística e cultural, reveladora de verbalizações do
dia-a-dia, como ‘isso é foda’, ‘sinistro’, ‘você é demais’, ‘o que eu fiz pra
te merecer’. Adaptação social na – como origem da – linguagem complexa. Puro
duplo sentido como adaptada revelação das vontades do inconsciente. Mais nada.”
E assim levei o primeiro soco na cara
de minha vida.
E assim o primeiro soco na cara de
minha vida eu revidei.
E o café quente ganhou nova dimensão
significativa.
E graças que a outra era covarde, e
soube gritar, e o grito ajudou a nos separar.
Doeu-me saber: era uma estudiosa, não
uma lutadora.
— Margarida, vai pra casa, Margarida! —
A voz de Madalena, após me tirar do centro assembleico dos curiosos[11],
transbordou com dois mais miligramas: — vai pra casa, mulher (!), evita
confusão; consegue dirigir, mesmo, certeza?
— Sim, flor.
— Pois s’evacua.
— Por isso? Eu fiz besteira, eu tô
errada? Tu viu o que ela fez?
— Vi, eu vi, depois a gente vê, vai,
calma, chora não, toma um calmante na hora que chegar, tá? Tava ocupada, eu vou
lá. Vai, flor.
***
O telefone dele não respondia. Casa só
e espaçosa. Tranquei tudo. Roupa melada do choro e suor e catarro… Conectada a
gravação ao vivo pela Rede Mundial de Computadores.
— A professora vai se matar, meu Deus!
— Esse vídeo… Não aguento mais, não tem
sentido isso: tudo tá documentado, argumentado, escrito… Se me resta provar,
provarei.
20.003
acessos agora.
— Mulher, abre a porta! Me ligaram
dizendo que tu tá filmando, tô vendo aqui no celular; vamo conversar, abre,
vem, desculpa. Abre a porra dessa porta!
74.789
acessos agora.
— Eu vou provar.
Peguei a foto de Madalena e a do meu
amor. Devagar, segura, beijei as imagens, as dos dois, sem misturar com
suor-choro. Preguei-as ao lado da câmera do computador para que me dessem
atenção – precisava da máxima.
— Puta que o pariu, ela vai morrer
agora, mãe! É a professora na tela, mãe!
81.
364 acessos agora. O marido desesperado lá fora.
— Amor e flor: por, para vocês.
Masturbei-me para os dois – de ca
men
di
da te.
METROS QUADRADOS EM CENTÍMETROS CÚBICOS
Teresina/Piauí.
14 de Junho de 2010.
Breve além dos três meses desde o
lançamento da ponte Estaiada. E uma ponte sobre o rio é o point desejado de
todos os suicidas.
Na ponta da ponte, no mirante, estava
Anna com, apesar do nome fofo-jovial, de dois “ns”, seus 32 anos. A
não-tão-jovem enfim recebeu devida atenção: curiosos, depressivos invejosos,
ambulância, jornalistas e policiais chegaram às 7h ao encontro; no ponto mais
alto, chegara adiantada em 2 horas.
Todas as negociações falharam; os negociadores estavam desmoralizados. Nem o
padre da paróquia serviu. Foram chamar a família, mas Anna era desprovida
dessas coisas (nem imaginava a sorte disso). De qualquer forma, não se sabe se
dava falta.
Anna estava lá em cima com ninguém.
— Tudo bem, posso sentar? — O dono
dessas palavras, típico hétero-branco-barba-magro-arrumado, soube entoar a voz
com certa firmeza não impositiva.
— Como que entrou e subiu? —
Assustou-se.
— A entrada, pela entrada. Mas tudo
bem, aqui ainda é propriedade do governo.
— Para, não, não, não chega perto!
— Chego não, senão caem dois —
respondeu.
Sentou-se. E sentando-se, meio longe,
amarrou a carência degenerativa de Anna.
— Psicólogo, dispenso.
— Não, sou filósofo de profissão…
— ?
— É difícil explicar.
— Pagam as pessoas pra ficar pensando…
— agrediu.
O cenário era belo dali. Era o ponto de
vista que só os dois viveram, nenhuma outra alma viveu. Talvez, quem sabe, os
operários da construção.
— Bom gosto pra descanso, viu; sabia
que esse mirante ainda nem está pronto pra visitas?
— (…) Uma pergunta que faz sentido
agora é o porquê um filósofo.
— Você tem certeza de morrer.
—Tenho.
— Exatamente isso…
— Mandaram você subir aqui pra gerar
dúvida em mim?
— Não, sim… Se eu disser que é um novo
projeto governamental, acredita?
De longe, dava pra ver a gente correndo
mais veloz que urubu, saindo dos bairros ao redor, pra acompanhar e ver.
Pessoas no alto dos prédios.
— Cansada… Dizer pra quê mesmo? Tudo se
move apesar de mim, não tão nem aí de verdade.
— Você acha?
Silêncio, solvente de tédio ou
indiferença.
— Eu tenho uma explicação maluca.
— Você é maluco — agrediu de novo.
— Vou dispensar a piada óbvia pra
evitar ser sombrio; eu quero você viva, espera um pouco.
Continuou:
— Por que tem tanta atenção e tanta gente
e recursos para uma desconhecida?
— Por causa do trânsito.
— …
— Ou porque atrapalha ou porque o
trânsito deixa vir ver minha morte.
— Bom, bom; você prova que, de duas,
apenas uma: ou todo inteligente é suicida ou todo suicida é inteligente!
— Tá.
— Monossilabilou.
— Acho que é a relação tamanho,
qualidade e quantidade. Por exemplo, matamos formigas todos os dias e é bom
matar as formigas; são demais. (Deve
saber de biologia mais do que eu) acho que são bilhões de bilhões. E pequenas;
o inferno é o tamanho delas. Quem é que não mata formigas?
E tem os elefantes. São grandes,
poucos, risco de extinção; se morre um, é documentário, é jornal, é filme
lamentando e um monte de gente fresca sofrendo pelo coitado do elefante. Ele é
grande, impacta, é muito e pouco.
Não tô dizendo que você é um elefante.
Raramente essas coisas acontecem – isso
destaca. As pessoas julgam o valor da vida pelo tamanho: é a diferença do
elefante para a formiga. E também pela quantidade: a espinha grande é mais
importante do que o pequeno cravo.
Se um artista morrer, todos choram
porque material raro, mas morre gente demais todos os dias. Só não são pessoas
elefantes.
— Tô entendendo, um monte de indireta
pra eu me sentir especial, sugestões. — Contrargumentou. — Nem me conhece.
— Estou falando de tamanho, quantidade,
elefantes, formigas, formigas e elefantes...
— Certo. — Dobrou o rosto em 15 graus.
— Cala a boca.
— Diz se é coincidência ou não? Até
aqui em cima tem formigas, olha só. Gosto de matá-las, dá prazer, desconto ódio
nelas —, divertiu-se matando algumas com o polegar, esfregando, quebrando-as.
A Anna: —
O filósofo: —
— É a distância —, engatilhou.
— ! —, exclamou-se-lhe quase
interrogando.
— A distância do pulo, de onde a gente
está. Todo mundo está aqui pela qualidade do tamanho do pulo, o tamanho da
ponte, formiga no elefante.
Um corpo em queda livre, molhando-se de
rio. Não era a Anna.
V
E
R
T
I
C
A
L
Nenhum lá na avenida, os populares ou a
polícia, sabia quem eram os dois. Dois suicidas, duas pessoas no mesmo local,
altura, dia.
LUCY
Inspirado no filme “Lucy”, 2014.
Há 3, 2 milhões de anos. Lucy, da
espécie Australopithecus Afarensis, hominídeo, segundo a arqueologia consta,
tinha 20 anos. Para dimensionarmos a imaginação, seu peludo corpo era a
desencaixada mistura dos chimpanzés atuais e homo sapiens, altura de 1,1 metros
e 29 kg; tornava-se imagem denunciadora do futuro, naquele momento inexistente,
em plena latência e mera evolucionária possibilidade. Tal característica
manifesta-se evidente, ainda mais, quando observamos o andar quase-ereto ou, se
preferirmos, semiereto, aventurando-a à máxima distância possível dos
arvoredos.
Naquele dia, Lucy – chamemos-lhe assim
– andara mais que de costume. Teve de ir com seu grupo à outra lagoa, pouco
depois da primeira, da de hábito, mais próxima deles, que, mais seca, possuía
maior proporção de predadores por metro quadrado. Como o período de seca estava
a castigar mais aquele ano, naquele lugar no futuro distante nomeado Etiópia,
as duas lagoas ainda esperavam fundir-se pela ação das chuvas; e tanto a comida
quanto a água estavam mais escassas. Pois bem; neste tanto, andar tanto, no
inesperado ziguezague e nestas tensões acrescidas, apareceu um fruto novíssimo
– de repente e diverso: no retorno, nutrida e com o caminhar deveras mais
mecânico, de quem reconhece e encontra o velho caminho de praxe, a primata
ancestral de nossa espécie atravessou um portal, por assim dizer, assim sentiu,
sendo mais preciso na metáfora. Sentiu de sentir, mesmo. A caminhada longa e a
extrarrotina romperam dentro dela algo, nela interno, qual o dedo a romper a
superfície d'água ou escamas de peixe. Num certo passo, teve de olhar as
laterais, ambas: cabeça semimóvel enquanto andava para, Como direi?, entender e
entender-se… Algo havia mudado, de fato, no fato. Como a criança hoje, cedo ou
tarde, percebe-se indivíduo, unidade, ser, diferente do diferente e igual a si
própria; ela se percebeu, notou-se, viu-se como se antes deste momento – como
se antes inexistisse momento – fosse um bicho ação-reação e límpido instinto,
ainda que não soubesse explicar-se de modo articulado, tal a descrição presente
neste texto. A consciência surgiu assim. Por evidente, continuava e continuaria
a agir de acordo com as vitais orientações corpóreas e as expectativas e ordens
do agrupamento; postura similar à dos macacos homo sapiens. Era o que era e era
o que fora, mas mui diferençável: por necessidade pura, dimensiona-se de e em
acordo ao meio; pensava, no entanto, agora, sobre atos externos e seus, estas
entidades autônomas. A percepção informava-a, além disso, que, antes do momento
aqui relatado, poderia definir-se e considerar-se como algo pouco mais além de
nada ambulante, pedra ou pau provido de desejos especulativos… Tendo os olhos
voltados ao cérebro, na medida em que o resto funcionava-se de maneira natural,
o ver-se – nova faculdade a operar por dentro, interno e íntimo – revelou-a que
ao bando faltava este recurso; talvez, nem os filhotes eram ou tornar-se-iam
capazes de. Os olhares despejados por eles eram apenas olhares, dos olhos para
fora. Enquanto o liberador e permanente milagre ocorria-se, sua boca de
expressar tudo aquilo era incapaz. E sequer sabia, sequer poderia, sequer sabia
se poderia. De maneira inconsciente e involuntária, mexiam-se os lábios mudos
em pequeníssimas e instáveis ondulações ao mesmo tempo em que as bochechas
carnudas permaneciam, em geral, imóveis:
— hhhhhrrrrrrvvvvvnnn… — Dizia-se,
quase. Na caminhada, dois ou três acompanhantes próximos perceberam esta
novidade ineditista; porém, sendo um fenômeno acidental e de pouca importância
prática para estes, destinavam indiferença; continuavam-se, iam-se. Por seu
lado, interrompeu o “sonhar acordada” ao perceber formigamentos e dormência
labiais; algo inesperado e estranho, findado tão logo se concentrou em objetos
externos, fora da imaginação. De resto, restaram-lhe dúvidas (! – dúvidas!)
sobre a veracidade das impressões na tez da face, se eram reais e, uma vez
provadas, normais.
Quando mais perto que longe da gruta,
onde a parte menor do grupo aguardava, local onde dormiam, ao admitir maior
relaxamento, ponto alto, bom para perceber ameaças e guerrear com vantagens,
rodeado por alguns pequenos morros meio afastados a deixar “invisível” este
lugar; Lucy observou a coisa mais linda do mundo – um pôr do Sol. Era o
despedir da luz, alaranjado pelo arrebol; e sentiu-se, num susto, quando tentou
administrar a atenção e tentação de ir para fora de si própria; afetou-a alguma
energia diferente; a Lua com uma só estrela cintilante, primeira companhia,
antecipava a noite por vir; em seguida, duas ou três borboletas azuis voaram,
distantes e rasantes, para mais distante, oferecendo impressão de despedida –
sua primeira impressão poética; certos microarrepios e microangústicas
informavam o desejo de expressar-se, e dividir ideias, e sentimentos novos, e
inéditos; permitia às sensações atravessá-la, pois sequer sabia explicar para
si a origem e natureza daquilo. Entenda-a. Quando passou a pensar, não era por
meio da mediação da palavra, e, sim, por um tipo novo de instinto, intuição ou,
batido simbolismo, novíssimo globo ocular direcionado rumo à caixa craniana,
dentro de si – melhor três a dois. Passou, então, a possuir o instinto do instinto,
a camada recém-nascida da percepção, o pensamento do pensamento ou espirito do
espírito; enfim, era a forma simples, rústica, amorfa e nada mais que um pouco
mais de si própria acrescentada, em si e para si, semelhante ao acrescentarmos
gordura sob a pele após demasiada alimentação. Dali em diante, como seria?
O dia anoiteceu-se. Constelações e
brilhos estrelares provocavam cartase estética: sentada, possuía dificuldades
de repouso e, tanto mais considerado o esforço extra daquela data, anoitecer
era por óbvio, para ela, o equivalente a dormir. Na entrada da caverna ficou a
fitar o céu; sob um tipo de hipnose, fixava todos os detalhes lunares e
media-os, um por um. Irresistíveis curiosidade e prazer! Decidiu, de decidir
decidindo, pois nada e nenhuma necessidade primeira justificavam aquela atitude
além da própria vontade, fim em si mesmo, subir numa das maiores entre as
muitas árvores ao redor de seu lar (subia-se como autodefesa quando um bicho
feroz se aproximava, ou locomoção na estrada alternativa dos galhos, ou para
colher frutos). Era a mais alta: subiu-lhe, subiu-se e subiu mais para melhor
localizar-se; elevava-se para cada vez mais próxima da estratosfera para poder,
assim, ter doses cada vez maiores de beleza diante dos olhos negros. Isto, experiência-experimentação,
por excelência, tem o jeito de o gérmen de todas as formas e tentativas de
entendermos todo o cosmos: a religião, a filosofia, a ciência, a arte. Núcleo
essencial. Sendo a primeira, após 4 bilhões de anos de evolução das espécies, sentia
deslumbramento e pequenez diante do imenso, necessidade de explicar e
explicar-se – emoções e prazer!
Segundo consta, os pés da raça de Lucy
eram semelhantes aos dos humanos, com a parte superior do corpo a lembrar um
pouco mais nossos primos primatas. Também segundo consta, Lucy, como a
batizaram os descobridores de sua ossada, um fóssil admiravelmente preservado,
de uma significativa altura caiu. Desabou-se. Ignoram, no entanto: o pensamento
a levou adiante; sua consequência-autoconsciência, originalíssima habilidade,
fê-la, desconhecida desta verdade e apesar do seu corpo impróprio, retomar a
prática dos ancestrais evolutivos: escalar árvores, porém para avaliar!
Retornou ao passado para olhar para frente – o sentido maior seria este?
Enquanto esticava os dedos para medir e “apanhar” uma forte estrela e por
brincadeira, seu peso e a natural ondulação corpórea em busca de equilíbrio
rebentaram o galho que a sustentava, negando-a tempo para segurar-se; a mão
repousada sobre outro galho poderia sustentá-la com a resistência devida, mas a
casca envolvente deste também se desprendeu junto a ela. Primeiro, o impacto
foi sobre a perna direita; depois, ao tentar salvar-se, o braço esquerdo; em
seguida, colisão contra a lateral direita do corpo. Ralou-se, quebrou-se. Viva,
era incapaz de sequer gritar qual algum bicho: ossos e costelas quebrados
perfuraram o pulmão, mergulhado em sangue hemorrágico. Estava imóvel e
emudecida. Mas – coisa de literatura – conseguia enxergar o minguante luar
acima de si… Em dor e devagar, antes de amanhecer, faleceu. No início da manhã,
uma névoa pairando no ar, o bando descobriu-a quebrada e lamentou a perda do
membro; os filhos, crescidos, lamentaram-se – tal qualquer mamífero. Mas,
diferentes dela, sequer pensavam; e sequer pensaram enterrá-la. Então,
desmanchou-se ali, um pouco distante dos seus; dia após dia e hora após hora, a
lembrança de Lucy entre os semelhantes ia-se com o ir-se de seu arranjo físico.
Alguns anos depois, talvez ou quiçá, dela continuante apenas pelos e ossos
enterrados pelo vento e pela terra, o mais jovem filhote pensaria, tão
assustado quanto assustado por pensar, sobre este acontecido neste discrepante
dia.
JOÃO, MARIA
a)
Sob o luar, Enzo caminha ao lado de Valentina à beira-mar,
na praia, em passos sincronizados e distantes de toda forma de pressa. Um pouco
mais distante do quiosque, a mão dele a dela segura com força superior ao peso
do ambiente, comunicando com o corpo sua verdadeira vontade. A luz natural da
noite começa a se sobrepor sobre a luz elétrica, o vento parece mais frio e
aconchegante. Do negrume do oceano, apenas as espumas apresentam-se aos olhos.
Surge o primeiro beijo, olhar mútuo interpenetrante, o segundo beijo, forte o
bastante para que ele a deite naquela areia. Aqueles toques aqueciam e causavam
novos tremores, de outro tipo; o corpo musculoso, o jeito firme, consegue
dominá-la. Entrega-se.
b)
Lua cheia. Valentina percebe aquele rapaz direcionando-a
para longe, uma parte da praia vazia de luz e pessoas. O frio na espinha, o arrepio
das hipóteses, a faz andar em passos quase artificiais. Se reagir, pode ser que
ele tenha uma arma. O rapaz punha mão na cintura, tocava em algo. Quando para
para propor voltar, para negociar de maneira indireta, Enzo segura seu corpo e
enfia-lhe a língua goela a dentro. Fita-a no escuro, se como a vendo além da
penumbra. Medo. Inclina-a com uma capacidade angustiante. Ela pensa: antes o
corpo à vida.
c)
Os amigos de Enzo ficaram de apresentar uma novinha na
praia, mas o susto foi grande. Quem dera fosse feia, que as características
dela nem nome têm. Feia³. E era amiga das amigas da namorada do amigo dele, ou
seja, deveria fazer o sacrifício em nome da irmandade, ou seja, domar o dragão.
Foi-se com ela esticar as pernas. Talvez pela presença inesperada, o intestino
delgado iniciou briga contra o grosso: o gás metano da flatulência passeou por
seus órgãos, desejoso por encontrar o seu destino. Sua habilidade de peidar de
maneira imperceptível aos radares olfativos estava sob teste definitivo. Calculou
a distância, os efeitos do deslocamento do ar e seus rumos, o volume da
substância gasosa dentro de si e a probabilidade de a liberação produzir
efeitos sonoros destacados. Seu rosto petrificara diante da imposição natural
sobre os ritos sociais. A ideia era boa: levá-la ao ponto mais distante.
Beijou-a para disfarçar e cumprir as obrigações de seu clã guerreiro, porém
viu-se incapaz de ter coragem para afrouxar-se. O segundo beijo e a sacada de
deitar Valentina sobre a areia praiana foi perfeito, ofereceu as melhores
condições. A bunda dele aqueceu-se; a dela, também.
TEMPO VERBAL
No banheiro de uma quitinete, um poeta
escreve poemas à sangue. O seu, não. Ao chão de piso frio, jovens paralíticas
esperam a hora da morte. Apenas seus olhos obtêm autonomia de movimento: veem o
louco escrever com dinâmica descontrolada sobre a pia, em um caderno. Enfia a
caneta na carne de uma das vítimas, mexe, circula, volta a escrever. São quatro
moças adolescentes de perfil próximo: magras, peitos avantajados, amorenadas.
Nuas, inertes, recheadas de cortes e furos.
Quando sentia numa o tremor da dor e do
medo, da reação desfazendo-se, injetava nova dose de alguma substância em suas
veias tão lindas e femininas. À noite, pedia em retórica para com as garotas
deitar-se, dormir-se, abraçar-se e com seus corpos copulava alucinando
reciprocidade. Colhia delas o néctar rubro, escrevia, escrevia, preenchia as
páginas; e por alguma razão iniciava uma espécie de colapso da criatividade, um
orgasmo ao contrário, porque a possibilidade de criar evaporava-se, diluía-se,
esgotava-se o poço de petróleo.
Dotado de postura teatral, forçadamente
teatral, daquela poética sublime inumana; enquanto os olhos trêmulos passeavam
pelos versos inéditos: Admiro-as por terem alcançado o sentido no silêncio,
isso, as palavras corrompem a áurea, a essencialidade por detrás de todas as
outras essências, onde tudo é aquilo que é, distante das mediações. Admiro-as.
Admiro-as.
O poeta desaparece por horas, por
muitas gotas angustiantes do chuvisco do chuveiro. A quinta sequestrada
interrompe a rotina, altera a correlação do espaço e todas as proporções
daquele sistema fechando renovam-se e modificam-se. O mesmo perfil e um sinal
perto dos lábios, ao modo das romantizadas meretrizes francesas. Aquela cena parece
ter reaquecido o espírito exausto do rapaz, que de pronto arranjou uma
prancheta, uma lâmina e extraiu a nova fonte da nova musa.
Duas, três, três vírgula cinco, quatro,
cinco horas de frenesi, pois o Monte Parnaso servia-o de toda bênção dos deuses
todos, de todos os credos. Ato contínuo, o primeiro motor, o perpétuo, começou
a falhar, a lira enrijeceu-se, a flauta recusou-se a fluir-se. A ponte entre
aquela a soprar aos seus ouvidos e as mãos desabou por sobre a pia,
lacrimejante, derrotado, encontrando os seios da nova amada e das demais.
Água, lágrimas, catarro, sangue e
cabelo grudaram em si, em sua tez. Penúltima inspiração. Levantou-se levantando
consigo sua tristeza de duas toneladas, saiu, ouviu-se abrir-fechar de gavetas
e passos entrelaçados e largos, cada vez mais largos, cada vez mais próximos.
Primeiro adentrou a tesoura, o braço, o deslocador da ferramenta. Vivos olhares
pedregosos saturaram o peito de tenaz alegria, confiança. Cortou-as os cabelos
enquanto beijava-lhas as bochechas e declarava amor; uniu os fios em linha,
admirou a origem daqueles pedaços.
Fez, então, a grandessíssima obra:
furar beiços, lábios, acima e abaixo, passar os fios, acima e abaixo, furar os
beiços, passar os fios, acima e abaixo, furar os beiços, passar os fios, perceber
sobrar fios, entrelaçá-los em novas combinações, talvez rimas concretas, para
criar verdadeiro firme nó, outro nó.
Arrastou as donzelas de seu harém para
formarem um lindíssimo círculo de amor, sangue, peitos, mudez, poesia
equidistante de poemas, aconchego. Tato. Tato. Tato. Um verso real eterniza-se
no agora inorgânico da tinta e do papel. Última inspiração.
CONTO CONCRETO
Um homem
Vai vindo,
Descendo
A escada
Do prédio e da
vida;
Perece um
Reflexo andante
Descendo,
Como se
Nada
disso
Fizesse
De fato.
Porém, vai-se;
Desce o cérebro.
A novinha
Do 101
Já não o quer
Para
fazê-lo
Esquecer-se
Da própria idade
Reclama-se
Consigo
Que o
prédio
É velho,
Impróprio
Para idosos
E os seus
Limites.
Sua só
De descer
Passo a passo.
Agora vê
A quarentona do
405, de cara
Emburrada
sempre.
Agora,
O traficante;
Agora,
Onde
Enforcou-se
Os de feitios
Orientais
E, desde então,
Seu
ap. vazio.
Finalmente
O
térreo.
Lá fora,
de pé,
A imaginar,
Em balanço
De sua vida,
Feita sem fazê-lo,
Pensando se
Na falta de um elevador, haveria atalhos mais ou menos
nobres, como pular-se. Gostava de pular quando era criança. Seu suicídio
valeria um conto? Olha para cima, de costas para o medo, para avaliar o efeito
de uma queda qualquer. E vem vindo a vizinha do mesmo andar; como sempre, ambos
sentem-se constrangidos por terem de ser educados, teatrais. E ela diz: Força!
Você consegue… Como se sua mente, daquele, pensasse em subir…
J á s e p e n s o u
t o d o e s p a l h a d o p e l o
c h ã o ?
RASGA-MORTALHA
CENA 1
Quatro assaltantes fogem de um banco no
interior do Piauí. Entram em um carro pouco antes roubado, e escapam dos e sob
tiros. Ao todo são cinco, somado ao motorista. Por todos estarem inteiros, há grande
comemoração durante a fuga. Mas um, mais jovem, para de se comunicar… Morre de
infarto.
Aqui, a história ainda falta começar,
aqui…
CENA 2
Líder do bando, Carlito chega à cidade
de Brasileira, norte do Piauí. Por razão daquela perda, decide ir à região
recrutar em segredo seu sobrinho, Valdeyoson.
— Sabe atirar?
— Sei.
— Passarinho não revida.
Ao chegar, presenteia com um par de
tênis o garoto. Neste instante, mente para a irmã sobre o emprego oferecido ao
filho:
— Vai vender redes comigo e cuidar do
posto de gasolina.
CENA 3
Em Teresina-PI, o professor Cláudio
Nunes, importante para esta história, conversa com o amigo Agenor, diálogo
pedido por este, de quem se afastou por dez anos:
— Venho te chamar pra um projeto,
Cláudio. Estamos tentando modernizar a polícia, contratando consultores, igual
naquelas séries americanas. E você sempre foi o diferentão, doido.
— Na verdade… — reagiu ao esconder a
ofensa.
— A gente precisa acabar com o novo
cangaço, projeto piloto, basta nos auxiliar.
CENA 4
Valdeyoson participa de seu primeiro
assalto a banco. Pouco antes, conhece os colegas de profissão: Lucas, Nando,
Rômulo e Fábio.
CENA 5
Cláudio comparece à primeira reunião da
força-tarefa especial. Nesta, recebido pelos policiais com distância e
desconfiança.
— Prazer, professor! O senhor tem cara
de comunista, sabia?
— Porque sou.
— E Vich, defende bandido?
— Defendo trabalhador: bandido não vive
de salário.
A conversa continua com o professor
falando da substituição do ouro por papel-moeda no fim do feudalismo, como
reação aos assaltos. E sugere o mesmo relativo ao papel-moeda e dinheiro
virtual. No entanto, percebe meio-risos irônicos e contidos.
CENA 6
Segundo assalto. Após roubo vitorioso,
o bando foge para o mato perseguido por policiais de elite, vinte deles, que
estavam por perto.
O esquadrão vê um carro abandonado:
percebe ser armadilha para atirar neles, de tocaia, tão logo se aproximassem. Apesar
do recuo preventivo, começam tiros de submetralhadora vindos das árvores, em
direção a eles: alguns são atingidos, a maioria esconde-se por detrás dos
troncos. Tentam revidar. Porém o atirador não recua, avança – sempre avança.
Alguém grita: — É um porco! O bando
havia prendido uma submetralhadora nas costas do animal; na intensão de
movê-lo, acoplaram um maço de panos úmido em graxa queimando próximo ao rabo –
para ir rumo às forças estatais. Um pedaço de madeira mantinha o gatilho ativo.
Dedução: alguém fez a “arte” naquele momento. Sob comando, os policiais avançam
rumo de onde veio o suíno. Impulsionam-se. E alcançam um lago belo ao
entardecer… Irritadíssimo, o comandante lança tiros na direção das águas, na
esperança de acertar o maldito mergulhado, escondido. Mas a noite estava
chegando. (Valdeyoson, portador da ideia, mergulhado, respirando por um canudo
ou dois… E ao sair das águas, à noite, avistou um belo eclipse lunar.)
Terceiro Assalto.
Quarto assalto. Por acaso, o bando
rouba no mesmo local e horário de outro. Princípio de confusão. Em seguida,
acordo para dividir os ganhos. Então adotam tática unificada: lançam dinheiro
ao vento, pela cidade, para aumentar confusão e facilitar a fuga.
CENA 7
Pela estrada, um carro da polícia
rodoviária aproxima-se. O bando tenta manter a calma: fuzis em punho, mas
abaixados. Um dos policiais aponta para o carro – tensão – em recado: uma das
portas estava entreaberta…
CENA 8
A força-tarefa propõe ao Estado: o
dinheiro a ir ao território de sua atuação, sertão e cerrado, ser impresso com
algarismo discreto para poder rastrear seus rumos. Proposta aprovada.
CENA 9
O professor visita uma das cidades
assaltadas, interior da Bahia, com a polícia. Nesse dia é de fato convencido a
cumprir tal tarefa ao ver uma senhora, 60 anos e poucos, possuída por tremores
involuntários, permanentes, olhar fixo: trauma de quando foi refém com um fuzil
encostado ao pescoço.
CENA 10
Valdeyoson retorna para casa “mais
saudável, melhor vestido, com postura de homem”, segundo sua mãe.
Consegue reconquistar se amor cujo
relacionamento estava rompido há cinco anos. Pede-a, logo, em casamento. Ohana,
sua namorada, aceita sob condição de ser “agora e escondido do papai”.
CENA 11
O bando reúne-se para preparar o
casamento. Para distrair o pai de Ohana, explodem máquinas na empresa do futuro
sogro e, por garantia, o centro de energia da cidade.
Em cinco minutos, casam-se.
Anunciamento surpresa: o pai da moça
acaba aceitando.
Piada do dia: o líder do bando,
primeira vez em décadas, tirou a barba – apelidado “o cara limpa”.
CENA 12
Assalto ao banco de uma cidade do
interior do Piauí. Em meio ao, Valdeioson recebe ligação de sua esposa: “Estou
grávida, amor!” Então, tiros ao alto:
— Vamo resolver isso, que acabei de
saber que vou ser pai, porra!
Saindo do estabelecimento, o líder do
bando caminha distraído, alegre pela notícia e seguro de si ao atravessar a
porta giratória – nela fica preso, travado. Pois é porta resistente às balas…
Em desespero, o bando tem de fugir enquanto a população tenta liberar o
assaltante de sua prisão-porta para linchá-lo.
CENA 13
História da porta giratória: por causa
de fraude em licitação, o objeto vai ao destino errado. Erro na sua ficha de
destinação. Instalada não num prédio de luxo em São Paulo mas na Caixa
Econômica Federal de uma cidade do interior do Piauí.
CENA 14
A força-tarefa especial desloca-se de
helicóptero à cidade onde está preso o “grande meliante”. Interrogam-no:
— Qual o teu nome?
— Satã…
— Eu perguntei o nome.
— Satanás.
Apelido e rosto fora da lista de
procurados.
Imprensa a caminho.
CENA 15
No mato, o bando ver-se instável.
— Vamo fugir?
CENA 16
Na delegacia, os policiais comemoram
enquanto outros interrogam o capturado. Explosão? Explosão? Um carro bate na
parede. Tiros. Carro da polícia explode. Resgate. O delegado orienta ao
professor e demais: “Não reajam! Ninguém Reage!” Os mascarados envolvem o
prisioneiro. Depois, fogem diante do professor.
***
Desmoralização da polícia perante o
país. Entre policiais, raiva contida. E comentários: apanharam o cangaceiro por
acaso, perderam-no por acaso.
***
Diante da cena, o professor está
tremendo – de prazer.
CENA 17
O bando resolve esconder-se na mata por
algum tempo, enquanto cresce a barba de Carlito. Ter a barba feita foi, aliás,
sua sorte.
CENA 18
O professor volta para casa sob pesado
clima. Tenta conversar com a dondoca esposa, porém esta está preocupada com a
formatura de algum familiar.
Decisão: para melhor pensar,
interromper os remédios de seu TDAH.
CENA 19
Da cena 8: “A força-tarefa propõe ao
Estado: o dinheiro a ir ao território de sua atuação, sertão e cerrado, ser
impresso com algarismo discreto para poder rastrear seus rumos.” Resultado:
onda de prisões de bandos do novo cangaço.
No entanto, a perseguição tem vitórias
parciais. Apenas. Igrejas, lavagem de dinheiro, assaltos para esconder – sem
gastar – o roubado, o fato de alguns bandos estarem em inatividade no período,
a distribuição de dinheiro à população durante as fugas etc. impedem ação
completa deste forte susto sobre a bandidagem.
CENA 20
Reunião da força-tarefa especial
anuncia o projeto federal de substituição do dinheiro-papel por cartão de
débito gratuito à população dos interiores, sem juros e com descontos especiais.
Elogio ao professor por oferecer a proposta. Mas: “foi desdenhada por nós;
poderíamos ter elaborado antes de qualquer ordem superior.” Tal medida, no entanto, foi desesperada; ou
seja: a força-tarefa sob crítica, na defensiva.
Devia-se manter a operação, pois o
processo levaria algum tempo durante o qual a organização deveria agir… ou
reagir.
CENA 21
O professor sofre insônia. Para de
cuidar de sua estética. Pensamentos acelerados. Associações sobre associações.
A esposa: “Vocês está tomando o remédio, amor?”
— Não.
— Por que, me diz? Tu sabe que fica
louco sem.
— Tô ocupado.
— Ah, não. De novo não. Vou lá pegar…
— Eu disse: não!
CENA 22
Chega à reunião da força-tarefa um
professor Cláudio desorganizado – roupa malpassada, olheira, tensa postura corporal
– pedindo, de imediato, a palavra:
— Temos que ver as probabilidades: as
assaltantes roubam onde não roubarão por um tempo, por segurança. Quando roubam
uma cidade, possuem apenas poucas rotas e probabilidades de cidades no adiante:
há um padrão reconhecível (cola um mapa enorme do nordeste na parede. Mãos
tremendo.) onde podemos ficar de tocaia com grupos fixos e outros móveis para
prendê-los.
— Ótimo, professor!
— Não acabei. Deixem eles descobrirem
esta operação. A consequência imediata será passarem a roubar não bancos até
porque o dinheiro será não físico, eles já sabem, então passarão a roubar os
carros-fortes na estrada.
— Tudo bem, professor?
— Então faremos falsos carros-fortes com
homens nossos dentro para, a luta, amanhã, assim é, — caminha um passo e meio
passo, pois desaba-se desmaiado.
CENA 23
Mudando de tática, após ver o novo
projeto da polícia na TV, o bando de Carlito assalta carro-forte na estrada do
sul do Piauí: dois carros de assalto fecham a estrada, parando o veículo. E, sob
tiros, descobrem policiais de elite dentro do cofre. Aceleram-se. Tentam fugir.
Um morre neste momento. Outro, ato contínuo, lançado ao mato por fracassar em
segurar o automóvel acelerado.
Começa a perseguição.
CENA 24
O professor acorda no hospital.
— Foi esgotamento mais abstenção da
química do remédio — Agenor explica ao lado de sua esposa. — E tua proposta foi
aprovada no comando, maluco.
— Agora é descansar e se medicar, viu?
Ligação para o amigo. Encontraram o
bando mais importante: perseguição, todas as forças giradas para esta tarefa.
— Vou. — Apressa-se o professor.
— Você tem de descansar.
— Não gosto de descansar.
CENA 25
O carro de Carlito, Satanás, vira-se.
Explode-se.
CENA 26
O carro de Valdeyoson invade igreja na
entrada da pequena cidade de Buriti dos Cravos. Entram. Garantem o veículo
fechando a entrada. Descobrem o padre escondido.
Nando ferido.
A polícia cerca-os, rodeia-os.
CENA 27
Valdeyoson liga para a mulher, pede
para cuidar da filha, que a ama, deseja Miranda o nome:
— Por que você tá falando isso?
***
Três horas depois, libertam o padre.
Este, ao correr, grita: “Só tinha eu, só tinha eu!” E: “Eles vão explodir! Só
tinha eu!”
Tiros em direção, ao lado, ao posto de
gasolina.
Tiros dos policiais tentando invadir.
Carro explode. Viatura explode. Posto
explode.
CENA 28
A equipe desce do helicóptero. Quase
chegando, explosão desequilibra o veículo. Sensação: a energia veio do local
para onde se deslocavam.
CENA 29
O professor oferece entrevista em rede
nacional.
— Qual era o perfil deles, professor?
— Na verdade, o bando mais sortudo ou
mais capaz. — Pausa constrangedora. — A verdade é que esse pessoal tem uma
coragem rara e, às vezes, muita inteligência… Este país é um desperdício de
gente talentosa para a pobreza.
CENA 30
Em um mato qualquer na beira de
qualquer estrada; Rômulo, membro mais burro do bando, acorda com sede, forme,
dores pelo corpo…
— Cadê todo mundo?
ESBO…
I.
Um psiquiatra, Mauro Nunes, pesquisa
certo tipo específico de loucura, que ocorre no cérebro dos pacientes como que
por um disparo, levando-os ao total colapso da razão e, às vezes, à epilepsia.
Muitos pacientes repetiam uma apenas palavra: futuro. Numa das consultas, o
paciente agarra o médico, e grita: meu teletransporte! Após isso, de madrugada,
a reunir dados sobre esquizofrenia com alucinações de futuro, a TV ligada passa
o Programa do Jô, focado em entrevistas, onde outro psiquiatra entrevistado
mostra fotos antigas, em preto e branco, de pacientes esquizofrênicos a andar,
andando, com um telefone imaginário à mão; o mesmo entrevistado diz: “Os loucos
antecipam o futuro, já andavam com celular, telefone sem fio, naquela época.”
(A entrevista é real, não ficção, como este conto.) Ao ver a coincidência entre
seu estudo à mesa e o tema na televisão, comenta para si, quando baixa a cabeça
para seus textos: “Coincidência.” Então o aparelho televisivo responde: “Ou
não.” E retorna à programação normal enquanto o psiquiatra sente o arrepio
completo da sua pele, tontura. Mais sinais acumulam-se até que o próprio
psiquiatra, viciado em remédios e em cocaína, é internado involuntariamente.
Mas, como se por nada, ele é liberado após alguns meses e levado a um prédio.
Um agente do governo apresenta-se como parte de um comando especial, explica
tudo: há uma sala preservada por 100 anos que tem a única função receber dados
simples do futuro sobre o que fazer, em especial, quem matar; mas algo deu
errado, pois, além de teletransportar informação ao pretérito, os “futuristas”
estavam a tentar trazer ao passado suas próprias consciências como modo de
fugir da decadência inevitável e do colapso daquela época por vir, porvir – por
isso, tantas vezes isso se revelava errado, o transplante de consciência no
tempo entrava em conflito com a consciência do próprio portador involuntário no
presente ou no passado, a depender do ponto de vista. Ou outra razão… Mas há o
forte problema, dirá o agente: o último recado, antes de começar as
transferências irregulares de consciência do futuro, foi o pedido de
assassinato do psiquiatra, Mauro. Então, doutor, todas as ordens deram em nada,
pelo jeito, o fim está próximo – o que você pensa que devemos fazer?
II.
Num pequeno sítio, uma família formada
por um pai, Júlio, uma filha, Luna, e a mãe, Letícia, cuidam juntos da horta ao
redor da casa. O pai pede à filha que desligue a água, mas ela não o faz, então
ele reclama que ela nunca faz essa tarefa tão simples, e ele mesmo fecha a
torneira (isso é importante). De longe, vê chegando algo raro naquela época, um
comboio – são, certamente, inimigos, desejosos de tomar aquele terreno raro,
preservado e produtivo. Eles param antes do muro, ainda na estrada – lançam um
drone para averiguar a área tão verde, mas um tiro certeiro de escopeta destrói
o artefato. Começa a guerra. Não conseguem quebrar o muro: está todo recheado
de coroa de cristo, além de ser reforçado por barras de ferro cimentadas. Uma
picape consegue quebrar a primeira porta, porém há uma elevação do terreno que
impede seu avanço – e uma nova resistência por um cercado, que atrasa os
invasores enquanto levam tiros desde a boa localização do teto da casa de 1
andar. Ocorre uma aula de táticas de sobrevivencialismo das duas partes, pois
eles resistiram ao fim do mundo, estão entre os poucos sobreviventes do grande
fim. Quando o comboio quase consegue invadir, Júlio, em cima da sua casa, em
desespero, pede, ensinando, à Luna que segure uma arma de fogo, mire e atire
(isso é importante). No entanto, finalmente, Júlio é capturado (sob conversa
convidativa – “Sobraram poucos de nós, por isso não queremos desperdiçar um
talento como o teu, precisamos unir”, observa um homem com cara de professor –
e sob tortura para saber “quem mais está aqui?”). O pai finge que ninguém além
dele está por ali, e a arma do topo da casa está abandonada… Colocado sozinho
no próprio banheiro, Júlio consegue artefatos secretos abaixo de azulejos para
soltar seus braços e pernas dos nós de corda, reagindo. Ele mata a todos com,
nestes conflitos, um olho furado, um tiro na mão, inúmeros cortes, sem um dos
dedos. Encaminha-se para o bunker secreto, porém não entra, pois ouve de longe
a voz de sua filha e de sua esposa. Na verdade, elas estão mortas dentro do
bunker – e ele, sozinho, enlouqueceu, como se vivesse ainda com elas.
III.
1. Cena
primeira da série: um agricultor está a trabalhar, porém sente algo estranho na
atmosfera; corre até seu pequeno canavial, vê uma cana cortada sangrando, corre
para longe, volta e, com um pano, cuida da planta.
2. Um
jovem baixista, com muitas cicatrizes, é convidado para participar de uma banda
de Thrash-Death Metal.
3. O
vocalista da banda mora num sítio do interior, onde ensaiam sempre aos finais
de semana.
4. Há
um cachorro chamado fome zero, além dos outros muitos cães.
5. O
pai do vocalista, o agricultor de 1, apoia a entrada do novo membro, diz ter
gostado dele, após ver suas muitas cicatrizes.
6. A
banda faz o primeiro show, briga com outra banda, de antigos membros.
7. Na
volta, um carro com caçamba leva de volta os membros. No caminho, o vocalista
demonstra ousadia ao amarrar uma corda no carro e na sua cintura para pular e
pendurar-se na parte traseira como um peão sobre o boi bravo. Enquanto todos
comemoram bebendo, o ousado de repente olha para o lado (a câmera foca direto o
seu rosto, que fita a lateral da estrada, para as árvores, então se amplia o
enquadramento), silencia-se, demonstra tristeza íntima… Ao lado das imensas
árvores, gigantes bizarros e nus estão de pé, parados. Uma ilusão?
8. Após
outro ensaio, descansando na fazenda, os membros debatem um nome para o grupo.
O dono daquelas terras propõe: Onça de Metal! Pois o som das vozes da banda soa
como o grito da onça nos morros. Proposta aceita. (Pouco depois, uma onça – que
atravessou, sem comer nenhuma vaca, o curral – será morta pelo fazendeiro,
antes que chegasse perto dos jovens, que dormiam em redes ao ar livre, na
varanda; o herói, entretanto, nada diz sobre.)
9. Nesse
dia, o baixista afirma querer aprender a usar arco e flecha.
10. O fazendeiro, homem de poucas
posses, vende seus porcos. O comprador, amigo de longa data, pergunta por que
ele está fazendo isso – e tão barato. “Às vezes, tudo muda, então a gente não
pode ter apego.”
11. Com o dinheiro da venda dos porcos,
oferece como presente surpresa o melhor conjunto de arco e flecha, incluso
material de treino, do mercado ao baixista. Com um exagero cômico: 200 flechas.
12. O agricultor vai até uma casa
antiga abandonada, algo longe, e encontra um pequeno papel, com um pequeno
texto.
13. O agricultor convida a todos os
membros da banda, com suas namoradas e amigas especiais, para uma festa
particular, com ele e sua esposa, pela manhã. Todos comem bem. Como se por
nada, os jovens ficam tontos, à beira de desmaiar. O casal mais velho, os donos
daquele recinto, segura um por um, para que deitem no chão com leveza, sem cair
ou sofrer machucados. Todos os demais dopados na sala, eles acumulam mais de 30
garrafas de água ao lado deles, além de muitas bolachas de chocolate, ligam
três fontes de oxigênio à bateria e fecham todas as portas e janelas. O
agricultor senta-se na sua melhor cadeira, em frente à porta, enquanto segura
uma das dez armas de alto calibre em suas mãos, pousada sobre suas pernas.
Então, espera.
14. A primeira temporada da série
termina, mas não se renova por falta de público e, logo, de verba; além do fato
de os episódios posteriores exigirem grandes efeitos especiais.
IV.
Num futuro próximo, quando boa parte do
salário em dinheiro é substituída por uma pílula de consumo regular que garante
a imortalidade do usuário, além de polivitamínicos; um lutador e fundador da
versão genérica do Wing Chun, o estilo Batalha, em um dos treinos, após afalar
da necessidade de uma vida simples, lança, por acaso, um poder “mágico” contra
um aluno… Tenta manter segredo disso, pois de modo algum deseja ser herói ou
vilão. Mas sua vida tornar-se um inferno: governos, empresas e curiosos o
perseguem dia e noite; porém ele insiste no impossível, na simplicidade de
viver, agora, no campo, isolado. De fato, impossível. No fim, participa da
revolução brasileira nas ruas, usando seus poderes contra o lado das forças
armadas que ficou contra o povo.
V. PÓS
Naquele dia, todos os cantos do mundo
foram banhados com uma forte aurora boreal. De tal modo, por causa da fortíssima
chuva de partículas do Sol, todos os equipamentos eletrônicos queimaram – e a
civilização caiu. Primeiro, todos ficaram em suas casas. Depois, começou a
clareza da nova realidade.
20 anos depois, numa comunidade
camponesa, tivemos uma grande notícia: encontraram um violão inteiro, com
cordas preservadas – e afinado! Uma casa isoladíssima e esquecida era aonde
habitava aquela rara novidade. Quase todos, reuniram-se num dos sítios, à porta
de uma casa, de Zuleide e Seu Paulo. Um de nós sabia tocar violão. Talvez, pois
havia passado mais de duas décadas longe de treinos.
A descoberta passou de mão em mão, como
se para ter certeza de estar diante daquilo. Todos sentados, ele começa a fazer
pequenas afinações no instrumento – medo de as cordas de nylon se romperem.
Como se por nada, o violeiro começou a
tocar uma linda música com perfil clássico de origem medieval. Em outra época,
ninguém daria atenção ao estilo, porém agora soa diferente. Um silêncio
apoderou-se de todos, um sentimento silencioso e oculto, que os fez lembrar de
outros tempos, de outras eras, de quando tudo parecia mágica tecnológica.
Porque era fim de tarde, início
anunciado da escuridão, todos tiveram a desculpa de ter de dormir, ir para suas
casas. Assim esconderam a tristeza, a saudade; um passado que não passa na
memória. Na verdade, o sentimento era novo, sequer nome tinha.
O violão também dormiu.
O HOMEM E A COISA
LENIN
Preparação para a última foto: Lenin
aguarda à espera do registro congelante. Ao redor e distante da cadeira de
rodas onde se repousa, todos e tudo movem-se um tanto distantes, desordem
típica, quase como se ele estivesse invisível. Similar às leis da natureza,
impossível a um homem saber de sua própria partida iminente e evitar fazer
balanço de si. A angústia transporta-o para aquele dia traiçoeiro… Dentro do
carro, refletia angustiadíssimo – o sentimento é ponte da lembrança? – os
problemas das revoluções italiana e alemã, o isolamento político e econômico da
recém-fundada república operária e os problemas da guerra civil. Em duplo
sentido, situação inadmissível: 1) o isolamento; 2) inaceitável, para a
burguesia, a existência de tal Estado. Era 1918. Havia acabado de sair de uma
assembleia de operários. Aquele dia… Próximo à praça do Kremlin pediu para
descer do carro, pois o pulmão fechara e precisava respirar. Eram estes os
assuntos a perambular sua mente quando sentiu um encontro. E um estalo surdo.
Kaplan, militante anarquista, lançou três tiros rumo ao líder soviético: um
perfurou o casaco; outro, o pulmão; outro, o ombro. Desde aquele dia, como se
um vampiro houvesse drenado seu sangue, pouco a pouco, sua energia vital. Um
parasita fortalece-se na proporção em que mata o hospedeiro. O grande líder da
revolução russa derrotado pro mais um derrame.
Antes da foto, parar de se distrair.
Desde o primeiro derrame, Lenin viu-se diante da dificuldade de encontrar
palavras, refazer o raciocínio. Stalin está conspirando, pensa. O caráter revolucionário
da revolução está definhando enquanto eleva-se o burocratismo. O georgiano,
Kamenev e Zinovinev sempre foram retaguarda: colocaram-se em defesa do governo
provisório, apostaram na reunificação com os mencheviques, deram voto contra a
revolução de outubro, relataram aos jornais burgueses os preparos para a tomada
do poder, propuseram a guerrilha no lugar do Exército Vermelho, saíram em
defesa da assembleia constituinte contra os sovietes; agora, tentam fragilizar
o controle do comércio exterior, defendem medidas de domínio sobre
nacionalidades oprimidas, exercem posturas burocráticas sobre a Inspeção
Operária e Camponesa. Nunca desejaram fracionar honestamente em defesa de suas
posições, e sim o recuo… Faz falta Sverdlov, grande organizador… Trotsky está
distraído, não tem noção da profundidade do problema. A carta será lida no
congresso? Será alterada?
STALIN
“Como é estar mudo e paralisado,
camarada? Nunca fomos grandes oradores. Bom; como preciso garantir os meus,
acontecerá o seguinte: injetarei este veneno na tua veia pela segunda vez…
Quase posso ver o espanto no teu rosto. És forte, parabéns. Não posso correr o
risco de vê-lo melhorar. Sabes que Yagoda, da polícia política, tem formação em
fármacos? Foi quem me ofereceu o líquido; depois terei de lhe matar também…
Será assim: morrerás; Trotsky está viajando porque dei um jeito de adoecê-lo
(envenená-lo deixaria tudo às claras, coincidências demais), e lhe darei a data
errada de teu enterro; farei um grande evento no funeral, com direito a embalsamento.
Estarei colado a ti, ao teu lado o tempo todo. E lerei a carta na reunião do
Comitê Central apenas porque falta saber se há alguma cópia; tentei – juro –
limitar teu acesso à escrita, informações e militantes. Já está resolvido.”
TROTSKY
Sentado à mesa de madeira no primeiro
andar de sua casa, Trotsky sente o prazer do Sol da manhã de um país
latino-americano, do México. Tem de preparar boletins propondo medidas aos seus
partidos contra o nazismo e a próxima guerra mundial. Porém, impossível concentrar-se.
Algo em si deseja falar consigo: movimento igual e no sentido oposto de quando
um sonho a ser esquecido ao acordarmos. Levanta-se. Da janela, visualiza o muro
enorme vigiado por militantes comunistas mexicanos e norte-americanos. Sabe
dessabendo sobre algum… Ao proceder de maneira inconsciente, pensa na
coincidência de a revolução de outubro ter sido iniciada no dia de seu
aniversário… Dias depois da tomada do poder, seu pedido de demissão por
cansaço, negado por Lenin… O adoecimento de Lenin em paralelo ao adoecimento do
Estado Operário… A condenação de Yagoda na farsa jurídica dos processos de
Moscou e as garrafas de veneno em seu armário… Sua expulsão da URSS… Saudade de
Sverdlov… A carta-testamento ao congresso… A derrota da Oposição de Esquerda do
partido… A acusação absurda de Stalin contra Bukharin, afirmando ter este
tentado matar a Lenin… “Oh, você não conhece Koba (Stalin)”, disse uma vez
Nikolai Bukharin, com sorriso trêmulo. “Koba é capaz de qualquer coisa.”… Seu
adoecimento pouco antes da morte de Lenin… A data errada do enterro enviado por
Stalin… Stalin afirmando, após reunião do Comitê Central, suposto desejo de
Lenin de se envenenar… Dr. Gaitier, médico em comum de Lenin e Trotsky,
defendendo ser garantida a recuperação do camarada pouco antes de este morrer…
Pouco antes de… Este morrer… Stalin
matou Lenin!
O fundador do Exército Vermelho publica
na revista norte-americana Liberty o
artigo-denúncia do assassínio 11 dias antes de ser assassinado por Ramón
Mercarder, agente de Stalin.
FOTOS
Falsificações fotográficas de Stalin à
medida em que matava ou aprisionava membros, apagando-os.
Alteração de foto por ordem do regime
stalinista. Na segunda, Trotsky é retirado de sua posição, ao lado de Lenin.
Última foto de Lenin.
FONT’INSPIRAÇÕES
Carta ao Congresso – Testamento
Político de Lenin.
Stalin Matou Trotsky?, Por León Trotsky
– Tradução de Cynara Menezes, site Socialista Morena.
Lições de Outubro, obra de León Trotsky.
13
Cartas de Suicídio
Todas
as cartas estão tal como escritas no original. Em alguns casos, adaptamos a
pontuação e fatores similares para facilitar a leitura e o ritmo do texto.
As
antes 12 e agora 13 cartas foram selecionadas no universo de 300 candidatas.
O
“autor”, reunidor, das cartas tentou 10 vezes o suicídio. Um dia será feliz em
suas tentativas, terá sorte.
A
FILOSOFIA DO SUICÍDIO
Tese
1
Somos a única espécie
capaz de suicídio. Pelas nossas mãos, domamos as cordas, as facas, os venenos.
Nosso corpo, enfim, está aparelhado para matarmo-nos. Matar-se é o que
diferencia o homem dos demais seres vivos. Estes buscam, portanto, mais-vida;
nós, ao contrário, mesmo que outra ou vez, pensamos na morte, queremos morrer.
Sim.
Tese
2
O suicídio é uma ação
nobre para a natureza. Como parasitas, fazemos mal ao mundo inteiro. Quanto
menos humanos, maiores as chances de sucesso da biologia e de sua beleza. Se
queremos salvar o mundo, matemo-nos. Toda a obra de bilhões de anos de vida
terrestre pode ser preservada se tivermos coragem de morrer.
Tese
3
Não adianta, não
serás feliz. São tempos em que nossa Roma está a cair, a desabar. São tempos de
duras crises e curtos alívios. O modo de vida atual, em seu processo de
decaimento, vai-te frustrar até o limite. Que motivo haveria para se esforçar e
tentar? Nenhum, não há prêmio no final. Amanhã será pior, de modo algum melhor,
do que hoje.
Tese
4
Tal como é a
sociedade, até os mais íntimos são falsos, traiçoeiros, egoístas. Impossível
encontrar lealdade real entre amigos e amantes. Se te queres matar, mate-se. A
verdade é que, na verdade, não tens amigos.
Tese
5
Tua vida é e será
pequena. Apenas para raras pessoas, e por um tanto alto de sorte mais acaso, há
sucesso, prestígio, hábito agradável. Viver é sofrer. A vida luxuosa e ativa de
poucos membros da espécie serve apenas para demonstrar como somos poucos,
pequenos, e merecemos a morte – como alívio imediato. A falsa necessidade de
transcender, de ter uma vida maior. A vida é só isso, mesmo.
Tese
6
A vida do indivíduo
nada tem de sentido. Para o universo, para a sociedade e até para pessoas
próximas – somos nada, vazio, o vácuo e o oco. Ilude-te ao pensar que tem
alguma importância ou efeito sobre o mundo. A realidade nunca precisa de ti. Um
nada de um nada, um vazio vazio. És átomo desconfiado e inútil. O que há é,
portanto, puro caos e acaso.
Tese
7
És mais nobre e útil
morto. Com teu velório, alguns sentirão culpa; outros, alívio. Lembrarão de ti
– e talvez a tua casa, caso mate-se em teu lar, será evitada para compra e
fonte de histórias macabra na vizinhança. Serás mais lembrado em morte do que
em vida. Foi preciso matar Jesus para venerá-lo.
Tese
8
Com o suicídio, terás
uma grande emoção e grande fato em tua vida, como nos filmes. Livrar-se-á do
tédio, da tristeza, da mesmice. É como nos filmes, como a vida de um bom livro.
És uma despesa para a sociedade. Tua aposentadoria, teus custos de vida – e
assim por diante, e assim por diante. Ajudarás a comunidade com o simples ato
de deixar de existir.
Tese
9
Com tua morte, teus
inimigos serão acertados de duro golpe – a culpa. Tentarão esquecer os fatos,
mas, como um morcego, invadirão o quarto de seus pensamentos à noite, até o fim
de suas vidas. É, portanto, a melhor vingança possível.
Tese
10
Se estás pensando em
morrer-se, logo, estás sendo fonte de problema para familiares. Faça o favor de
liberá-los. Evite ser um custo de tempo, dinheiro e emoção; deixe de seja um
peso desnecessário.
Tese
11
É forte o homem que
age – agir é preciso, mais do que pensar. O deprimido é tão deprimido que
sequer tem forças para fazer o que tem de ser feito. Mas ele sabe o que é
necessário produzir e criar. Ele sabe.
Antiestoicismo
13.
P |
reciso dizer. Antes
do fim, antes. Não acordem o Gustavo, por favor. Ser soldado no Haiti pela
“missão de paz” do Brasil parecia o começo de minha glória, mas minha alma
agora são escombros de uma ruína. Isso é diferente de poesia: sei matar,
treinei para a guerra – mas a guerra é outra coisa.
Nunca
pensei que faria aquelas coisas, sempre recordei; por isso, fica meu desabafo
antes de morrer... Fiz cobertura, fui vigia de perímetro para que meus
companheiros de armas pudessem abusar de mulheres em troca de um saco de arroz.
Se eu fosse contra, ficaria queimado, isolado, talvez morto por um acaso
planejado, conspirado.
Outro
dia, as gangues do país se uniram na comemoração da independência haitiana para
um grande ataque. Foi desesperador; tiros, bombas, surpresas. Vi sangue
jorrando, vi olhos perfurados. Vi.
O
Jean, um amigo naqueles dias, disse que um filósofo fala que a guerra nos
tempos antigos era comemorada, com heróis e poemas. Hoje a guerra produz silêncio
nos soldados, não festas. Ele morreu minutos depois de me dizer isso, nossas
últimas palavras. Penso que eu sei o porquê dessa mudança. Uma flecha, uma
lança, uma espada tem origem, tem um motivo, causa e consequência. Já um tiro
ninguém vê, uma bomba acionada é de repente, nada tem sentido e rumo, qualquer
coisa pode acontecer, nenhuma lógica. Algo mágica do mal, desaparece aqui e
reaparece ali e longe, sanguinariamente longe.
Os
haitianos eram fãs dos brasileiros, por isso fomos armados para lá. Os
americanos pediram porque estavam atolados no Afeganistão e no Iraque. Então, destruímos
nossa reputação para nada. A coisa única que sei fazer é matar, e preciso
resolver isso, essa dor. Parar de acordar de madrugada suado e nervoso. Mãe,
não serei mais um fardo para a senhora. Te amo. Desculpa, mãe, por te impedir
de sorrir.
12.
O |
que é um homem incapaz de sustentar sua
família? Um homem é o seu trabalho, nem menos nem mais. Essa crise tirou tudo
de mim – entrei em falência. O mundo financeiro é um cassino, um jogo, uma
aposta. Fingimos que há nele razão, previsão e “especialistas”. Eu, que fui ao topo, desci ao abismo. Do todo para o nada em um dia apenas. Minha
família agora dorme na certeza de que amanhã o problema estará resolvido, como
uma criança com pesadelo abraçada pelos pais. Se um pobre perde o que tem em
enchente, ele vive ainda, pois perdera pouco do pouco que tinha. Um rico faz
diferente, pois a pancada é imensa, na proporção de um arranha-céu de onde se
pula. Nunca deixarei eles sofrerem, meus filhos e minha esposa. Para o bem deles,
os matarei antes que acordem, antes do meu suicídio. Dirão que estou louco, mas
o mundo inteiro enlouqueceu. Cada um é o que tem no bolso – hoje somos menos
que nada ou quase isso. Adeus.
11.
D |
o nada viemos, ao
nada retornaremos. Meu esforço para que minhas ideias tivessem sucesso deram
errado. E eis-me desempregado, comendo farinha com ovo. O vazio que sinto é
muito mais do que meu desastre, pois é, também, o vazio universal do próprio
vazio, do cosmos.
É
obrigação filosófica tomar veneno quando faltam alternativas reais. Qual a
diferença do homem em relação aos demais seres vivos? Somos a única espécie
suicida: matar-se é o impulso de todo cidadão digno, de nossa espécie.
Coragem,
Carlos, Coragem!
O mundo é acaso e caos, falta lógica nele, e a
existência do indivíduo é tragédia. Ser é não ser! Porque somos infelizes,
sonhamos que depois, amanhã, algum dia seremos alegres, mesmo se apenas depois
da morte. Mas nenhum céu ou inferno existe, vamos do ser para o nada, do nada
ao nada por meio do nada. Somos um “apenas” e um “ainda”, temos data de
validade. Destruir é, também, criar. Sofremos tanto como privilégio de estar
vivo, mas abro mão dessa vantagem suposta. A dor do fim é passageira – coragem!
Pois o fim é o fim!
10.
E |
u te odeio, Deus!
Tive fé, rezei, fiz jejum e caridade, doei à igreja: fiz tudo, mas o senhor não
me ajudou! Quando nos vermos, antes de eu ir ao inferno por causa do pecado do
suicídio, teremos uma boa conversa, séria. O Senhor me dever explicações, terá
que implorar meu perdão. Anos de sofrimento como Jó, mas o Senhor momento algum
teve piedade de mim! Se o diabo pune o mau, ele é bom? Se o Senhor não abençoa
e premia o bem, és mau? Sim, estou com raiva, ódio – de maneira nenhuma eu
merecia passar por isso. Quem ler esta carta depois do meu fim, nunca pense que
sou ateia, ateu, pois esse tipo imagina que nenhuma forma de magia existe. Sei
que Deus impera: apenas ele falhou feio comigo. Logo o infalível! Desafio e
duvido: lance um raio sobre minha cabeça! Assim seja. Um psicopata narcisista
gosta de elogios o tempo todo e de sofrimento dos outros – assim Vós sois!
09.
M |
eu nome é Letícia,
tenho 9 anos e eu vou contar tudo para Deus. Vou ver ele no céu e contar tudo
para castigar. O pai enfia o pirulito dele dentro de mim – é estranho e dói. A
mãe disse que é para deixar e não contar para ninguém, se não vou ficar de
castigo sem comer. O pai coloca leite moça no pirulito dele, e manda lamber, e
sai um leite azedo. Eles fumam pedra. Uma vez a mãe me deu o cachimbo para eu
conseguir dormir também. Foi bom porque estava com fome. E hoje quase não teve
comida. A mãe me bate todo dia. Ela tentou me vender, mas não conseguiu. Tchau.
Agora vou lá pra ponte, pro céu e falar o que está acontecendo pro papai do
céu.
08.
P |
erdi as esperanças. E
perder todas as esperanças é um grande pecado para uma comunista, pois olhamos
para o amanhã, queremos a felicidade nossa e da espécie. Stalin matou minha
alma. Neste campo de concentração, está presa a maioria dos melhores comunistas
de nossa geração e da anterior. Como o país mais democrático da história
tornou-se a ditadura mais hostil contra os leninistas, os socialistas? Como o
partido mais revolucionário criado jamais degenerou em máfia e casa de
oportunistas e carreiristas? É duro dizer, porém deve ser dito: chegamos ao
poder cedo demais, antes da hora no mundo e na Rússia. Um país bruto produz uma
ditadura bruta, o regime estalinista. Estou cansada. Uma vez, vi na Inglaterra
uma revista que imaginava o futuro; nela, dizia-se: daqui a 100 anos, alguém na
Europa poderá conversar de frente, ao vivo, com alguém no Japão, como se
estivessem lado a lado. Eu digo: quando isso for possível, o socialismo será de
fato possível e necessário. Hoje, Stalin tomou o poder, deu emprego a
burocratas silenciosos e obedientes, matou 10 dos 21 membros do comitê central
do partido de 1917, mandou-nos para campos de concentração com um longo
inverno. Ainda bem que Lenin não viu sua obra decair tanto. Nós pedimos ao
Estado armas para enfrentar a invasão nazista alemã. Não apenas nos foi negado
como alguns prisioneiros comunistas foram mortos por punição pela ousadia. Não
há saída – mas eu digo não ao não. Dediquei minha vida pela verdadeira
liberdade humana, no entanto vi tudo ruir, todas as vitórias, que se tornaram
derrotas, e todos os esforços. Minha rebeldia permanece: o suicídio será meu
último ato politico, minha revolta, minha resistência e afirmação da liberdade,
mesmo se negativa. A ditadura estalinista fará o retorno ao capitalismo, porque
burocratas sem controle democrático querem por natureza tornar-se mais ricos,
com mais privilégios – nunca será do meu interesse viver para ver isso.
07.
F |
alta-me força até
para escrever: nem para morrer eu sirvo. Apenas desejo descansar, finalmente.
No início, chorarão por mim; mas, no fundo, irão reconhecer que tudo ficará
melhor para eles depois. Será um alívio. Sou um peso nas suas vidas, essa é a
verdade. Peço desculpas por incomodar. Parece q
06.
A |
gente pensa que sempre acontecerá com outro,
com um colega. É a segunda vez que sou preso por corrupção, mas desta vez é
diferente… Nestas horas, percebo: é o cargo que possui a gente no lugar de a
gente possuir o cargo. Se perdermos o posto, perdermos tudo. Diante da morte,
devo ser sincero: roubei, muito. A corrupção começa com um carro de presente
dado por um empresário, financiamento de campanha, ajuda para viajar de
jatinho, palestras pagas. Os modos são muitos. Agora, sou mais útil morto –
isso também preserva minha família. Mas eu vou falar: a democracia é uma farsa
para que os pobres não matem os ricos. E mais: o verdadeiro poder está oculto.
Antes do suicídio de Getúlio Vargas, ele alertou: “forças ocultas” estavam
agindo… São o poder real: Tancredo Neves morreu exato quando iria assumir o
poder – o avião de Eduardo Campos caiu logo quando iria ao segundo turno das
eleições; o avião do ministro do judiciário Teori Zavascki caiu no dia em que
começaria a investigação dos inimigos da pátria (a bolsa de valores teve alta
por isso!). Por acaso, um deputado cancelou o processo de impedimento da Dilma
ao assumir a direção da câmara dos deputados, mas logo recuou desesperado e uma
série de acusações caíram sobre ele por anos. Os bancos, apenas 3 grandes
privados, sugam a nação. As empresas poderosas e seus empresários não pagam os
impostos justos. E o imperialismo estrangeiro impera por aqui. É o capitalismo
de máfia. O Brasil é o paraíso dos ricos. O poder real é obscuro, sujo,
manobrista, traiçoeiro. Eles me derrubaram, mas saberão agora que eles existem,
manipulam. Vota o povo, e não decide.
05.
T |
oda vez que me olho
no espelho, meu corpo avisa do fim. Por isso, a morte torna-se pensamento
diário. Estou de saco cheio com os adultos me tratando como criança, com tom de
voz idiota e formas de falar ordenadores. Eu sou um velho. Hoje por hoje, dou
despesas à família, exijo trabalho. Nem minha própria bunda sou capaz de lavar
– aonde está a dignidade? O homem deve saber quando é hora de morrer, nunca
adiar sua existência inútil, sofrida e difícil. Meus amigos e inimigos morreram
quase todos enquanto os vivos estão ou longe ou impossível falar com eles. Até
o cheiro natural da minha pele desagrada os jovens, como se eu apodrecesse
antes de apodrecer. Consegui um mínimo de coisas para deixar alguma ajuda como
herança. Sou um império decadente.
04.
D |
irão
que sou louco, mas eu sou 100% normal. O problema é que vivi uma vida normal
demais: emoção apenas nos filmes, ousadia apenas nas séries, euforia apenas na
música. Daqui a alguns anos, teria morrido, ou décadas, do mesmo jeito. O que
deixaria? Minhas roupas comuns, corretas? Daqui a mil anos, se daqui a mil anos
ainda permanecer civilização, serei lembrado por ter feito algo diferente,
intenso, inesquecível. Quando entrar naquela escola, ou em cima de um prédio
caso o primeiro plano dê errado, o fuzil irá cantar. O mundo é um inferno –
talvez estejamos no inferno de outro mundo. Num mundo monstruoso, somos
educados para nos tornarmos monstros; por isso, estarei salvando as crianças
mortas, antes que se corrompam. A ideia de metralhar na escola veio de repente
– passou logo. Depois, bem depois, veio de novo – de novo, passou com rapidez.
Teve uma hora em que tive de assumir esta ideia enquanto minha. De nada adianta
lutar contra ela. Não sou louco, tenho missão. Enfim, sentirei vida, pois viver
é morrer. Se enfiarei a bala na cabeça ou se forçarei os policiais a revidarem
sobre mim, será algo do momento. Somos todos uma bolsa de sangue. Agradeço ao
autor, seja lá quem for ele, por escrever o livro 12 cartas de suicídio. Quando
terminei a leitura, tudo fez sentido. Viver é morrer. A vontade que eu tenho de
fazer isso sou eu mesmo. Rancor, frustração, normalidade – acumuladas? Que
seja. Darão várias justificativas ou negarão qualquer sentido disso porque
confundem explicar com justificar. A verdade é apenas isso: viver não é
preciso, e nem sempre faz sentido. Dirão nos jornais: nunca dei sinais maus,
trabalhador, educado, comportado… todo mundo o tempo todo tentando passar a
perna em todo mundo, em qualquer um. Farei um favor enorme às crianças da
escola. Morno.
03.
U |
m urubu pousou na
minha sorte. Numa época triste, seria alegre um verdadeiro poeta? A cabeça
segue o chão que os pés pisam. Maiakovski suicidou-se com um tiro no peito no
meio da praça pública, diante do terror estalinista. Por mim, sou uma
exclamação negativa; energia, mas negativa. Na verdade, tenho o gene do
fracasso, estou destinado a dar errado. Matar-me-ei assim: subiremos eu e meus
livros no prédio mais famoso da cidade, até o topo; saltarei com as obras
coladas no meu corpo – e cairemos juntos, juntinhos. Desse modo, minha produção
invisível, vendida por mim nos semáforos, ignorada pelas pseudoeditoras, será
lembrada, conhecida, talvez reconhecida. Os estudantes saberão do poeta que
subiu quando caiu. O otimista é um canibal faminto que devora o próprio braço.
Todos os dias, a morte convida-me para um agradável banquete, e quase sempre
recuso o insistente convite. Bebo o leite negro e doce nos peitos volumosos da
morte. Nós nascemos poetas, depois descobrimos nossa real natureza. Um poeta
que nem se mata nem morre aos 27 anos de modo algum merece o titulo de. Quem
matou a poesia? Morrerei no dia de meu natal, 14 de junho.
02.
D |
emorou tanto para
sentir tédio mais uma vez. Depois do fim do mundo, desmoronamos também por
dentro, somos um tanto animais agora.
O
fim poderia vir, e viria de qualquer modo, por: 1) colapso ambiental, 2) guerra
nuclear, 3) terceira guerra mundial, 4) crise econômica, 5) vento solar intenso
queimando todos os eletrônicos, 6) pandemia letal, 7) superupção de vulcão, 8)
meteoro. Mas foi a porra de um acaso, supervírus de computador criado por uma
criança gênio da África, que destruiu tudo. As coisas estavam conectadas
demais.
Portanto,
tudo foi inútil. De nada serviu o trabalho, as construções, os conhecimentos,
os esforços. Se soubesse da inutilidade da civilização e da existência, teria
feito diferente. Isolado, resta morrer. O amanhã não existe, ou é como se não
existisse – por que insistir por mais um dia de sofrimento?
01.
E |
screvo esta carta de
morte depois do meu suicídio. Seria psicografia ou inspiração em Brás Cubas?
Enfim, de qualquer modo, a morte é boa, morrer é bom. No nada não há nada – no
vazio nem o vazio sentimos.
Nem
sinto falta de ti, nunca mais. Até tua vagina e teus peitos tinham proporções
perfeitas para mim. Mas o amor é apenas sentimento de um, então eu te amava
doidamente e tu não me amavas. (Se viver fosse viver sem você, que bom seria;
mas não dá mais pra viver.) Em ti, havia talvez certa pena de mim, talvez certo
desprezo. Eu te amava tanto, mas agora tudo acabou – ainda bem.
Aqui,
do outro lado, nenhum lado existe, nem dentro nem fora. É maravilhoso por
ausência de todas as maravilhas. Morrer-se é a melhor decisão; se soubesse,
teria feito antes.
ZERO
Q |
uerido leitor,
escreva, aqui, tua própria carta de suicídio.
[1] O duplo (triplo) sentido em “como” revela uma das teorias de
Margarida: ato falho pela ambiguidade linguística-contextual como adaptação
social, via verbalização, da revelação inconsciente.
Como:
1. (verbo) absorver, alimentar-se, beliscar, sentir gosto, experimentar;
2. (verbo) copular, fazer amor, possuir,
traçar, transar; 3. (advérbio de intensidade) muito, em demasia.
De
modo coloquial, “como/comer” pode ter, como vemos, sentido erótico. O humor e a
coloquialidade, como jogo significativo das palavras, são, também, segundo a
autora, algumas das formas de retorno ou revelação da intenção inconsciente
e/ou subconsciente.
[2] A psicologia viu-se em dúvida teórica
sobre se depressão leva ao alcoolismo ou, ao contrário, o alcoolismo leva à
depressão. Ora, conclui Margarida, o enigma existe porque há aí uma concepção
unilateral, não dialética e mecanicista de causa-efeito. A causalidade é
recíproca: seja qual for o primeiro, em casos singulares, um estimula o outro,
o efeito transforma-se em causa e vice-versa, realimentando-se – então o
gatilho inicial pode ser um ou outro.
[3] Para a psicanalista, a psique não se
divide na oposição entre pulsão de morte ou pulsão de vida. Há apenas pulsão de
vida que se externaliza em pulsão de construção, pulsão de destruição e pulsão
de preservação.
[4] Margarida elaborou a tese de que os
nomes e sobrenomes podem influenciar parte da personalidade como veremos
adiante no caso de seu antagonista. Em resumo, isso é deduzido das seguintes
descobertas:
1) A formação do self na criança, sua diferenciação do
meio, ser algo em si e para si, perceber-se, se dá também por meio do seu nome,
em especial por meio do chamado verbal-afetivo do pai e da mãe (descoberta de
Winnicott).
2) Na infância, a capacidade lógica da criança passa por
estágios e demoram os saltos de percepção. Até a pré-adolescência, há uma
lógica muito rígida, não dinâmica, de opostos e significados (descoberta de
Piaget).
3) A mente opera, em sua função pré-consciente, associações
e combinações (descoberta de Freud).
4) A mente é sugestionável, sem necessidade hipnótica, em
níveis diferentes.
Exemplifiquemos. Uma criança cujo nome é Flor apreende o
significado de flor enquanto objeto externo com suas características e, ao
mesmo tempo, esta palavra lhe é absorvida enquanto significado de si – então
ocorre uma fusão interna, inconsciente. No A Interpretação dos Sonhos, Freud,
citando Goethe, cita por alto, apenas em forma de intuição, que as pessoas
vestem seus nomes, sendo que o seu nome significa em alemão “Alegria”, o que o
influenciou a ser médico, psiquiatra e fundador da psicanálise.
[5] A
autora foi quem propôs a resolução de uma polêmica nos movimentos sociais.
Resumamos suas ideias. Descobrimos a unidade, interpenetração e contradição dos
opostos no hipotálamo, responsável tanto pelo sexo quanto pela agressão. O
exemplo destacado, a natureza dupla de tal parte do cérebro, resolve uma polêmica.
No debate sobre as opressões, o setor pós-moderno destaca que o estupro é uma
questão de poder e domínio masculinos (com empiria de casos absurdos, como
quando um homem impotente usa um pedaço de madeira para violar uma mulher,
etc.) e, na outra ponta argumentativa, o biologismo destaca a necessidade de
satisfazer as pulsões (com outros dados empíricos, como a redução de estupros
onde surgem casas de prostituição); nesta outra consideração da psique humana,
que ademais inclui o aspecto físico do cérebro, percebemos que a exclusão mútua
de ambas as teses tem uma base comum, uma unidade, que encerra as concepções
opostas. É tanto uma questão de poder, cuja base é a violência, quanto uma
questão sexual e ambos, pela tensão causada pela demora em satisfazer-se,
misturam-se, interpenetram-se. A partir daí, façamos alguns complementos. Lacan
afirma que o sexo tem algo de violência, o que é explicado materialmente por
esta observação. O lema “faça amor, não faça guerra” expressa inconscientemente
esta relação dialética (Em A Interpretação dos Sonhos, Freud diz da expressão
“nem nos meus piores sonhos eu desejaria isso”, sendo o sonho a realização
fantasiosa de um desejo, que demonstra certo “platonismo”, não saber que sabe,
no conhecimento da psique). O tipo Incel, celibatário involuntário, ao
concentrar energia libidinal em excesso, tem raiva do sexo oposto, origem de
seu desejo sexual. Por último, vale o destaque de que os chimpanzés e os
bonobos são os seres mais próximos geneticamente dos humanos; os primeiros usam
a violência como meio de poder, sendo patriarcais, e os segundos, o sexo, sendo
matriarcais (a origem é que o ancestral comum a ambos dividiu-se em um local
onde havia pouca disputa de recursos e abundância enquanto no outro local,
separado do primeiro por um rio, faltavam recursos e havia disputa com os
gorilas por alimentos).
[6] Em
seu primeiro artigo publicado em revista internacional, Margarida defendeu sua
tese sobre personalidade, que resumimos a seguir. A personalidade é uma, é una,
e expressa-se externamente em defeitos e qualidades, em opostos – que são
internamente o mesmo. Alguém impulsivo pode ser, por isso, “sem noção” e, por
falta de limite interno, também, por ouro lado, muito criativo. A malandragem
do jogador Neymar, comenta, para forçar faltas com quedas artificiais ou
induzidas é a mesma malandragem usada para enganar o goleiro e fazer o gol (se,
por exemplo, por ordem do técnico, ele bloqueia a primeira característica,
então bloqueia a si próprio, ou seja, impede igualmente a segunda). A oposição
e a contradição externas entre virtudes e vícios têm a unidade interna na
característica, no característico, em uma só propriedade, particularidade,
traço ou caráter. É o contexto, a situação, que faz aparecer de alguém um polo
ou outro da unidade.
[7]
Como é sabido, Margarida é negra, “mestiça” ou “morena”. A autora observou que
os algoritmos tendem ao “preconceito”, pois, ao observar padrões, tais
programas modernos chagavam a conclusões como “todo executivo é homem e
branco”. Pois bem; sua tese afirma que a mente humana também, quase da mesma
forma, apreende por indução, por generalização dos padrões, tendendo à formação
de um preconceito em parte de origem inconsciente. Por isso a necessidade de
facilitar o acesso de negros e mulheres nos mais diferentes tipos de trabalho e
funções, para, enfim, “naturalizar” suas presenças, desmanchar os velhos
padrões preconceituosos. Ainda segundo a autora, o racismo começa como algo em
si artificial, uma ideologia no sentido primário, mas, na medida em que é parte
de uma realidade que se vai gerando, cria a padronização do “lugar do negro”.
Assim, a maioria dos assaltantes e bandidos do Brasil são de fato negros,
porque isso surge como consequência da herança escravocrata que gerou grande
massa de pobres; então a mente não consciente padroniza ao induzir, ao
generalizar, que jovem negro = bandidagem. Como o racismo é mais do que algo
ideológico, uma subjetividade, ou uma prática individual, como é da construção
da própria sociabilidade, ele gera as próprias condições para “naturalizar-se”,
“justificar-se”, parecer empírico. É análogo à profecia que se cumpre apenas
porque foi profetizada.
[8] A
repetição da afirmação por Margarida indica-nos seu último trabalho. Segundo
seus escritos, o inconsciente opera, de modo oculto à consciência, a formação
de conhecimento por padrões, conclusões de funcionamento da realidade quase
imperceptíveis ao pensamento, leituras da realidade não formalmente teorizadas,
etc. Isso ficou conhecido popularmente como a hipótese do “superpoder” mental e
cerebral do homem. A autora cita o caso de quando teve o impulso intuitivo de
comprar uma nova chinela com o fato de seu calçado de fato quebrar uma semana
depois, pois a mente apreendeu alterações mínimas no objeto durante o seu uso,
o que gerou a intuição. Porque um pneu de ônibus pode dar sinais imperceptíveis
ao consciente, mas perceptíveis aos modos mais profundos da psique, um usuário
do transporte pode dizer momentos antes “o pneu irá fura” como suposta previsão
“mística”. Sem qualquer método formal, muitos conseguem ler psicologicamente
outra pessoa ou a tendência de dinâmica de um grupo. Pessoas do campo podem
“sentir” que irá chover apesar da aparente falta de sinais imediatos. A autora
deste rodapé errava a chave do grosso molho a ser usada quando tentava escolher
conscientemente, mas acertava quando deixava-se agir por “instinto”. O
consciente deve focar-se no imediato, no prático, deve especializa-se e evitar
excessos; logo cabe ao inconsciente o trabalho de base, que é expresso
conscientemente em forma apenas de conclusões “supostas”, sem revelar seu
lastro. Às vezes, o inconsciente aprende antes do consciente ou independente
deste. Tal teoria gerou alguma fama à sua elaboradora assim como acusações
novas de que praticava pseudociência.
[9] O ato de espirrar pode soar
descontextualizado no texto, porém parece ser mais uma referência à outra
possível descoberta da protagonista. Enquanto forma de expelir secreções, o
espirro tem função puramente biológica; ademais, por outro lado, pode interagir
com a mente de outro modo:
1) Quando há bloqueio psíquico de alguma conclusão, quando
esta não vai do subconsciente à consciência, pode haver congestionamento nasal;
2) Quando temos uma conclusão ou confirmação nova e íntima,
espirramos.*
É uma espécie de orgasmo mental. O prazer do espirro, ao
limpar e liberar, expressa o prazer psíquico, não em si sexual. É a própria
mente compensando-se, por meio do prazer e relaxamento, por novas “sacadas” e
confirmações.
* De acordo com a autora, o segundo ponto teve origem primeira e informal em
observação do músico e fotógrafo piauiense Robicharlyson Coelho.
[10] É possível que a psicanalista esteja
fazendo referência a um artigo próprio, onde trata da relação entre perfil
físico e personalidade. Em síntese: hábitos levam a perfis mentais e corporais;
por sua vez, perfis mentais levam a hábitos e padrões corporais; enfim, perfis
corporais levam a hábitos e perfis mentais (neste caso, em parte como alguém é
visto pelos demais a partir do padrão, pressionando informalmente a colocar
“cada um em seu devido lugar”). Os três momentos ocorrem combinados, retroalimentando-se.
Assim, a autora procura explicar a intuição comum de ver nas características
corporais dos indivíduos a exteriorização do interior.
[11] Trata-se de alusão à sua teoria do
sincronismo. Em entrevista por e-mail, a autora afirmou:
“1) Observei diálogos de colegas de classe na universidade
UESPI. Em torno de alguém extrovertido, papel de líder e comunicador, os amigos
juntavam-se antes das aulas. No passar do tempo e das conversas, seus corpos
faziam movimentos, tendo por resultado final: um círculo formado por aquelas
pessoas, pernas abertas em forma de “v” invertido, tão estável quanto possível,
onde até certos outros movimentos corporais igualavam-se (mãos no bolso ou
braços cruzados, etc.);
2) Os movimentos corporais empáticos possuem como principal
fator a imitação, como espelho, do movimento de outrem: cruzo as pernas quando
quero me aproximar subjetivamente de alguém de pernas cruzadas;
3) Os hábitos coletivos em um determinado espaço (casa,
escritório etc.) tendem a um ritmo e lógica internos de interação, tal como
alguma “dança informal”, entre as pessoas naquele ambiente;
4) É possível fazer leitura corporal do estado da relação
de um casal por meio de suas posturas ao dormirem. Por exemplo: um de costas
para o outro, costas encostadas, e movimento espelhado idêntico – ideia de
harmonia entre eles.”
A tendência ao sincronismo é uma dimensão intersubjetiva na
objetividade social. No mais, corresponde ao desejo, dimensão psíquica, por
harmonia, ordem, organização, integração etc
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