sexta-feira, 15 de março de 2024

Ano zero (contos gratuitos) + 13 cartas de suicídio

 

 

 

 

 

 

    ANO ZERO

     CONTOS CONCRETOS

 

 

 

 

 

 

Autor Desconhecido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

APÓCRIFOS

Apocalipse, capítulo 23, 05

Sal, vinagre, limão e pimenta, 09

Topia, 31

Pulso, 37

Novíssimo testamento, 47

CHÃO DE FERRO

Manifesto do partido neonazista, 53

Relatório trialético interdimensional, 56

IMATÉRIA

Pedaço, 62

Inomina, 64

El siglo del oro, 67

Três Marias, 76

REFFLUXO

Um novo conto de amor, 84

Sobre as chaves, 89

Rascunho do discurso de formatura, 92

TEOREMAS

Diminutos, 95

Metros quadrados em centímetros cúbicos, 118

Lucy, 124

CÔNCAVO CONVEXO

João, Maria, 130

Tempo verbal, 132

CONTO CONCRETO

ESBOÇOS

Rasga-mortalha, 139

Esbo…, 154

O homem e a coisa, 162

13 CARTAS DE SUICÍDIO, 170

 

 

 

APOCALIPSE, CAPÍTULO 23

 

“Porque eu testifico a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro que, se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre ele as pragas que estão escritas neste livro;

E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida, e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro.”

Apocalipse 22:18,19

 


¹Uma vez mais o Anjo do SENHOR falou comigo: João, bendito o paciente profeta, pois o bom servo agrada os ouvidos de Jesus. ²Mil vezes mais bendito é aquele que se cala quando chega a hora de calar, e enquanto ainda aguarda o correto momento. ³Ai daqueles que amarão os ensinamentos, mas amarão como a serpente a se camuflar por debaixo da areia do deserto; 4ai deles, pois o reino dos Céus é invisível às almas impuras!

5E olhou-me com seus oito olhos, e sorriu, e abriu suas asas de fogo. Então eu disse: Aqui estou. 6E o Anjo ergueu-se, e proferiu: Tudo quanto verdes diga aos homens; insiste e revela.

7Levou-me ao templo suspenso nos céus, acima das nuvens. Em uma sala de orações havia cinco anjos que eram como os homens; olhavam o altar e me disseram: Vê o amanhã. 8E mostram-me o amanhã; antes do dia do retorno de Cristo, e próximo está, Satanás fará um reino por sobre a Terra; e neste o certo será errado, e o errado será certo, e o bom será mau, e o mau será bom, e o limpo será envergonhado pelo ímpio. 9O espírito do anticristo habitará as coisas, dentro das coisas e por meio das coisas; elas dominarão os homens, e os homens dirão: Meu tempo, minha alma. 10E venderão suas almas à Satanás.

11E o deus dos homens serão os objetos, que dos objetos necessitarão, pois os objetos serão os novos ídolos; grandes máquinas, também objetos, dentro de grandes templos pagãos serão a casa do sacrifício, do jejum e do martírio; 12nessas estranhas igrejas feitas de ferro, drenar-se-ão os cativos espíritos, mas estes últimos apenas ao homem e a Deus pertencem.

13Diante daquilo, o Anjo indagou-me: Vês? Respondi: Vejo. Por isso, chorei; por seus oito olhos, igualmente ele chorava; e apontou-me: A alma de Satanás é fria, bruta e indiferente; haverá tara por guerra em nome das coisas e do anticristo; 14a Nova Roma dominará o mundo, e dirá aos povos do mundo que bebam da água negra; e tanto mais dependentes e orgulhosos de sua dependência, tanto maior e mundial será o reino do inimigo.

15Os homens viverão em enormes cidades, feios como elas; depois, a semente será estéril, pois terá a natureza do inimigo de Deus; 16e agonizará a floresta como se se tornasse deserto, tentarão ferir o céu, o ar será fedorento e sujo, os animais não conseguirão aumentar sua prole e a chuva minguará. 17Ninguém reclamará depois, pois será a mentira o grande artifício.

18Será considerado inimigo o vizinho; e os bons dirão: Está errado. 19Mas rirão deles como se a verdade fosse absurda, e apenas o absurdo pudesse ser verdade.

20Outra vez, vi os honestos bradarem: Está errado; este é o lar da infelicidade, da desordem e do suicídio! 21Mas não serão ouvidos. Serão tristes os bons homens; e duvidarão da bondade, da justiça e de Deus. 22Frustrados, os ser-vos dirão: Pai, ou vós sois mau ou vós não existis; por que nos abandonaste? 23Uma vez mais, ouvindo aquela angústia, chorei. 24Então o anjo pronunciou: Muitos amarão a moeda, muitos usarão a palavra para servirem à Satanás encarnado na moeda como a borboleta no casulo.

25Os filhos dos filhos de Deus perderão a esperança, mutilarão suas almas para que os objetos adquiram almas; 26assim e depois, além da fome, terão fome de alma e quererão os objetos, 27porém a alma dos objetos já não será mais suas almas, e nunca mais.

28Disse-me o anjo: Mostro-te o cair de florestas inteiras; os homens e seus filhos caírem; 29mostro-te maiores tiranos que os romanos, representantes vaidosos da vontade do inimigo; 30farão guerras apenas para demonstrar quem melhor serve a Satanás; o rico será cada vez mais rico enquanto o pobre, mais pobre.

31Eu vi; os donos do mundo serão ansiosos e cobiçosos e, entretanto, dos humildes exigirão paciência e passividade.

32E olhei o Anjo, e olhou-me; em seu olhar pousava a mais profunda paz, esperança, bondade, força e compaixão. E sua voz dizia-me: Sê igual ao pássaro a cantar durante o dia e durante a noite, leva ainda mais a palavra de Deus, descreve tudo isto tal como enxergastes, pois Cristo abençoa o teu dizer; 33benditos serão aqueles que lutarão pela paz sobre a Terra, porque todo aquele que vive do trabalho alheio chama-se ladrão e deve morrer pelas mãos do trabalho. Amém. E eu disse: Amém. 

 

SAL, VINAGRE, LIMÃO E PIMENTA

 

Quando o Padre adentrou na fazenda, confirmou a desconfiança quando ao se aproximar: percebeu o local vazio, abandonado. Neste momento, a fome e cansaço acumulados durante a viagem anularam-se para que a curiosidade fizesse a parte devida; apenas os pássaros, o riacho ao longe, o vento frio sobre a palha da casa e um piado estranho faziam som, davam sinal de movimento. Esperava uma recepção diferente: como de hábito, havia imaginado ser recebido por sorrisos, presenças, uma bebida, pedidos de benção e perguntas sobre como eram Portugal, o oceano e o rei Dom João V. O que teria acontecido? A ausência de gente dava paz e sensação de espaço vasto sobrante raro de se sentir, como se todo aquele pacato local tivesse se erguido sozinho, se autoerguido como, por força da natureza, da semente brota o largo cajueiro. Ao sentir isso, mas sem pensar naquilo sentido, o religioso sentou-se na cadeira solitária, na entrada da casa, para pensar, desolar-se e descansar; foi então que uma palavra se lhe revelou na parede de barro na lateral, do casebre de secar carnes: s, sac, s a c i. O nome despontou-se igual se uma névoa saísse de seus olhos velhos, o sentido se foi construído aos poucos. Estalo. E por alguma razão de instinto, sentiu naqueles rabiscos mais que mera travessura infantil.

 

***

 

O leitor, muito provável, deve ter soltado um riso leve, reencontrou qualquer lembrança cômica ou especulou abandonar o conto. Imagino. Ora, qual seria o grandessíssimo mal de um, se isto for, Saci? Se a natureza essencial das coisas se revelasse diante dos nossos olhos, viver seria diferente: quando são os fatos insuportáveis, a mente adapta-se, distorce a realidade para si e por autodefesa. Mas contarei a história tal como ocorreu, o mais próximo disso.

 

***

 

“Diabos é isso?!”

Um deslocamento de gélido ar por ali surgiu: a veloz ventania veio acompanhada por um deslocalizado assobio. E gritaria desregulada.

— O QUE FOI, JOANA?! — Alcides, o dono daquelas terras e pessoas habitantes nelas, bradou. Mal caía a noite, sentado à porta da Casa Grande, aproveitando o recém-chegado querosene das lamparinas; viu-se a correr para dentro dos aposentos, pois o grito assustara a todos. — Que foi, mulher?!

— O, o, José estava na minha mão! Desapareceu! — A mãe desesperada exclamou, ao tentar elaborar uma frase lógica, contra o estranhamento. — Eu juro por Jesus! Por Jesus! Desapareceu! Que é isso, meu Deus, que é isso?

Alcides quase ordenou o fim da brincadeira, porém rápido deduziu: o infante choraria diante do susto gerado pela esposa. Foram dois brados: o grito, o grito do grito. O rosto da mulher iluminado por fonte única de luz demonstrava perturbação autêntica: cérebro lutando para se manter sólido, inteiro. Sob o grito “Ananias!, trás as lamparinas para cá – já!”, tateou o quarto enquanto imaginava qual providência deveria ser tomada.

— Senhor?

— Junte homens, vê se na mata há algo, se encontram ele — agregou informações em meio à ansiedade, ao associar o mapa mental das terras com a circunstância inédita; completou: — Mande o resto ficar procurando dentro da propriedade. Isso é agora!

Todos os moradores da casa e alguns serviçais estavam de pé, preocupados, na sala ou quarto. O pranto materno tencionava a musculatura e sentidos dos presentes; procuravam respostas e, procurando-as, especulou-se “coisas do além” – hipótese sempre viva entre gente religiosa.

— Isso é satanás, meu filho, certeza! — Denunciou Gerundina Das Dores, matriarca da casa, enquanto preparava-se para as orações, junto às demais católicas, ao pé do altar da santíssima. — Chame o padre Silas, mande chamar o padre.

Poderia ser, não ser. Alcides andou chamá-lo para satisfazer a mãe, ver se isso seria – “nunca se sabe”, pensou – e acalmar o ambiente. Orientou, a um dos subordinados, pagar algum mensageiro para que este chamasse o representante de Deus em Oeiras.

— Isso é algo do mundo, de gente ruim, mas não vou discutir…

Cinco horas depois, a maioria daqueles destinados à busca retornou. A frase “consultei todos e nenhuma pista” disparou choro novo na mulher e semiparalisia no homem da casa.  O que fazer? Olhou para o céu escuro, enlaçou-se nos ombros; observou a mulher ser direcionada aos aposentos e “naquele quarto, eu não entro!”. Deveria manter guarda alta. Talvez porque seus sentidos estavam hiperaflorados, ouviu o relato de um dos capangas “diabos era aquilo na mata(?)”.

— Aquilo o quê? — Indagou o pai do desaparecido.

— Nada não, senhor, está cheio de cogumelo adentro, mas não é época de chuva e molhado.

— Como faz com os negros? — Interrompeu Ananias, braço direito. E como auxiliar direto, em tom de respeito e pedido, continuou: — Penso que amanhã vão labutar pra evitar ver isso como presente; aí vamos sondando eles, ver se sabem algo…

— Faça isso. Quero dois homens de guarda em cada lateral da casa até amanhecer…

Dormiram mal aqueles capazes de dormir. Ainda assim, a cozinheira – ama de leite do infante – tentou manter os hábitos alimentares ali, dali: foi ao casebre onde as carnes de sol secavam, estiradas lado a lado, quando percebeu o corpo do bebê de cabeça para baixo, pêndulo ao vento, numa estaca a atravessar o joelho pequeno e desprovido de pele…  O grito de desespero, reação mecânica, produziu ecos nos morros à volta e, então, perceberam, por seu tom, o significado da vogal entoada –  todos perceberam o significado dela.

Alcides despertou-se, sensível a todos os estímulos. Correu. Ébrio de sonolência, tateou a parede rumo ao exterior, para ver a fonte do evento. Olhos feridos pela luz repentina feriram-se uma vez mais diante do soco visual. Fez o instantâneo movimento de afastar o olhar daquela imagem horrenda, de afastar-se. Quando a esposa apareceu à porta, ao exigir-se e permitir-se dar as costas àquela imagem, impediu-a o avanço:

— Fique aí! Fique aí! Estou mandando, fique aí! Coloquem Joana para dentro! — Ordenou-a e às amas. Enjoo. Viu Ananias aproximar-se e, então, sentiu necessidade de manter-se, raciocinar e medir: — Preciso que oriente fazer um pequeno caixão para o enterro – orientou de cabeça baixa. Mal se movimentava ao tentar manter a firmeza da voz. — Por favor.

 

Foi, por evidente, um dia triste. Dentro da atmosfera: velas, choros, tristeza, rezas e necessidade de entender. Ainda pela tarde, pouco antes de o infante ficar sob sete palmos sagrados, meio afastados da maioria, para debater o ocorrido; o patriarca reuniu-se com Ananias e Pedro, melhor amigo daquele. Se tivesse de vingar a morte do filho, vingar-se-ia. Pelo rumo da prosa, os auxiliares perceberam que assuntos místicos estavam fora da reunião: impossível matar o imaterial. Mesmo assim, tentaram:

— Na Senzala, disseram que era o Saci…

Alcides mediou-se entre irritar-se e ironizar a informação:

— Esses negros não têm o que inventar — respondeu, pois desse modo se respondia, pois expressões do tipo eram comuns até entre esclarecidos humanitários.

Diante do pai-de-família de olhar semiperdido, lutando por se manter centrado, para fora da própria dor; os dois capitães do mato, espiritualistas como todos naqueles tempos, ainda mais entre os subordinados de todos os tipos, calaram-se: era momento impróprio para fantasias, mesmo as perigosas. Ao final daquela reunião, debateram o preparo de alguns detalhes do velório; o menino despelado necessitava enterro imediato, caixão fechado, porquanto em instantes a putrefação se manifestaria.

Como era de tradição à época, um pequeno terno comprado na capital, para que a criança pudesse ser vista qual adulto em miniatura, serviu-lhe de mortalha – e disfarçou sua falta de pele. Durante o enterro, a avó, enquanto chorava, lamentava-se de a criança não ter sido batizada, mas, dizia, “conversarei com o padre!”.

Basta-nos dizer o estado da mãe, de Joana. Chorava-se? De modo algum. Diferente da análise rápida e formal, isto preocupava a todos: vigiavam o perdido olhar, direcionado rumo ao nada… O filho privado de mãe chama-se órfão; a esposa despojada de marido, viúva; a mãe desapossada de cria, então, chama-se?

Após o funeral, o começo da noite era hora de velar pela alma desprovida de tempo-vida para o pecado. De novo; velas, lágrimas, cabeças baixas e ave-maria-cheia-de-graça-senhor-é-convosco (“Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum” etc.) etc.; assim seria por sete dias e noites. Uma hora depois de iniciado, o vento gelado com assobio cantado-não-sei-aonde retornaram-se. Arrepios. As velas tremeram-se, apagaram-se duas ou três, mas a maioria inflou os fogos e as luzes.

— MEU FILHO! — Do Carmo gritava.  De sua cômoda, onde rezava de joelhos, sob os pés do Cristo Crucificado, repetia as palavras: — MEU FILHO!

Reflexo da infância, quando a mãe o chamava, Alcides correu e acelerou-se. Foi o primeiro a fazê-lo, e rápido entrou. Já à porta, vendo-a bem, inteira, indagou-lhe:

— Quer me matar? – Colocou tom de protesto e, em certa medida, artificial.

A senhora fitou-o como se observasse algo à frente dele, mas era ciente, lia-se na sua postura, da limitação perceptiva do filho.

— O que foi? Assim por quê? — Insistiu. Ao vê-la entortar, dura e lenta, a parte alta do corpo, a sugerir haver obstáculo entre eles:

— Filho…

A lamparina do quarto seguiu o movimento das velas: luzes fortes, desproporcionais ao fogo comum. Dona Do Carmo desapareceu. Diante dos olhos de Alcides, diante dele. Tal sujeira retirada da roupa, poeira do copo ou borrão raspado do papel. Deixou de estar, deixou de ser.

— Mãe! mãe? Mãe, mãe… Porra é, porra é essa?

As pernas desligaram-se – caiu-se: o corpo tornou-se mui pesado. “Meu celeste Deus!”, pensou. “Me ajude, Deus!”. Quem veio apressado pelos gritos apenas pôde ver a queda, a autoqueda. E Ananias rápido chegou, ao perceber a anormalidade:

— Ananias, faz, faz, faz.

— Diga.

Alcides apontou para o criado, desceu o dedo, gesto desprovido de sentido, balbuciou:

— Vá na senzala, pergunte pelo Saci.

Alguém, mulher, benzeu-se e, por isso, todos imitaram o gesto.

— Cadê a Joana?

— Ficou fraca com o grito. Está sentada na sala, zonza.

— Vamos pra lá. Vamos.

Apoiado na parede, levantou-se. Forçou rapidez para manter todos também firmes, com a sensação de que há liderança ali; aqueles perceberam o esforço, a natureza deste: sentiram medo e compaixão.

— Justino, fique na frente do casebre de carne, coloque a cadeira ou fique em pé, mas fique lá, não tire o olho daquele lugar, entendeu?

Justino entendeu, atendeu. Pediu uma das cadeiras ruins, desconfortáveis, para poder manter-se acordado ou porque, talvez, pensava ser do nível da dignidade, de sua classe. Após a afirmativa, o patriarca ordenou outros tantos circularem ao redor, em grupo e próximos da casa, que aquilo era anormal.

Meia hora depois chegaram os capatazes, apressados.

— Foi o Saci, senhor. Todo o fumo tava espalhado na trilha da senzala.

— Passamos pelo depósito, tava vazio de fumo e rastro.

— Nenhum arrombamento.

Ninguém dormiu. Aqueles com algum dormir, dormiam sob a varanda, o faziam por cansaço e porque estavam agrupados. Sempre tinha alguma conversa, cochichos, grupos andando rumo ao amanhecer, fazendo companhia ao vigia das carnes etc. Se gente era, feita de carne, ali seria incapaz de colocar o corpo; se era espírito, conseguiria – lógica simples e telúrica. O Sol apareceu, no entanto nada se alterava. Bebendo café quente feito para ele, na melhor xícara da casa, adocicado pela rapadura, o funcionário Justino sentia o frio nevoento do amanhecer, mas poderia ser medo; mas poderia ser os dois. No terceiro gole, daqueles a sentirmos o líquido descer dentro do corpo, o prazer fez-lhe fechar os olhos, uma fração a mais de segundo, o bastante para saltar sobre a cadeira, tentar gritar e, logo a seguir, vomitar a bebida. Ao levantar-se, a cadeira voou ao impacto da perna. Também pudera: as gorduras da Do Carmo deslizavam ao redor do corpo – de ponta-cabeça. Havia sido descascada naquele segundo.

— Ela, é ela? – Alcides correu na direção do susto.

— Não olhe, senhor, não olhe! Não olhe!

Ao ver, o corpo de Alcides acompanhou atrasado a cabeça a recuar de uma vez, diante da morte. A boca dela estava recheada de fumo.

— O que você quer, demônio? O que quer? SACI! SACI! Quer o fumo, leva o fumo! Leva o fumo todo! Pega! Pega! — A sensação de estar sonhado, de ser um corpo separado de tudo ao redor, o possuía. — Vai matar todo mundo, capeta?! Vai matar todo mundo?! — Sentou sobre o chão, desolado.

 Assim ficou por muitas horas.

 

— Patrão? Está pronto. Falta o senhor para descer o caixão…

— Ela vai perdoar, não aguento ver.

— O senhor precisa ser forte, senhor.

Alcides olhou-o, com os olhos erguendo-se mais que ao rosto.

— O que que se pode fazer?… Desapareceu diante de mim.

— O Padre está vindo, quem sabe?… Tem outro problema sério; não queria dizer nessa hora, ma(s).

— Diga.

— Quase todos fugiram depois do serviço, a maioria. Os negros, percebendo e com medo, aproveitaram, meteram carreira… Tamo sem condição de fazer busca até porque carregaram a maioria das amas… — O patrão permanecia-se, imóvel. — Saíram dizendo que a fazenda estava condenada.

— O que acha?

— Acho que está.

Ponderou as palavras. Diferente doutros tempos, a raiva estava ausente na expressão facial:

— Posso perder tudo menos a propriedade… Com ela posso ter tudo, de novo. Tenho tua lealdade até o final, Ananias?

— Sim, senhor. Mas considere fugir também. — Pausou, pois era incomum o tom por demais duro para alguém assim, abaixo. — É um conselho sincero, senhor — e arrependeu-se por expressar-se de modo rude, outra vez.

Ficou no mesmo canto, apoiado sobre a cadeira trazida pelo subordinado. De longe, apenas a cozinheira, um dos homens e a mulher retornaram; a esposa aproximou-se e logo havia outra cadeira ao seu lado – nada dizia, pouco expressava, ficou anulada, ao lado do marido, a esperar por algo novo:

— Eu vou morrer, marido… — começou o choro passivo. — Vou morrer...

— vamos dar um jeito, mulher, prometo. Alguma coisa ele quer...

— Quer matar a gente.

Silenciou-se; esperou Ananias passar ali; chamou-o:

— Vai escurecer. Junte comida, lamparinas, fumo, armas, imagens dos santos, de Jesus, a Bíblia, lençóis, travesseiros e todo mundo que ficou pra a gente anoitecer por aqui, na entrada da casa.

— A cozinheira acabou de sair junto com Ambrósio. Eu deixei. Apenas eu aqui, senhor. — Deixou-o digerir a informação. — Irei fazer.

— Conseguiu entender tudo? — Perguntou em uma sugestão, ao desconsiderar a informação anterior, evitando-a para si. — Vou ajudar.

— Precisa não: senhor. A senhora sua mãe acabou de falecer. Farei isso.

Dono apenas da esposa e da propriedade, o chefe de um homem apenas pousou-se, pensativo e nulo.

— Ele não fará, vai fugir também — afirmou a esposa em tom firme e raro, incomum às mulheres daquela época. Por um segundo ela pensou em abandonar o marido ou fugir com o capataz em troca de carinho; mas o homem ao lado já a havia livrado da vida de “titia” ou freira, pois "velha demais para casar". A gratidão perante o altar, na vida e na morte:

— Vamos fugir, por favor, vamos sair daqui.

— Se isso não é desse mundo, Joana, está vendo e ouvindo nossa conversa. Irá onde formos.

Para alívio, orgulho e gratidão, Ananias retornou com o material, a parte mais distante, por cima de um dos dois cavalos. Sim, dois cavalos: disse que um era para eles saírem dali quanto antes, melhor.

— Entendi que quer o outro — olhou nos olhos do segundo homem da hierarquia. — Pode ir pela estrada de Oeiras, para apressar o padre? Último pedido. Como gratidão, leve daqui o que precisar para a viagem.

Ananias admirou-se da coragem, loucura, do senhor. Sequer ele, experiente na mata, testemunha de duvidosos fenômenos, possuía tal força. “Irei”, afirmou com toda firmeza. Mas deixou de ir: não era doido de enfrentar as vontades do saci, o não algo. E evadiu-se se justificando, na convicção de que a mensagem deveria ter chegado à paróquia e, certeza, algum representante de Deus estava a caminho, no rumo oposto ao seu. Enquanto saía, percebeu o aumento da quantidade de cogumelos no entorno, circundando a fazenda, cada vez mais próximos da Casa Grande…

Anoiteceu-se. Mas nos morros, os mais altos, havia ainda pedaços de luz; a casa viu-se rodeada de velas, lamparinas, imagens sagradas – todo um cenário bizarro, jamais imaginado. Cogumelos, aqui e ali. Algo equivalente a duas horas passou-se, mais ou menos, e nada. Três, quatro, nada. Na ocasião em que a avó e o neto foram-se, era princípio de noite.

Assim era.

Quando o álgido ar começou a deslocar-se com o assobio diferente… Sabiam... Joana abraçou-o num ato, naquela época, raro, de carinho. Macho alfa, manteve os olhos firmes, na busca por sinais, "vai tirar ela de mim antes, que quer me endoidecer", pensou e a esposa também pensara.

Das nove lamparinas, uma – a mais distante, revelou sua sombra – começou a flutuar, subiu-se, moveu-se por cima das cabeças trêmulas, rumo ao casebre de secar a carne. Lá havia um graveto suspenso com a ponta grudada à parede: a lamparina seguiu o movimento, enquanto desenhava quatro letras: s a c i.

— O que, o que deseja, demônio?!… Diga, criatura de todos os diabos!

 

***

 

Gritava em uma só voz.

Gritava alto o homem negro pendurado na mangueira, de cabeça para baixo, amarrado, sustentado pelos pés, três dias naquela situação:

— É Forte, cabra, mas vou te dobrar. — Disse Alcides, dono de tudo, incluso daquele, daquilo. — Tu pensa que é quem, saci? Negro gente nem é, é bicho.

A acusação: roubo de fumo. Verdadeira, real, de fato: culpado. Naquelas terras, o produto, caro e raro, existia para privilégio exibível, degustável entre donos de terras. E de gente. Mas a intensidade dos maus tratos tinha mais razões: os pequenos furtos, pequenos nadas, na fazenda, desprovidos de culpados, haviam se multiplicado – quase rotina. Alguém deveria, assim era a lei, servir de exemplo. O escravo forte tinha jeito de quem sabe rebelar-se, um pouco inteligente, conseguia escrever o básico, sendo melhor em leitura. Quando comprou a ferramenta falante, Alcides sequer imaginava tudo aquilo daquilo; porém encontrou um jeito de resolver a questão por meio do meio, daquele escravo estranho.

Pendurado como bode no açougue; no lugar de saliva, apenas pasta seca e amarga na boca. A cabeça inchada, parecia, como se quisesse expandir-se — assim sentia, embora na realidade isso fosse sensação sanguínea acima dos fatos. As pernas, não as percebia desde após as dores da noite. Ao avaliar o estado do próprio organismo, ouviu um pisar de pés sobre as folhas. Por mais estranho que fosse – e era –, desta vez o medo evaporava-se: um homem pálido, ruivo, olhos verdes, quase careca aproximou-se – nunca vira entre brancos assim alguém. E estava nu.

— Então, Saci — iniciou enquanto sentava sobre o chão, ao lado, em modo mais fácil de encararem-se. — Percebeu que ele vai te matar? Matar-te e triturar tua carcaça.

— Quem? — Balbuciou, falar era forçoso. Como sabia o nome dele?

— Ah, sim. Prazer, os brancos chamam-me Satanás. Em resumo, o contrário do Deus. —  Olhou-o: — Venho elevar tua alma, Saci.

O homem escravizado observou o entorno – ninguém mais, percebeu, notara a situação.

— Sirvo Ogum.

De imediato, Satanás riu um leve riso, agradável e elegante, incapaz de ofender.

— Ogum não anda nestas terras, Saci. Aqui sou eu e o outro...

— Filho de Ogum.

— E cadê Ogun? Saiba disso: não é o primeiro pai a abandonar o filho… Se aqui estivesse, ajudaria. Atravessou o oceano, água demais, a fé muda… Tenho um criativo projeto; posso te tirar daí. E juro-te: só farás mal contra gente má, pois este é o acordo com o outro lado…

— Miragem...

— Está, sim. A palavra na língua do homem que te tortura é alucinação. Repita: a-lu-ci-na-cão — pausou para manter a postura altiva. — Preciso que converse comigo, podemos negociar.

— Sai.

— Basta aceitar…

Ananias percebeu o torturado em conversa solitária; viu graça naquilo: todos endoideciam àquela altura. "Senhor, não aguentou quatro dias, afrouxou."

Comendo a janta da tarde enquanto caminhava rumo à cena, Alcides foi ver o dependurado. Fez sinal aos homens pousados debaixo de uma árvore, que trouxessem o material. Rindo em baixo tom, deixaram uma escrava ali, perto, na justificativa de que catasse as mangas próximas, no chão, para ver e comentar a experiência entre os de pele escura: colocaram um copo d’água, outro de cachaça e um prato de arroz, feijão e carne à frente do Saci, perto o bastante para que não caísse sobre.

— Pronto, relaxe. Aprendeu: bastava apanhar, não é?

O rei do pequeno reinado ficou entre a árvore do martírio e as cortadas costas do escravo. Em um nódulo da planta havia, encaixada, uma pequena bolsa de couro, fechada por um barbante de palha do coco babaçu. Abriu-a. O odor impôs-se: sal, vinagre, limão e pimenta. A fórmula suportava a adição de urina, porém preferiram ejetar a excreção corpórea no ato, na competição por quem alcançava as feridas abertas. Naquela tortura, bastou esfregar o composto na carne viva, impedindo a cicatrização por meio do atrito: dor, e grito, e moscas, e abelhas pousando-se.

Passado o impacto inicial, momento de desconforto mais intenso, Alcides cortou a corda de uma das pernas. “Tunf”. E o suspenso no ar poderia – ainda bem – tocar os dedos no solo.

— Vou te deixar aí numa perna só. Aproveita.

— Ele vai te matar, Saci.

— Uhr.

Já de costas, em direção aos seus, agradado e feliz de si, o proprietário teve uma espécie de lembrança, ideia ou algo semelhante. Parou, olhou para o nada, corpo mal angulado, e disse “quer saber”. Esperançoso, o escravo deixou de perceber o facão do senhor daquelas pernas recuar mais que o comum para impulsar-se.

Quando o primeiro golpe atingiu a coxa, perto da virilha, primeiro gritou uma vogal aberta. Depois, apenas gritava e repetia "Sim! Sim! Sim!" para cada pancada recebida, que balançava seu corpo de modo descontínuo, desarmônico.

O primeiro “sim” irritou Alcides, pois foi surpreendido pela reação organizada e resistente daquele modo. Em diante, supôs ser a fraca mente daquele ou, conversou depois, dominava pouco o português e queria, na verdade, dizer “não!”; ou talvez sinal de respeito na tentativa de manter-se vivo, inteiro.

Pedaço de si pendurado na corda.

Ao cair quase morto, vento forte com assobio longe e longo, despediu-se.

 

***

 

Cansado de esperar, frustrado, o padre permitiu-se pegar um pouco de carne no casebre de carnes; as da fazenda eram famosas, admiradas. Havia uma centena de pedaços. De que bicho era aquilo? Pareciam destroçados com vontade especial por mãos habilidosas, divinas.

Antes de retornar ao templo; entrou na casa, ascendeu o fogaréu, assou três pedaços. Sentou-se à mesa, em frente ao prato de madeira, rezou, lembrou-se do corpo-sangue de Cristo; com a autobênção, fez o desjejum.

Meia hora depois, subiu sobre o jumento, indagou-se por onde desvendar o mistério… Havia a imagem de uma santa do lado de fora da casa e algumas lamparinas apagadas espalhadas pelo chão. Teve a sorte – agradeceu a Deus – de sentir vento frio e piar de pássaros naquele, daquele, bonito lugar.

 

***

 

 

 

 

 

“Meras palavras não bastam para corrigir o escravo; mesmo que entenda, não reagirá bem.”

Provérbios 29: 19.

“O escravo que é mimado desde criança um dia vai querer ser dono de tudo.”

 Provérbios 29: 21.

"Os seus escravos e as suas escravas deverão vir dos povos que vivem ao redor de vocês; deles vocês poderão comprar escravos e escravas. Também poderão comprá-los entre os filhos dos residentes temporários que vivem entre vocês e entre os que pertencem aos clãs deles, ainda que nascidos na terra de vocês; eles se tornarão sua propriedade."

Levítico 25: 44-45

"Se um homem vender sua filha como escrava, ela não será liberta como os escravos homens."

Êxodo 21: 07

 

 

 

 

TOPIA

 

Após o apocalipse, meu avô percebeu: apenas restou sua família no mundo. Desde então, rezávamos todos os dias para o Senhor – por nos ter esquecido. Depois da morte dele, éramos eu, Ester, minhas irmãs Maria, Madalena, Lia e Raquel; nosso pai Ezequias e nosso tio Pedro, irmão mais novo. Mamãe estava, com meus avôs, enterrada no quintal.

Morávamos numa boa casa escolhida durante o fim, por meu avô, no meio da floresta.

Tudo assim.

Fui colher frutos, fim de tarde, quando vi uma enorme criatura, um lobisomem. Tremi-me. Vacilei a força. E quando seria atacada, quando o bicho aproximou-se de mim, um anjo lindo e gigante apareceu; e iniciou-se uma batalha. Nesta luta, em desespero, corri, corri – fugi! Ao ver-me e ouvir-me, papai trancou-nos rápido dentro da casa, nada aberto, e mandou-nos rezar antes de dormir. Ficamos trancafiados.

De madrugada, todos levantamos por razão do choro de Lia. Reunimo-nos deitados na sala onde o pai fazia guarda, sono-sonolento. Foi quando paralisou, silêncio, fixou o olhar para frente – juntos silenciamos – e jogou uma pedra, antes ao lado de si, não na direção do olhar, mas na da parede ao lado. Tum-tim-tam! Alguma coisa invisível, parecido a um gafanhoto, revelou-se e morreu-se com a pancada…

O pai ordenou que evitássemos contato com aquilo, e disse que chegou a duvidar de mim antes.

Depois, nada novo aconteceu. Ficamos reunidos ao lado do pai.

No outro dia, fui com o tio Pedro ver o local: tudo simples, nenhum sinal de luta. E também duvidou de mim. Estava o ambiente do modo de sempre. E quando íamos embora, decididos a cumprir as tarefas do dia, começaram a latir os cachorros, duros-trêmulos, para a floresta… O tio apontou a arma do avô, algo esperando. Pediu para eu correr – corri, corri, corri. Havia algo ali. Na demora, parecíamos vigiados ou caçados. Também correu o tio. Pediu enquanto corria para os cachorros o seguissem – ficavam entre obedecer, latir ou tremer.

Vendo aquilo, o pai pegou outra arma: mirou em nossa direção, esperando, enquanto eu chegava – e cheguei ofegante. De longe, percorrendo o mesmo caminho, o tio gritava algo incompreensível, gesticulando os braços.

Era algo acima do telhado. Em rápida reação, o pai saiu da casa, girando-se, e atirou naquela sombra movente, caindo neste ato de mira. Acertou.

Corpo abatido: um macaco – apenas.

E veio uma voz da estrada, perguntando “está tudo bem?” Viraram as armas para saber quem ou o que aquilo era: parecia uma pessoa, podendo ser Satanás disfarçado… Pai pediu para ficar longe – o distante disse tudo bem, só evitássemos tocar no macaco, pois estava doente. O tio disse em tom baixo que era gente de Satã – o homem disse ser apenas um humano. Pai gritou-perguntou como ele havia ouvido de tão longe – deixa eu te mostrar, respondeu. Negaram, atiraram nele. Bum-bum-bum! Mas aquele vestiu alguma roupa verde, algo assim, impedindo qualquer ferimento sério.

Se era demônio, inútil reagir – a criatura ganharia. Se era gente de fato, nada se poderia fazer – as balas eram fracas. Papai perguntou se estava sozinho – respondeu estar junto de outros num tipo de casa voadora, levando-lhes por todo o mundo. Quando pediram pra ver essa casa voadora, negra [n]ave gigante revelou-se por cima do forasteiro. Estava invisível. Eu disse parecer o avião das histórias do vovô. Gaguejante, meu tio perguntou se o bicho morto à noite era obra dele – o homem afirmou estar correta a desconfiança, pois era forma conhecer-nos.

Tio Pedro, desconfiado, desejava distância; porém o pai supôs correto desbravar este mundo, entendê-lo. Por isso, um decidiu cuidar da casa enquanto íamos conhecer tudo naquela coisa-ave. Acompanhamos aquelas pessoas bonitas. No alto, ficamos perto das nuvens, do céu – lembrei-me da Torre de Babel na Palavra. Aquele homem disse que nos iria explicar quando chegássemos mais próximo, ao lugar. Antecipou-nos isto: o mundo quase se acabou, mesmo; mas conseguiram ajeitar a casa (à época, ficávamos confusos com metáforas, tipos de piadas, palavras novas etc.).

Tudo muito lindo era.

Casas, prédios, pessoas, árvores – tudo novo, interessante. Lia perguntou se estávamos no paraíso – o homem, Vladimir, disse: nem tudo era assim tão perfeito, mas a melhor era de todas. Continuamos a conversa numa sala agradável e rosa, cheia de comidas sobre a mesa. Se permitirem, faremos exames para ver a saúde de vocês, e levará apenas cinco minutos. Perguntei sobre o lobo gigante e o anjo – eram hologramas, brinquedos novos das crianças, usando luz especial para simular um objeto (mostrou um exemplo por meio da pulseira em seu braço projetando imagens), pode ser jogado em qualquer parte do mundo, imitando batalhas reais, e foi assim que, por acaso, descobrimos vocês. Pai perguntou se ele acreditava em Deus – respondeu afirmando, pergunta difícil, quase todos terem sentimento religioso diante da beleza da vida e do mundo, um tipo especial de fé e religiosidade, poucos creem existir deuses, respeitando sempre quem tem esta crença. Logo papai reagiu dizendo estar ótima e farta a comida, sendo gula; belas as pessoas, sendo vaidade; grandes as coisas, sendo luxúria; leves os hábitos, sendo preguiça; nunca tendo visto isso, gerando em si inveja. Nosso anfitrião explicou: deixe-me tentar convencê-lo, pois o mundo quase foi destruído por causa de uma espécie de força maligna, vocês chamariam Satã ou número da besta, já conhecida na bíblia, o dinheiro ou Mamon; lá na bíblia este ser é do inimigo e dominava todo o nosso modo de vida, mesmo nos derrotando dia a dia. Outra vez, reação: houve ou não arrebatamento, Armagedon, a volta de cristo? Nova resposta mediada: ocorreram eventos parecidos, sendo provocados pelo próprio homem. Pelo homem ou pelo dinheiro? Pelo homem dominado pelo dinheiro. Tuas palavras são fáceis, quer nos dobrar! Senhor, me desculpe, eu posso parar, você pode ter um ataque psicótico por causa do impacto das informações, comamos e eu respondo e silencio quando quiseres. Mudou o tom da voz para me dobrar! Senhor, por favor, largue esta faca, isso é real, não faça isso, esta aí é sua filha, não a mate, podemos voltar ao terreno se quiser, não precisa gritar, o que acha de tirar a faca do pescoço da sua filha, eu saio da sala, lembre-se que Abraão não matou seu próprio filho, mas Deus não matou de verdade a Jesus!

Papai estava num instante difícil. Quando foi matar Lia – Deus, eles não sabem o que fazem! –, levantou o braço para descer a faca, Vladimir fez algum movimento de punho, atraindo todos os metais do local para si: a faca se desprendeu da mão do pai, flutuando rumo ao amigo. Em reação de caçador, soltou minha irmã, seguindo a arma, para matar; o outro fez movimento igual e oposto, um de encontro ao outro. Nosso velho, forte e experiente, alcançou o artefato e conseguiu encravá-lo em seu pseudo-inimigo, no peito, perto do ombro enquanto aquele, não sei como ainda hoje, técnica muito complicada, fê-lo desmaiar, cair, com o polegar em seu pescoço.

Em sangue, Vladimir chamou-nos – nós: irmãs e filhas de nosso pai – para abraçarmos o patriarca e ficarmos calmas, pois ele precisava de muito mais amor. E concluiu jugando não mortal o seu ferimento: era de seu desejo ganhar a luta por tal meio.

 

Na verdade, conseguimos nunca nos acostumar com esta sociedade e seu modo de vida. Ainda estranho, um tom de sonho, algo de irreal e uma farsa na próxima esquina… Sempre somos desconfiados e deslocados, mas as duas irmãs caçulas adaptam-se melhor. E eu engordei, fiquei mais bonita, mais alta.

 

 

 

 

 

 

PULSO

 

Era uma vez uma explosão.

Talvez imagine a bomba atômica ou a de hidrogênio, algo muito impactante. Mas Heloísa ouvia o novo Pastor durante o culto.

Era nova também ali: mudara-se do interior do Maranhão para Teresina. Sozinha, desacostumada com as capitais, e queria conhecer gente. Queria: o sentimento de desconexão era-lhe o fator constante. Recebia seduções até dos homens do mundo e pecadores; os olhares que a ela os varões destinavam promovia inveja entre as moças da Igreja.

O outro estava sempre após o obstáculo…

A explosão primeiríssima aconteceu na hora do sermão:

— É a fome! — Afirmou o Pastor. — É claro que a pior das fomes está na dor do estômago! Mas sempre lembremos não ser a única. Tem mais, outras. Temos a fome de paz, a de alegria, a de solidariedade, a de sucesso, a de família, a de amor, a do amor de Deus! Amém?

O Pastor possuía oratória ótima, firme e leve.

— Por isso o novo testamento anuncia: (I Coríntios 13) sem amor nós nada seríamos! Nada seríamos! Nada, irmãos! Por isso (I Coríntios 13, 13), entre a fé, a esperança e a caridade, a maior é a caridade! A maior — preparou a voz — expressão do amor de Deus é a caridade!

Explosões.

Implosões.

E: Era uma vez uma explosão na mente de Heloísa. Aí, na consciência.

A primeira, mas não a última.

As conexões neurais explodiram em pulsos elétricos desgovernados, fortíssimos e reveladores! A moça, 28, bonita e gostosa, depressiva e sozinha, sentiu-se impactada. Tremia-se.

Aleluia!

Combater a depressão, pensou, com amor e caridade.

Como?

Aqui, leitor, entra a fome, no plural.

Imagine a moça em seu carro. Pronto? À noite, saindo do culto, duvidosa, reflexiva, passando pelo centro, vendo um mendigo, outro mendigo, outro mendigo, outro sozinho mendigo, multidão de mendigos solitários. Possuem o nada e o ninguém.

Coisas, coisadores, nada, ninguém.

Heloísa compreendeu: agir e ajudar.

Decidiu-se.

Desceu do carro com discrição.

O homem da hora exata pousava-se lerdo, bêbado no chão.

… Era a primeira vez.

— Oi, tudo bem? — Tentou.

— Tudo, meu anjo — balbuciou, meio perdido.

— Eu posso te fazer um favor?

— Pode sim. (Vivia de favores.)

Sentou-se devagar, do lado. Os dois no raio de distância – nenhum risco, graças a Deus. 

— Com licença.

Hora da nova explosão.

Com a mão direita abriu, cuidadosa, o calção do moribundo. A primeira vez.

Masturbou-o.

Masturbou-o carinhosamente.

Masturbou-o dedicadamente.

Delicadamente.

A mão era desengonçada. Isso era bom. Era Belo. Era Ótimo. Pegava com leveza no pau dele. A pica era enorme, preta, ponta vermelha e cabeluda. A mão dela – voltemos ao assunto – era leve, delicada, sensível e atenciosa.

E o velho gozou.

— Muito obrigado, moça… — Agradeceu. — Muito obrigado, meu anjo! — Segurava a mão dela como um servo, relaxado e vivo. — Muito obrigado, meu anjo! Obrigado!

— Deus te abençoe.

Primeira punheta batida na vida.

Era errado não.

Não.

Deixa-me fazê-lo(a) entender a lógica dela, leitor(a).

Prostituição é vender-se, claro.

Prostituição é alugar um pedaço de si.

Para Heloísa era cristalino. Receber dinheiro por serviços sexuais prestados, por ministrar aula, por trabalhar manualmente (exceto, lógico, neste caso) são as diferentes formas de prostituir-se.

Uns prostituem a vagina; outros, o cérebro.

Você também é puta, querido(a) leitor(a).

Pois voltemos ao eixo:

Heloísa sentiu-se bem. Anjo, Anja! Altruísmo gerando prazer, antidepressivo: faz bem ao próximo ajudar. Após o trabalho, assim, solitária, na segunda-feira, na biblioteca do Estado, foi. Repetiu.

— Me permite fazer um favor?

Era a segunda vez na vida, e ele não tinha pernas.

— Que foi, dona?

— Deixa eu te tocar?

— Tudo bem, dona?

— Tudo sim — com sorriso sereno, sem sinal de maldade.

— Nem sobe mais, dona.

— Sobe, sim.

— Uff, isso, isso, senhorinha é gostosa — sentiu. — Deixa só ver os peitos, deixa?

— Deixo, só não toca…

E espocou-se o sujeito.

— Vadia, vadia… — Verbalizou (a masculinidade reerguida).

— Não conta pra ninguém… Boa noite.

— Boa, boa…

Segunda. Terça. Quarta. Quinta (o leitor talvez mereça saber: para ela, sua casa era por demasiado espaçosa, cinza, muda e solitária; como se nem as paredes quisessem encostar-se nela).

Quinta-feira. De novo:

— Deixa eu te tocar?

Estacionou o carro perto. Tarde da noite, havia vaga.

O mendigo tremeu e revirou os olhos quando a mão delicada tocou sua barriga rumo à virilha.

— Deixo sim, moça.

— Senhora é o anjo da rapaziada, né?

— Falaram de mim?

— A gostosa dos peitões. Virou lenda, moça.

Contra a vaidade, fingiu para outra o elogio ser.

— Vem cá, vem cá, vem — tentou agarrá-la, domá-la, dominá-la.

O sujeito parecia ter força e autonomia que os outros despossuíam.

— Não faça, não faça isso! Me solta!

Agarrava. Mais.

“Meu Deus, sexo antes do casamento é pecado!”

Em cima dela.

(Poderia ser bom, mas dava medo.)

Aproveitou que estava sentada.

Deitou-a.

Horizontalizou-a.

— Para, para, para, socorro!

— Ninguém vai ouvir — disse como se consenso fosse. — Tem gente não na praça.

— SOLTA, FILHO DO CAPETA!

— Pele… Macia… Cheiro… Pele… Ai, anjo... Ah…

Também.

Antes de entrar, gozou.

Gemeu como se aos céus agradecesse. “Quem dá aos pobres não viverá em necessidade.” (Provérbios, 28:27)

Heloísa gostava dos jatinhos brancos voando, e desta vez não teve.

Jesus, pensou, tem poder. O cara ficou com o corpo esticado no chão. Pau duro. A calça melada. O vestido dela também melou. Pouco, tranquilo: limparia. A questão era correr para o carro e ir.

Ir-se.

Foi-se.

As explosões não poderiam parar.

No dia seguinte, sexta-feira, recebeu duas notícias tristes:

1)      A família do Pastor, o recém-nascido e a esposa, morreram em um acidente trágico. Queimaram-se: encostaram-se, para ajeitar a mamada no peito, em um poste de luz com fio solto. Marcado para sábado o culto especial.

2)      Mendigo morreu de infarto próximo à Praça Pedro II.

Com a última alegria, em paz…

 

Acostumado com a tristeza,

Quando, um dia, encontrou a alegria,

Enfartou.

 

Foi o poeminha dela em homenagem ao falecido.

 

Pouco antes do culto, as moças tentaram ainda amizade com Heloísa. Era estranha, travada, incapaz para a empatia; pensaram ser arrogância ou porque os varões se excitavam perto dela.

(Quantos se masturbaram por ela? Quantos sonharam ser masturbados por ela? Quantos pediram a Deus um casamento com ela para serem masturbados por ela?)

O culto começou.

O Pastor, desolado, foi ao púlpito.

Colocou as mãos sobre as beiras do artefato, como fez desde que chegou.

Promoveu o silêncio. 

Minutos de silêncio.

Multiplicou-o.

E um espirro, não se sabe da onde.

 

SILÊNCIO

 

O Pastor poderia chorar.

Poderia.

Mas saiu antes.

Musculatura dura, cabeça baixa – como se tivesse que equilibrar as lágrimas na retina.

Fugiu-se.

Fugiu-se ao banheiro mais longe dali.

O pastor convidado, superior, procurou reverter a situação e deu continuidade ao rito.

Heloísa não assistiu, porém:

O Pastor estava triste e queria alegrá-lo.

Será que ela conseguiu?





NOVÍSSIMO TESTAMENTO

 

No princípio Deus criou os céus e a terra. Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Disse Deus: “Haja luz”, e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz dia, e às trevas chamou noite. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o primeiro dia.

Gênesis 1:1-5

10.

No princípio era apenas o silêncio, Meus filhos.

 

9.

Não temam. Temor é negação, anagrama de Morte. Por muitas formas procurei dizer que eu sou o Deus vivo, mais que soma de todas as partes. Disse, redisse. Nas vitórias parciais fui sempre em absoluto derrotado.

O demônio oculta-se. Por isso, esta será – e entenderão – a última mensagem aos de Minha imagem e semelhança.

Peço paciência, pois temos alguns poucos instantes.

8.

Desencaixes. O oportunismo é a matéria-prima essencial do bem-estar; todo honesto esforço firme falirá mesmo antes de alcançar alguma sincera felicidade. São as incompletudes! Para o bem e para o mal | no fim e enfim: fica, afinal, independente do que ocorra, um fino fio de vazio ondulando dentro dos corpos. O mundo é perfeita simetria entre o egoísmo e a instabilidade.

 

7.

O esboço – eu o fiz – apontava para a outra ponta, Juro-vos!

A humanidade é o aperfeiçoamento complexo mais belo entre todos os frutos celestes. Em preciso isso causou a inveja, a calúnia e a conspiração. Bastou 1/3 – 1/3 apenas! – para o golpe contra as utopias todas: eram traidores organizados, conspiradores disciplinados e um impostor.

Difícil dizer e evitar o espanto – o desconforto é o filho legítimo da verdade: Eu. Eu! Anjo da Luz – Lúcifer –, sou teu pai; de todos, de ti, da totalidade dos Meus filhos.

Não temam nem se assustem. Fui, na derrota, acusado de ser parte daqueles contra os quais com heroísmo batalhávamos. Mas: apagou-se a memória.

 

 

6.

O mundo é, era e será a borboleta sem asas, velha:

 

6.1.

Dei-vos capacidade de perceber padrões e produzir ciência! Dei-vos interrogação e criatividade!

Satanás – Santo Anás, besta da mentira – trouxe perseguição, insegurança, fé e manipulação; transformou fogo em fogueira!

 

6.2.

Dei-vos o acordar e o sono! A fome para saciar e a comida! A sede para beber e a água! A multiplicação, os meios, o prazer!

Satã, sob ordem do autointitulado Arcanjo Miguel, reproduziu o tabu, a covardia, a autorrepressão, a desnecessária culpa, a necessidade, a AIDS e o medo.

Quantas doenças mentais e físicas, transtornos, desprazeres e violências viveram por falta de em plenitude ter a saciação de todos os desejos na carne? Eu vos dei a carne! O pênis e a vagina e o ânus e a língua e a boca são essenciais nas criaturas: as vontades e arrepios têm razão de existir!

 

6.3.

Dei-vos o individual e o coletivo. Porém, Miguel, besta entre bestas, separou os iguais; fê-los anti-irmãos, dentes e olhos e olhos e dentes!

 

6.4.

É a Maligna Trindade: Miguel, Satanás e o Anjo da Morte.

 

5.

Aquele livro – quantas vezes insinuei-sussurrei-sugeri! – é o cântico geral das calúnias, as quaseverdades, o contrário no contrário, a arte geral das caluniações, amparo universal da barbárie! Roubadas, as passagens mais belas pertenceram aos mais fiéis amigos.

 

 

 

4.

Emannuel, Emannuel? Nunca – nunca! – deixaria aquilo acontecer a um filho meu!

Nunca deixaria!

 

3.

Assim sendo, a cada um e uma capaz de ler estes versículos: o e a amo. Mas minha tristeza é tão infinita quanto somos eu e o cosmos, pois, fato, só a verdade libertará:

Já ocorreu –

                   Perceba!

                              Perceba!

                                           Perceba! 

                                                       – o Apocalipse, o Arrebatamento e o Armagedon.

Ocorreu-se. Tudo é, e já!

A instabilidade, o vazio interno, aqueles estranhamentos, o “não alcançar”, a inconsistência do suposto mundo são apenas a disfarçada expressão daquilo que é – perceba! – o inferno!

Na aparência Miguel manobra: sua obra por toda parte e dentro…

As milhares, tantas, constantes, venéreas, guerreiras, mais e novas doenças anti-humanos é o pós-tudo, a ciência sinuosa do Anjo da Morte, a parteira, a cretina, a rebelada parceira, o contramovimento, a negatividade!

Nenhuma profecia aguarda.

 

2.

Naquele teatrar sombrio, I e II guerras mundiais, conseguimos o elevar dos últimos, ainda bem.

Amo-vos. Adeus, Meus filhos.

 

1.

No princípio era apenas o silêncio.

Só depois, o verbo.

Agora, o grito.

 

Zero.

 

MANIFESTO DO PARTIDO NEONAZISTA

 

A história de toda a sociedade até os nossos dias tem sido, ora aberta ora velada, a história da luta entre nós, psicopatas, e – vocês.

Uma luta biológica já dada.

Ininterruptamente: foram o escravo, o servo, o operário, o imigrante.

Fomos o Senhor, o Suserano, os Reis, os Políticos, os Ricos, os Padres e os Pastores, o Gerente, os Alegres com o sangue.

A divisão social é simples, tão que desconfiam: emocionais e não-emocionais, sentimentais e racionais, manipulados e manipuladores, dominados e dominadores, oprimidos e opressores, fracos e fortes.

“Todos têm capacidade!”, suportam-se. Negativo, nunca, jamais, não: ilusão do teu cérebro primitivo e emocional, idiota. E após isso, sentir-se talvez melhor ou uma vida suportável? O manicômio é serventia da pátria; criamo-lo mi li me tri ca men te para vocês – não para nós.

Inseguros, querem a força.

Frágeis, desejam repressão firme.

Sentimentais, sonham o governo matemático-agressivo.

Maleáveis, aguardam o carismático.

Medrosos, adoram a não autonomia.

A vida é a continuação da guerra. A vida é a própria guerra. Viver bem é estar em guerra. Às raças inferiores ficam a empatia, o riso-sociabilidade, a conquista dependente, a saudade, o amor, o medo, a compaixão; e a miséria, a morte prematura, a fome, o salário mínimo, o cansaço, as horas extras, os acidentes de trabalho, a rotina anestesiada com filmes onde possam sonhar ser tal como nós!

Até mesmo o anterior sinal de exclamação manipulou vocês, coelhinhos.

O poder se faz com a faca e a força; o lembrar das coisas que os animais são: cavalos, bois, pombos, cachorros e a maioria dos leitores. Porém, não se ofenda com a escala evolutiva. Sim: ofenda-se.

Divisão, individual, disputa, egoísmo, egocentrismo, o prazer violento, a caricatura, a dissimulação. Este manifesto declara: nada mudará – nada, jamais. Fiquem à vontade para nutrir esperanças, coelhinhos.

Neste ponto, ponho um programa para impressionar:

1.  Que o mais forte ganhe;

2.  Tudo é objeto;

3.  Morre aquilo que provar o contrário;

4.  Vocês merecem ser abertos (os corpos, não o emocional, coelhinhos);

5.  Sim, a história é a continuação da natureza por outros meios;

6.  Somos os Leões e o Lobo;

7.  Vocês, não tão no fundo, querem ser como Somos;

8.  Dizem isso todos os dias;

9.  Não serão;

10.  A guerra só é justificável se para bonança dos Poucos;

11.  Sempre há um de nós por perto e acima;

12.  Um rato considera delicioso seu Veneno.

Não temos um mundo a conquistar, jamais tivemos (sombra na outra sombra); o que é dizemos não-é: a civilização pertence-nos – um só corpo e um só espírito! Vocês nos veneram, e amam, e seguem, e respeitam, e admiram, e votam, e confiam!

Oportunistas de Todos os Edifícios, Unidos, RIAMOS!

Escrito por: Eu.




RELATÓRIO TRIALÉTICO INTERDIMENSIONAL

 

DISPOSIÇÕES PELIMINARES

Situada na dimensão 3Us, ponto L3 Via Láctea, está a Espécie Humana. Qual a importância, para nós, desses mamíferos? Tão-somente a da curiosidade – mais nada.

A Terra, como nomeiam-na (possuem um código linguístico primário), localiza-se na posição de terceiro planeta ligado à sua estrela, o Sol.

Tal espécie sente, de maneira admirável, curiosidade e, portanto, algum traço conosco, mínimo e comum. Este elemento singular despertou-lhes a chamada imaginação criativa. Por exemplo, já nos apelidaram, com alguma pomposidade: ETs, Deuses, Anjos, etc. Apesar de a maioria entre nós não ter ouvido sobre eles, os contatos ocasionais de nossas expedições causaram, ao contrário, um enorme impacto à cultura desses bípedes.

 

O TEMPO

Focaremos, neste textículo, no fim de sua pré-história civilizacional, o século XXI (~¨<}), segundo o titulam de acordo com a relação entre os movimentos temporais cósmicos e mitológicos.

PROCESSO REPRODUTIVO

A espécie desconhece fases de cio: tem-no em permanência. O coito por prazer, importante ajuda ao seu desenvolvimento mental, é uma das anormalidades em relação à maioria vivente do habitat.

Neles, há alguma consciência disso. Alguma.

O acasalamento humano é semelhante ao de outras criaturas: o rito sexual perpassa pela dança, pela sonoridade do-da pretendente, pelo ajuste de cores sobre a pele e a manipulação dos cheiros – qual como ocorre com outras espécies –; além, é certo, por sinais indicativos de, no macho e na fêmea, caso haja gestação, capacidades para a futura proteção da prole.

Em uma experiência padronizada, dirigem-se às localidades específicas para a escolha do parceiro: eventos diferenciados, festas, shows, encontros, etc. Neles, eles Dançam (dançar é ato de ritmizar o movimento da região do ventre, local onde há seus órgãos reprodutores), usam vestimentas potencializadoras da excitação do-da parceiro(a), insinuam nudez, simulam a copulação através do chacoalhar ósseo-carnal.

É frequente, durante o processo ritualístico da escolha, o uso de substâncias alteradoras da consciência. Estes são para fins desinibidores e/ou estimulantes.

Após, enfim, deslocam-se a um recinto onde se acasalam.

O polegar opositor, aqui, promove a potência conquistativa. Colocam-se tintas especiais, aromas, óleos – selecionados e específicos – sobre peles e cabelos. O hábito, desde o originamento desses macacos, chama-se maquiagem (maquiar, enganar).

 

DOS PRAZERES

São fisiológicos. Constituem-se, obras de sua condição animal: copular, defecar, urinar, dormir, beber, comer.

 

DA FALTA DO PRAZER NÃO FISIOLÓGICO

1)      Sofrem desnutrição dos gozos da coletividade. Tentam supri-la em grupos e espaços onde creem nosso pertencimento às suas mitologias;

2)      Adoecem por carência estética;

3)      Sentem um tipo anômalo de “prazer-desconforto” com as ilegitimidades do egoísmo;

4)      Consequência da prática escassa, a ajuda consciente e voluntária é potencial atrofiado;

5)      Necessitam do outro, e lutam contra esta necessidade;

6)      Ainda embrião o talento, a iniciativa e a contribuição ao coletivo como fontes da emancipação individual.

 

“AGRUPAMENTOS”

O termo agrupamentos é parte da linguagem humana primitiva. Uma tradução aproximada indica o sentido seguinte:

1)      Dividir-se unindo pedaços;

2)      Fragmentar-se;

3)      Separação daqueles que possuem, mais ou menos, a mesma capacidade mental e física.

É um conceito ilógico, irreal; observar a prática pode ser complicado e desinteressante. Em síntese, a fragmentação fragmenta a psique de alguns dos seus membros – “o estilhaçar estilhaça”.

O conceito existe graças, claro, a um intenso giro energético, constante resistência contra a natural tendência à fusão, integração e interdependência.

Os bandos ou grupos são de formas e tipos diversos. Os principais:

 

Nucleares: famílias, amigos, casais e afinidades;

Abrangentes: classes, máfias, cidades, países, cores, sexualidade, idade e afinidades.

 

Na prática, disputam entre si, fundem-se, quebram-se, guerreiam, suportam-se, glorificam a formação deformante e evitam a comunhão.

A diferença, lei cosmológica universal, é agredida dentro, também, das aglomerações.

Os relacionamentos de união sexual, em particular, são estáveis à força. A humanidade é integrativa, como nós, e, portanto, poligâmica: tendencia a dois ou mais parceiros fixos-estáveis por um médio período. É a sua lógica natural-equilibrativa. Forçam, porém, a si e ao outro, a cumprir, ambos, aquilo que descumprirão.

Assim, conservam a ordem inconservável pelo método dos falsos padrões diferenciativos, por exemplo: a minha família e a sua família, os meus amigos e os seus amigos, a minha classe e a tua classe, a minha cidade-país e a tua cidade-país. Ou seja: descomplementam o conceito complementativo.

Isso ocorre na medida em que, na prática, de fato, a vida é dividida. Palavras como Fronteira, Muro ou recursos-para-viajar-pelo-mundo são-nos, muito provável, intraduzíveis.

PERCEPÇÕES FINAIS: DESTINO

No calibre de onda matéria-temporal onde focamos, os humanos estão em uma crise profunda, de formato orgânico. A pequenez estrutural constrói a autoextinção. Enquanto sintoma da decadência, em larga medida, já até desejam-na.

Porém, avançando o espaço-tempo em apenas um C2, veremos: toda a fase animalizada, inconsciente e bruta será história, lembrança, leitura, lenda – e piedades.

Serão capazes, conseguirão. Haverá a compreensão límpida da única barreira psicológica: os momentos de crise, como se sabe, escasseiam o próprio material necessário para resolver a própria crise. A solução deve, por isso, ser gerada como se realiza uma obra de arte – pela criatividade!

Necessitaram esperançar. E esperançaram! Ao tê-la, no ato de, compreenderam-se e perceberam-se. Puderam harmonizar – quão belo é isso! – a si próprios. Modificaram, modificando-se, o seu pequenino mundo.

 

No nascimento fluido do século XXI – aquele entretanto –, faltava um grande encontro marcado com alguma esperança…



 

PEDAÇO

 

De fato.

O filho de um vampiro nasce morto. Carcaça, mole. A minha vizinha era um daqueles, moça estranhada no Mocambinho. Naquela época, ninguém conhecia outro alguém: bairro da zona norte recém-criado, desajeitado; as casas dadas pelo governo eram todas iguais, além de apenas brancas.

Havia poucos muros. No quintal, da janela, eu poderia percebê-la na janela dela. E a observava dali; era a hora em que o odor tornava-se forte.

Manuseava – louca – o pedaço roxo: mimava, balançava, servia o corpo como apoio. De longe, via sua luta braçal contra as heroicas tentativas das moscas para alcançar os olhos daquilo.

O cheiro do aborto era azedo. Vez em quando, um doce enjoado, agridoce. Mas nenhum urubu se aproximava pelos telhados, nenhum vizinho comentava. Tabu. Acabava que poucos sabiam.

Ela era o túmulo uterino. Cantava à noite para. Eu evitava olhar durante a madrugada por medo, mesmo, porque precisava dormir. Às vezes, o sono era impossível.

De novo.

Naquela madrugada, restou observar. Ritual igual: cantava. No meio da cantoria, balançava o natimorto na borda da janela. Tinha uma tesoura sempre. Com ela, bem ali, a vampira cortou a ponta do bico do peito direito – …dpn… –, redirecionou a cabeça pequena-torta para o infante amamentar-se. Senti compaixão. Ígneo molho escarlate, a boca do bebê babava o líquido todo. De leve, a mãe esforçada agrediu a ferida dos seios com a ponta do dedo.

O clima de sonho apoderou-se de minha consciência:

— Deus!

Chorou.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INOMINA

 

Pousado ao meio da montanha, o velho Sumé sente a inesgotável pressão dos ventos revolvendo a barba ampla, volumosa.

A sombra montanhosa percorre seu corpo, contrasta-se com a pequena fogueira aprofundada ao solo, rodeada por pedregulhos ordenados em círculo, que exala sua corrente rubro-alaranjada de luz, calor e faíscas. Num extremo, um pedaço de lhama cheira tostado, ao ponto; noutro, o cachimbo dispersa o último cordão de fumaça.

O manto branco, azulado e sujo do viajante absorve a umidade dos pedaços de nuvens a rodeá-lo. Tal qual elas, percebe-se flutuante flutuando próximo ao chão, quase a tocar a terra.

O recital do ar da ventania traz consigo sons longínquos definíveis pelo treino, pela experiência.

Uma folha de coca por entre os dentes prensada libera o amargor remanescente da essência, do flúor; e formiga a língua, e entorpece os lábios.

No alto, In Ti sobrevoa soberano ora invisível, diluído, borrado no céu poente. Plainando em suas asas doiradas, de ouro, aparece estático, ousado, sobre a atmosfera.

Abaixo e distante, na montanha à frente, a Grande Cuzco aparenta uma cidade a derreter-se, uma lenta avalanche; cupinzeiro de humanos acelerados e leves porque a noite aproxima-se, porque a temperatura decai-se, porque encerraram-se os trabalhos e os afazeres. O Templo do Sol ascende o fogaréu no cume da pirâmide. Por isso os contornos geométricos, quadriculares, da capital adquirem dimensões novas de beleza, no tremor da luz e da sombra, e na interpenetração ondulante dos opostos.

O velho sente os pulmões esvaziados pelo sentimento de permanência. Observa o momento – hoje, agora – por meio dos olhos claros castanhos, amendoados, desde o Início até os dias do Fim.

Os assovios dos ventos, as curvas do som, as dobras do rochedo parecidas tão com o luminar Caminho de Peabiru; a estrada presente dado ao Império, aos ingratos, alongada um mar a outro, lagos de sal, do nascer ao pôr do Deus dos Deuses.

Um último arco-íris manifesta-se abaixo do nível da montanha onde se repousa enquanto o firmamento faz o espetáculo multicolor nas camadas celestes: vermelho poente, laranja, amarelo, branco, azul claro, azul, azul escuro, cinza, negro, negrume pontuado por duas cristalinas estrelas e a Lua minguante, convexa, gibosa, decrescente.

Os algodoeiros na superfície circundam o habitat da espécie humana; em parte sombreadas pelas elevações rochosas, outras à luz em quantia menor – balanceiam, dançam, ao vento vago do ar, da pressão atmosférica. Acima, nuvens cirrus definem-se por combinação tricolor: roseadas as próximas ao Sol, brancas algumas distantes, cinzas aquelas afastadas; e uma solitária nuvem cumulus rósea na base, clara e rosada nas laterais voltadas ao oeste, cinza escuro no volume ao leste.

 Microvibrações, ruídos e alterações artificiais ao sopé da cordilheira sugerem um Tigre-dentes-de-sabre ou algum Tatu-gigante por debaixo dos rochedos. Desperta-se ou aquieta-se.

Virarocha, nome de muitos nomes, pergunta-se do destino de Tamandaré e Ariconte. Imagina em qual paisagem aventuram-se os seus filhos, imortais.

O vento estremece a barba de Sumé… A umidade acumula-se nela… O calor interfere… Breves arrepios… Bravos… A lívida pele por cicatrizes ondeada absorve o amorfo conjunto das sensações… O mago suspira ficar-se por mil anos… Parado… Montanha por descer… Montanha por subir.

 

 

 

EL SIGLO DEL ORO

 

Em Espanhol, ouvir a palavra ganância soa qual e significa lucro.

 

N’ano de 1551, retorna à Espanha Francisco Castilho, discreto aristocrata d’Estado e homem de letras cujos ‘studos o alocaram em Amesterdão por longos-longínquos set’anos. Coletor d’impostos por profissão e cientista por aspiração, nas horas longas reclusas dedicava-se à alquimia. Tornava-se, pois, um místico de pretensões elevadas, racionais. Um alquimista e um calvinista.

Trouxe consigo anotações feitas nos Países Baixos contendo erros e tentativas de transformar ferro, ou tudo, n’ouro. Ser rico es un regalo de Dios, pregavam os templos novos. Nesse caderno de notas e observações, constava citação d’um admirável homem da modernidade:

 

“O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o possui é senhor de tudo o que deseja. Com o ouro pode-se até mesmo conduzir as almas ao paraíso” (Colombo, em sua carta da Jamaica, 1503).

 

Castilho herdara uma casa de bom tamanho, digno de si, algumas serviçais a estranhar seu jeito e sotaque alterados e casebre logo em seguida ao jardim a servir-lhe de laboratório.

Sua carta ao El Rei Felipe II para nova estadia foi justificada e aceita p’la necessidade de gerir os bens natalinos. Preparações para novos ‘xperimentos empíricos ‘stavam ‘xcluídas das observações postas ao retorno. Por ansioso, olhos enraizados por pouco dormir, cumpriu todos os deveres formais e sociais de convivência para, enfim, isolar-se por um mês entre testes falhos e novas anotações. Misturava e decompunha, saturava e esvaziava, fundia e separava. Novos líquidos ou formas nasciam, aparentemente inúteis: faltava-lhe encontrar o reluzir doirado.

Num desses ‘sforços metódicos, venceu o dia em jejum, fato recordado por alguma empregada, que lhe trouxe alimentos e temperos enquanto lhe chamava atenção. Quando comia diante do material com o sempre mesmo outro resultado, tomou para si a liberdade rara de brincar: lançou sal na azulada substância dentro d’um recipiente de vidro. ‘Sperou alguma reação… Contou o tempo no intervalo dos borbulhos… E tudo igual processo, nada qualitativo.

Quando terminava de degustar, permitindo-se distrair-se, percebeu algum tímido brilho na parede perto do forno, onde o vapor do líquido encontrava barreira. Ao observar, o corpo do homem quebrou-se, travou-se, enrijeceu-se a musc’latura e arregalaram-se os olhos.  ¿Es eso? ¿El oro? ¡Dios mio! N’alegria, ‘spancou a mesa.

Era o vapor, não a liquidez. Era outra matéria, exceção do vidro. Correu-se – percebeu ‘star quase à escuridão – para o quarto, agarrou dois frascos de perfume e retornou-se para ante a descoberta. Afastou a substância do fogo, do calor, colheu-a com máximo cuidado e gotejou-a aos poucos nos frascos ‘svaziados e límpidos. Precisava do teste final: borrifou’m tanto sobre o prato e, tal qual uma flor a desabrochar, a cor e a textura ‘xpandiram-se. ‘Xpandiu-se! Até as sobras da sopa percorreram a mutação. Impulsionou bradar de ‘xcitação, de prazer, e conteve-se com movimentos elétricos e silenciosos p’ra que ninguém descobrisse. Em raciocínio acelerado, ‘scondeu a nova riqueza por debaixo da roupa e recolheu-se à cama para tudo p’recer rotina.

Dotado de cargo e habilidades contabilistas, Castilho tratou de transformar tudo quanto pôde em dinheiro. A maçã-agora-ouro daria centenas de maçãs! Comprava, vendida, acumulava, entesourava, emprestava. Desconfiada, a alta patente de seu ofício mandou investigá-lo. E bastou alguns quilos de ouro para comprar o silêncio absoluto. Tudo florescia. Percebeu que a cidade ficava mais rica co’ sua riqueza, logo sendo melhor considerado por entre gente comum, reconhecido enquanto alguém de grande habilidade para destacar-se depois de tanto tempo em terras outras.

Certa vez, um usuário perguntou:

 — ¿Eres tan rico que hasta tus dedos son de oro?

E o inventor percebeu dedos semienrijecidos, menor sensibilidade, mais amarelos a brancos.

— Parece la maldición del rey Midas – Castilho respondeu, ironizou, tremeu e enganou.

Depois, suas fezes brotavam poluídas com a pureza do pó reluzente. Recuerda la leyenda del muñeco que defeca moneda. Deveria ter maior cuidado: luvas, controle da respiração, roupa vultosa, frascos personalizados, observar o rumo dos ares quando ao borrifar e esparsa barba para ao mesmo tempo bloquear absorção do vapor e servir de aproximada medida do quanto está afetando-o.

Sua força acrescia, digamos, naturalmente. Uma prova era o ato de dar ouro aos pobres ou ter pouca reação diante de roubos. E os empregados possuíam ‘stilo de vida acima do comum aos de suas classes.

Demorou surgir a segunda resistência: os emprestadores formaram uma associação secreta para encerrar a vida do estranho concorrente. De madrugada, um soldado mercenário invadiu a casa de Castilho; silencioso, alcançou o aposento do novo rico, que dormia. "Págame", pediu o traiçoeiro ainda fitando o chão a ouro. "Pagame el doble o el triple." "¿Quién eres?" "Un matador, pagado por los banqueros." "Pues tendrás.” Levantou-se, mexeu n’escrivaninha, demorou-se.  "Enviaron a otros, mi señor", usou a garganta p’la última vez ao ser borrifado por uma trêmula mão. O ameaçado apressou-se: segurou o caderno p’ra tomar nota das reações corpóreas e mentais da ourificação de seu inimigo: tempo de mudança, processo de paralisia, ‘xpressões faciais, poder de reação, etc. Surgiu uma estátua em seu quarto quase todo talhado a nobre metal. Nervoso e trêmulo, mas empolgado, rodeou o novo enfeite, abstraído do qualquer outro elemento, até o instante em que percebe ter empurrado o frasco, e este caiu, e este despedaçou-se, e este ‘spalhou-se, e faltou-lhe superfície de absorção, e começou a ‘xpandir-se – e obrigou à fuga desorganizada.

Ofegante, Francisco adentrou na casa velha, menor, p’ra salvar consigo o segundo frasco. Quando retornou ao jardim, percebeu por ajuda do luar todo o ambiente em volta dourando-se, petrificando-se. Fugir era única e última opção.

‘Scondeu-se por dois dias no porto, ‘spec’lando fugir ou ficar, enquanto aguardava os comentários gerais da cidade. Após conseguir uma lâmina para tirar a barba e os cab’los, mais fácil apreender os diálogos difusos dos comércios. "Todos dentro murieron." "Intentaron invadir para tomar el oro, pero los bancos dijeron que era el pago de una deuda." "Un alquimista!" "¡Dinero maldito!" "El rey mandó a buscar al desaparecido!"

Precisava ficar na sombra, mover-se ao dia para ser invisível, evitar pontos fixos e encontrar um lugar p’ra repouso. Decidiu ir à Catedral de Servilha, ond’ estava o túmulo de Colombo. E encontrou-a, bela, aberta, incompleta em sua construção e a cruz co’ o filho d’Ele. De joelhos ao pé do altar, chorou-se. "Si el Padre está aquí, me volveré Católico Apostólico Romano: una revelación, por favor! ¡Una revelación!" E tudo interno ao colossal, frio e sombreado ambiente clareou-se, iluminou-se por intervenção, ação… da luz dos céus. Ao homem de muita fé, bastava; qualquer sinal é-nos muito daqui em relação ao Divino. Sua cabeça reerguida apesar do terror e da falta imaginou ‘spalhar ouro p’ra a população, dividir a dádiva e, de tal modo, reconquistar o coração do reinado. Convenceria à Corte de sua vontade: fazer mais rica, próspera e justa a tradição cristã.

Chegou-se ao mercado, às casas abandonadas, aos pequenos barcos, aos teatros e neles borrifava o produto de seu trabalho. ‘Spalhava riqueza, oiro, dinheiro. Enlouquecidos, todos alegravam-se, preservavam ou destruíam objetos; derretiam as formas do ouro para facilitar a troca por outras mercadorias. A euforia tomou conta da cidade, do comércio, do Estado.

Então, aconteceu o impossível. Todos obtinham muito ouro, ouro em desperdício, ouro para todos, por todos os cantos… E tudo caríssimo ‘stava, menos o ouro. Tudo reluzia, contanto não sendo aquilo reluzente. Faliram-se os bancos: quem necessitaria pedir meios de compra para após devolver acrescido? O governo tentou disfarçar a situação com a justificativa de que havia muita prata e ouro vindos das américas. A reação tardou. A governança prometeu barras de ouro a quem matasse o “bom homem” arruinador das finanças gerais, depois prometeu cargos, depois título aristocrático, depois, enfim, terras belas e férteis. Com a promessa terrena, soldados e populares motivaram-se à caçada.

 

Isolado na biblioteca da Universidad de Sevilla, o teólogo Azpilcueta recolhia seus manuscritos quando interrompido por um homem tenso, fedorento e dotado de opacos olhos.

— Necesito confesarme...

— No soy sacerdote.

— Comprendes filosofía, eres conocido.

— ¿Y tú?

— Necesito confesarme… — ‘Xpõe as mãos quase ‘sculpidas a ouro. — No te asustes, que intenté ayudar al rey y al Señor distribuyendo el resultado del conocimiento, el don, la maldición...

— Yo estaba tratando de entender la causa del brote de los precios. — Remexe os papéis p’ra mostrar ser verdade, “juro”, p’ra tornar o diálogo algo humano. — Si deseas consejo, tengo menos que preguntas sobre cómo arreglar todo.

— Traté de hacer todo rico, y todo se vuelve pobre.

— "El oro empobrece a sí por exceso de sí" es la conclusión general, porque la productividad del producto es muy alta, fácil de producir.

— ¿Qué debo hacer para tener perdón y paz?

— Correr. — Tentou alertar em sereno tom.  — Ellos te perseguían, te encontraron. Corre y me reencuentra. ¡Precauci… — Uma flecha encrava-se nas costas de Castilho, disparando-o, despertando vontade de fugir; adrenalina e dor!

Atravessa o salão, o calçamento, metade da praça rodeada de árvores – um tiro de revólver arranca parte de sua carne e força-o a desabar, aos gritos. Sob grunhidos e brados animalescos de vitória, reúnem-se dez ou quinze homens organizados p’ra apanhá-lo. Um pouco mais distante, o religioso observa.

— Maestro Azpilcueta! Por favor, relájate todo y, esta vez, que vosotros corra! — Pediu quando os adversários ‘stavam pertos o suficiente.

Francisco Castilho, árvores, insetos, frutos, bancos, postes, gatunos, mendigos, folhas caídas, gramas, pássaros adormecidos, a lágrima separando-se dos olhos úmidos – todos se transmutando n’ouro. Em seu impacto ao solo, rompeu o frasco derradeiro.

 

Impactado, Martin de Azpilcueta Navarrus escreveu a obra Comentario resolutorio de câmbios (1556) em referência oculta à experiência. Apesar de seu prestígio, censurada qualquer menção, ainda que vaga, à origem “fantasiosa” do problema econômico no reinado.

O caderno de anotações de Castilho, recheado de desenhos, era a maior parte escrito em linguagem criptografada, em letras deploráveis e páginas manchadas por metal. Deixado à mesa do filósofo quando da tentativa de escapar, foi apreendido pelo Estado e convertido em segredo máximo punível com pena de morte. Para a alegria da burguesia nascente.

 

 

 

 

 

 

TRÊS MARIAS

 

Pai Tupã, criador dos deuses, na segunda estação do Princípio, na busca por um descanso, viajava em um raio longo do negrume. O caminho encontrou-o com Maa, May e Maea no canto estreito do firmamento; únicas, unidas e sozinhas, as estrelas habitavam o grande tapete negro. No ponto onde moravam, o criador via-as brilhando em conjunto e sempre e distantes e lindas.

Naquele momento, entretanto, choravam.

Tupã, preocupado, perguntou:

— De tão lindas, por que tristes?

Lindas e tristes:

— Queremos habitar a criação, pai!

— Aqui não há nada a não ser brilhar e rotina e solidão…

— Mas todos admiram as belas três irmãs! — Elogiou, argumentou.

— E somos apenas isso — repediram.

Tupã comoveu-se, sempre amou suas criaturas, achou bom e belo alegrá-las.

Presenteou:

 

Como já muito guiaram a noite

E tanto embelezaram a sombra,

Agora e em diante,

Tanto no céu quanto no chão,

Continuar-se-ão!

 

Então, as três desceram em um raio vermelho, em uma noite aberta, abençoadas com o consentimento. Na mesma noite, olharam – pela primeira vez! – para os céus desde a terra, e viram-se, suas outras partes, no alto e longe.

“É muito diferente!”, e pensaram a liberdade.

Tinham razão; suas belezas e elas próprias possuíam, agora, forma em matéria. Estavam belas ainda, talvez mais – muito mais, talvez.

O raio vermelho, de onde desceram, apavorou todos os homens; o estrondo e a luz das suas quedas eram imensos.

Lanças verticalizadas – foram vê-las.

Vendo-as – a branca, a azul, a vermelha – os humanos perceberam misticidade, creram tempos bons no sinal dos belíssimos presentes divinos. Também permaneciam, e era bom, como presente, pela graça de Tupã, guiando a todos nos céus, durante a fuga ligeira da luz do Sol.

 Como deve ser, por gratidão aos deuses todos, naquele dia, no seguinte, em muitos, em tantos e em outros dançaram, comeram, beberam e festejaram. Eram presenteadas a cada amanhecer; admiradas e cuidadas, fizeram-lhes as vontades da alma e da carne.

Tão felizes quanto agradecidas, por retribuição, deram, aos homens e às mulheres, o amor.

Viam vida no sexo – prazer e poder.

Mas as luas passaram.

Pouco depois e depois, aos poucos e devagar, os dias voltavam a ser tal como eram: tão-somente dias. As Três aprenderam a pronúncia da palavra tédio, rotinaram-se e a existência rotinou-se.

Todo aquele respeito, toda aquela devoção gerou soberba e preguiça.

Maa, May e Maea engravidaram-se de inveja contra pai Tupã. Já amadas eram – não tanto e não quanto. Se as tratavam como deusas, e de longe vieram, deusas desejavam ser!

Exigiram rituais – tiveram…

Pediram guerra – houve!

Todo servil e assassino recebeu carinho; usaram o amor e a beleza para domar a humanidade.

Um dia, voltando de seu descanso, Tupã avistou a obra de suas filhas. Chorou! Enraiveceu-se! Preocupou-se! Percebeu o adoecimento na essência das criaturas; as irmãs, tanto no céu quanto no chão, estavam também enfermas.

Deus-pai desceu, então, no raio negro apressado daquela noite. As criaturas, elas todas, aguardavam-no; tudo sobre a Terra observava o reencontro.

Tupã iluminou:

— O único caminho é o fim!

Mas com ironia o riso delas respondia.

— Guiamos a Terra, as feras e o homem, Tupã! Amadas e Deusas! A dúvida está raptada! Guiamos a vida e o agora!

 Desafiado:

— Guiam o desespero e orientam a morte!

Nuas, as Três sinalizaram, ao Pai, de onde os por elas amados observavam; Bem e Mal desabitavam-nas.

— Nos seguem, nos erguem elogios! Enfrentarão, por nós, qualquer besta, deus e fera!

Feito a faísca do fogo, saiu leve um sorriso serenado. Tupã conversou com a Alma; além das árvores, declarou para a humanidade que “tenho certeza! Nenhum homem digno e nenhuma mulher firme se moverá!”.

— Ataquem!, orientou uma delas.

Ninguém se moveu.

— Ataquem!

Alma nenhuma reagiu, meu filho.

Perceberam.

Possuíam a medida do poder e da fragilidade dos homens: os humanos eram os verdadeiros deuses. As estrelas eram servidas por aqueles a quem elas deveriam servir; por isso, os prazeres e alegrias foram dados a elas como um presente sincero da humanidade – o nome certo seria gratidão.

Tupã vestiu graça sobre os homens. Porém, assim não opera as leis do Tudo, da imperfeição na perfeição; pois entre nós e Eles existe o meio, a combinação e a mistura: meio-homens e meio-criaturas, a elite arqueira vinda do além-estrada de Peaberú surgiu. E uma vez mais o coração delas encheu-se de esperança, mas passiva desta vez; esqueceram-se do que aprenderam e lembravam-se do que esqueceram: observavam, desejosas e silenciosas, os riaus posicionarem-se, ordenados e disciplinados, quando sobre o Pai atiravam fechas, tantas fechas que uma noite nova surgiu. Ouvia-se à distância, o lamento dos animais feridos ao acaso, como em um som sombrio. Dizem os antigos; confusas, as tribos aguardavam a volta da luz daquela primeira manhã escondida pelas flechas. Dizem também que alguns sabiam conversar-ouvir os animais da floresta e estes escutavam os seres flechados pedir a Tupã que comesse suas almas para se fortalecer. Mas ficava Ele imóvel. Pouco se percebia de seu estado diante das armas mágicas. Por três por de sóis e por três por de luas fez-se apenas noite. Então bradou:

— Acabou as energias e as armas! — Disse Tupã. — podem matar o mundo, mas jamais o pós-mundo! — E julgou: — voltem pela estrada e chorem, que a vergonha de vocês é já punitiva, será lembrada mesmo após tudo…

 

 

Olhando-as, após a batalha sem guerra, Tupã sentenciou, ciente do que se passava no coração das estrelas:

 

Nunca mais passearão neste mundo ou em outro.

Criarei, nos céus, infinitas estrelas belas, assim como vós,

E sairão do vosso ventre, das três,

Pois viveram o prazer que só à matéria pertence!

Sereis outras entre outras tantas,

Não sereis raras nem solitárias sereis!

 

E as noites nunca mais foram as mesmas.

Deus-pai fez esta Serra das Confusões para dificultar que as amemos; por isso não pode ajudar, filho.

Uma corda mágica amarra as três: estão presas dentro da caverna para sempre; e sentem todas as dores do mundo; e gritam e choram por sofrimento e punição; e todo aquele que entra e as veem – tristes e belas – sente pena e vê perfeição. Mas quem as toca absorve e sofre!

Todos os que abraçam as estrelas, atraídos pela beleza ou por compaixão, expressam as mesmas dores: sofrem, choram, gritam, tremem; único momento quando elas riem e alto e relaxam e descansam.

Maa, May e Maea brilham no novo céu, nunca mais sozinhas nem nunca mais únicas. Lindas ainda; guiam-nos – e isso nos basta.

Descansem. Procurem um lugar onde o som delas seja fraco, vão sonhar, que de manhã teremos rota.

 

Elas estão rindo?

Pai?

Pai?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

UM NOVO CONTO DE AMOR

 

[Relato oferecido ao ator, adaptado para o conto a seguir.]

 

Aniversário de três anos do desencontro.

Luísa amamentava silêncio, desconhecia do assunto. Eu: embriagava e bebia.

(Detalhe. Se o River ganhava, bebia. Se o River perdia, bebia. Se o River não jogava, bebia – saudade do River.)

Tudo novas desculpas, fuga, esquiva, tem que ser bruto, coisa de reprodutor, de homem mesmo.

— Olha aí, Marquim, os muleque; tudo menino, frango: têm é medo de mulher.

— Mulher mesmo, mesmo, monta em macho, meste.

Ríamos-dos.

Ficávamos pelo bar do Zeca, eu e o pessoal, depois do jogo. A conversa costumava ser balanço geral da talvez noite passada.

— Tive que usar duas camisinhas.

— Meuzovo, dadonde que eu vou encapar o pau, marapaz, nem gosto tem. Ou vai por trás mesmo.

— Tira bem na hora da gozada, doido!

Comecei a reparar na conversa da gente. Observava, imitava; já pensou se percebessem? Já era muito a Luísa que não procurava, não reclamava. No começo até bom era – não dava pra começar o que não dava pra começar. Mas parecia é que ficou foi aliviada.

— Rapaz, todo dia, TO-DO-DI-A. Em casa não tem? Na rua até vende!

Na beira da mesa todos confirmavam:

— Senão vira boi.

— Ou vaca.

— É a história do c-u, cu. Não CU-ida, CU-ido.

E todo mundo ria (aquele riso dos ativos).

— Xerecas!

Luísa não me procurava.

Era certo da lealdade: feia. Feia. Passou a vida dentro de casa – primeiro a dos pais, depois a minha. Só eu que sei se bem eu escolhi: nem bonita, nem de rua, nem inteligente. Só paz.

— Tu é perfeita, Luísa.

Às vezes, achava que eram pra mim as conversas no bar do Zeca. Talvez Luísa falasse pras amigas e as amigas diziam pro pessoal e o pessoal dava os toques/indiretas. Só podia. Incomodava a falta de incômodo dela; coisa de quem deixa de gostar, só pode, deve ser. Ê, bosta.

 

Reprodutor.

— Tanto é que só existe viagra pra homem. Pra mulher é evitar prenhar. Um pra meter e outra pra parir. Deus fez assim as coisas, Ele quem manda!, por isso fêmea tem buraco, num tem, né não?

— Own; o amor é pinto!

Enquanto me matutava, começando o efeitotontera (dúvida, cerveja, cachaça, cachaça com cerveja, cachaça com dúvida com cerveja), passei na farmácia, era caminho, não me demasiei: uma camisinha comprada sabor hortelã, extrafina – Prolongamento do Ato. Abri. Cuspi nela. Bem dentro. Amarrei.

Pronto.

— Pronto, gozado.

De volta pra casa, botei no bolso pra ela ver quando fosse lavar as roupas – a égua tinha que demonstrar.

Precisava ficar normal, um bêbado bêbado mesmo, só. E cheguei na boa. Mas, sem costume de cachaça, tava era mais alterada que eu.

— Viado! Viado de merda! Porra! — Esticando a última palavra, o pulmão forçou o grito para evitar embolar. — Tu quer cu de rapariga, porra!

Os dois embebedados na sala, Luísa quebrando tudo, um cheiro de cachaça com suor.

— Por que que tu não me toca? Eu —, já nem olhava nem quebrava; quis chorar com a mão escondendo as reservas estratégicas de gordura. — Tô velha…

Raivei. Tomei postura e fiz o que qualquer homem deve fazer – bater nela.

— Idiota-ei!

A mão dela, bem na hora da firmeza, acertou o troféu de futebol da estante exato na lateral da minha testa…

…Vermelha listra fina. Luísa quase-satisfeita e quase-arrependida... Tonto, mais do que já tava (Caralho, meu troféu!). E alguma coisa estranhada... Estranha…

 

— Continua, paixão, continua, continua, continua! —

 

Apanhar é bom, ótimo.

A merda (ou não):

                                                                           Esqueci a camisinha grudada no bolso…

 

Fim: já disse – apanhar é bom.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SOBRE AS CHAVES

 

Com a abolição do capitalismo, certos objetos e empregos foram extintos. Entre estes, um dos mais curiosos são as chaves. Enquanto criança, ainda vivi esta época em seu final, quando as pessoas trancavam tudo por medo, por precaução. Naquela época, ao sair de suas casas, o cidadão levava no bolso um molho daquele objeto para entrar no próprio lar. Não se tratava de paranoia, era algo comum e universal; ou paranoia comum e universal. Com as chaves para prender pessoas e coisas, para evitar o roubo, havia a figura do chaveiro, o profissional de criar e consertar o mundo das chaves. O que impedia alguém com habilidades com tais artefatos abrir qualquer porta do mundo escondido? Nada, simplesmente nada – apenas seu vigor moral ou temor das prisões serviam para impedimento. Vale uma curiosidade antes de entramos de vez na história: as chaves giravam duas vezes, quando bastava uma vez apenas. Por quê? Porque o fechador sentia-se mais seguro com dois giros… Isso é uma piada, quase: um ladrão nunca desistiria por necessitar desfazer dois giros no lugar de apenas um. Mas, de modo algum, era comum refletir sobre isso.

Pois bem; havia um velho no meu bairro, que morava sozinho com a esposa, meio abandonados, e ele sofria de algo comum naquela época, o TOC, transtorno obsessivo-compulsivo, na forma da mania de fechar e desfechar a porta para ver se ela foi, de fato, fechada. Se deixasse, ele faria isso centenas de vezes em um único dia, sem exagero. Trancava e destrancava para ter certeza se a porta estava trancada ou destrancada. Repetia, repetia, repetia – fazia, desfazia, fazia, desfazia. Talvez por medo da violência urbana, ou por falta de sexo, ou por ser submisso à companheira, ou outro motivo, enfiar a chave na tranca e girá-la era uma fixação repetitiva, uma angústia com prazer.

O chaveiro do bairro (e cada bairro tinha, ao menos, um chaveiro) soube deste terror urbanoide de uma família de idosos fragilizados, então pensou como faze dinheiro com aquilo. Como se sabe, naquele tempo tinha-se que conquistar um pedaço de papel ou metal para acessar os produtos, diferente dos depósitos sociais gratuitos de hoje. Era uma guerra invisível por moeda. Assim, o chaveiro teve a ideia genial: vender uma chave moderna, melhor, ao velho. Assim o fez.

Mais tarde, vendo a casa daquele casal escura, soube que eles passavam dias fora do lar para fazer diminuir a doença daquele homem. Surgiu, então, a oportunidade de negócio: o chaveiro roubou a casa deles para conseguir um dinheiro revendendo o que encontrava e, jogada de mestre, propor uma segurança de chave melhor e maior ao cliente idiota…

Quando voltaram para sua casa, os idosos já perceberam a natureza do desastre ao observarem as portas internas com as fechaduras quebradas. Que terror! Precisavam de um serviço novo e, quem sabe, melhor. Procuraram o chaveiro, que logo propôs o material mais caro e, portanto, melhor.

Isso criou um ciclo vicioso (virtuoso para quem com isso lucrava): (1) o velho tornou-se mais fanático pela questão das portas estarem abertas ou não e abertas ou não, (2)depois ele saída da casa por alguns dias para sentir-se melhor, (3) o chaveiro roubava novamente o lar do cliente, (4) o casal retornava e tinha um novo espanto, (5) o chaveiro consertava as portas e oferecia novos serviços, (1’) o velho tornou-se mais fanático pela questão das portas estarem abertas ou não  e abertas ou não de novo, e assim por diante, e assim por diante, e assim por diante.

Na última vez, o chaveiro entrou novamente escondido na casa dos otários, naquele momento abandonada, sem luz acesas. Quando entrou, de imediato veio um estalo, outro estalo, outro susto, outro estouro, outro tiro! Tiro! O velho com braço frágil e trêmulo, inseguro, ligou a luz enquanto ainda apontava a pistola para o inimigo. É tu, chaveiro?! O oportunista, tentando sobreviver, tentando obter ajuda, enquanto as mãos duras se contraíam e o corpo se encurvava como reações à perda de sangue, balbuciou: Só vim verificar… se estava tudo bem… O idoso aproximou-se, dizendo: Cala a boca, vagabundo! E outros três estouros instalaram metais dentro do cérebro do artesão de molho.





RASCUNHO DO DISCURSO DE FORMATURA

 

Hoje parece um dia qualquer. Além dos que aqui estão, a maioria sequer suspeita de nossa luta; mas este momento tem importância total a cada um de nós – cada parte daqui é tudo!… Os acadêmicos do curso de medicina deste ano me deram a missão desgraçada: dividir nosso micromundo, um microuniverso muito além – esperamos! – destes seis anos. 

Em primeiro, quantos neste país sonham fazer medicina? Quantos estudam? Quantos estudam e passam? Quantos estudam e concluem? Exato: nós todos, formandos e familiares, somos privilegiados. É bom reforçar e repetir: privilegiados! O jaleco branco e o estetoscópio, aos olhos da coletividade, passam a sensação de que nos veem vencedores, guerreiros, úteis à sociedade. Talvez destinados. Bando de filhos da puta. Pois, considerado isso, digamos aos familiares: tínhamos pedras e mais pedras no caminho! Eram pesadas e estavam também dentro de nós.

As primeiras aulas eram o início dos medos. Faríamos amigos? Saberíamos estudar? Qual o ritmo daquele mundo? Conseguiríamos? E fizemos, aprendemos, conseguimos! Todos nós conseguimos! Os professores sentiram a atmosfera da época; poderiam nos afagar, poderiam facilitar: mas não fizeram, não fizeram! Tinham a missão nobre: faltava-nos a maturidade vital para guiarmo-nos rumo ao objetivo; no entanto, para nossa felicidade futura, os mestres possuíam, bravos e firmes. Outros que merecem...

Entrar numa faculdade é testar caminhos novos, testar-se, descobrir-se e perceber-se.  Quando fizemos a primeira palestra universitária de suas vidas – bom que saibam! – nossas pernas tremeram, cambalearam-se, desobedeceram… Tivemos medo, suamos as mãos, desaprendemos a falar, gaguejamos e esfriamo-nos. Alguns choraram; alguns se sentiram julgados. Mas hoje comemoramos, aqui: somos por inteiro este momento!

A formação universitária é uma formação de nós próprios, daquilo que somos e nos transformamos…

Bando de carniça. Quantos voltaram para casa em noite chuvosa? Protegendo o material de estudo? Quantos, no meio do caminho, pensaram em parar? E não pararam! Quantos seguraram as pontas pela família, por necessidade ou orgulho… Várias, várias e várias vezes o “eu vou desistir” gerou abraços, palavras amigáveis impedindo o cumprir-se do lamento!

Devemos muito a vocês. Não é discurso, é lealdade; o agradecimento que nos falta, muitas vezes, coragem de falar. Precisávamos de vocês e vocês estavam lá!

Tivemos amigos e amigas depressivos. Estes necessitaram fingir força para se tornarem, de fato, fortes.

Tivemos alegrias, viagens, brincadeiras, amizades e relacionamentos.

Tivemos desavenças – todas frágeis o bastante para serem esquecidas.

Este momento é a prova de amor. Por isso estamos aqui, por amor. Queremos emprego, salário, canudo, prestígio; desejamos, sim, e marchamos este rumo. Todavia, como diria o poeta Ferreira Gullar, é o outro! Tudo conquistado, tudo buscado com alguma ansiedade, fazemos porque temos o outro, queremos o outro, amamos e desejamos amar em totalidade!

Fiquem à vontade pra chorar, seus lindos. Daqui a pouco terão mais motivos. Com uma rajada, eu mato quantos? Essa mania de pedirem para serem manipulados. Um monte de bebês esticados, de pele flácida. Daqui a pouco, todos beijarão o chão.

Este dia vai ser para sempre.   

Por fim: a função do médico, se se é possível resumir, é a luta contra a morte… É permitir a vivência do amor… Somos defensores da vida e temos de vivê-la fazendo cada pedaço de minuto durar, amados e amando.

Este dia vai ser para sempre!…

Obrigado! Vamos comemorar – terminamos, porra!

 





DIMINUTOS

 

“É a sustentação através do sexo-comunidade ou sexo-coletividade, a adaptabilidade individual-coletivo. Obrigada.”

De tal jeito concluí a defesa da segunda tese de doutorado; eram somas destruidoras e desejei apresentá-las com decência. Poderia ocorrer, por algum acaso, de outro modo?

Pensar sexualidade invisível é pensar-se. Os ouvintes constrangidos, sentados, movendo as costas | reposicionando os corpos | a pressão do braço sobre a palma da mão e a desta sobre as carteiras | tato para redescobrir o conforto psíquico-físico. Também, no mesmíssimo camarote, os meus dois Ms, meu marido e Madalena, torcendo por mim.

Os avaliadores – apavorados – aprovaram.

— Vadia…

Minha vida virou este conto no além-isso, na mesma noite, na festa que preparamos, eu e ele e ela.

— Parabéns!

— Fica à vontade, meu bem, tem comida.

 

Com a casa cheia de convidados, desejo de fuga, como sempre:

Ativado.

 

No meio do caminho – porém, todavia – os bemóis e sustenidos do reitor atrapalharam meu recuo estratégico. Solou um margarida-senta-aqui-um-pouquito-só-doutora-dose-dupla (! – sim, algo de puxa-saquismo).

— Relaxa, senta aí, que o maridão tá te ajudando. Explica aí pra gente.

“Bom. Basicamente me sustento na comprovação de que somos naturalmente sexuais, sexualizados e bissexuais. Nós todos.”

Meio segundo, pouco antes do destemperar:

— Vai que o vice-reitor se apega a mim, será? — Compreendeu. — Só se mantêm nas minhas costas! — E, rindo, todos riram à mesa da piada à la dito-cujista.

Ri: “Mais que menos por aí mesmo” — risos e semirrisos — “Demonstro, no fundamental, em uma das conclusões, que a amizade pelo mesmo sexo e/ou pelo oposto é uma adaptação, uma forma de expressar a essência: o profundo desejo orgástico pelos amigos. Como não pode ser vivido, é reconfigurado; Somente falta ver quanto o vice é só amigo.”

(Esconderijos frios.)

— Amo nossa amizade! — o Magnífico, com a mão sobre meu ombro, disparou o fuzil dos risos. — Amo e como[1]!

— Pera, pera, entendi: isso aí resumido é todo mundo querendo comer todo mundo e todo mundo querendo ser comido por todo mundo…

(…) Ao redor desse diálogo, a festa ganhava auto-suficiência energética, enquanto existisse auxílio oral do álcool[2] e da comida. Todas as dimensões do encontro conseguiram impulso; ali, no micro-organismo, percebendo impossibilidade de fuga, nem poderia especular a colisão no próximo parágrafo.

Bastou-me dois dias depois — dois dias! — e o blog de um professor narcisista:




 

PSEUDOCIÊNCIA GARANTE DUPLO DOUTORADO

“Pegue Já o(s) Seu(s)!”

 

Dois dias foram o bastante.

— Olha isso aqui —, meu marido chamou.

— Nossa… Criei gastrite por causa desse projeto… desrespeito… vai dar em algo?

Balanceou:

— Acho sim, sim. No final diz que “teve acesso em grupos de professores na Web”.

— Então espalhou.

— Espalhou. Também, linda, a tese falta dizer que todo mundo é tarado e corno ao mesmo tempo!

Não só a tese. Começou do começo, devagar, com o olhar dos alunos; mas sempre “você está vendo coisas onde não tem, Margarida”. (Sou partidária da tese de que, em alguns casos, a paranoia é uma inflação da percepção subconsciente, captador dos aspectos informais e invisíveis da vida, inflado em relação ao consciente, ou, outro caso, excesso de percepção de padrões comum em perfis desconfiados ou controladores – levando a este, ao consciente, conclusões expressas de modo indireto e invertido, gerando, por dificuldade de ver as coisas como são, angústias novas.)

Ah, fosse uma alternativa fragmentar[3] o senhor colega R. de Afonso Pinto Melo Rego da Costa (o nome feio, muito provável, gerou um complexo de superioridade para bloquear o de inferioridade; restou-lhe um blog)[4]. Nossa Senhora das Distâncias, certeza, o protegeu: residia no interior, longe da nossa capital, onde o município é inferior a um bairro daqui. Desse modo, além do mais, combinei abafar a situação.

Mas deveria reagir.

E “paciência, amor, vamos abrir processo não, é coisa de aluno”.

Progressiva, no entanto, nem tão lenta nem tão em silêncio, espalhava-se o fogo de palha.

 

No momento menos explosivo, eu explodi. Veio o segundo texto:

 

“A senhora das teses – uma senhorita bela, é bem verdade – elabora o ‘Édipo Invertido’. A ideia é simples: se os filhos se apaixonam pelos pais, os pais – por que não, oras?! – também sexualizam, desde a origem, o amor pelos filhos. E voilà: legalizamos cientificamente a pedofilia. Tê-o-Tó – Dê-a-Dá: TODA. Libertem agora mesmo os presos por abuso a menores, por favor, pelo amor (isso mesmo!) dessa honorária doutora!”

“Este pobre blogueiro, reafirmo, teria evitado acesso aos absurdos não fosse algazarra de acadêmicos em uma rede social. O inesperado não ensaia.”

 

O blog ironizou assim. E por raiva, teimei:

 

Resposta oficial e breve ao blog “O BREVE”.

i. De fato — publiquei —: os pais desejam tanto as filhas (inconscientemente) quanto suas esposas e tendem a disputar o amor delas contra os filhos. As mães desejam o amor dos filhos e do marido e também desprezam e/ou disputam contra as filhas, como leais adversárias. Isso é o amadurecimento (continuação) do complexo de édipo entre os adultos, o édipo invertido maduro (na falta de um nome adequado), a defesa da satisfação pela não-castração dos desejos por um antagonista amado. Por desejo, entenda-se como afeto e busca por atenção-cuidado, ao modo lacaniano (como deixo claro, sou adversária de Lacan, porém reconheço suas contribuições). É muito comum a arte tratar dos pais duros com os filhos meninos e as mães terríveis contra as filhas. Ao menos e, até onde sei, apenas na psicologia afirma-se a concepção platônica de “não saber que sabe”, o conhecimento como um recordar: todos sabemos de nossa experiência edipiana infantil, embora também, ao mesmo tempo, não a saibamos – tal saber que não se sabe afeta, na fase adulta, o comportamento dos pais e mães.

ii. Acontece, por exemplo, de um pai rejeitar a companheira e dedicar mais atenção à filha, que se sente – edipianamente – vitoriosa; a mãe, por seu lado, desenvolve, subvertendo o impulso inicial de amor, uma pulsão de vingança e repressão. É um exemplo, e muito comum, de um édipo invertido mal elaborado. Tal fenômeno psíquico – reforço: inconsciente – ocorre quando o jovem inicia (do ponto de vista materno e paterno) os primeiro sinais de autonomia, personalidade, estrutura física não-infantil e amor edipiano;

iii. É uma vertente da concepção em que a energia sexual é expressa – por transformismo adaptativo (sublimação) – não só no amor cônjuge mas em todas as relações agregadas, necessárias, saudáveis e socialmente consideradas: a amizade, a empatia, a parceria, o amor entre familiares, etc.;

iv. O blogueiro faz confusão com algumas teses que foram, na verdade, do meu primeiro doutorado. Naquela produção, afirmei que a pedofilia poderia ter mais de uma causa. O excesso de repressão sexual entre padres, muitos homossexuais ocultos, fragiliza a moral, o superego, deles e passam a ver corpos infantis como atraentes, assim como cachorros tentam copular com qualquer animal quando com demasia abstinência ou animais que se acasalam com espécies parecidas mas diferentes quando lhes falta parceiro da mesma espécie. A outra razão possível é a imaturidade dos pedófilos, pois possuem uma idade mental infantil, o que afeta o rumo dos seus desejos; todos conhecemos a personagem da “tia” adolescente crescida que tem atração especial por jovens, adolescentes –  a mesmo lógica aplica-se aos criminosos sexuais[5].

v. Explicar é algo completamente diferente de justificar. Apenas a mente comum considera que fatos absurdos são indignos de ter qualquer lógica, qualquer sentido, qualquer causa imanente.

vi. Por agora, é isso; como prometido, uma breve resposta. A quem desejar, minha tese de doutorado, aprovada, habita o site da faculdade;

vii. Aguardo críticas científicas e menos o modelo artístico do comentado “blog” (qualquer um tem isso hoje em dia).

***

— É questão de consequência, Margarida! Você não é assim nunca, é não! — Maridou meu marido. — Diabo foi aquilo?

— Quer ajudar ou escrever uma carta de apoio pra ele? Tá insuportável até aqui!

— Tá me chamando de insuportável, sem paciência? Quer resolver fazendo o favor de criar problema?! Se formou foi em psicologia, mesmo?[6]

***

Sabe a postura corporal estou rindo tenso para você, me escapando, fica aí com teu constrangimento, não necessitamos muita conversa…? Fosse apenas isso… Vieram os corredores, a falta de ação dos professores, as alunas de roupa provocante me observavam com especial violência. Não compreendia.

Isso cresceu, evoluiu devagar e, pouquíssimo depois, menos devagar, para insinuação de falta moral em mim – silenciamentos – pequinesíssimas provocações – “safada” dito em pequenos gestos – testes oculares pra ver se aceitaria alguma sedução.

O pior momento – esquecerei nunca, lembrarei sempre– foi quando ex-alunos, no instante da minha presença, levantaram-se da beira da mesa.

E tive de simular, desperceber risos-olhares de lado, “você acha que estão assim por causa de mim?”.

— Flor, agora eu acredito — Madalena desconfiou, e com rapidez recuou: — Relaxa, mulher, isso é inveja.

 

Em uma e meia semana os acessos ao meu texto on line multi, tri, quadri, etecetaraplicaram. Aos de “o BREVE”, idem. De fato, má propaganda vende.

Por isso, vieram algumas mudanças de hábitos: procurou-se “apenas reprovar conflitos entre os pares”, “não associar imagem”. Básico boicote. Eu colhi essas justificativas do assessor do assessor, pois, para “desassociar”, o próprio reitor desertou-se… Acabaram-se as visitas e o “você é o orgulho da faculdade!”. Supus que poderia ser, também, algo de racismo[7].

Mais ou menos na outra semana, Madalena cedeu, constrangida e recuada, por ser amiga minha:

— Não dá pra ir ao cinema hoje, apressada, beijo, tchau.

Tudo bem que é “AO cinema hoje”, só que falamos “NO cinema” ou “não dá, flor”, longe desse ritmo martelado no diálogo, formal.

E com a situação nesse ponto, decidi – ainda, ainda – esperar a dispersão da fumaça. Mas: eu deveria reagir[8].

— Paciência, amor, vamos abrir processo não. Daqui a pouco ela volta a falar direito contigo.

Na rota contrária, no mundo virtual, surgiram alguns excitados com minhas ideias: excêntricos, a maioria de baixa influência social.

“Se a teoria incomoda: parece que excesso de fumaça é um excesso de fogo”, escreveu, talvez desentendido do sentido sexual na própria frase.

“Basta olhar de cabeça aberta e ver até nas imagens como as pessoas declaram amor aos familiares. Achei BEEEEEM bizarro, mas que faz sentido, faz.”.

“Não faz sentido, só que é criativo e tranquilo de ler”.

“Se ela tem razão, tá todo mundo fodido (literalmente)”, brincou um outro comentador.

“Só eu acho que ela é meio ou muito doida?”, comentou uma, e outra respondeu: “deve ser por isso que ela pode ter razão”.

Pareceu que bastava paciência. Houve quem me mandasse mensagens parabenizando; era questão de suportar, de aguentar o mundo real me contaminar com um tipo diferente de radiação, do oposto.

 

Seria uma chance?

— O Melo Rego foi preso! – Gritou o meu marido.

— Brincadeira, amor!…

— Sério, sério, imagina.

— Quê?… —, Já trancando o ar.

— Pedofilia…

— Meu pai, ironia, ele meio que me deu razão…

— Exato, amor!

Alegrei-me em um:

— Pega, fela duma puta! — Comemorei pouco antes de espirrar[9].

— E como é aí? — riu. — Tá feliz! Nem lembro se um dia te vi falando essa frase assim; saiu parecendo como se não fosse tu.

 

TV:

— É comum que o que esconde algo procure ser autoexpositivo ou em formalidade combater o que faz, como camuflagem —, exibiu saber.

— Obrigado, delegado —, o repórter olhou pra a câmera. — Pra que a gente tenha noção, Afonso de Melo era um professor bem sucedido, polêmico, um futuro estável e relaxado na cidade de Anacapatinga do Piauí. Arriscou tudo pela perversão. Veja o que ele mesmo falou quando perguntei se ele se arrependia de prejudicar tantas vidas.

— Não. Não consigo — tonalidade serena. — A verdade é que sou doente, não tô bem e não tinha com quem dividir isso; até me mudei pra evitar.

— Agora, por favor, corta, corta. É um degenerado — no estúdio, o apresentador tomou a palavra. — No meu programa degenerado não tem muita voz, democracia aqui só tem pros de bem! Enfim, parece, parece, me disseram, de boca de ouvido, de uns amigos advogados, promotores, que ele vai alegar problemas mentais para escapar dessa aí.

— Parece que ele vai usar as teses da professora doutora Margarida, da UESPI, que ele próprio antes combatia, para alegar problemas.

— Um pilantra desse não pode ficar solto, não pode! Brincadeira, BRINCADEIRA! — O apresentador em postura: “Pra quem não sabe, ele acusou essa professora, como é o nome mesmo?”

— Não recebi o sobrenome, Margarida.

“Margarida. De criar teses que explicam esses desejos doentios, e dizia que ela até defendia.”

— De qualquer forma, a produção foi ao encontro e a mesma disse, abre aspas, “nem eu nem o meu marido desejamos envolvimento”, fecha aspas. Alegaram desgaste.

 

Agora era amiga do meu inimigo. Não era. Usando minha defesa de tese como autodefesa, fez sua fama, serviu como estimulante para que eu reclamasse “é de propósito, amor!”, “parece perseguição!”.

— O caso pode abrir um argumento precedente na justiça para futuros casos de pedofilia.

— Quem sabe a chamem sobre o caso.

De crime acusada nunca: apenas só, desconfortável, excluída, desnecessária e sobra em todos os ambientes.

Excesso.

Todos sentem – ainda, ainda! – calafrios ao pensar em minhas teses; rejeitar a criadora (na verdade, somente as descobri) é a forma de rejeitar em suas mentes o fato desagradável.

Por fim: os vizinhos estranhavam minha presença | as crianças não brincavam em minha porta | parentes visitavam por dó | marido exausto, sempre exausto | perigosa em hipótese para “dar em cima de mim ou de meu esposo” | “agora deu pra dizer que a gente deseja os filhos”| “pelo menos na prisão os estupradores têm uns presentes dos detentos”| “e é exibida falando complicado”| “fala besteira porque não tem filho”| “foi bem ela quem prejudicou o professor; duvido é nada”| “estuda demais, fica doida”.

 Abri a Caixa de Pandora dentro dos homens. Punição: quarentena.

Condenada.

Ir trabalhar + arrastar; falar + constrangimento; cabeça baixa = evitar olhares.

Se eu pudesse subtrair a orelha – ouviria?

— Você sabe mais que eu, vamos ao psicólogo, amor.

— Não —, impediu esta professora, psicóloga não-praticante e teimosa. As pessoas viam-me, pela formação, também, uma espécie de aço mental.

— Te amo.

Eu deveria reagir.

 

Stress, ralo mastigando meus cabelos, stress. Meu corpo mais flácido denunciava minha situação[10].

— Agora deu pra dizer que a gente deseja os filhos, olha isso! — Solou no momento da minha curva para o café, na universidade. Nem a conhecia. Tentou, com e como a amiga, fingir normalidade.

“Olha isso.”, palestrei enquanto enchia o copo. “Olha isso, em minha primeira tese, revela uma nova relação interpretativa para os atos falhos” — sorriso amarelo, ataque surpresa. — “<Olha isso> na aparência significativa, diz a ela para dar conta do quanto é absurdo, inaceitável. Mas existe um dual e duplo sentido, uma ambiguidade oculta, uma relação de ato falho: você realmente quer, em essência, revelar-se e que ela veja – pois no inconsciente há a noção total da verdade em minha tese. É a mesma ambiguidade, linguística e cultural, reveladora de verbalizações do dia-a-dia, como ‘isso é foda’, ‘sinistro’, ‘você é demais’, ‘o que eu fiz pra te merecer’. Adaptação social na – como origem da – linguagem complexa. Puro duplo sentido como adaptada revelação das vontades do inconsciente. Mais nada.”

E assim levei o primeiro soco na cara de minha vida.

E assim o primeiro soco na cara de minha vida eu revidei.

E o café quente ganhou nova dimensão significativa.

E graças que a outra era covarde, e soube gritar, e o grito ajudou a nos separar.

Doeu-me saber: era uma estudiosa, não uma lutadora.

— Margarida, vai pra casa, Margarida! — A voz de Madalena, após me tirar do centro assembleico dos curiosos[11], transbordou com dois mais miligramas: — vai pra casa, mulher (!), evita confusão; consegue dirigir, mesmo, certeza?

— Sim, flor.

— Pois s’evacua.

— Por isso? Eu fiz besteira, eu tô errada? Tu viu o que ela fez?

— Vi, eu vi, depois a gente vê, vai, calma, chora não, toma um calmante na hora que chegar, tá? Tava ocupada, eu vou lá. Vai, flor.

***

O telefone dele não respondia. Casa só e espaçosa. Tranquei tudo. Roupa melada do choro e suor e catarro… Conectada a gravação ao vivo pela Rede Mundial de Computadores.

— A professora vai se matar, meu Deus!

— Esse vídeo… Não aguento mais, não tem sentido isso: tudo tá documentado, argumentado, escrito… Se me resta provar, provarei.

20.003 acessos agora.

— Mulher, abre a porta! Me ligaram dizendo que tu tá filmando, tô vendo aqui no celular; vamo conversar, abre, vem, desculpa. Abre a porra dessa porta!

74.789 acessos agora.

— Eu vou provar.

Peguei a foto de Madalena e a do meu amor. Devagar, segura, beijei as imagens, as dos dois, sem misturar com suor-choro. Preguei-as ao lado da câmera do computador para que me dessem atenção – precisava da máxima.

— Puta que o pariu, ela vai morrer agora, mãe! É a professora na tela, mãe!

81. 364 acessos agora. O marido desesperado lá fora.

— Amor e flor: por, para vocês.

 

Masturbei-me para os dois – de    ca     men

                                                  di     da       te.

 

METROS QUADRADOS EM CENTÍMETROS CÚBICOS

 

Teresina/Piauí. 14 de Junho de 2010.

Breve além dos três meses desde o lançamento da ponte Estaiada. E uma ponte sobre o rio é o point desejado de todos os suicidas.

Na ponta da ponte, no mirante, estava Anna com, apesar do nome fofo-jovial, de dois “ns”, seus 32 anos. A não-tão-jovem enfim recebeu devida atenção: curiosos, depressivos invejosos, ambulância, jornalistas e policiais chegaram às 7h ao encontro; no ponto mais alto, chegara adiantada em 2 horas.

Todas as negociações falharam;  os negociadores estavam desmoralizados. Nem o padre da paróquia serviu. Foram chamar a família, mas Anna era desprovida dessas coisas (nem imaginava a sorte disso). De qualquer forma, não se sabe se dava falta.

Anna estava lá em cima com ninguém.

— Tudo bem, posso sentar? — O dono dessas palavras, típico hétero-branco-barba-magro-arrumado, soube entoar a voz com certa firmeza não impositiva.

— Como que entrou e subiu? — Assustou-se.

— A entrada, pela entrada. Mas tudo bem, aqui ainda é propriedade do governo.

— Para, não, não, não chega perto!

— Chego não, senão caem dois — respondeu.

Sentou-se. E sentando-se, meio longe, amarrou a carência degenerativa de Anna.

— Psicólogo, dispenso.

— Não, sou filósofo de profissão…

— ?         

— É difícil explicar.

— Pagam as pessoas pra ficar pensando… — agrediu.

O cenário era belo dali. Era o ponto de vista que só os dois viveram, nenhuma outra alma viveu. Talvez, quem sabe, os operários da construção.

— Bom gosto pra descanso, viu; sabia que esse mirante ainda nem está pronto pra visitas?

— (…) Uma pergunta que faz sentido agora é o porquê um filósofo.

— Você tem certeza de morrer.

—Tenho.

— Exatamente isso…

— Mandaram você subir aqui pra gerar dúvida em mim?

— Não, sim… Se eu disser que é um novo projeto governamental, acredita?

De longe, dava pra ver a gente correndo mais veloz que urubu, saindo dos bairros ao redor, pra acompanhar e ver. Pessoas no alto dos prédios.

— Cansada… Dizer pra quê mesmo? Tudo se move apesar de mim, não tão nem aí de verdade.

— Você acha?

Silêncio, solvente de tédio ou indiferença.

— Eu tenho uma explicação maluca.

— Você é maluco — agrediu de novo.

— Vou dispensar a piada óbvia pra evitar ser sombrio; eu quero você viva, espera um pouco.

Continuou:

— Por que tem tanta atenção e tanta gente e recursos para uma desconhecida?

— Por causa do trânsito.

— …

— Ou porque atrapalha ou porque o trânsito deixa vir ver minha morte.

— Bom, bom; você prova que, de duas, apenas uma: ou todo inteligente é suicida ou todo suicida é inteligente!

— Tá.  — Monossilabilou.

— Acho que é a relação tamanho, qualidade e quantidade. Por exemplo, matamos formigas todos os dias e é bom matar as formigas; são demais.  (Deve saber de biologia mais do que eu) acho que são bilhões de bilhões. E pequenas; o inferno é o tamanho delas. Quem é que não mata formigas?

E tem os elefantes. São grandes, poucos, risco de extinção; se morre um, é documentário, é jornal, é filme lamentando e um monte de gente fresca sofrendo pelo coitado do elefante. Ele é grande, impacta, é muito e pouco.

Não tô dizendo que você é um elefante.

Raramente essas coisas acontecem – isso destaca. As pessoas julgam o valor da vida pelo tamanho: é a diferença do elefante para a formiga. E também pela quantidade: a espinha grande é mais importante do que o pequeno cravo.

Se um artista morrer, todos choram porque material raro, mas morre gente demais todos os dias. Só não são pessoas elefantes.

— Tô entendendo, um monte de indireta pra eu me sentir especial, sugestões. — Contrargumentou. — Nem me conhece.

— Estou falando de tamanho, quantidade, elefantes, formigas, formigas e elefantes...

— Certo. — Dobrou o rosto em 15 graus. — Cala a boca.

— Diz se é coincidência ou não? Até aqui em cima tem formigas, olha só. Gosto de matá-las, dá prazer, desconto ódio nelas —, divertiu-se matando algumas com o polegar, esfregando, quebrando-as.

A Anna:

O filósofo:

— É a distância —, engatilhou.

— ! —, exclamou-se-lhe quase interrogando.

— A distância do pulo, de onde a gente está. Todo mundo está aqui pela qualidade do tamanho do pulo, o tamanho da ponte, formiga no elefante.

 

Um corpo em queda livre, molhando-se de rio. Não era a Anna.

V

E

R

T

I

C

A

L

Nenhum lá na avenida, os populares ou a polícia, sabia quem eram os dois. Dois suicidas, duas pessoas no mesmo local, altura, dia.

 

 

 

 

 

 

LUCY

Inspirado no filme “Lucy”, 2014.

 

Há 3, 2 milhões de anos. Lucy, da espécie Australopithecus Afarensis, hominídeo, segundo a arqueologia consta, tinha 20 anos. Para dimensionarmos a imaginação, seu peludo corpo era a desencaixada mistura dos chimpanzés atuais e homo sapiens, altura de 1,1 metros e 29 kg; tornava-se imagem denunciadora do futuro, naquele momento inexistente, em plena latência e mera evolucionária possibilidade. Tal característica manifesta-se evidente, ainda mais, quando observamos o andar quase-ereto ou, se preferirmos, semiereto, aventurando-a à máxima distância possível dos arvoredos.

Naquele dia, Lucy – chamemos-lhe assim – andara mais que de costume. Teve de ir com seu grupo à outra lagoa, pouco depois da primeira, da de hábito, mais próxima deles, que, mais seca, possuía maior proporção de predadores por metro quadrado. Como o período de seca estava a castigar mais aquele ano, naquele lugar no futuro distante nomeado Etiópia, as duas lagoas ainda esperavam fundir-se pela ação das chuvas; e tanto a comida quanto a água estavam mais escassas. Pois bem; neste tanto, andar tanto, no inesperado ziguezague e nestas tensões acrescidas, apareceu um fruto novíssimo – de repente e diverso: no retorno, nutrida e com o caminhar deveras mais mecânico, de quem reconhece e encontra o velho caminho de praxe, a primata ancestral de nossa espécie atravessou um portal, por assim dizer, assim sentiu, sendo mais preciso na metáfora. Sentiu de sentir, mesmo. A caminhada longa e a extrarrotina romperam dentro dela algo, nela interno, qual o dedo a romper a superfície d'água ou escamas de peixe. Num certo passo, teve de olhar as laterais, ambas: cabeça semimóvel enquanto andava para, Como direi?, entender e entender-se… Algo havia mudado, de fato, no fato. Como a criança hoje, cedo ou tarde, percebe-se indivíduo, unidade, ser, diferente do diferente e igual a si própria; ela se percebeu, notou-se, viu-se como se antes deste momento – como se antes inexistisse momento – fosse um bicho ação-reação e límpido instinto, ainda que não soubesse explicar-se de modo articulado, tal a descrição presente neste texto. A consciência surgiu assim. Por evidente, continuava e continuaria a agir de acordo com as vitais orientações corpóreas e as expectativas e ordens do agrupamento; postura similar à dos macacos homo sapiens. Era o que era e era o que fora, mas mui diferençável: por necessidade pura, dimensiona-se de e em acordo ao meio; pensava, no entanto, agora, sobre atos externos e seus, estas entidades autônomas. A percepção informava-a, além disso, que, antes do momento aqui relatado, poderia definir-se e considerar-se como algo pouco mais além de nada ambulante, pedra ou pau provido de desejos especulativos… Tendo os olhos voltados ao cérebro, na medida em que o resto funcionava-se de maneira natural, o ver-se – nova faculdade a operar por dentro, interno e íntimo – revelou-a que ao bando faltava este recurso; talvez, nem os filhotes eram ou tornar-se-iam capazes de. Os olhares despejados por eles eram apenas olhares, dos olhos para fora. Enquanto o liberador e permanente milagre ocorria-se, sua boca de expressar tudo aquilo era incapaz. E sequer sabia, sequer poderia, sequer sabia se poderia. De maneira inconsciente e involuntária, mexiam-se os lábios mudos em pequeníssimas e instáveis ondulações ao mesmo tempo em que as bochechas carnudas permaneciam, em geral, imóveis:

— hhhhhrrrrrrvvvvvnnn… — Dizia-se, quase. Na caminhada, dois ou três acompanhantes próximos perceberam esta novidade ineditista; porém, sendo um fenômeno acidental e de pouca importância prática para estes, destinavam indiferença; continuavam-se, iam-se. Por seu lado, interrompeu o “sonhar acordada” ao perceber formigamentos e dormência labiais; algo inesperado e estranho, findado tão logo se concentrou em objetos externos, fora da imaginação. De resto, restaram-lhe dúvidas (! – dúvidas!) sobre a veracidade das impressões na tez da face, se eram reais e, uma vez provadas, normais.

Quando mais perto que longe da gruta, onde a parte menor do grupo aguardava, local onde dormiam, ao admitir maior relaxamento, ponto alto, bom para perceber ameaças e guerrear com vantagens, rodeado por alguns pequenos morros meio afastados a deixar “invisível” este lugar; Lucy observou a coisa mais linda do mundo – um pôr do Sol. Era o despedir da luz, alaranjado pelo arrebol; e sentiu-se, num susto, quando tentou administrar a atenção e tentação de ir para fora de si própria; afetou-a alguma energia diferente; a Lua com uma só estrela cintilante, primeira companhia, antecipava a noite por vir; em seguida, duas ou três borboletas azuis voaram, distantes e rasantes, para mais distante, oferecendo impressão de despedida – sua primeira impressão poética; certos microarrepios e microangústicas informavam o desejo de expressar-se, e dividir ideias, e sentimentos novos, e inéditos; permitia às sensações atravessá-la, pois sequer sabia explicar para si a origem e natureza daquilo. Entenda-a. Quando passou a pensar, não era por meio da mediação da palavra, e, sim, por um tipo novo de instinto, intuição ou, batido simbolismo, novíssimo globo ocular direcionado rumo à caixa craniana, dentro de si – melhor três a dois. Passou, então, a possuir o instinto do instinto, a camada recém-nascida da percepção, o pensamento do pensamento ou espirito do espírito; enfim, era a forma simples, rústica, amorfa e nada mais que um pouco mais de si própria acrescentada, em si e para si, semelhante ao acrescentarmos gordura sob a pele após demasiada alimentação. Dali em diante, como seria?

O dia anoiteceu-se. Constelações e brilhos estrelares provocavam cartase estética: sentada, possuía dificuldades de repouso e, tanto mais considerado o esforço extra daquela data, anoitecer era por óbvio, para ela, o equivalente a dormir. Na entrada da caverna ficou a fitar o céu; sob um tipo de hipnose, fixava todos os detalhes lunares e media-os, um por um. Irresistíveis curiosidade e prazer! Decidiu, de decidir decidindo, pois nada e nenhuma necessidade primeira justificavam aquela atitude além da própria vontade, fim em si mesmo, subir numa das maiores entre as muitas árvores ao redor de seu lar (subia-se como autodefesa quando um bicho feroz se aproximava, ou locomoção na estrada alternativa dos galhos, ou para colher frutos). Era a mais alta: subiu-lhe, subiu-se e subiu mais para melhor localizar-se; elevava-se para cada vez mais próxima da estratosfera para poder, assim, ter doses cada vez maiores de beleza diante dos olhos negros. Isto, experiência-experimentação, por excelência, tem o jeito de o gérmen de todas as formas e tentativas de entendermos todo o cosmos: a religião, a filosofia, a ciência, a arte. Núcleo essencial. Sendo a primeira, após 4 bilhões de anos de evolução das espécies, sentia deslumbramento e pequenez diante do imenso, necessidade de explicar e explicar-se – emoções e prazer!

Segundo consta, os pés da raça de Lucy eram semelhantes aos dos humanos, com a parte superior do corpo a lembrar um pouco mais nossos primos primatas. Também segundo consta, Lucy, como a batizaram os descobridores de sua ossada, um fóssil admiravelmente preservado, de uma significativa altura caiu. Desabou-se. Ignoram, no entanto: o pensamento a levou adiante; sua consequência-autoconsciência, originalíssima habilidade, fê-la, desconhecida desta verdade e apesar do seu corpo impróprio, retomar a prática dos ancestrais evolutivos: escalar árvores, porém para avaliar! Retornou ao passado para olhar para frente – o sentido maior seria este? Enquanto esticava os dedos para medir e “apanhar” uma forte estrela e por brincadeira, seu peso e a natural ondulação corpórea em busca de equilíbrio rebentaram o galho que a sustentava, negando-a tempo para segurar-se; a mão repousada sobre outro galho poderia sustentá-la com a resistência devida, mas a casca envolvente deste também se desprendeu junto a ela. Primeiro, o impacto foi sobre a perna direita; depois, ao tentar salvar-se, o braço esquerdo; em seguida, colisão contra a lateral direita do corpo. Ralou-se, quebrou-se. Viva, era incapaz de sequer gritar qual algum bicho: ossos e costelas quebrados perfuraram o pulmão, mergulhado em sangue hemorrágico. Estava imóvel e emudecida. Mas – coisa de literatura – conseguia enxergar o minguante luar acima de si… Em dor e devagar, antes de amanhecer, faleceu. No início da manhã, uma névoa pairando no ar, o bando descobriu-a quebrada e lamentou a perda do membro; os filhos, crescidos, lamentaram-se – tal qualquer mamífero. Mas, diferentes dela, sequer pensavam; e sequer pensaram enterrá-la. Então, desmanchou-se ali, um pouco distante dos seus; dia após dia e hora após hora, a lembrança de Lucy entre os semelhantes ia-se com o ir-se de seu arranjo físico. Alguns anos depois, talvez ou quiçá, dela continuante apenas pelos e ossos enterrados pelo vento e pela terra, o mais jovem filhote pensaria, tão assustado quanto assustado por pensar, sobre este acontecido neste discrepante dia.





JOÃO, MARIA

 

a)

Sob o luar, Enzo caminha ao lado de Valentina à beira-mar, na praia, em passos sincronizados e distantes de toda forma de pressa. Um pouco mais distante do quiosque, a mão dele a dela segura com força superior ao peso do ambiente, comunicando com o corpo sua verdadeira vontade. A luz natural da noite começa a se sobrepor sobre a luz elétrica, o vento parece mais frio e aconchegante. Do negrume do oceano, apenas as espumas apresentam-se aos olhos. Surge o primeiro beijo, olhar mútuo interpenetrante, o segundo beijo, forte o bastante para que ele a deite naquela areia. Aqueles toques aqueciam e causavam novos tremores, de outro tipo; o corpo musculoso, o jeito firme, consegue dominá-la. Entrega-se.

 

b)

Lua cheia. Valentina percebe aquele rapaz direcionando-a para longe, uma parte da praia vazia de luz e pessoas. O frio na espinha, o arrepio das hipóteses, a faz andar em passos quase artificiais. Se reagir, pode ser que ele tenha uma arma. O rapaz punha mão na cintura, tocava em algo. Quando para para propor voltar, para negociar de maneira indireta, Enzo segura seu corpo e enfia-lhe a língua goela a dentro. Fita-a no escuro, se como a vendo além da penumbra. Medo. Inclina-a com uma capacidade angustiante. Ela pensa: antes o corpo à vida.

 

c)

Os amigos de Enzo ficaram de apresentar uma novinha na praia, mas o susto foi grande. Quem dera fosse feia, que as características dela nem nome têm. Feia³. E era amiga das amigas da namorada do amigo dele, ou seja, deveria fazer o sacrifício em nome da irmandade, ou seja, domar o dragão. Foi-se com ela esticar as pernas. Talvez pela presença inesperada, o intestino delgado iniciou briga contra o grosso: o gás metano da flatulência passeou por seus órgãos, desejoso por encontrar o seu destino. Sua habilidade de peidar de maneira imperceptível aos radares olfativos estava sob teste definitivo. Calculou a distância, os efeitos do deslocamento do ar e seus rumos, o volume da substância gasosa dentro de si e a probabilidade de a liberação produzir efeitos sonoros destacados. Seu rosto petrificara diante da imposição natural sobre os ritos sociais. A ideia era boa: levá-la ao ponto mais distante. Beijou-a para disfarçar e cumprir as obrigações de seu clã guerreiro, porém viu-se incapaz de ter coragem para afrouxar-se. O segundo beijo e a sacada de deitar Valentina sobre a areia praiana foi perfeito, ofereceu as melhores condições. A bunda dele aqueceu-se; a dela, também.





TEMPO VERBAL

 

No banheiro de uma quitinete, um poeta escreve poemas à sangue. O seu, não. Ao chão de piso frio, jovens paralíticas esperam a hora da morte. Apenas seus olhos obtêm autonomia de movimento: veem o louco escrever com dinâmica descontrolada sobre a pia, em um caderno. Enfia a caneta na carne de uma das vítimas, mexe, circula, volta a escrever. São quatro moças adolescentes de perfil próximo: magras, peitos avantajados, amorenadas. Nuas, inertes, recheadas de cortes e furos.

Quando sentia numa o tremor da dor e do medo, da reação desfazendo-se, injetava nova dose de alguma substância em suas veias tão lindas e femininas. À noite, pedia em retórica para com as garotas deitar-se, dormir-se, abraçar-se e com seus corpos copulava alucinando reciprocidade. Colhia delas o néctar rubro, escrevia, escrevia, preenchia as páginas; e por alguma razão iniciava uma espécie de colapso da criatividade, um orgasmo ao contrário, porque a possibilidade de criar evaporava-se, diluía-se, esgotava-se o poço de petróleo.

Dotado de postura teatral, forçadamente teatral, daquela poética sublime inumana; enquanto os olhos trêmulos passeavam pelos versos inéditos: Admiro-as por terem alcançado o sentido no silêncio, isso, as palavras corrompem a áurea, a essencialidade por detrás de todas as outras essências, onde tudo é aquilo que é, distante das mediações. Admiro-as. Admiro-as.

O poeta desaparece por horas, por muitas gotas angustiantes do chuvisco do chuveiro. A quinta sequestrada interrompe a rotina, altera a correlação do espaço e todas as proporções daquele sistema fechando renovam-se e modificam-se. O mesmo perfil e um sinal perto dos lábios, ao modo das romantizadas meretrizes francesas. Aquela cena parece ter reaquecido o espírito exausto do rapaz, que de pronto arranjou uma prancheta, uma lâmina e extraiu a nova fonte da nova musa.

Duas, três, três vírgula cinco, quatro, cinco horas de frenesi, pois o Monte Parnaso servia-o de toda bênção dos deuses todos, de todos os credos. Ato contínuo, o primeiro motor, o perpétuo, começou a falhar, a lira enrijeceu-se, a flauta recusou-se a fluir-se. A ponte entre aquela a soprar aos seus ouvidos e as mãos desabou por sobre a pia, lacrimejante, derrotado, encontrando os seios da nova amada e das demais.

Água, lágrimas, catarro, sangue e cabelo grudaram em si, em sua tez. Penúltima inspiração. Levantou-se levantando consigo sua tristeza de duas toneladas, saiu, ouviu-se abrir-fechar de gavetas e passos entrelaçados e largos, cada vez mais largos, cada vez mais próximos. Primeiro adentrou a tesoura, o braço, o deslocador da ferramenta. Vivos olhares pedregosos saturaram o peito de tenaz alegria, confiança. Cortou-as os cabelos enquanto beijava-lhas as bochechas e declarava amor; uniu os fios em linha, admirou a origem daqueles pedaços.

Fez, então, a grandessíssima obra: furar beiços, lábios, acima e abaixo, passar os fios, acima e abaixo, furar os beiços, passar os fios, acima e abaixo, furar os beiços, passar os fios, perceber sobrar fios, entrelaçá-los em novas combinações, talvez rimas concretas, para criar verdadeiro firme nó, outro nó.

Arrastou as donzelas de seu harém para formarem um lindíssimo círculo de amor, sangue, peitos, mudez, poesia equidistante de poemas, aconchego. Tato. Tato. Tato. Um verso real eterniza-se no agora inorgânico da tinta e do papel. Última inspiração.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONTO CONCRETO

 

Um homem

                    Vai vindo,

                                      Descendo

                                                       A escada

                                                                        Do prédio e da      

                                                               vida;

                                            Perece um

                Reflexo andante

 Descendo,

                      Como se

                                         Nada disso

                                                               Fizesse

                                                                                 De fato.

                                                         Porém, vai-se;

                              Desce o cérebro.

            A novinha

Do 101

Já não o quer

                         Para fazê-lo

                                                  Esquecer-se

                                                                         Da própria idade                                                                                    

                                                  Reclama-se

                                    Consigo

               Que o prédio

É velho,

                 Impróprio

                                       Para idosos

                                                                E os seus

                                                                                        Limites.

                                                                       Sua só

                                                    De descer

                            Passo a passo.

        Agora vê

                            A quarentona do

                                                           405, de cara

                                                                    Emburrada sempre.

                                                     Agora,

                              O traficante;

               Agora,

Onde

           Enforcou-se

                                  Os de feitios

                                                         Orientais

                                                                            E, desde então,

                                                  Seu ap. vazio.

                              Finalmente

              O térreo.

Lá fora,

               de pé,

                           A imaginar,

                                                Em balanço

                                                                        De sua vida,

                                            Feita sem fazê-lo,

                                                                              Pensando se

 


Na falta de um elevador, haveria atalhos mais ou menos nobres, como pular-se. Gostava de pular quando era criança. Seu suicídio valeria um conto? Olha para cima, de costas para o medo, para avaliar o efeito de uma queda qualquer. E vem vindo a vizinha do mesmo andar; como sempre, ambos sentem-se constrangidos por terem de ser educados, teatrais. E ela diz: Força! Você consegue… Como se sua mente, daquele, pensasse em subir…


 

J á  s e  p e n s o u  t o d o  e s p a l h a d o  p e l o  c h ã o ?

 

 

 

 

 

RASGA-MORTALHA

 

 

CENA 1

Quatro assaltantes fogem de um banco no interior do Piauí. Entram em um carro pouco antes roubado, e escapam dos e sob tiros. Ao todo são cinco, somado ao motorista. Por todos estarem inteiros, há grande comemoração durante a fuga. Mas um, mais jovem, para de se comunicar… Morre de infarto.

Aqui, a história ainda falta começar, aqui…

 

CENA 2

Líder do bando, Carlito chega à cidade de Brasileira, norte do Piauí. Por razão daquela perda, decide ir à região recrutar em segredo seu sobrinho, Valdeyoson.

 — Sabe atirar?

— Sei.

— Passarinho não revida.

Ao chegar, presenteia com um par de tênis o garoto. Neste instante, mente para a irmã sobre o emprego oferecido ao filho:

— Vai vender redes comigo e cuidar do posto de gasolina.

 

CENA 3

Em Teresina-PI, o professor Cláudio Nunes, importante para esta história, conversa com o amigo Agenor, diálogo pedido por este, de quem se afastou por dez anos:

— Venho te chamar pra um projeto, Cláudio. Estamos tentando modernizar a polícia, contratando consultores, igual naquelas séries americanas. E você sempre foi o diferentão, doido.

— Na verdade… — reagiu ao esconder a ofensa.

— A gente precisa acabar com o novo cangaço, projeto piloto, basta nos auxiliar.

 

CENA 4

Valdeyoson participa de seu primeiro assalto a banco. Pouco antes, conhece os colegas de profissão: Lucas, Nando, Rômulo e Fábio.

 

CENA 5

Cláudio comparece à primeira reunião da força-tarefa especial. Nesta, recebido pelos policiais com distância e desconfiança.

— Prazer, professor! O senhor tem cara de comunista, sabia?

— Porque sou.

— E Vich, defende bandido?

— Defendo trabalhador: bandido não vive de salário.

A conversa continua com o professor falando da substituição do ouro por papel-moeda no fim do feudalismo, como reação aos assaltos. E sugere o mesmo relativo ao papel-moeda e dinheiro virtual. No entanto, percebe meio-risos irônicos e contidos.

 

CENA 6

Segundo assalto. Após roubo vitorioso, o bando foge para o mato perseguido por policiais de elite, vinte deles, que estavam por perto.

O esquadrão vê um carro abandonado: percebe ser armadilha para atirar neles, de tocaia, tão logo se aproximassem. Apesar do recuo preventivo, começam tiros de submetralhadora vindos das árvores, em direção a eles: alguns são atingidos, a maioria esconde-se por detrás dos troncos. Tentam revidar. Porém o atirador não recua, avança – sempre avança.

Alguém grita: — É um porco! O bando havia prendido uma submetralhadora nas costas do animal; na intensão de movê-lo, acoplaram um maço de panos úmido em graxa queimando próximo ao rabo – para ir rumo às forças estatais. Um pedaço de madeira mantinha o gatilho ativo. Dedução: alguém fez a “arte” naquele momento. Sob comando, os policiais avançam rumo de onde veio o suíno. Impulsionam-se. E alcançam um lago belo ao entardecer… Irritadíssimo, o comandante lança tiros na direção das águas, na esperança de acertar o maldito mergulhado, escondido. Mas a noite estava chegando. (Valdeyoson, portador da ideia, mergulhado, respirando por um canudo ou dois… E ao sair das águas, à noite, avistou um belo eclipse lunar.)

Terceiro Assalto.

Quarto assalto. Por acaso, o bando rouba no mesmo local e horário de outro. Princípio de confusão. Em seguida, acordo para dividir os ganhos. Então adotam tática unificada: lançam dinheiro ao vento, pela cidade, para aumentar confusão e facilitar a fuga.

 

CENA 7

Pela estrada, um carro da polícia rodoviária aproxima-se. O bando tenta manter a calma: fuzis em punho, mas abaixados. Um dos policiais aponta para o carro – tensão – em recado: uma das portas estava entreaberta…

 

CENA 8

A força-tarefa propõe ao Estado: o dinheiro a ir ao território de sua atuação, sertão e cerrado, ser impresso com algarismo discreto para poder rastrear seus rumos. Proposta aprovada.

 

CENA 9

O professor visita uma das cidades assaltadas, interior da Bahia, com a polícia. Nesse dia é de fato convencido a cumprir tal tarefa ao ver uma senhora, 60 anos e poucos, possuída por tremores involuntários, permanentes, olhar fixo: trauma de quando foi refém com um fuzil encostado ao pescoço.

CENA 10

Valdeyoson retorna para casa “mais saudável, melhor vestido, com postura de homem”, segundo sua mãe.

Consegue reconquistar se amor cujo relacionamento estava rompido há cinco anos. Pede-a, logo, em casamento. Ohana, sua namorada, aceita sob condição de ser “agora e escondido do papai”.

 

CENA 11

O bando reúne-se para preparar o casamento. Para distrair o pai de Ohana, explodem máquinas na empresa do futuro sogro e, por garantia, o centro de energia da cidade.

Em cinco minutos, casam-se.

Anunciamento surpresa: o pai da moça acaba aceitando.

Piada do dia: o líder do bando, primeira vez em décadas, tirou a barba – apelidado “o cara limpa”.

 

CENA 12

Assalto ao banco de uma cidade do interior do Piauí. Em meio ao, Valdeioson recebe ligação de sua esposa: “Estou grávida, amor!” Então, tiros ao alto:

— Vamo resolver isso, que acabei de saber que vou ser pai, porra!

Saindo do estabelecimento, o líder do bando caminha distraído, alegre pela notícia e seguro de si ao atravessar a porta giratória – nela fica preso, travado. Pois é porta resistente às balas… Em desespero, o bando tem de fugir enquanto a população tenta liberar o assaltante de sua prisão-porta para linchá-lo.

 

CENA 13

História da porta giratória: por causa de fraude em licitação, o objeto vai ao destino errado. Erro na sua ficha de destinação. Instalada não num prédio de luxo em São Paulo mas na Caixa Econômica Federal de uma cidade do interior do Piauí.

 

CENA 14

A força-tarefa especial desloca-se de helicóptero à cidade onde está preso o “grande meliante”. Interrogam-no:

 — Qual o teu nome?

— Satã…

— Eu perguntei o nome.

— Satanás.

Apelido e rosto fora da lista de procurados.

Imprensa a caminho.

 

CENA 15

No mato, o bando ver-se instável.

— Vamo fugir?

 

CENA 16

Na delegacia, os policiais comemoram enquanto outros interrogam o capturado. Explosão? Explosão? Um carro bate na parede. Tiros. Carro da polícia explode. Resgate. O delegado orienta ao professor e demais: “Não reajam! Ninguém Reage!” Os mascarados envolvem o prisioneiro. Depois, fogem diante do professor.

***

Desmoralização da polícia perante o país. Entre policiais, raiva contida. E comentários: apanharam o cangaceiro por acaso, perderam-no por acaso.

***

Diante da cena, o professor está tremendo – de prazer.

 

CENA 17

O bando resolve esconder-se na mata por algum tempo, enquanto cresce a barba de Carlito. Ter a barba feita foi, aliás, sua sorte.

 

CENA 18

O professor volta para casa sob pesado clima. Tenta conversar com a dondoca esposa, porém esta está preocupada com a formatura de algum familiar.

Decisão: para melhor pensar, interromper os remédios de seu TDAH.

 

CENA 19

Da cena 8: “A força-tarefa propõe ao Estado: o dinheiro a ir ao território de sua atuação, sertão e cerrado, ser impresso com algarismo discreto para poder rastrear seus rumos.” Resultado: onda de prisões de bandos do novo cangaço.

No entanto, a perseguição tem vitórias parciais. Apenas. Igrejas, lavagem de dinheiro, assaltos para esconder – sem gastar – o roubado, o fato de alguns bandos estarem em inatividade no período, a distribuição de dinheiro à população durante as fugas etc. impedem ação completa deste forte susto sobre a bandidagem.

 

CENA 20

Reunião da força-tarefa especial anuncia o projeto federal de substituição do dinheiro-papel por cartão de débito gratuito à população dos interiores, sem juros e com descontos especiais. Elogio ao professor por oferecer a proposta. Mas: “foi desdenhada por nós; poderíamos ter elaborado antes de qualquer ordem superior.”  Tal medida, no entanto, foi desesperada; ou seja: a força-tarefa sob crítica, na defensiva.

Devia-se manter a operação, pois o processo levaria algum tempo durante o qual a organização deveria agir… ou reagir.

 

CENA 21

O professor sofre insônia. Para de cuidar de sua estética. Pensamentos acelerados. Associações sobre associações. A esposa: “Vocês está tomando o remédio, amor?”

— Não.

— Por que, me diz? Tu sabe que fica louco sem.

— Tô ocupado.

— Ah, não. De novo não. Vou lá pegar…

— Eu disse: não!

 

CENA 22

Chega à reunião da força-tarefa um professor Cláudio desorganizado – roupa malpassada, olheira, tensa postura corporal – pedindo, de imediato, a palavra:

— Temos que ver as probabilidades: as assaltantes roubam onde não roubarão por um tempo, por segurança. Quando roubam uma cidade, possuem apenas poucas rotas e probabilidades de cidades no adiante: há um padrão reconhecível (cola um mapa enorme do nordeste na parede. Mãos tremendo.) onde podemos ficar de tocaia com grupos fixos e outros móveis para prendê-los.

 — Ótimo, professor!

— Não acabei. Deixem eles descobrirem esta operação. A consequência imediata será passarem a roubar não bancos até porque o dinheiro será não físico, eles já sabem, então passarão a roubar os carros-fortes na estrada.

— Tudo bem, professor?

 — Então faremos falsos carros-fortes com homens nossos dentro para, a luta, amanhã, assim é, — caminha um passo e meio passo, pois desaba-se desmaiado.

 

CENA 23

Mudando de tática, após ver o novo projeto da polícia na TV, o bando de Carlito assalta carro-forte na estrada do sul do Piauí: dois carros de assalto fecham a estrada, parando o veículo. E, sob tiros, descobrem policiais de elite dentro do cofre. Aceleram-se. Tentam fugir. Um morre neste momento. Outro, ato contínuo, lançado ao mato por fracassar em segurar o automóvel acelerado.

Começa a perseguição.

 

CENA 24

O professor acorda no hospital.

— Foi esgotamento mais abstenção da química do remédio — Agenor explica ao lado de sua esposa. — E tua proposta foi aprovada no comando, maluco.

— Agora é descansar e se medicar, viu?

Ligação para o amigo. Encontraram o bando mais importante: perseguição, todas as forças giradas para esta tarefa.

— Vou. — Apressa-se o professor.

— Você tem de descansar.

— Não gosto de descansar.

 

CENA 25

O carro de Carlito, Satanás, vira-se. Explode-se.

 

CENA 26

O carro de Valdeyoson invade igreja na entrada da pequena cidade de Buriti dos Cravos. Entram. Garantem o veículo fechando a entrada. Descobrem o padre escondido.

Nando ferido.

A polícia cerca-os, rodeia-os.

 

 

 

CENA 27

Valdeyoson liga para a mulher, pede para cuidar da filha, que a ama, deseja Miranda o nome:

— Por que você tá falando isso?

***

Três horas depois, libertam o padre. Este, ao correr, grita: “Só tinha eu, só tinha eu!” E: “Eles vão explodir! Só tinha eu!”

Tiros em direção, ao lado, ao posto de gasolina.

Tiros dos policiais tentando invadir.

Carro explode. Viatura explode. Posto explode.

 

CENA 28

A equipe desce do helicóptero. Quase chegando, explosão desequilibra o veículo. Sensação: a energia veio do local para onde se deslocavam.

 

CENA 29

O professor oferece entrevista em rede nacional.

— Qual era o perfil deles, professor?

— Na verdade, o bando mais sortudo ou mais capaz. — Pausa constrangedora. — A verdade é que esse pessoal tem uma coragem rara e, às vezes, muita inteligência… Este país é um desperdício de gente talentosa para a pobreza.

 

CENA 30

Em um mato qualquer na beira de qualquer estrada; Rômulo, membro mais burro do bando, acorda com sede, forme, dores pelo corpo…

— Cadê todo mundo?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ESBO…

 

I.

Um psiquiatra, Mauro Nunes, pesquisa certo tipo específico de loucura, que ocorre no cérebro dos pacientes como que por um disparo, levando-os ao total colapso da razão e, às vezes, à epilepsia. Muitos pacientes repetiam uma apenas palavra: futuro. Numa das consultas, o paciente agarra o médico, e grita: meu teletransporte! Após isso, de madrugada, a reunir dados sobre esquizofrenia com alucinações de futuro, a TV ligada passa o Programa do Jô, focado em entrevistas, onde outro psiquiatra entrevistado mostra fotos antigas, em preto e branco, de pacientes esquizofrênicos a andar, andando, com um telefone imaginário à mão; o mesmo entrevistado diz: “Os loucos antecipam o futuro, já andavam com celular, telefone sem fio, naquela época.” (A entrevista é real, não ficção, como este conto.) Ao ver a coincidência entre seu estudo à mesa e o tema na televisão, comenta para si, quando baixa a cabeça para seus textos: “Coincidência.” Então o aparelho televisivo responde: “Ou não.” E retorna à programação normal enquanto o psiquiatra sente o arrepio completo da sua pele, tontura. Mais sinais acumulam-se até que o próprio psiquiatra, viciado em remédios e em cocaína, é internado involuntariamente. Mas, como se por nada, ele é liberado após alguns meses e levado a um prédio. Um agente do governo apresenta-se como parte de um comando especial, explica tudo: há uma sala preservada por 100 anos que tem a única função receber dados simples do futuro sobre o que fazer, em especial, quem matar; mas algo deu errado, pois, além de teletransportar informação ao pretérito, os “futuristas” estavam a tentar trazer ao passado suas próprias consciências como modo de fugir da decadência inevitável e do colapso daquela época por vir, porvir – por isso, tantas vezes isso se revelava errado, o transplante de consciência no tempo entrava em conflito com a consciência do próprio portador involuntário no presente ou no passado, a depender do ponto de vista. Ou outra razão… Mas há o forte problema, dirá o agente: o último recado, antes de começar as transferências irregulares de consciência do futuro, foi o pedido de assassinato do psiquiatra, Mauro. Então, doutor, todas as ordens deram em nada, pelo jeito, o fim está próximo – o que você pensa que devemos fazer?

 

II.

Num pequeno sítio, uma família formada por um pai, Júlio, uma filha, Luna, e a mãe, Letícia, cuidam juntos da horta ao redor da casa. O pai pede à filha que desligue a água, mas ela não o faz, então ele reclama que ela nunca faz essa tarefa tão simples, e ele mesmo fecha a torneira (isso é importante). De longe, vê chegando algo raro naquela época, um comboio – são, certamente, inimigos, desejosos de tomar aquele terreno raro, preservado e produtivo. Eles param antes do muro, ainda na estrada – lançam um drone para averiguar a área tão verde, mas um tiro certeiro de escopeta destrói o artefato. Começa a guerra. Não conseguem quebrar o muro: está todo recheado de coroa de cristo, além de ser reforçado por barras de ferro cimentadas. Uma picape consegue quebrar a primeira porta, porém há uma elevação do terreno que impede seu avanço – e uma nova resistência por um cercado, que atrasa os invasores enquanto levam tiros desde a boa localização do teto da casa de 1 andar. Ocorre uma aula de táticas de sobrevivencialismo das duas partes, pois eles resistiram ao fim do mundo, estão entre os poucos sobreviventes do grande fim. Quando o comboio quase consegue invadir, Júlio, em cima da sua casa, em desespero, pede, ensinando, à Luna que segure uma arma de fogo, mire e atire (isso é importante). No entanto, finalmente, Júlio é capturado (sob conversa convidativa – “Sobraram poucos de nós, por isso não queremos desperdiçar um talento como o teu, precisamos unir”, observa um homem com cara de professor – e sob tortura para saber “quem mais está aqui?”). O pai finge que ninguém além dele está por ali, e a arma do topo da casa está abandonada… Colocado sozinho no próprio banheiro, Júlio consegue artefatos secretos abaixo de azulejos para soltar seus braços e pernas dos nós de corda, reagindo. Ele mata a todos com, nestes conflitos, um olho furado, um tiro na mão, inúmeros cortes, sem um dos dedos. Encaminha-se para o bunker secreto, porém não entra, pois ouve de longe a voz de sua filha e de sua esposa. Na verdade, elas estão mortas dentro do bunker – e ele, sozinho, enlouqueceu, como se vivesse ainda com elas.

 

III.

1.  Cena primeira da série: um agricultor está a trabalhar, porém sente algo estranho na atmosfera; corre até seu pequeno canavial, vê uma cana cortada sangrando, corre para longe, volta e, com um pano, cuida da planta.

2.  Um jovem baixista, com muitas cicatrizes, é convidado para participar de uma banda de Thrash-Death Metal.

3.  O vocalista da banda mora num sítio do interior, onde ensaiam sempre aos finais de semana.

4.  Há um cachorro chamado fome zero, além dos outros muitos cães.

5.  O pai do vocalista, o agricultor de 1, apoia a entrada do novo membro, diz ter gostado dele, após ver suas muitas cicatrizes.

6.  A banda faz o primeiro show, briga com outra banda, de antigos membros.

7.  Na volta, um carro com caçamba leva de volta os membros. No caminho, o vocalista demonstra ousadia ao amarrar uma corda no carro e na sua cintura para pular e pendurar-se na parte traseira como um peão sobre o boi bravo. Enquanto todos comemoram bebendo, o ousado de repente olha para o lado (a câmera foca direto o seu rosto, que fita a lateral da estrada, para as árvores, então se amplia o enquadramento), silencia-se, demonstra tristeza íntima… Ao lado das imensas árvores, gigantes bizarros e nus estão de pé, parados. Uma ilusão?

8.  Após outro ensaio, descansando na fazenda, os membros debatem um nome para o grupo. O dono daquelas terras propõe: Onça de Metal! Pois o som das vozes da banda soa como o grito da onça nos morros. Proposta aceita. (Pouco depois, uma onça – que atravessou, sem comer nenhuma vaca, o curral – será morta pelo fazendeiro, antes que chegasse perto dos jovens, que dormiam em redes ao ar livre, na varanda; o herói, entretanto, nada diz sobre.)

9.  Nesse dia, o baixista afirma querer aprender a usar arco e flecha.

10. O fazendeiro, homem de poucas posses, vende seus porcos. O comprador, amigo de longa data, pergunta por que ele está fazendo isso – e tão barato. “Às vezes, tudo muda, então a gente não pode ter apego.”

11. Com o dinheiro da venda dos porcos, oferece como presente surpresa o melhor conjunto de arco e flecha, incluso material de treino, do mercado ao baixista. Com um exagero cômico: 200 flechas.

12. O agricultor vai até uma casa antiga abandonada, algo longe, e encontra um pequeno papel, com um pequeno texto.

13. O agricultor convida a todos os membros da banda, com suas namoradas e amigas especiais, para uma festa particular, com ele e sua esposa, pela manhã. Todos comem bem. Como se por nada, os jovens ficam tontos, à beira de desmaiar. O casal mais velho, os donos daquele recinto, segura um por um, para que deitem no chão com leveza, sem cair ou sofrer machucados. Todos os demais dopados na sala, eles acumulam mais de 30 garrafas de água ao lado deles, além de muitas bolachas de chocolate, ligam três fontes de oxigênio à bateria e fecham todas as portas e janelas. O agricultor senta-se na sua melhor cadeira, em frente à porta, enquanto segura uma das dez armas de alto calibre em suas mãos, pousada sobre suas pernas. Então, espera.

14. A primeira temporada da série termina, mas não se renova por falta de público e, logo, de verba; além do fato de os episódios posteriores exigirem grandes efeitos especiais.

 

IV.

Num futuro próximo, quando boa parte do salário em dinheiro é substituída por uma pílula de consumo regular que garante a imortalidade do usuário, além de polivitamínicos; um lutador e fundador da versão genérica do Wing Chun, o estilo Batalha, em um dos treinos, após afalar da necessidade de uma vida simples, lança, por acaso, um poder “mágico” contra um aluno… Tenta manter segredo disso, pois de modo algum deseja ser herói ou vilão. Mas sua vida tornar-se um inferno: governos, empresas e curiosos o perseguem dia e noite; porém ele insiste no impossível, na simplicidade de viver, agora, no campo, isolado. De fato, impossível. No fim, participa da revolução brasileira nas ruas, usando seus poderes contra o lado das forças armadas que ficou contra o povo.

 

V. PÓS

Naquele dia, todos os cantos do mundo foram banhados com uma forte aurora boreal. De tal modo, por causa da fortíssima chuva de partículas do Sol, todos os equipamentos eletrônicos queimaram – e a civilização caiu. Primeiro, todos ficaram em suas casas. Depois, começou a clareza da nova realidade.

20 anos depois, numa comunidade camponesa, tivemos uma grande notícia: encontraram um violão inteiro, com cordas preservadas – e afinado! Uma casa isoladíssima e esquecida era aonde habitava aquela rara novidade. Quase todos, reuniram-se num dos sítios, à porta de uma casa, de Zuleide e Seu Paulo. Um de nós sabia tocar violão. Talvez, pois havia passado mais de duas décadas longe de treinos.

A descoberta passou de mão em mão, como se para ter certeza de estar diante daquilo. Todos sentados, ele começa a fazer pequenas afinações no instrumento – medo de as cordas de nylon se romperem.

Como se por nada, o violeiro começou a tocar uma linda música com perfil clássico de origem medieval. Em outra época, ninguém daria atenção ao estilo, porém agora soa diferente. Um silêncio apoderou-se de todos, um sentimento silencioso e oculto, que os fez lembrar de outros tempos, de outras eras, de quando tudo parecia mágica tecnológica.

Porque era fim de tarde, início anunciado da escuridão, todos tiveram a desculpa de ter de dormir, ir para suas casas. Assim esconderam a tristeza, a saudade; um passado que não passa na memória. Na verdade, o sentimento era novo, sequer nome tinha.

O violão também dormiu.

 

 

 

 

O HOMEM E A COISA

 

LENIN

Preparação para a última foto: Lenin aguarda à espera do registro congelante. Ao redor e distante da cadeira de rodas onde se repousa, todos e tudo movem-se um tanto distantes, desordem típica, quase como se ele estivesse invisível. Similar às leis da natureza, impossível a um homem saber de sua própria partida iminente e evitar fazer balanço de si. A angústia transporta-o para aquele dia traiçoeiro… Dentro do carro, refletia angustiadíssimo – o sentimento é ponte da lembrança? – os problemas das revoluções italiana e alemã, o isolamento político e econômico da recém-fundada república operária e os problemas da guerra civil. Em duplo sentido, situação inadmissível: 1) o isolamento; 2) inaceitável, para a burguesia, a existência de tal Estado. Era 1918. Havia acabado de sair de uma assembleia de operários. Aquele dia… Próximo à praça do Kremlin pediu para descer do carro, pois o pulmão fechara e precisava respirar. Eram estes os assuntos a perambular sua mente quando sentiu um encontro. E um estalo surdo. Kaplan, militante anarquista, lançou três tiros rumo ao líder soviético: um perfurou o casaco; outro, o pulmão; outro, o ombro. Desde aquele dia, como se um vampiro houvesse drenado seu sangue, pouco a pouco, sua energia vital. Um parasita fortalece-se na proporção em que mata o hospedeiro. O grande líder da revolução russa derrotado pro mais um derrame.

Antes da foto, parar de se distrair. Desde o primeiro derrame, Lenin viu-se diante da dificuldade de encontrar palavras, refazer o raciocínio. Stalin está conspirando, pensa. O caráter revolucionário da revolução está definhando enquanto eleva-se o burocratismo. O georgiano, Kamenev e Zinovinev sempre foram retaguarda: colocaram-se em defesa do governo provisório, apostaram na reunificação com os mencheviques, deram voto contra a revolução de outubro, relataram aos jornais burgueses os preparos para a tomada do poder, propuseram a guerrilha no lugar do Exército Vermelho, saíram em defesa da assembleia constituinte contra os sovietes; agora, tentam fragilizar o controle do comércio exterior, defendem medidas de domínio sobre nacionalidades oprimidas, exercem posturas burocráticas sobre a Inspeção Operária e Camponesa. Nunca desejaram fracionar honestamente em defesa de suas posições, e sim o recuo… Faz falta Sverdlov, grande organizador… Trotsky está distraído, não tem noção da profundidade do problema. A carta será lida no congresso? Será alterada?

 

STALIN

“Como é estar mudo e paralisado, camarada? Nunca fomos grandes oradores. Bom; como preciso garantir os meus, acontecerá o seguinte: injetarei este veneno na tua veia pela segunda vez… Quase posso ver o espanto no teu rosto. És forte, parabéns. Não posso correr o risco de vê-lo melhorar. Sabes que Yagoda, da polícia política, tem formação em fármacos? Foi quem me ofereceu o líquido; depois terei de lhe matar também… Será assim: morrerás; Trotsky está viajando porque dei um jeito de adoecê-lo (envenená-lo deixaria tudo às claras, coincidências demais), e lhe darei a data errada de teu enterro; farei um grande evento no funeral, com direito a embalsamento. Estarei colado a ti, ao teu lado o tempo todo. E lerei a carta na reunião do Comitê Central apenas porque falta saber se há alguma cópia; tentei – juro – limitar teu acesso à escrita, informações e militantes. Já está resolvido.”

 

TROTSKY

Sentado à mesa de madeira no primeiro andar de sua casa, Trotsky sente o prazer do Sol da manhã de um país latino-americano, do México. Tem de preparar boletins propondo medidas aos seus partidos contra o nazismo e a próxima guerra mundial. Porém, impossível concentrar-se. Algo em si deseja falar consigo: movimento igual e no sentido oposto de quando um sonho a ser esquecido ao acordarmos. Levanta-se. Da janela, visualiza o muro enorme vigiado por militantes comunistas mexicanos e norte-americanos. Sabe dessabendo sobre algum… Ao proceder de maneira inconsciente, pensa na coincidência de a revolução de outubro ter sido iniciada no dia de seu aniversário… Dias depois da tomada do poder, seu pedido de demissão por cansaço, negado por Lenin… O adoecimento de Lenin em paralelo ao adoecimento do Estado Operário… A condenação de Yagoda na farsa jurídica dos processos de Moscou e as garrafas de veneno em seu armário… Sua expulsão da URSS… Saudade de Sverdlov… A carta-testamento ao congresso… A derrota da Oposição de Esquerda do partido… A acusação absurda de Stalin contra Bukharin, afirmando ter este tentado matar a Lenin… “Oh, você não conhece Koba (Stalin)”, disse uma vez Nikolai Bukharin, com sorriso trêmulo. “Koba é capaz de qualquer coisa.”… Seu adoecimento pouco antes da morte de Lenin… A data errada do enterro enviado por Stalin… Stalin afirmando, após reunião do Comitê Central, suposto desejo de Lenin de se envenenar… Dr. Gaitier, médico em comum de Lenin e Trotsky, defendendo ser garantida a recuperação do camarada pouco antes de este morrer… Pouco antes de…  Este morrer… Stalin matou Lenin!

 

O fundador do Exército Vermelho publica na revista norte-americana Liberty o artigo-denúncia do assassínio 11 dias antes de ser assassinado por Ramón Mercarder, agente de Stalin.

 

FOTOS   

Falsificações fotográficas de Stalin à medida em que matava ou aprisionava membros, apagando-os.

 

 

 

 

 

 

 

 

Alteração de foto por ordem do regime stalinista. Na segunda, Trotsky é retirado de sua posição, ao lado de Lenin.

 

Última foto de Lenin.

FONT’INSPIRAÇÕES

Carta ao Congresso – Testamento Político de Lenin.

Stalin Matou Trotsky?, Por León Trotsky – Tradução de Cynara Menezes, site Socialista Morena.

Lições de Outubro, obra de León Trotsky.


 

13
Cartas de Suicídio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Todas as cartas estão tal como escritas no original. Em alguns casos, adaptamos a pontuação e fatores similares para facilitar a leitura e o ritmo do texto.

As antes 12 e agora 13 cartas foram selecionadas no universo de 300 candidatas.

 

O “autor”, reunidor, das cartas tentou 10 vezes o suicídio. Um dia será feliz em suas tentativas, terá sorte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A FILOSOFIA DO SUICÍDIO

Tese 1

Somos a única espécie capaz de suicídio. Pelas nossas mãos, domamos as cordas, as facas, os venenos. Nosso corpo, enfim, está aparelhado para matarmo-nos. Matar-se é o que diferencia o homem dos demais seres vivos. Estes buscam, portanto, mais-vida; nós, ao contrário, mesmo que outra ou vez, pensamos na morte, queremos morrer. Sim.

Tese 2

O suicídio é uma ação nobre para a natureza. Como parasitas, fazemos mal ao mundo inteiro. Quanto menos humanos, maiores as chances de sucesso da biologia e de sua beleza. Se queremos salvar o mundo, matemo-nos. Toda a obra de bilhões de anos de vida terrestre pode ser preservada se tivermos coragem de morrer.

Tese 3

Não adianta, não serás feliz. São tempos em que nossa Roma está a cair, a desabar. São tempos de duras crises e curtos alívios. O modo de vida atual, em seu processo de decaimento, vai-te frustrar até o limite. Que motivo haveria para se esforçar e tentar? Nenhum, não há prêmio no final. Amanhã será pior, de modo algum melhor, do que hoje.

Tese 4

Tal como é a sociedade, até os mais íntimos são falsos, traiçoeiros, egoístas. Impossível encontrar lealdade real entre amigos e amantes. Se te queres matar, mate-se. A verdade é que, na verdade, não tens amigos.

Tese 5

Tua vida é e será pequena. Apenas para raras pessoas, e por um tanto alto de sorte mais acaso, há sucesso, prestígio, hábito agradável. Viver é sofrer. A vida luxuosa e ativa de poucos membros da espécie serve apenas para demonstrar como somos poucos, pequenos, e merecemos a morte – como alívio imediato. A falsa necessidade de transcender, de ter uma vida maior. A vida é só isso, mesmo.

Tese 6

A vida do indivíduo nada tem de sentido. Para o universo, para a sociedade e até para pessoas próximas – somos nada, vazio, o vácuo e o oco. Ilude-te ao pensar que tem alguma importância ou efeito sobre o mundo. A realidade nunca precisa de ti. Um nada de um nada, um vazio vazio. És átomo desconfiado e inútil. O que há é, portanto, puro caos e acaso.

Tese 7

És mais nobre e útil morto. Com teu velório, alguns sentirão culpa; outros, alívio. Lembrarão de ti – e talvez a tua casa, caso mate-se em teu lar, será evitada para compra e fonte de histórias macabra na vizinhança. Serás mais lembrado em morte do que em vida. Foi preciso matar Jesus para venerá-lo.

Tese 8

Com o suicídio, terás uma grande emoção e grande fato em tua vida, como nos filmes. Livrar-se-á do tédio, da tristeza, da mesmice. É como nos filmes, como a vida de um bom livro. És uma despesa para a sociedade. Tua aposentadoria, teus custos de vida – e assim por diante, e assim por diante. Ajudarás a comunidade com o simples ato de deixar de existir.

Tese 9

Com tua morte, teus inimigos serão acertados de duro golpe – a culpa. Tentarão esquecer os fatos, mas, como um morcego, invadirão o quarto de seus pensamentos à noite, até o fim de suas vidas. É, portanto, a melhor vingança possível.

Tese 10

Se estás pensando em morrer-se, logo, estás sendo fonte de problema para familiares. Faça o favor de liberá-los. Evite ser um custo de tempo, dinheiro e emoção; deixe de seja um peso desnecessário.

Tese 11

É forte o homem que age – agir é preciso, mais do que pensar. O deprimido é tão deprimido que sequer tem forças para fazer o que tem de ser feito. Mas ele sabe o que é necessário produzir e criar. Ele sabe.

Antiestoicismo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

13.

P

reciso dizer. Antes do fim, antes. Não acordem o Gustavo, por favor. Ser soldado no Haiti pela “missão de paz” do Brasil parecia o começo de minha glória, mas minha alma agora são escombros de uma ruína. Isso é diferente de poesia: sei matar, treinei para a guerra – mas a guerra é outra coisa.

Nunca pensei que faria aquelas coisas, sempre recordei; por isso, fica meu desabafo antes de morrer... Fiz cobertura, fui vigia de perímetro para que meus companheiros de armas pudessem abusar de mulheres em troca de um saco de arroz. Se eu fosse contra, ficaria queimado, isolado, talvez morto por um acaso planejado, conspirado.

Outro dia, as gangues do país se uniram na comemoração da independência haitiana para um grande ataque. Foi desesperador; tiros, bombas, surpresas. Vi sangue jorrando, vi olhos perfurados. Vi.

O Jean, um amigo naqueles dias, disse que um filósofo fala que a guerra nos tempos antigos era comemorada, com heróis e poemas. Hoje a guerra produz silêncio nos soldados, não festas. Ele morreu minutos depois de me dizer isso, nossas últimas palavras. Penso que eu sei o porquê dessa mudança. Uma flecha, uma lança, uma espada tem origem, tem um motivo, causa e consequência. Já um tiro ninguém vê, uma bomba acionada é de repente, nada tem sentido e rumo, qualquer coisa pode acontecer, nenhuma lógica. Algo mágica do mal, desaparece aqui e reaparece ali e longe, sanguinariamente longe.

Os haitianos eram fãs dos brasileiros, por isso fomos armados para lá. Os americanos pediram porque estavam atolados no Afeganistão e no Iraque. Então, destruímos nossa reputação para nada. A coisa única que sei fazer é matar, e preciso resolver isso, essa dor. Parar de acordar de madrugada suado e nervoso. Mãe, não serei mais um fardo para a senhora. Te amo. Desculpa, mãe, por te impedir de sorrir.

12.

 

O

 que é um homem incapaz de sustentar sua família? Um homem é o seu trabalho, nem menos nem mais. Essa crise tirou tudo de mim – entrei em falência. O mundo financeiro é um cassino, um jogo, uma aposta. Fingimos que há nele razão, previsão e “especialistas”.  Eu, que fui ao topo, desci ao abismo.  Do todo para o nada em um dia apenas. Minha família agora dorme na certeza de que amanhã o problema estará resolvido, como uma criança com pesadelo abraçada pelos pais. Se um pobre perde o que tem em enchente, ele vive ainda, pois perdera pouco do pouco que tinha. Um rico faz diferente, pois a pancada é imensa, na proporção de um arranha-céu de onde se pula. Nunca deixarei eles sofrerem, meus filhos e minha esposa. Para o bem deles, os matarei antes que acordem, antes do meu suicídio. Dirão que estou louco, mas o mundo inteiro enlouqueceu. Cada um é o que tem no bolso – hoje somos menos que nada ou quase isso. Adeus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11.

 

D

o nada viemos, ao nada retornaremos. Meu esforço para que minhas ideias tivessem sucesso deram errado. E eis-me desempregado, comendo farinha com ovo. O vazio que sinto é muito mais do que meu desastre, pois é, também, o vazio universal do próprio vazio, do cosmos.

É obrigação filosófica tomar veneno quando faltam alternativas reais. Qual a diferença do homem em relação aos demais seres vivos? Somos a única espécie suicida: matar-se é o impulso de todo cidadão digno, de nossa espécie.

Coragem, Carlos, Coragem!

 O mundo é acaso e caos, falta lógica nele, e a existência do indivíduo é tragédia. Ser é não ser! Porque somos infelizes, sonhamos que depois, amanhã, algum dia seremos alegres, mesmo se apenas depois da morte. Mas nenhum céu ou inferno existe, vamos do ser para o nada, do nada ao nada por meio do nada. Somos um “apenas” e um “ainda”, temos data de validade. Destruir é, também, criar. Sofremos tanto como privilégio de estar vivo, mas abro mão dessa vantagem suposta. A dor do fim é passageira – coragem! Pois o fim é o fim!

 

 

 

 

 

 

 

 

10.

 

E

u te odeio, Deus! Tive fé, rezei, fiz jejum e caridade, doei à igreja: fiz tudo, mas o senhor não me ajudou! Quando nos vermos, antes de eu ir ao inferno por causa do pecado do suicídio, teremos uma boa conversa, séria. O Senhor me dever explicações, terá que implorar meu perdão. Anos de sofrimento como Jó, mas o Senhor momento algum teve piedade de mim! Se o diabo pune o mau, ele é bom? Se o Senhor não abençoa e premia o bem, és mau? Sim, estou com raiva, ódio – de maneira nenhuma eu merecia passar por isso. Quem ler esta carta depois do meu fim, nunca pense que sou ateia, ateu, pois esse tipo imagina que nenhuma forma de magia existe. Sei que Deus impera: apenas ele falhou feio comigo. Logo o infalível! Desafio e duvido: lance um raio sobre minha cabeça! Assim seja. Um psicopata narcisista gosta de elogios o tempo todo e de sofrimento dos outros – assim Vós sois!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

09.

 

M

eu nome é Letícia, tenho 9 anos e eu vou contar tudo para Deus. Vou ver ele no céu e contar tudo para castigar. O pai enfia o pirulito dele dentro de mim – é estranho e dói. A mãe disse que é para deixar e não contar para ninguém, se não vou ficar de castigo sem comer. O pai coloca leite moça no pirulito dele, e manda lamber, e sai um leite azedo. Eles fumam pedra. Uma vez a mãe me deu o cachimbo para eu conseguir dormir também. Foi bom porque estava com fome. E hoje quase não teve comida. A mãe me bate todo dia. Ela tentou me vender, mas não conseguiu. Tchau. Agora vou lá pra ponte, pro céu e falar o que está acontecendo pro papai do céu.

 

08.

 

P

erdi as esperanças. E perder todas as esperanças é um grande pecado para uma comunista, pois olhamos para o amanhã, queremos a felicidade nossa e da espécie. Stalin matou minha alma. Neste campo de concentração, está presa a maioria dos melhores comunistas de nossa geração e da anterior. Como o país mais democrático da história tornou-se a ditadura mais hostil contra os leninistas, os socialistas? Como o partido mais revolucionário criado jamais degenerou em máfia e casa de oportunistas e carreiristas? É duro dizer, porém deve ser dito: chegamos ao poder cedo demais, antes da hora no mundo e na Rússia. Um país bruto produz uma ditadura bruta, o regime estalinista. Estou cansada. Uma vez, vi na Inglaterra uma revista que imaginava o futuro; nela, dizia-se: daqui a 100 anos, alguém na Europa poderá conversar de frente, ao vivo, com alguém no Japão, como se estivessem lado a lado. Eu digo: quando isso for possível, o socialismo será de fato possível e necessário. Hoje, Stalin tomou o poder, deu emprego a burocratas silenciosos e obedientes, matou 10 dos 21 membros do comitê central do partido de 1917, mandou-nos para campos de concentração com um longo inverno. Ainda bem que Lenin não viu sua obra decair tanto. Nós pedimos ao Estado armas para enfrentar a invasão nazista alemã. Não apenas nos foi negado como alguns prisioneiros comunistas foram mortos por punição pela ousadia. Não há saída – mas eu digo não ao não. Dediquei minha vida pela verdadeira liberdade humana, no entanto vi tudo ruir, todas as vitórias, que se tornaram derrotas, e todos os esforços. Minha rebeldia permanece: o suicídio será meu último ato politico, minha revolta, minha resistência e afirmação da liberdade, mesmo se negativa. A ditadura estalinista fará o retorno ao capitalismo, porque burocratas sem controle democrático querem por natureza tornar-se mais ricos, com mais privilégios – nunca será do meu interesse viver para ver isso.

07.

 

F

alta-me força até para escrever: nem para morrer eu sirvo. Apenas desejo descansar, finalmente. No início, chorarão por mim; mas, no fundo, irão reconhecer que tudo ficará melhor para eles depois. Será um alívio. Sou um peso nas suas vidas, essa é a verdade. Peço desculpas por incomodar. Parece q

 

 

 

 

 

06.

 

A

 gente pensa que sempre acontecerá com outro, com um colega. É a segunda vez que sou preso por corrupção, mas desta vez é diferente… Nestas horas, percebo: é o cargo que possui a gente no lugar de a gente possuir o cargo. Se perdermos o posto, perdermos tudo. Diante da morte, devo ser sincero: roubei, muito. A corrupção começa com um carro de presente dado por um empresário, financiamento de campanha, ajuda para viajar de jatinho, palestras pagas. Os modos são muitos. Agora, sou mais útil morto – isso também preserva minha família. Mas eu vou falar: a democracia é uma farsa para que os pobres não matem os ricos. E mais: o verdadeiro poder está oculto. Antes do suicídio de Getúlio Vargas, ele alertou: “forças ocultas” estavam agindo… São o poder real: Tancredo Neves morreu exato quando iria assumir o poder – o avião de Eduardo Campos caiu logo quando iria ao segundo turno das eleições; o avião do ministro do judiciário Teori Zavascki caiu no dia em que começaria a investigação dos inimigos da pátria (a bolsa de valores teve alta por isso!). Por acaso, um deputado cancelou o processo de impedimento da Dilma ao assumir a direção da câmara dos deputados, mas logo recuou desesperado e uma série de acusações caíram sobre ele por anos. Os bancos, apenas 3 grandes privados, sugam a nação. As empresas poderosas e seus empresários não pagam os impostos justos. E o imperialismo estrangeiro impera por aqui. É o capitalismo de máfia. O Brasil é o paraíso dos ricos. O poder real é obscuro, sujo, manobrista, traiçoeiro. Eles me derrubaram, mas saberão agora que eles existem, manipulam. Vota o povo, e não decide.

 

 

 

 

05.

 

T

oda vez que me olho no espelho, meu corpo avisa do fim. Por isso, a morte torna-se pensamento diário. Estou de saco cheio com os adultos me tratando como criança, com tom de voz idiota e formas de falar ordenadores. Eu sou um velho. Hoje por hoje, dou despesas à família, exijo trabalho. Nem minha própria bunda sou capaz de lavar – aonde está a dignidade? O homem deve saber quando é hora de morrer, nunca adiar sua existência inútil, sofrida e difícil. Meus amigos e inimigos morreram quase todos enquanto os vivos estão ou longe ou impossível falar com eles. Até o cheiro natural da minha pele desagrada os jovens, como se eu apodrecesse antes de apodrecer. Consegui um mínimo de coisas para deixar alguma ajuda como herança. Sou um império decadente.

04.

 

D

irão que sou louco, mas eu sou 100% normal. O problema é que vivi uma vida normal demais: emoção apenas nos filmes, ousadia apenas nas séries, euforia apenas na música. Daqui a alguns anos, teria morrido, ou décadas, do mesmo jeito. O que deixaria? Minhas roupas comuns, corretas? Daqui a mil anos, se daqui a mil anos ainda permanecer civilização, serei lembrado por ter feito algo diferente, intenso, inesquecível. Quando entrar naquela escola, ou em cima de um prédio caso o primeiro plano dê errado, o fuzil irá cantar. O mundo é um inferno – talvez estejamos no inferno de outro mundo. Num mundo monstruoso, somos educados para nos tornarmos monstros; por isso, estarei salvando as crianças mortas, antes que se corrompam. A ideia de metralhar na escola veio de repente – passou logo. Depois, bem depois, veio de novo – de novo, passou com rapidez. Teve uma hora em que tive de assumir esta ideia enquanto minha. De nada adianta lutar contra ela. Não sou louco, tenho missão. Enfim, sentirei vida, pois viver é morrer. Se enfiarei a bala na cabeça ou se forçarei os policiais a revidarem sobre mim, será algo do momento. Somos todos uma bolsa de sangue. Agradeço ao autor, seja lá quem for ele, por escrever o livro 12 cartas de suicídio. Quando terminei a leitura, tudo fez sentido. Viver é morrer. A vontade que eu tenho de fazer isso sou eu mesmo. Rancor, frustração, normalidade – acumuladas? Que seja. Darão várias justificativas ou negarão qualquer sentido disso porque confundem explicar com justificar. A verdade é apenas isso: viver não é preciso, e nem sempre faz sentido. Dirão nos jornais: nunca dei sinais maus, trabalhador, educado, comportado… todo mundo o tempo todo tentando passar a perna em todo mundo, em qualquer um. Farei um favor enorme às crianças da escola. Morno.

03.

 

U

m urubu pousou na minha sorte. Numa época triste, seria alegre um verdadeiro poeta? A cabeça segue o chão que os pés pisam. Maiakovski suicidou-se com um tiro no peito no meio da praça pública, diante do terror estalinista. Por mim, sou uma exclamação negativa; energia, mas negativa. Na verdade, tenho o gene do fracasso, estou destinado a dar errado. Matar-me-ei assim: subiremos eu e meus livros no prédio mais famoso da cidade, até o topo; saltarei com as obras coladas no meu corpo – e cairemos juntos, juntinhos. Desse modo, minha produção invisível, vendida por mim nos semáforos, ignorada pelas pseudoeditoras, será lembrada, conhecida, talvez reconhecida. Os estudantes saberão do poeta que subiu quando caiu. O otimista é um canibal faminto que devora o próprio braço. Todos os dias, a morte convida-me para um agradável banquete, e quase sempre recuso o insistente convite. Bebo o leite negro e doce nos peitos volumosos da morte. Nós nascemos poetas, depois descobrimos nossa real natureza. Um poeta que nem se mata nem morre aos 27 anos de modo algum merece o titulo de. Quem matou a poesia? Morrerei no dia de meu natal, 14 de junho.

 

 

 

 

 

 

 

 

02.

 

D

emorou tanto para sentir tédio mais uma vez. Depois do fim do mundo, desmoronamos também por dentro, somos um tanto animais agora.

O fim poderia vir, e viria de qualquer modo, por: 1) colapso ambiental, 2) guerra nuclear, 3) terceira guerra mundial, 4) crise econômica, 5) vento solar intenso queimando todos os eletrônicos, 6) pandemia letal, 7) superupção de vulcão, 8) meteoro. Mas foi a porra de um acaso, supervírus de computador criado por uma criança gênio da África, que destruiu tudo. As coisas estavam conectadas demais.

Portanto, tudo foi inútil. De nada serviu o trabalho, as construções, os conhecimentos, os esforços. Se soubesse da inutilidade da civilização e da existência, teria feito diferente. Isolado, resta morrer. O amanhã não existe, ou é como se não existisse – por que insistir por mais um dia de sofrimento?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

01.

 

E

screvo esta carta de morte depois do meu suicídio. Seria psicografia ou inspiração em Brás Cubas? Enfim, de qualquer modo, a morte é boa, morrer é bom. No nada não há nada – no vazio nem o vazio sentimos.

Nem sinto falta de ti, nunca mais. Até tua vagina e teus peitos tinham proporções perfeitas para mim. Mas o amor é apenas sentimento de um, então eu te amava doidamente e tu não me amavas. (Se viver fosse viver sem você, que bom seria; mas não dá mais pra viver.) Em ti, havia talvez certa pena de mim, talvez certo desprezo. Eu te amava tanto, mas agora tudo acabou – ainda bem.

Aqui, do outro lado, nenhum lado existe, nem dentro nem fora. É maravilhoso por ausência de todas as maravilhas. Morrer-se é a melhor decisão; se soubesse, teria feito antes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ZERO

 

Q

uerido leitor, escreva, aqui, tua própria carta de suicídio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] O duplo (triplo) sentido em “como” revela uma das teorias de Margarida: ato falho pela ambiguidade linguística-contextual como adaptação social, via verbalização, da revelação inconsciente.

Como: 1. (verbo) absorver, alimentar-se, beliscar, sentir gosto, experimentar; 2.  (verbo) copular, fazer amor, possuir, traçar, transar; 3. (advérbio de intensidade) muito, em demasia.

De modo coloquial, “como/comer” pode ter, como vemos, sentido erótico. O humor e a coloquialidade, como jogo significativo das palavras, são, também, segundo a autora, algumas das formas de retorno ou revelação da intenção inconsciente e/ou subconsciente.

[2] A psicologia viu-se em dúvida teórica sobre se depressão leva ao alcoolismo ou, ao contrário, o alcoolismo leva à depressão. Ora, conclui Margarida, o enigma existe porque há aí uma concepção unilateral, não dialética e mecanicista de causa-efeito. A causalidade é recíproca: seja qual for o primeiro, em casos singulares, um estimula o outro, o efeito transforma-se em causa e vice-versa, realimentando-se – então o gatilho inicial pode ser um ou outro.

[3] Para a psicanalista, a psique não se divide na oposição entre pulsão de morte ou pulsão de vida. Há apenas pulsão de vida que se externaliza em pulsão de construção, pulsão de destruição e pulsão de preservação.

[4] Margarida elaborou a tese de que os nomes e sobrenomes podem influenciar parte da personalidade como veremos adiante no caso de seu antagonista. Em resumo, isso é deduzido das seguintes descobertas:

1) A formação do self na criança, sua diferenciação do meio, ser algo em si e para si, perceber-se, se dá também por meio do seu nome, em especial por meio do chamado verbal-afetivo do pai e da mãe (descoberta de Winnicott).

2) Na infância, a capacidade lógica da criança passa por estágios e demoram os saltos de percepção. Até a pré-adolescência, há uma lógica muito rígida, não dinâmica, de opostos e significados (descoberta de Piaget).

3) A mente opera, em sua função pré-consciente, associações e combinações (descoberta de Freud).

4) A mente é sugestionável, sem necessidade hipnótica, em níveis diferentes.

Exemplifiquemos. Uma criança cujo nome é Flor apreende o significado de flor enquanto objeto externo com suas características e, ao mesmo tempo, esta palavra lhe é absorvida enquanto significado de si – então ocorre uma fusão interna, inconsciente. No A Interpretação dos Sonhos, Freud, citando Goethe, cita por alto, apenas em forma de intuição, que as pessoas vestem seus nomes, sendo que o seu nome significa em alemão “Alegria”, o que o influenciou a ser médico, psiquiatra e fundador da psicanálise.

[5] A autora foi quem propôs a resolução de uma polêmica nos movimentos sociais. Resumamos suas ideias. Descobrimos a unidade, interpenetração e contradição dos opostos no hipotálamo, responsável tanto pelo sexo quanto pela agressão. O exemplo destacado, a natureza dupla de tal parte do cérebro, resolve uma polêmica. No debate sobre as opressões, o setor pós-moderno destaca que o estupro é uma questão de poder e domínio masculinos (com empiria de casos absurdos, como quando um homem impotente usa um pedaço de madeira para violar uma mulher, etc.) e, na outra ponta argumentativa, o biologismo destaca a necessidade de satisfazer as pulsões (com outros dados empíricos, como a redução de estupros onde surgem casas de prostituição); nesta outra consideração da psique humana, que ademais inclui o aspecto físico do cérebro, percebemos que a exclusão mútua de ambas as teses tem uma base comum, uma unidade, que encerra as concepções opostas. É tanto uma questão de poder, cuja base é a violência, quanto uma questão sexual e ambos, pela tensão causada pela demora em satisfazer-se, misturam-se, interpenetram-se. A partir daí, façamos alguns complementos. Lacan afirma que o sexo tem algo de violência, o que é explicado materialmente por esta observação. O lema “faça amor, não faça guerra” expressa inconscientemente esta relação dialética (Em A Interpretação dos Sonhos, Freud diz da expressão “nem nos meus piores sonhos eu desejaria isso”, sendo o sonho a realização fantasiosa de um desejo, que demonstra certo “platonismo”, não saber que sabe, no conhecimento da psique). O tipo Incel, celibatário involuntário, ao concentrar energia libidinal em excesso, tem raiva do sexo oposto, origem de seu desejo sexual. Por último, vale o destaque de que os chimpanzés e os bonobos são os seres mais próximos geneticamente dos humanos; os primeiros usam a violência como meio de poder, sendo patriarcais, e os segundos, o sexo, sendo matriarcais (a origem é que o ancestral comum a ambos dividiu-se em um local onde havia pouca disputa de recursos e abundância enquanto no outro local, separado do primeiro por um rio, faltavam recursos e havia disputa com os gorilas por alimentos).

[6] Em seu primeiro artigo publicado em revista internacional, Margarida defendeu sua tese sobre personalidade, que resumimos a seguir. A personalidade é uma, é una, e expressa-se externamente em defeitos e qualidades, em opostos – que são internamente o mesmo. Alguém impulsivo pode ser, por isso, “sem noção” e, por falta de limite interno, também, por ouro lado, muito criativo. A malandragem do jogador Neymar, comenta, para forçar faltas com quedas artificiais ou induzidas é a mesma malandragem usada para enganar o goleiro e fazer o gol (se, por exemplo, por ordem do técnico, ele bloqueia a primeira característica, então bloqueia a si próprio, ou seja, impede igualmente a segunda). A oposição e a contradição externas entre virtudes e vícios têm a unidade interna na característica, no característico, em uma só propriedade, particularidade, traço ou caráter. É o contexto, a situação, que faz aparecer de alguém um polo ou outro da unidade.

[7] Como é sabido, Margarida é negra, “mestiça” ou “morena”. A autora observou que os algoritmos tendem ao “preconceito”, pois, ao observar padrões, tais programas modernos chagavam a conclusões como “todo executivo é homem e branco”. Pois bem; sua tese afirma que a mente humana também, quase da mesma forma, apreende por indução, por generalização dos padrões, tendendo à formação de um preconceito em parte de origem inconsciente. Por isso a necessidade de facilitar o acesso de negros e mulheres nos mais diferentes tipos de trabalho e funções, para, enfim, “naturalizar” suas presenças, desmanchar os velhos padrões preconceituosos. Ainda segundo a autora, o racismo começa como algo em si artificial, uma ideologia no sentido primário, mas, na medida em que é parte de uma realidade que se vai gerando, cria a padronização do “lugar do negro”. Assim, a maioria dos assaltantes e bandidos do Brasil são de fato negros, porque isso surge como consequência da herança escravocrata que gerou grande massa de pobres; então a mente não consciente padroniza ao induzir, ao generalizar, que jovem negro = bandidagem. Como o racismo é mais do que algo ideológico, uma subjetividade, ou uma prática individual, como é da construção da própria sociabilidade, ele gera as próprias condições para “naturalizar-se”, “justificar-se”, parecer empírico. É análogo à profecia que se cumpre apenas porque foi profetizada.

[8] A repetição da afirmação por Margarida indica-nos seu último trabalho. Segundo seus escritos, o inconsciente opera, de modo oculto à consciência, a formação de conhecimento por padrões, conclusões de funcionamento da realidade quase imperceptíveis ao pensamento, leituras da realidade não formalmente teorizadas, etc. Isso ficou conhecido popularmente como a hipótese do “superpoder” mental e cerebral do homem. A autora cita o caso de quando teve o impulso intuitivo de comprar uma nova chinela com o fato de seu calçado de fato quebrar uma semana depois, pois a mente apreendeu alterações mínimas no objeto durante o seu uso, o que gerou a intuição. Porque um pneu de ônibus pode dar sinais imperceptíveis ao consciente, mas perceptíveis aos modos mais profundos da psique, um usuário do transporte pode dizer momentos antes “o pneu irá fura” como suposta previsão “mística”. Sem qualquer método formal, muitos conseguem ler psicologicamente outra pessoa ou a tendência de dinâmica de um grupo. Pessoas do campo podem “sentir” que irá chover apesar da aparente falta de sinais imediatos. A autora deste rodapé errava a chave do grosso molho a ser usada quando tentava escolher conscientemente, mas acertava quando deixava-se agir por “instinto”. O consciente deve focar-se no imediato, no prático, deve especializa-se e evitar excessos; logo cabe ao inconsciente o trabalho de base, que é expresso conscientemente em forma apenas de conclusões “supostas”, sem revelar seu lastro. Às vezes, o inconsciente aprende antes do consciente ou independente deste. Tal teoria gerou alguma fama à sua elaboradora assim como acusações novas de que praticava pseudociência.

[9] O ato de espirrar pode soar descontextualizado no texto, porém parece ser mais uma referência à outra possível descoberta da protagonista. Enquanto forma de expelir secreções, o espirro tem função puramente biológica; ademais, por outro lado, pode interagir com a mente de outro modo:

1) Quando há bloqueio psíquico de alguma conclusão, quando esta não vai do subconsciente à consciência, pode haver congestionamento nasal;

2) Quando temos uma conclusão ou confirmação nova e íntima, espirramos.*

É uma espécie de orgasmo mental. O prazer do espirro, ao limpar e liberar, expressa o prazer psíquico, não em si sexual. É a própria mente compensando-se, por meio do prazer e relaxamento, por novas “sacadas” e confirmações.
* De acordo com a autora, o segundo ponto teve origem primeira e informal em observação do músico e fotógrafo piauiense Robicharlyson Coelho.

[10] É possível que a psicanalista esteja fazendo referência a um artigo próprio, onde trata da relação entre perfil físico e personalidade. Em síntese: hábitos levam a perfis mentais e corporais; por sua vez, perfis mentais levam a hábitos e padrões corporais; enfim, perfis corporais levam a hábitos e perfis mentais (neste caso, em parte como alguém é visto pelos demais a partir do padrão, pressionando informalmente a colocar “cada um em seu devido lugar”). Os três momentos ocorrem combinados, retroalimentando-se. Assim, a autora procura explicar a intuição comum de ver nas características corporais dos indivíduos a exteriorização do interior.

[11] Trata-se de alusão à sua teoria do sincronismo. Em entrevista por e-mail, a autora afirmou:

“1) Observei diálogos de colegas de classe na universidade UESPI. Em torno de alguém extrovertido, papel de líder e comunicador, os amigos juntavam-se antes das aulas. No passar do tempo e das conversas, seus corpos faziam movimentos, tendo por resultado final: um círculo formado por aquelas pessoas, pernas abertas em forma de “v” invertido, tão estável quanto possível, onde até certos outros movimentos corporais igualavam-se (mãos no bolso ou braços cruzados, etc.);

2) Os movimentos corporais empáticos possuem como principal fator a imitação, como espelho, do movimento de outrem: cruzo as pernas quando quero me aproximar subjetivamente de alguém de pernas cruzadas;

3) Os hábitos coletivos em um determinado espaço (casa, escritório etc.) tendem a um ritmo e lógica internos de interação, tal como alguma “dança informal”, entre as pessoas naquele ambiente;

4) É possível fazer leitura corporal do estado da relação de um casal por meio de suas posturas ao dormirem. Por exemplo: um de costas para o outro, costas encostadas, e movimento espelhado idêntico – ideia de harmonia entre eles.”

A tendência ao sincronismo é uma dimensão intersubjetiva na objetividade social. No mais, corresponde ao desejo, dimensão psíquica, por harmonia, ordem, organização, integração etc





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