segunda-feira, 6 de junho de 2022

DOCUMENTO: Como o PSTU degenerou

 

ESBOÇO PARA UM BALANÇO DO COMUNISMO NO BRASIL

 

O PSTU foi o principal partido comunista do mundo, por isso deve-se destacar sua história, ainda que de modo breve, e fazer o devido balanço para explicar sua degeneração em centrismo ultraesquerdista. É o objetivo, em geral, deste capítulo. Aqui, nós queremos evitar a postura rancorosa ou apenas negativa comum em alguns ex-militantes; por outro lado, faz falta balanços claros sobre as razões das rupturas com este partido, sejam elas mais progressivas ou, ao contrário, mais reformistas. A crítica pública entre os nossos é necessária para a evolução das organizações ou para reorganizações, rupturas, etc. O esboço abaixo – e, por ser esboço, tem linguagem direta – tenta ajudar em tal tarefa, baseando-se de maneira referencial em “Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo” de Lenin. O leitor afeito à obra reconhecerá pontos de contato entre os textos. O fato de que nenhuma organização tenha algum trabalho do tipo leva-nos a crer que podem cair nos mesmos erros na medida em que falta percebê-los, caracterizá-los.

 

UM BREVE APORTE

O núcleo inicial da corrente que deu origem ao PSTU, a Liga Operária, surgiu na década de 1970. Seu acerto político garantiu seu desenvolvimento: colocou-se contra a tática ultraesquerdista e vanguardista de formar guerrilhas, apostando, em oposto, na formação de um partido revolucionário da classe operária.

Na fase final da ditadura, era preciso uma forma de crescer e aglutinar a vanguarda das lutas que cresciam no país. A primeira proposta foi a formação de um Partido Socialista, com a presença de ilustres intelectuais, mas o projeto não vingou, ficando reduzido aos próprios membros da Convergência Socialista (futuro PSTU). Graças à intervenção do argentino Moreno, da LIT, a política foi corrigida: formar com os sindicalistas um Partido dos Trabalhadores. O acerto é sabido por todos: forçou os limites da ditadura, uniu a vanguarda nacionalmente, impediu maior crescimento de organizações diretamente estalinistas (ainda assim, a direção majoritária do PT tinha formação estalinista).

Nesta época, ocorreu um dos auges da corrente ao liderar grandes greves e ocupações de fábrica. Mesmo assim, o partido entrou em crise ao menos duas vezes, gerando rupturas à direita: primeiro por causa do erro da tentativa de formação de um PS e, segundo, por atração imensa e a esperança que o lulismo gerou em parte da militância. No subsolo, uma forte razão para estas crises é a formação de classe média da maioria de seus membros.

Um importante erro desta época foi não ter elaborado a proposta de criação de uma central única dos sindicatos (e dos demais movimentos populares). Se tivesse impulsionado esta elaboração, teria ganhado mais destaque na luta de classes. De qualquer modo, participou da CUT, embora sem ser protagonista em sua formação.

O impressionismo teórico e político da organização, que será tratado adiante, já se revelava na época de formação inicial do comando partidário. A corrente pensava que a queda da ditadura seria seguida de uma revolução socialista. Isso serviu para disciplinar artificialmente os militantes, mas estava errado. A história mostrou que a democracia burguesa foi base para permitir inúmeros ataques contra os trabalhadores e amortecer a luta de classes.

No balanço da LIT – corrente internacional da qual participa o partido em avaliação – por seus 30 anos, há um texto sobre o PSTU dentro do PT, em que afirma que o partido se tornou uma organização dos trabalhadores com a tática do entrismo (LIT-QI, 2016). Ora, ao ficar 12 anos dentro do PT, os quadros juvenis… envelheceram. No mais, a tática do entrismo em organizações reformistas é exatamente para ganhar jovens radicalizados e depois romper com algo em torno de 2 ou 3 anos de trabalho interno, não 12[1]. Sobre, ver Moreno em seu “Teses para atualização do programa de transição”: a permanência demasiada por dento de um partido não revolucionário produz pressões e vícios no perfil da organização “infiltrada”. Já aí, na década de 1980, vemos pressão para tornar centrista a corrente.

De qualquer modo, o entrismo no PT foi praticado com enormes precauções, graças às orientações da LIT: evitava-se assumir cargos dentro do partido; a Convergência Socialista tinha sedes, jornais, finança, etc. próprias e independentes. Tais medidas atuavam com força contra pressões degenerativas – mas 12 anos de convivência permanente deixa suas sequelas.

O PT quase monopolizava a esquerda, por isso havia riscos de uma ruptura prematura, como a ameaça de tornar-se seita por razão do isolamento político e social. Isso poderia ser mediado com trabalho na classe operária enquanto as lutas sociais fossem fortes, levando os jovens militantes ao mundo proletário, e também semiorbitando eleitoralmente o PT por algum tempo, até que este se elegesse.

Quando a Convergência Socialista decidiu formar um partido próprio, fez uma aposta: Lula seria eleito presidente, a democracia nunca encontra estabilidade e longevidade em países atrasados – e o espaço para um partido revolucionário estava, enfim, dado. Neste aspecto, o erro foi completo. Devia-se, primeiro, deixar as condições objetivas amadurecerem tanto quanto possível e serem confirmadas, como com a eleição de Lula, para – uma vez que esperou longos 12 anos para romper – só então tomar a decisão de formar outro partido. Esse tipo de erro tornou-se típico no partido; por exemplo: no lugar de esperar amadurecer as condições objetivas e subjetivas para fundar uma nova entidade nacional estudantil, a organização decide antecipar-se, chegar primeiro, produzindo abortos (Conlute, ANEL). Usou-se uma tese impressionista para a ação militante[2].

A ruptura era necessária seja porque já havia ficado muito tempo dentro de outra organização seja porque iria abrir, em seguida, uma situação reacionária no país, que pressionava a degeneração partidária.

A Convergência (PSTU) forçou a expulsão do PT ao propor o “Fora Collor”. A direção majoritária era contra o “Fora” e o próprio congresso petista votou contra a proposta por ampla maioria. Rompendo a disciplina interna, a corrente impulsionou a luta pela queda do governo. Valério Arcary, ex-militante, faz o balanço:

 

Foi um momento chave para a minha geração. Em especial, para aqueles com quem compartilhava a militância na Convergência Socialista. Tivemos um grande acerto tático e dois erros estratégicos graves, porque irreparáveis, nas consequências. Acertamos que era possível derrubar o primeiro presidente eleito depois de três décadas. Mas: (a) erramos ao subestimar a possibilidade de estabilização democrático-liberal em um país da periferia; (b) erramos ainda mais em apostar na possibilidade de disputar pela esquerda a influência de massas ao PT; (c) erramos ao não sermos capazes de evitar a explosão da corrente revolucionária, essencialmente, latino-americana, em que nos inseríamos. (Arcary, 11 de agosto de 1992: o impeachment de Fernando Collor, 2021)

 

E completa:

 

O segundo erro foi a subestimação da força do PT e do apoio à liderança de Lula. Acreditávamos que, diante da gravidade máxima da crise econômico-social inflamada pela superinflação, e da linha quietista que saiu vitoriosa no I Congresso do PT, não era razoável aceitar as condições exigidas pela Articulação para permanecer como uma corrente interna “invisível” diante dos movimentos de massas. O que aconteceu na sequência demonstrou que estávamos errados. A direção majoritária do PT se relocalizou a partir de agosto de 1992, chegou atrasada, depois que a UNE acendeu a centelha, mas apoiou as mobilizações pelo Fora Collor. Lula foi o principal orador na Candelária e no Vale do Anhangabaú.

O resumo da ópera é que derrubamos Collor, uma vitória tática, mas sofremos uma derrota estratégica. Tivemos que esperar dez anos pela eleição de Lula em 2002. (Idem.)

 

 

No congresso de fundação do PSTU, as correntes que se unificaram decidiram encerrar qualquer desconfiança entre elas com uma proposta estatutária: proíbe-se a formação de tendências e frações, partidos temporários dentro do partido, antes dos pré-congressos – liberando a formação de documentos individuais para os militantes. A possibilidade de estatuto de os militantes escreverem, a qualquer momento, documentos ao partido caiu em desuso como regra interna, sendo na prática proibida.

 

POLÍTICAS IMPRESSIONISTAS

Para melhor localizar-se sindicalmente, para manter os poderosos aparatos sindicais nas mãos de um pequeno partido, o PSTU passou a elaborar políticas para impressionar a vanguarda, que tende a se aproximar das posições mais radicalizadas. Assim, a elaboração deixou de ser um meio para atuar politicamente sobre as massas (mesmo que por meio prévio de convencimento do ativismo) e tornou-se meio de autopropaganda. Aquilo antes meio, ganhar os ativistas para que estes ajam corretamente sobre as massas, tornou-se um fim porque os sindicatos também se tornaram um fim em si mesmo.

A busca por diferenciação constante e artificial em relação às demais correntes levou o partido a um perfil político duplo. Agita propostas mais radicais do que a realidade pede enquanto partido[3] e, por outro lado, age dentro dos limites realistas do trabalho sindical enquanto organismo sindicalista (lembremos que burocratas, pelegos, também fazem greves duras). Isso é de tal forma que o jornal partidário não é um “militante e organizador coletivo”, pois suas matérias defendem os aspectos mais radicais do programa de modo artificial no lugar de serem um “guia de ação” segundo a conjuntura. Damos um exemplo: se ocorre alguma inflação dos preços da cesta básica, exigimos no jornal e no movimento “Todos às greves!” ou “Todos às greves contra a carestia!” ou “Unificar as greves por salário!”; porém o jornal Opinião Socialista, do PSTU, frequentemente propôs aquilo que só é exigível em caso de hiperinflação, não inflação moderada, em caso extremo, ou seja, exigiu exageradamente “gatilho salarial! – escala móvel de salário! – aumento dos salários em 3% a cada inflação de 3%!”. Na prática, a militância nunca levava tão a sério o que estava escrito, formando-se um grande hiato entre a política elaborada e a realidade dos militantes, e uma relação artificial com a imprensa partidária.

Vejamos mais alguns exemplos. Diante do mensalão, sendo corretamente contra o Impeachment de Lula, o PSTU levantou a proposta “Fora todos!”, que tinha peso algum nenhum na realidade, na medida em que não era uma situação revolucionária ou de duplo poder (isso mesmo: “Fora todos”, isto é, fim do regime burguês imediatamente, até mesmo, no imaginário popular, na prática, fora PSTU). Nos protestos de 2013 por educação, saúde e transporte, a organização teve a chance de levantar propostas democráticas que teriam força transicional como “10% do PIB para a educação!” e “Rede única estatal de transporte público!” – mas radicalizou de modo artificial com “Nem direita nem PT: trabalhadores no poder!” Não havia organismo de poder operário e popular, não havia disponibilidade de luta armada de massas, não havia possibilidade de o exército rachar, e assim por diante, e assim por diante. A proposta simplesmente era muito mais radical que a conjuntura. No dia a dia, o partido agita palavras de ordem as mais radicais, a exemplo da defesa de estatizações, à revelia da conjuntura – mesmo em situações não revolucionárias, etc. No caso da luta por estatizações, vale lembrar que a direita fascista (Enéias, Bolsonaro até antes de ser candidato à presidente, etc.) também fazia tais exigências, contra o privatismo – isso ocorre porque ambos estão baseados nas classes médias, especialmente nos servidores públicos. Já no começo do governo Bolsonaro, este ainda gozando de grande popularidade, o PSTU chamou o “Fora Bolsonaro!”. Assim, ganha simpatia da vanguarda por meio de uma política mais radical do que a possível no momento. Por mais desagradável que seja uma governança, só chamamos o “Fora”, se chamamos, quando o governo tem baixo apoio na classe trabalhadora e no setor popular; isso é o ABC da análise, caracterização e política marxistas, no entanto dirigentes com mais de 30 anos de experiência comentem este erro primário; o motivo disso é o que explicamos neste capítulo ao afirmamos, em resumo, que tais dirigentes já não são de fato comunistas, estão focados em manter, e manter-se nos, aparatos partidários e sindicais (há casos de militantes que são funcionários dos sindicatos, logo perdem a renda se o partido perde a direção da instituição, etc.).

Políticas corretas podem gerar isolamento momentâneo, como ser contra uma guerra quando toda a nação está unida numa onda nacionalista e militarista. Políticas erradas podem gerar popularidade momentânea, como chamar o “Fora Bolsonaro” antes da hora, antes de o governo perder apoio da maioria, junto com a vanguarda inexperiente e não educada cientificamente na escola marxista.

A postura ultraesquerdista na verdade é um resultado de seu centrismo. Para manter o trabalho partidário nos sindicatos, precisa atrair jovens e ativistas, que tendem a simpatizar com políticas vanguardistas, deslocadas da conjuntura. É o exemplo da ruptura com a UNE, que gerou uma oposição artificial, um destaque ao partido, mas a partir de uma política errada, como se provou com os abortos de duas tentativas de fazer novas entidades estudantis nacionais – a Conlute e, depois, a ANEL (esta última “fundada” sem o menor balanço do motivo daquela ter desandado).

Evitamos, aqui, tratar de documentos internos, especialmente daqueles a partir de 2005, por haver dúvida sobre se isso seria moral. De qualquer forma, qualquer um que tenha documentos congressuais do partido perceberá um erro insistente do qual falamos neste parágrafo. O documento político da direção no pré-congresso deve, entre outras coisas, dizer em qual situação estamos (não revolucionária, pré-revolucionária, revolucionária, etc.) e, fundamentalmente, dizer quais tipos de propostas temos de levantar – as mínimas ou as transicionais? As democráticas ou as de poder? No entanto, congresso a congresso, o documento político encerra-se com uma longa lista em resumo de quase todas as palavras de ordens possíveis. E só. Deveria, ao contrário, indicar quais devem ser as propostas imediatas e as possíveis nos dois anos seguintes. Por exemplo: se estamos numa situação pré-revolucionária, deve-se priorizar as propostas transicionais, deixando as mínimas para a mera rotina, deve-se evitar por enquanto as propostas de poder, etc. A direção do partido, entre um congresso e outro, deve elaborar a política diante dos fatos novos e imprevisíveis, pondo suas propostas políticas para balanço no próximo período congressual partidário; mas o próprio congresso deve dar o norte – também aprovando propostas práticas – a partir de uma visão de conjunto do mundo e do país. Ainda entre um congresso e outro, pode-se fazer, sob democracia burguesa principalmente, uma conferência nacional para elaborar novas palavras de ordem e tomar novas decisões caso a conjuntura mude muito ou bruscamente, com os membros da conferência sendo os mesmos eleitos no congresso anterior ou novos eleitos nas regionais. Isso não existe no PSTU porque o centro não é a política partidária, mas a sindical.

 

TESES DE IMPACTO

Outro aspecto do impressionismo são as teses de impacto. O partido elabora teses que visam manter ativas a esperança e a disciplina militantes. O primeiro exemplo foram as nomeadas teses de 90, que afirmavam “a hora imediata do trotskysmo” e a abertura de “uma nova etapa revolucionária”; com a queda do muro de Berlim, teorizou-se que era a hora da máxima ofensiva política, o que se demonstrou um grande erro. Na mesma época, a direção do PSTU partiu da ideia da completa impossibilidade de democracia burguesa em países atrasados – algo que era verdadeiro antes de nossa época, modificado hoje por fatores como a alta urbanização – para afirmar que o possível governo nacional petista abriria espaço necessário para o partido revolucionário e para a revolução; o erro impressionista ficou claro depois. Recentemente, a tese da “reorganização” é a ideologia movente, de modo artificial, da militância. No lugar de considerar como algo comum e relativamente constante a renovação dos quadros sindicais e políticos, cria-se a tese de que há um processo – pouco explicado, aliás, tal como a tese da “onda conservadora” – de renovação política e sindical de algum modo especial. Todo dado empírico nesse sentido é posto como prova de tal novismo, ineditismo, ainda que seja algo de modo algum incomum. É claro, por exemplo, que a burocratização de uma geração leva a que a próxima surja tendo de enfrentar os novos burocratas, especialmente em tempos de crise. Isto é apresentado como grande tese, pincelado com fortes cores, algo que já é esperado. Ao mesmo tempo, tende-se a associar reorganização apenas com ruptura; daí o erro do partido de romper com federações e sindicatos antes da hora; é claro que, se observarmos com atenção, a formação de nova vanguarda também se dá por meio de oposições, ganhar sindicatos, eleger-se para a CIPA, etc., não somente com rupturas institucionais.

As teses de impacto ocorreram também quando se imaginou uma “crise do regime” ou “crise democracia burguesa” quando nada havia de fato – e deve-se lembrar que tais crises  profundas acontecem se sua base econômica também está em crise. Outro caso: por diversas vezes, caracterizou-se como pré-revolucionárias situações que não eram de tal tipo; o impressionismo sobre o estado político social várias vezes tomou conta dos dirigentes e dos militantes. A perda de noção da realidade, a falta de calibragem, afeta as organizações revolucionárias muito minoritárias ou aquelas que se transformam em seitas.

 

A AÇÃO ELEITORAL

O ensinamento geral no PSTU afirma que as eleições são táticas, mas costuma-se esquecer de que o trabalho sindical também o é. Ambos são meios e serão limitados quando chegar a hora da revolução social.

A posição sindicalista e a necessidade de uma postura ultraesquerdista para atrair ativistas levou a que a propaganda eleitoral da organização fosse uma antipropaganda na prática: aparecia como organização lunática perante as massas porque apresentava-se com dialeto militante, com propostas deslocadas da conjuntura, desleixo com a qualidade do material, etc. Tornou-se um partido folclórico, apenas abaixo, nesse sentido, do PCO e do PRONA de Enéias. A função da participação nas eleições é ganhar espaço, simpatia, boa audiência – não foi, com raras exceções, o caso.

O PSTU melhora a estética de suas propagandas de modo incrível a partir de 2010. No entanto, apenas a estética: a apresentação melhor de propostas muito mais radicais do que a conjuntura, por exemplo, não muda a essência do problema.

Em 1998, a organização é criticada pela LIT por ter enfrentado nas eleições apenas a direita, que então estava no poder, mas não ter destacado críticas ao PT.  Em seguida, em 2002, caiu-se no erro oposto: focar a crítica ao petismo e ao lulismo. Naquele momento, de enorme esperança na frente popular, a melhor tática era pedir votos ao Lula ainda no primeiro turno por pelo menos três motivos: 1) acessar os trabalhadores nas eleições; 2) ganhar parte da vanguarda que surgiu no processo eleitoral; 2) acelerar a experiência dos assalariados com o partido reformista por meio de um governo. A política errada isolou o PSTU. Lembremos do “Esquerdismo” de Lenin, onde ele afirma que os comunistas da Inglaterra deveriam facilitar, não ser obstáculo, a eleição do Partido Trabalhista (Lenin V. , 2020). O motivo: quanto antes os trabalhadores conhecessem um governo daquele partido, mais cedo perderão as esperanças nele. Faz toda diferença se ocorre uma situação revolucionária com os operários já considerando o PT como parte da ordem ou, ao contrário, ainda têm grandes perspectivas nessa organização… Veja-se que a política marxista, tais quais as táticas de guerra, é sofisticada.

Com a formação do PSOL, surgiu novo erro. Apresentou-se como princípio a tática eleitoral de frente de esquerda ou chapa pura; qualquer variante diferente punha os militantes em crise, pois eram educados – dentro da política de diferenciação a qualquer custo – a considerar revolucionário apenas um corpo tático limitado (sob certas circunstâncias especiais, pode-se mesmo apoiar um candidato burguês, sendo vetado participar ou apoiar, ainda que criticamente, qualquer governo no Estado Burguês; mesmo no Estado socialista, só apoiamos o governo baseado na democracia direta). Dessa forma, quando há uma frente no Pará com a presença do PCdoB, que ao menos é um partido de esquerda, mas era governista, a militância entrou em crise. A solução foi a pior possível: após eleger o vereador Cleber Rabelo pela frente, o PSTU rompeu com esta de modo denuncista para recuperar a moral perante a vanguarda e sua própria base. Deveria manter o apoio, reeducar a militância, mas não participar do possível governo do PSOL, sendo oposição a ele.

O cidadão comum e mesmo o ativista veem o PSTU como seita, em grande parte por sua desajeitada atuação eleitoral. Quando entra no partido, ao ser convencido, ele algo que tem o que chamamos em psicologia de alucinação negativa, esquece o caráter de seita da organização, pensando que isso ocorre apenas porque o partido que é revolucionário é de fato rejeitado por suas qualidades, não por seus defeitos… Apenas quando se afasta por motivos bruscos, tem a possibilidade de ver novamente, agora preenchido pela experiência, o caráter deslocado da realidade na organização. O interno externaliza-se, expressando-se, por exemplo, em momentos de mais audiência eleitoral.

O PSTU tentou atrair o PSOL afirmando que este é centrista (na verdade, apenas reformista), melhor pressionável – mas a proposta regular de frente eleitoral com os psolistas e por uma unificação sindical revela que é aquele, o PSTU, que estava cedendo às pressões, que estava “centrizando” diante de outro partido. O erro de fazer uma unificação das centrais Conlutas, dirigida pelo PSTU, e Interssindical, dirigida pelo PSOL, logo se revelou com a implosão vergonhosa do congresso que tinha esta tarefa (a burocracia sindical do PSOL queria com isso destruir a grande experiência da Conlutas).

Ainda no tema deste subcapítulo, observa-se a pressa de se livrar das tarefas eleitorais, de disputar a consciência da maioria, especialmente no voto nulo. O PSTU aprova em muitos segundos turnos uma nota oficial pelo voto nulo – mas não milita por este voto, não o disputa. Ganharia moral em fábricas e bairros populares se fosse à campanha por este tipo de votação, ainda que com uma disciplina menor em relação a quando apresentou os próprios candidatos. Nestes casos, quanto mais votos nulos tivesse, mais frágil seria o governo burguês de plantão.

 

O GOVERNO DO PT: A GRANDE PROVA

O PSTU evitou o desvio oportunista típico das organizações de esquerda durante os governos de frente popular. Mas desaguou-se no erro oposto, quer seja, o sectarismo.

O reformismo e suas frentes populares são uma armadilha ilusória não somente porque passam a ideia falsa de que faz um governo dos trabalhadores; também é um risco, pois, na medida dos limites do capital, se possível, faz algumas reformas, ainda que limitadas.

O REUNI, por exemplo, ampliou as vagas universitárias e colocou no ensino superior filhos dos trabalhadores. O que seria correto fazer? Denunciar os limites do programa e exigir mais verbas; era preciso dizer “isso é bom, mas ainda é pouco”. Essa forma de fazer política, diante de uma reforma exigir sempre mais, é o que Marx nomeou revolução permanente (Marx & Engels, Luta de classes na Alemanha, 2010).

O partido deixou de ver as reformas, na maioria dos casos chamando-as contrarreformas, e, logo, deixou de fazer exigência por aprofundamento das melhorias. Por exemplo: numa posição sindicalista, colocou-se contra o programa “Mais Médicos”, que melhorava a vida da classe trabalhadora e era contra a aristocracia dos médicos nacionais. O correto seria exigir mais verbas, mais SUS, melhores salários aos cubanos, etc.

A combinação de governo de frente popular com algum crescimento econômico, situação não revolucionária, tendeu a colocar os revolucionários em minoria ou com pressões degenerativas; faltava base social para um partido comunista. Isso foi aprofundado pelos erros políticos da direção do PSTU.

Como é comum, em especial em épocas de crise, a frente popular do PT foi a antessala de um golpe. É uma lei histórica relativa que tal tipo anormal de governo, frente populista, produza o golpismo contra si e contra os trabalhadores. No entanto, o PSTU negou-se a colocar-se contra o golpismo, vendo aí até um fenômeno progressivo (no caso, os protestos da classe média aristocrática pedindo o fim da gestão e… poder militar). O golpe de Estado reacionário, não contrarrevolucionário[4], visava acelerar os ataques contra os trabalhadores, pois o governo Dilma, ao perder as ruas e o apoio da população assalariada, era incapaz de aprofundar ainda mais as contrarreformas[5] (na mente dos burgueses, o bloqueio do PT sobre fazer mais e novos ataques contra a maioria soou para eles como um limite classista do governo e do partido, como se ligado aos trabalhadores e aos “terroristas dos sindicatos”; mas é apenas um engano do pensamento vulgar da classe dominante[6]). O governo Dilma merecia cair por derrubar a qualidade de vida dos assalariados, mas nunca por meio de um golpe jurídico-parlamentar: a saída seria exigir a antecipação das eleições gerais, forçar os limites democráticos do regime cuja patronal queria impor duras derrotas sobre os trabalhadores.

O PSTU, neste momento histórico, falhou na prova de fogo do frente populismo. Cristalizou-se como seita.

 

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS

Vale a pena entrar nos detalhes amplos e de rotina da organização, os “pequenos nadas”, as expressões do centrismo na prática, etc. A vida partidária responde à sequência de erros do partido, acomodando-se a eles, e às conjunturas impróprias a uma organização vermelha, gerando uma estabilidade interna negativa.

1.

Algo comum na militância, os dirigentes médios argumentam frequentemente que “esta proposta não é possível, pois a consciência das massas ainda está atrasada”. Isso é um erro. Nós nunca nos acomodamos à consciência das massas – nós a disputamos, procuramos elevá-la. As propostas práticas partidárias levam em conta, em primeiro lugar, as condições objetivas da realidade: situações de estabilidade exigem propostas mais leves, situações radicais exigem propostas mais radicais. Nem mais nem menos. Após a análise da objetividade, apenas após, consideramos a situação subjetiva. Observamos a subjetividade para melhor elaborar as palavras de ordem, para escolher estas ou aquelas propostas em hierarquia, etc. O fator subjetivo pesa muito, mas nunca é o determinante. Vejamos um exemplo. Se há dura crise econômica com alto desemprego, existe a possibilidade latente de socialismo, porém os trabalhadores consideram o revolucionamento da sociedade uma utopia. O que devemos fazer? Com o baixo emprego, temos de exigir “Escala móvel de tempo de trabalho!” ou “redução já da jornada, com o mesmo salário, na proporção que gere desemprego zero!” De início, tal proposta parecerá bastante radical para a maioria, no entanto, na medida em que a situação não melhora substancialmente, na medida em que agitamos esta proposta com força e em todo canto, os trabalhadores adotarão a fórmula para si – e isso levará a uma tentativa de saída “reformista” que levará o país para as portas do poder operário e popular.

2.

Outro hábito ocorre quando ao esperar que os documentos internos, especialmente os congressuais, sejam impressionantes, motivadores. Entra aí o perfil impressionista. Os militantes são previamente condicionados a concordar com a direção nacional, algo quase religioso. O membro que concorda e defende a posição oficial é valorizado, ganha pontos, enquanto o militante crítico entra numa posição defensiva. O curioso é que, normalmente, o militante só esboça críticas quando está em crise com o partido ou em vias de sair da organização. A cultura de elaboração coletiva, de pensamento livre, não existe aí. Num partido revolucionário, é preciso educar intensivamente para a capacidade de pensamento autônomo (aprender a fazer análise de conjuntura, ganhar experiência, estudar, desenvolver o raciocínio dialético, etc.); num partido onde há pequeno poder, onde se quer preservar os mesmos quadros, um militante que se tornar inteligente demais deve ser excluído.

3.

Ao afastar o militante, usa-se comumente uma tática estalinista ao dizer: o antigo membro é “lupem”, burocrata, etc. Visa-se blindar os militantes contra as possíveis críticas dos ex-membros. A quantidade enorme de afastamentos formalmente individuais, nucleares, exige superar a visão parcial e ver que tal grande quantidade de desligamentos deve ter uma causalidade comum.

4.

Herdou-se de Nahuel Moreno a cultura de fazer autocrítica. No entanto, tal hábito tornou um modo dos dirigentes pouco sofrerem as consequências de seus erros, preservando-se. É um tipo de manobra comum.

5.

Formalmente, os dirigentes são eleitos pela base (algo permitido com mais facilidade pela democracia burguesa). Ocorre que é apenas uma formalidade: os dirigentes escolhem quais serão os novos dirigentes, no lugar de essa preparação ser feita por eleição – a base deve, ela mesma, votar quais militantes serão preparados como dirigentes futuros. Isso não ocorre, a escolha é arbitrária. Na prática, os dirigentes escolhem novos membros das equipes de direção e a base apenas confirma, sem ter muito que fazer sobre.

6.

O nível teórico dos quadros geralmente é baixa. Quando um militante evita o tarefismo praticista para dedicar-se um tanto mais aos estudos da teoria, passa a ser visto como um diletante e um militante menor.

7.

Quando um militante torna-se “esperto demais”, os dirigentes oferecem novas e pesadas tarefas ao membro rebelde, como se uma forma de reconhecimento, mas apenas para que este “quebre”, tome responsabilidades altas sem ser antes preparado para isso. Aí vem a desmoralização do membro.

8.

Em regionais e sedes não proletárias, a maioria, a classe média dentro do partido torna o ambiente insuportável aos operários e aos mais precários. Há até mesmo desdém, semi-inconsciente em alguns casos, de militantes contra aqueles membros “com cara de empregada doméstica”. Fato é que o partido tornou-se uma espécie de clube – como diz Moreno: quer-se viver dentro da organização – em que regras formais e, importante notar, informais devem ser critérios para participação.

9.

Entre as expressões do centrismo no cotidiano militante, observamos a tendência a considerar sempre positivo o balanço das tarefas. Porque não foi um desastre evidente ou gritante, tem-se a cultura de “otimismo” na avaliação das ações práticas dos militantes. Entre todas as consequências ruins desse hábito, atrasa-se a formação dos militantes e o desenvolvimento do partido ao deixar de ver seus próprios erros como se deve.

10.

Entre as más influências do PT, do entrismo, sobre o PSTU está a tendência à valorização dos militantes de melhor oratória. Tal habilidade é boa para ganhar eleições e sindicatos, mas quase secundário para a causa socialista. Muitos militantes chegam a pensar que fazem muito ao muito e muito bem discursar nas assembleias, enquanto outros militantes envolvem-se em tarefas invisíveis essenciais[7]. Os militantes que são ótimos organizadores, teóricos, etc. poucas vezes recebem o mesmo crédito informal.

11.

Por muito tempo, o partido teve o hábito de reunir-se frequentemente “às pressas” no formato de plenárias. Outro hábito de origem petista, pois a plenária na prática, por reunir muito para tarefas imediatas, pouco debate e o dirigente decide, além de ter importância maior a oratória. Em outros casos, não havia reunião de célula de base (núcleo) regular e o dirigente resolvia tudo por telefonema, decidindo ele mesmo a política e as tarefas. Isso é péssimo para a disciplina que a própria vida sindicalista exige, por isso o partido combate até hoje, com menos ou mais sucesso, esse desvio organizativo.

12.

Com a formação mais regular das células (núcleos), contra o erro comum demonstrado no ponto 11, outro problema revelou-se: o pequeno poder. Na prática, o dirigente político do organismo decide tudo e apenas debate detalhes, como aplicar, quem vai para esta ou aquela tarefa. Nada há de debate real e elaboração coletiva.

 

UM PARTIDO DA REVOLUÇÃO?

O centrismo ultraesquerdista tem a aparência de um partido revolucionário. Sua natureza vem da presença da classe média – incluso dirigente sindicais – em seus postos de comando, baixo peso operário e largo peso estudantil.

A história, no entanto, usa dos meios dispostos diante de si para fazer valer sua vontade. As revoluções sociais do século XX, exceção da revolução russa, foram lideradas por organizações centristas, que se viram forçadas objetivamente ao caminho da economia planejada. Há a hipótese de ser este o caso do PSTU ou PCB no futuro próximo, na falta de uma organização revolucionária independente.

É improvável que o partido corrija seu perfil geral. Sua coluna central de dirigentes parece ter cristalizado o caráter pequeno burguês de suas ações. Sendo uma previsão, pode estar errada: se uma reviravolta partidária ocorrer por pressão da luta de classes e da crise?…

Há pelo menos dois acertos destacáveis da organização: 1) a formação da CSP-Conlutas; 2) a prática internacionalista. Mesmo um relógio quebrado acerta as horas duas vezes ao dia. Tais acertos demonstram que o centrismo difere-se do reformismo porque aquele tem em si certo hibridismo, entre a reforma e a revolução. E é incapaz de superar seus limites, que expressam a classe média, entre o operário e o burguês. Tais acertos também respondem ao passado da organização, que foi de fato um partido comunista até degenerar-se em centrismo ultraesquerdista perante a soma de governo de frente popular com algum crescimento econômico e o recuo da luta de classes nas décadas de 1990 e 2000. Mais ou menos 20 anos de recuos, derrotas, frente populares, quase marginalidade, etc. cobram um pesado preço.

Diante da defensiva, o PSTU focou por mais de uma década no movimento estudantil e foi incapaz de proletarizar-se nos últimos anos, especialmente desde 2005. Na década de 1990 teria acertado se, fazendo um giro temporário, apostasse também no movimento popular urbano por moradia, então nascente. Hoje seria, se estivesse tomado tal caminho, a direção majoritária dos sem-teto.

O PSTU é ainda o mais operário dos partidos da esquerda radical. Mas tem peso maior no operariado aristocrático (petroleiros, etc.), nos funcionários públicos, na burocracia sindical de esquerda e entre estudantes de classe média. Em parte, é vítima do destino. A conjuntura reacionária após a queda de Collor de modo algum ajudou na cristalização do recém-fundado partido expulso do PT.

 

 

CRÍTICA AO REGIME LENINISTA PROPOSTO POR MORENO

 

“A história de nossa corrente é a história de seus erros.”

N. Moreno

 

“Não podemos aprender a resolver os problemas de hoje pelos novos métodos se a experiência de ontem não nos abriu os olhos para ver onde foi que estavam errados os antigos métodos.”

Lenin

 

“O primeiro dever de um revolucionário é criticar seus dirigentes.”

Lenin

 

“Disciplina é liberdade.”

Renato Russo

 

Como organizamos a democracia e o centralismo partidários em cada conjuntura? Como estes dois elementos existem em cada momento político? Estas são as indagações presentes nas entrelinhas deste capítulo. Aqui, dividiremos com o leitor uma critica à concepção morenista de regime bolchevique, contrapondo-a à de Leon Trotsky no fundamental.

Para que se desarme, de já, qualquer desconfiança, sugerimos as seguintes conclusões preliminares: a) como explanaremos, Moreno ao mesmo tempo acertou e errou; b) elaborou um regime partidário conjuntural, temporário, sem atentar-se para as mudanças possíveis; c) o autor deste artigo é morenista e absorve deste revolucionário, o maior trotskista depois de Trotsky, um princípio: d)  nunca dogmatizar os mestres e  o marxismo.

 

A REALIDADE DE NAHUEL MORENO

O primeiro passo é contextualizar a situação. No pós-II Guerra o trotskismo era um movimento marginal sob a ameaça constante de degeneração ou, pior, de desaparecer. Ao contrário daquilo que Trotsky prognosticara, o stalinismo tornou-se uma potência no movimento de massas mundial. Deste período, mesmo as novas revoluções socialistas atrapalhavam um trabalho de fato comunista; vejamos: a) a base social dessas revoluções era camponesa, enquanto o trotskismo é uma corrente tipicamente operária; b) desde o princípio, surgiram sob a mão repressora, antidemocracia operária, das burocracias estatais. Estes elementos pendiam objetivamente para o desaparecimento completo do trotskismo. Martín Hernandez, veterano trosko-morenista, relata:

 

Lembro-me quando, em 1968, entrei no PRT – La Verdad da Argentina, que era dirigido por Nahuel Moreno, o maior dirigente trotskista do pós-guerra. O partido, após 25 anos de atuação e depois de ter sido protagonista de grandes acontecimentos da luta de classes, como ter dirigido a grande greve metalúrgica de Buenos Aires, tinha somente 200 militantes.

Da mesma forma, no Peru, apesar de ter dirigido a revolução agrária na década de 1960 e de ter em nossas fileiras Hugo Blanco, o maior dirigente de massas do trotskismo da época, nosso partido nunca teve mais do que 30 militantes.

Nunca me esqueço do informe que recebi, poucos meses após ter começado a militar, sobre as forças da IV Internacional. Nosso partido era um dos maiores. Na França, tínhamos 30 militantes; na Espanha e em Portugal, nenhum. No Brasil e na Venezuela, tínhamos alguns contatos; na Colômbia e na América Central, nada.

E, em 1976 (após a derrota do imperialismo no Vietnã), na Itália, ganhamos para a tendência bolchevique um grupo de estudantes secundaristas. E me lembro, como se fosse hoje, da dura discussão que Moreno teve com aqueles jovens, pois eles queriam ir militar na classe operária italiana e Moreno, que sempre teve a obsessão de inserir nossos partidos e grupos na classe operária, após longas discussões, convenceu-os a não irem para o movimento operário. Seu argumento foi muito simples: “Vocês ainda são muito débeis e se forem para a classe operária o stalinismo vai acabar com vocês.” O PC italiano tinha, naquela época, um milhão de filiados e controlava, com mão de ferro, todo o movimento operário. (Hernández, 2015)

 

A duríssima dificuldade exposta é chave para compreendermos a atualização do regime partidário proposta por Moreno. Um projeto partidário, com sua forma organizativa, sendo uma superestrutura, deve ser explicada a partir da realidade que a forma. Para isso, precisamos recordar que, com a revolução cubana, o imperialismo patrocinou ditaduras militares por toda a América Latina, tradicional base territorial do trotskismo bárbaro (morenismo). Inevitavelmente, agregou-se mais um importante elemento impeditivo. Este tipo hostil de situação alimenta características exóticas, de seitas, nos partidos – e voltam-se para dentro de si. Segundo Cannon, relatando a clandestinidade vivida pelo PC americano:

 

O movimento permaneceu ilegal desde 1919 até o começo de 1922 depois que o primeiro choque das perseguições passou e os grupos e células se acostumaram a sua existência ilegal, os elementos na direção que tendiam ao irrealismo ganharam força, tanto e quanto o movimento estava então completamente isolado da vida pública e das organizações operárias do país.

Então, eu, por minha parte, me dei conta pela primeira vez do completo mau da enfermidade do ultra-esquerdismo. Parece ser uma lei peculiar que quanto maior é o isolamento de um partido da vida do movimento operário, quanto menor é o contato que tem com o movimento de massas, e quanto menor é a correção que este pode exercer sobre o partido, tanto mais radicais se tornam suas formulações, seus programas, etc. (…) Vocês vêm, não custava nada ser ultra-radical porque de qualquer maneira ninguém lhe prestava atenção. Não tínhamos reuniões públicas, não tínhamos que falar aos operários ou ver quais eram suas reações à nossas consignas. Assim, os que gritavam mais forte em nossas reuniões fechadas se converteram em mais e mais dominantes na direção do movimento. A fraseologia do "radicalismo" teve seu dia de festa. Os anos iniciais do movimento comunista neste país estiveram mais que consagrados ao ultra-esquerdismo.

[…]

O movimento teve uma vida interna muito intensa, até porque estava isolado e voltado para si mesmo. As disputas fracionais eram ferozes e largamente extenuantes. (Cannon, 2006, grifo nosso)

 

 

COMO MORENO REAGIU

O que apresentamos levou Moreno a precaver-se das tendências degenerativas nos partidos. No fundamental, propôs: a) proibir a possibilidade de frações e tendências em períodos não pré-congressuais; b) legalizar a possibilidade de fracionamento para meses antes do congresso partidário. Podemos deduzir que a fórmula proposta pelo argentino é útil para partidos clandestinos e muito minoritários ao girar a organização para fora de si; porém, esta é uma verdade em parte. Queremos demonstrar ao leitor o caráter antidialético da proposta deste marxista. Por isso, finalmente, vamos à defesa dele, nas “Teses Para Atualização do Programa de Transição”:

 

Não pode existir democracia sem direitos para as tendências e as frações. Mas este é um direito excepcional porque o surgimento de tendências e fracções é uma desgraça para um partido centralizado para a ação. A discussão permanente em todos os órgãos partidários é a mais grande ferramenta de elaboração política para um partido trotskista. O partido deve viver discutindo sistematicamente. Tem que confrontar experiências individuais ou de organismos distintos e setores de trabalho distintos para que através do choque e da discussão surja una linha correta, a melhor resultante. Porém esta virtude da discussão permanente se transforma no oposto quando um partido vive discutindo permanentemente desde grupos organizados em frações e tendências, e muito mais ainda se estas sobrevivem através do tempo (aqui notamos a real origem de sua preocupação – comentário do autor). Quando isto ocorre, as frações deixam de sê-lo para converter-se em camarilhas. O partido deixa de atuar em forma unitária para e rumo ao movimento de massas para voltar-se para dentro, se paralisa, cria um ambiente parlamentário de polémica permanente e inevitavelmente deixa de atuar de forma unitária e passa a ter como atividade principal a discussão, isto é, deixa de atuar principalmente no movimento de massas. A discussão é um meio fundamental e decisivo para nossa atividade, mas: só um meio. A existência de frações e tendências permanentes transformam a discussão num fim em si e não num meio do centralismo e da ação unida frente ao movimento de massas. (Moreno, TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro partido y de nuestra internacional, 2001, grifos nossos)

 

Nahuel Moreno inverteu a causalidade. A origem do fracionamento permanente era, como nos indicaram as citações de Cannon e Martín, a permanente tendência à marginalização, a fragilidade interna – não o direito estatutário de fracionamento. Ainda assim, o argumento da Tese encontraria algum acordo em Trotsky? Não. Para este, a simples possibilidade de existir tendências e frações era, em si, uma necessária forma de pressão e controle da base sobre a direção e, por consequência, um mecanismo antiburocrático. Diz Leon:

 

Naturalmente, grupos, assim como diferenças de opinião são um mal. Mas esse mal é uma parte necessária do desenvolvimento dialético do partido, assim como as toxinas o são na vida do organismo humano.

A transformação dos grupos em frações organizadas e fechadas é um mal muito maior. A arte de dirigir o partido consiste precisamente em prevenir tal desenvolvimento. É impossível chegar a tal ponto pela mera proibição.

[…]

Porque a tarefa não consiste em proibir frações, mas em evitá-las. (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010, p. 202, grifo nosso)

 

Como lemos, para Trotsky é o inverso. A contradição apresenta-se como parte inerente da realidade, incluso a de um partido revolucionário. Negar a contradição apenas muda ou camufla seu caráter. A possibilidade de um corpo dirigente sofrer reclamações da base, de perder a direção, de se desmoralizar é – por si mesma – um recurso democrático, um controle, um estado de alerta; além de abrir espaço para que políticas erradas e irrealistas possam ser corrigidas. Sequer precisa uma luta interna existir de fato: basta existir o mecanismo, o meio, uma pressão subjetiva sobre os dirigentes. Porém Moreno enfraquece a democracia vertical, da base para direção, e mantém a horizontal, dentro dos organismos.

 

A DIALÉTICA DO REGIME

Ao mesmo tempo, há um acerto no erro de Moreno. Precisou adaptar o regime partidário às duríssimas condições em que militara. Ou seja, a proposta dele seria correta apenas conjunturalmente, nunca em permanência. Com o regime partidário que propunha, ocorreu exato o que ele temia: “Assim evitaremos o grave perigo de criar movimentos trotskistas com influência de massas que, chegado o momento da ação, vejam-se anárquicos e incapazes de atuar com a centralização e disciplina de um exército revolucionário.” (Moreno, TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro partido y de nuestra internacional, 2001) Entretanto, foi isso de fato o que ocorreu com o MAS da Argentina, criado por Nahuel, após adquirir influência de massas. Tal conclusão também desconsidera a histórica do partido bolchevique, que teve frações e verdadeiras rebeliões internas ao longo do processo revolucionário iniciado em 1917.

A tendência geral da matéria é ir do simples ao complexo. Complexidade é, necessariamente e inclusive, acúmulo maior de contradições e de diferenças internas. Assim também acontece com partidos. Quando são marginais e sob ditaduras, precisam de uma forma do regime; quando estão sob democracia burguesa, quando possuem influência de massas ou de vanguarda, quando são inexperientes, etc. precisam mudar a forma de se organizar, senão estagnam ou implodem. Podemos formular, regra geral, o seguinte: quando a realidade e o partido estão mais complexos, então o regime partidário deverá, também, tornar-se mais complexo.

De modo sugestivo, Moreno descreve a realidade para justificar o afrouxamento da democracia interna nos partidos:

 

Todos os nossos partidos e nossa Internacional em seu conjunto reivindicam orgulhosos, como seu exemplo, a estrutura do Partido Bolchevique. Isso significa que consideramos que nosso partido tem que estar formado por revolucionários professionais por um lado e que deve ter um regime centralista democrático por o outro. Reivindicamos mais que nunca o centralismo como a obrigação número um de todo partido trotskista. Em esta época revolucionária o trotskismo é perseguido implacavelmente, não só pelo estado burguês, os partidos burgueses e os bandos fascistas, senão também pelos partidos oportunistas, os quais com toda razão nos consideram seus inimigos mortais. Além do mais, nossos partidos se constroem para levar a cabo a luta armada pela tomada do poder, a insurreição. Este supremo objetivo só poderemos alcançar com uma rígida disciplina, cuja única garantia é o centralismo e uma dedicação que só pode ter os militantes profissionais. (Idem, grifo nosso.)

 

Mais uma vez, citaremos Trotsky contra Nahuel Moreno. Ao afirmar o caráter temporário e excepcional, quando na fase final da guerra civil na URSS, da proibição de frações no partido Bolchevique; o fundador do Exército Vermelho explica:

 

Mas a decisão do X Congresso do partido sobre frações ou grupos, que mesmo então precisava de interpretação e aplicação jurídica, não é em caso algum um princípio absoluto que está acima de todas as necessidades do desenvolvimento partidário, independente do país, da situação e do momento. (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010)

 

E critica o stalinismo, que impôs sua fórmula a todos os partidos da IC:

 

Um partido novo representando um organismo político em completo estágio embrionário, sem nenhum contato real com as massas, sem experiência de direção revolucionária, sem formação teórica, já foi dos pés à cabeça com todos os atributos da “ordem revolucionária”, ficando parecido com um menino de seis anos de idade que usa a armadura de cavaleiro do pai.

[…] Sem uma verdadeira liberdade na vida partidária, liberdade de discussão e liberdade de estabelecer seu rumo coletivamente, através de agrupamentos, esses partidos nunca se tornarão uma força revolucionária decisiva. (Idem, p. 206, 207, grifo nosso.)

 

Centralismo e democracia são polos internos, necessários, opostos, complementares e deve-se evitar o distanciamento um do outro ou um excessivo domínio contraditório de um sobre o outro, e vice-versa. No partido, o centralismo é uma reação à barbárie capitalista e necessidade de enfrentá-la; a democracia representa a necessidade do futuro, da desalienação e seu desejo, um leve sintoma do comunismo. O capitalismo costuma empurrar-nos mais para a tendência centralista, com a burocratização; no socialismo, a organização partidária, por outro lado, será cada vez mais democrática, frouxa, aberta, pois tenderá ao completo desparecimento em uma sociedade comunista; por hoje, ambos são completamente necessários, sendo a democracia partidária o polo determinante.

Os fins justificam os meios, mas nem todo meio é válido (ou não em todas as situações). A democracia partidária não é nem pode ser uma concessão da direção para sua base, senão, do contrário, tratar-se-á de um “estalinismo esclarecido”, uma forma de falsa democracia partidária. Todos os partidos estalinistas adotam o centralismo; apenas partidos revolucionários procuram preservar em suas organizações a superioridade da democracia interna bolchevique, polo determinante do centralismo-democrático[8].

Assim:

 

Centralismo burocrático = supremacia do centralismo, resquícios e aparência de democracia como aplicação do centralismo. È proibido a formação de frações, tendências e grupos de opinião; os dirigentes não são eleitos pela base, desde uma disputa política, com cargos revogáveis.

Burocratismo não centralista = estabelece-se uma direção partidária dotada de privilégios (parlamentares, audiência, recursos, etc.) enquanto as estruturas de base fragmentam-se em democratismos, liberdade individual sobre a coletiva, indisciplina, lutas fracionais permanentes, organismos de base para intermináveis debates, etc.

Centralismo democrático = supremacia da democracia, centralismo como aplicação da democracia. Frações, tendências e grupos de opinião temporários para fins de disputa política e de cargos; dirigentes eleitos pela base com cargos revogáveis.

 

O centralismo democrático evita cair nos dois polos de um mesmo erro.

 

CONSEQUÊNCIAS

De forma preliminar, queremos escandir algumas consequências. Na medida em que um partido torna permanente a proposta morenista, ocorre:

1.      Com a escassez de polêmica, atrasa-se a formação dos militantes e quadros;

2.      À medida em que a organização cresce, organismo dirigente tende a ter autonomia, desloca-se em relação a sua base;

3.      A partir do segundo ponto, é mais difícil a base controlar a direção;

4.      Torna-se difícil perceber os erros e suas consequências na medida em que faltam meios para expressar polêmicas;

6.      As contradições inevitavelmente acumulam-se, tomando forma fracional;

7.      Via de regra, por causa da proibição, as frações/tendências já surgem deformadas: na forma de disputas por cargos, frações de direção, grupos de amigos-militantes, reuniões informais, frações secretas;

8.      No campo psicológico, os militantes movem-se por fé, não por confiar na democracia interna; teme-se polêmicas; consideram toda diferença como divisão do partido; a direção desenvolve arrogância e desconfia da base;

9.     Surge a tendência a cometer mais erros políticos, com dificuldade de corrigi-los;

10.  Ao impedir a existência de válvulas de escape, ocorrem rupturas, à esquerda e à direita, por indivíduos e por grupos, em relação à posição oficial.

 

Em síntese, o partido vive um permanente ciclo crescimento-crise-ruptura. Por isso, tende a estagnar em um tamanho estável. Em 2014, o congresso da LIT, fundada por Moreno nesta concepção estática de centralismo democrático, reconheceu uma lei de seus partidos: frágil relação, em ciclos, de crescimento-crise-ruptura das suas organizações. Percebeu-se uma “lei”, mas a direção da internacional foi incapaz de saber o motivo, que parte do problema é a concepção de regime limitada[9].

Para guiarmos os pontos acima; Leon Trotsky explica que, nos momentos mais decisivos, a direção é sempre muito mais vacilante que a base:

 

“As bases do partido proletário são, por sua própria natureza, muito menos suscetíveis à pressão da opinião pública burguesa. Mas certos membros do topo e camadas médias do partido irão infalivelmente sucumbir em maior ou menor medida ao terror material e ideológico da burguesia no momento decisivo. Não levar a sério esse perigo é não saber lidar com ele. Não há, é claro, fórmula mágica contra isso que sirva em todos os casos. Mas o primeiro passo necessário para lutar contra um perigo é entender sua origem e sua natureza” (Idem, p. 163).

 

Apresentamos ao leitor algumas perguntas. Se há possibilidade de agrupamentos internos apenas próximo aos congressos, então como os grupos conseguirão formar-se já que estes disporão de pouquíssimo tempo para reunir membros e amadurecer ideias? Como a base efetuará algum controle sobre os dirigentes? Como, em caso de grave erro, militantes conseguirão acionar 1/3 das regionais para convocação de um congresso extraordinário? Como evitarão que a direção adie congressos? Em partidos pequenos estas perguntas/contradições podem ser resolvidas com alguma facilidade, mas a situação muda quando crescem.

Ao mesmo tempo, precisa-se evitar fracionalismos de todos os tipos. Um partido pequeníssimo – constituído de uma única regional com 20 ou 30 membros – suporta, por exemplo, boletins individuais com opiniões e propostas vindas da base. Porém, o mesmo não serve a um partido com 3.000 membros, pois este viraria um clube de debate e papéis; neste caso, a possibilidade de agrupamentos é a alternativa saudável (deve-se negar proibir documentos individuais, pode-se estimular a formação de grupos; pois é sinal de problema imensamente mais profundo, acumulado por longo período no subterrâneo, que surja um mar de boletins internos antes de um congresso). Já em um partido com influência de massas como o Bolchevique a partir de 1917/8, pode-se, como ocorreu, publicitar polêmicas e propostas em espaços específicos da imprensa partidária. São exemplificações para nos guiar a reflexão. Se, por outro lado, um partido de vanguarda tem alta contradição interna, caso de uma luta fracional prolongada, pode adotar aspectos de um partido grande ao divulgar suas polêmicas aos simpatizantes.

O nível teórico da base, a experiência prática geral, a cultura nacional, a conjuntura, o tamanho do território onde existe, a composição de classe dos membros[10], etc.: todos estes elementos ajudam ou atrapalham, consciente ou inconscientemente. Para perceber e corrigir, uma compreensão correta, dialética, do regime leninista faz total diferença[11].

No entanto, o risco da liberdade de fracionamento a qualquer instante é a direção preservar-se por meio do autoelogio, criar uma imagem idealizada de seus membros na base, evitar autocríticas ou fazê-las apenas para nada mudar, além de manobras de exclusão dos membros “espertos demais”.

É necessário cultivar, em permanência, a tolerância cultural às disputas. É famoso, embora pouco seguido, o fato de o PC Alemão ter expulsado um membro da direção do partido por ele ter feito críticas corretíssimas, mas públicas; Lênin fez o possível para que o partido alemão voltasse atrás, reintegrasse os direitos do antigo membro. O trotskysmo põe como grande exemplo o fato de um militante, com altíssimo talento teórico e prático, elogiado por Trotsky, ter sido expulso do SWP americano após dirigir uma poderosa e vitoriosa greve de caminhoneiros, mas sem estar centralizado no partido (lembremos que ele provavelmente abriu mão de uma grande carreira intelectual para ser proletário). Ora, esse não é o espírito do leninismo, que medeia tanto quanto for possível. Quando o SWP americano entrou em duríssima luta fracional, sobre defender ou não a URSS, Trotsky propôs que os debates fossem públicos para dar toda a ideia a todo o partido de que, em situações limites, a organização era a mais democrática possível, injustificando rupturas (algo que, por exemplo, o trotskista PSTU do Brasil não fez na dura história recente, quando necessário); vale votar, em tal momento, Trotsky comentou que tendências estalinistas, autoritárias, estavam afetando o bolchevismo da própria IV Internacional, inclusive nas direções majoritárias dos partidos membros. O nome centralismo democrático pode ser, assim, substituído por democracia centralista.

 

A INTERNACIONAL

Em 1971, no congresso da IV Internacional, Mandel acusou Moreno de proibir grupos internos. Este, sem demora, percebendo a tentativa de desmoralização, respondeu aquilo que expomos: pode-se nos períodos pré-congressuais. Independente disso, o fundador da LIT explica sobre o regime do partido mundial e suas seções:

 

Nós estamos construindo a mais formidável arma organizativa revolucionária que tem conhecido a historia: um partido mundial bolchevique. Em este processo de construção do partido se impõe, para esta etapa, fortificar o polo democrático e não centralista, justamente porque nossas direções, tanto nacionais como internacionais, todavia não tem ganhado um grande prestígio político ante as bases de nossas sessões por seus êxitos na direção do movimento de massas. Só esse prestígio poderia fortalecer o polo centralista e disciplinado; portanto, deve primar o aspecto democrático. (Moreno, ¿Partido mandelista o partido leninista?, 2001)

 

A citação acima poderia ser muito bem usada para afirmar que o regime de partido tal qual Moreno propõe vai contra as necessidades partidárias. Se o polo democrático deve ser o mais forte, então o estatuto da organização deve corresponder à observação.

Também encontramos uma singularidade. No texto há a valorização do aspecto psicológico, subjetivo, do regime: o centralismo será maior quanto maior for a moral da direção; e o mesmo ao contrário. Porém, sendo importante, este elemento é relativo, auxiliar. Se o prestígio facilita o caminho, a democracia interna é uma necessidade absoluta tanto quanto o centralismo.  Ou seja, claras garantias – mesmo aparenciais, estatutárias – de democracia são vitais; do contrário, congressos, reuniões, boletins, debates e autocríticas serão nada mais que manobras para dar algum verniz não-estalinista aos dirigentes. Incluso em nível internacional, uma direção mundial qualificada e testada deve permitir às direções nacionais produzir suas próprias políticas e testá-las na prática, pois apenas assim ocorrerá o amadurecimento de equipes dignas de situações revolucionárias.

Exemplifiquemos com a própria história de Moreno. Por suas posições minoritárias, sua corrente ficaria fora da IV Internacional quando do início de sua atuação, após a II Guerra; mas uma nova proposta do SWP criou os partidos simpatizantes ao lado dos partidos oficiais do mesmo país, no caso, da Argentina. Em seguida, Pablo, principal dirigente, tenta fechar o regime interno e organizar uma fração secreta contra o SWP, sua oposição interna; a reação desta corrente, ao lado de Moreno, permite uma luta fracional que desemborca em ruptura – e isto preserva o acúmulo programático, prático e teórico da corrente. Após a revolução cubana, há uma reunificação das correntes trotskystas; Moreno participa do processo para não ficar isolado internacionalmente, a partir das garantias de sua existência política como tendência – tendo organizado, em seguida, rebeliões internas. Sua experiência em tendências e frações até aqui se lhe revelou novos problemas e novos acúmulos. A capitulação final do principal dirigente do SU, Secretariado Unificado, Ernest Mandel, expressando seu centrismo ao colocar-se contra a defesa da brigada trotskysta Simón Bolivar, na Nicarágua, gera uma ruptura internacional. Isto abre caminho para a Fração Trotskysta, de Nahuel Moreno, tornar-se a LIT. O que percebemos, como balanço geral: a possibilidade de Nahuel Moreno, desde o princípio, organizar-se em tendências e frações, permitiu: 1) manutenção da democracia interna, do debate; 2) ruptura e reorganização caso houvesse degeneração; 3) educação acelerada; 4) evitar o isolamento. Não teria avançado se o regime da IV fosse igual ao regime que propunha aos partidos de sua fração e as internacionais que dirigiu. Este balançou faltou-lhe.

Das afirmações concluímos a defesa de um regime semelhante em um partido mundial, com um adendo: por razões de convivência e espaço, parece mais difícil a articulação de frações e tendências internacionais. Ter em conta esta dificuldade já nos ajuda. Por isso, torna-se ainda mais necessário um regime que permita frações, tendências e grupos de opinião (e estudo) a qualquer momento no partido internacional. Além disso, a sede da Internacional deve ir para outro país, um pobre de preferência, que não a nação do partido “mãe”, assim diminuindo suas pressões enormes sobre a direção internacional; Lenin, ciente disso, queria que a III Internacional funcionasse na Alemanha, não na URSS.

 

O PARTIDO E O SOCIALISMO

A revolução socialista deverá fundar uma democracia superior à democracia burguesa. O pluripartidarismo, a organização de apartidários e a formação de correntes por pautas setoriais (meio ambiente, transporte, etc.) farão parte das disputas dentro do novo poder. Entretanto, ainda que surja a possibilidade de frentes revolucionárias, como a dos Bolcheviques com os Socialistas Revolucionários de Esquerda em 1917, a tendência é um grande partido comunista ser a direção reconhecida das massas para a tomada de poder. Surge, então, a pergunta: como evitar a fusão – prematura, antes do comunismo – do partido e do Estado?

O debate apresentado será foco de outro capítulo; aqui discutimos a questão partidária dentro do tema. Uma organização com influência de massas no socialismo manter-se-á viva do ponto de vista organizativo se permitir a formação temporária e a qualquer instante de partidos dentro do partido na forma de tendências, frações, grupos de opinião e debates públicos. Assim, a democracia partidária reforçará a nova democracia estatal; eventualmente, as polêmicas serão base para rupturas e formação de novas organizações. Mais uma vez, percebemos os limites de proposta fixa, à revelia de inúmeros fatores, do regime leninista proposto por Moreno.

 

 

 

REFLEXÕES SOBRE O PARTIDO COMUNISTA

 

As observações abaixo partem das características gerais dos partidos comunistas em nossa conjuntura: organizações de vanguarda, inexperientes, de baixo peso operário e sob democracias burguesas decadentes. Os problemas levantados aqui tenderão a permanecer nos organismos citados mesmo com mudanças desde 2008, pois as superestruturas são conservadoras. Feita a apreciação, avancemos.

 

O PERFIL MILITANTE

É comum que os membros dos partidos comunistas sejam os melhores lutadores nos movimentos sociais. Mas isso faz deles apenas os mais dedicados, o melhores dentro dos limites da luta de classes sob o capital.

O partido revolucionário, enquanto não é de massas, deve ter membros acima dos postos de meros soldados, todos devem ser capacitados oficiais. A organização precisa estar pronta para crescer de um perfil de vanguarda para, por saltos e em curtíssimo período, aglutinar dezenas de milhares de militantes de base.

O marxismo militante deve formar, portanto, verdadeiros estadistas, pois é isso que serão caso a revolução seja vitoriosa, caso os partidos vermelhos sejam dignos da tarefa histórica. Dirigir sindicatos ajuda em certos aspectos na educação política prática, na arte de gestão. Mas é limitadíssimo. Apenas com educação teórica profunda os quadros partidários serão mais do que simples radicais de esquerda.

O instinto de poder do partido deve formar dirigentes estatais em potencial, gente capaz de pensar grande, profunda e estrategicamente. O poder operário não se consolidará dirigido por gente incapaz.

 

A VALIDADE DOS PARTIDOS COMUNISTAS

Há três formas de o partido revolucionário desaparecer:

1)  Ser destruído por repressão;

2)  Degenerar numa caricatura centrista de si;

3)  Dissolver-se na sociedade socialista.

A organização, sendo o organismo antissistema dentro do capitalismo, surge e desenvolve-se a partir de uma dada base material. Mudanças de conjuntura, de situação, mudam em geral apenas relativamente a natureza do partido. Mas, ao contrário, mudanças qualitativas do tecido social ou da etapa (se revolucionária ou contrarrevolucionária), tende a mudar, com algum atraso, o perfil do organismo, da superestrutura partidária.

Isso significa que todo partido revolucionário tem data de validade. Pode durar muitos anos ou até décadas com a mesma natureza, mas a realidade mutante é maior e determina o destino da organização. Serve-nos um exemplo. O Partido Bolchevique e os PCs da III Internacional degeneram com o fim da situação e da etapa revolucionárias, na passagem para uma situação-etapa contrarrevolucionária mundial.

 

OS FUNCIONÁRIOS SINDICAIS E PARLAMENTARES

Ao discutir a degeneração da II Internacional, destaca-se o peso dos parlamentares no perfil reformista e centrista. A questão fica muito mais clara quando levamos em conta que boa parte dos militantes e quadros dos partidos socialdemocratas era funcionários nos sindicatos e nos mandatos dos representantes no parlamento burguês. Por isso medidas formais devem ser tomadas contra a pressão daqueles que precisam de peso sindical e parlamentar para sua própria sobrevivência.

Os militantes que têm empregos nos sindicatos, por exemplo, devem passar por aspirância, com deveres e sem diretos, por pelo menos três anos, a contar a partir do momento em que adquirem o cargo (jornalistas, advogados, economistas, vigias etc.). E quando forem aceitos como militantes plenos, fica proibido: ser dirigente político de células, ter cargos acima do comitê zonal (nunca de dirigente político), votar ou ser votado como representante nos congressos e conferências, participar de tendências ou frações. São medidas que diminuem a pressão externa dos aparatos, que até de modo inconsciente afetam a postura de tais membros. A degeneração de tantas organizações obriga regras duras por permanente precaução.

 

GARANTIAS DA DEMOCRACIA PARTIDÁRIA

Temos de formar medidas estatuárias que garantam certo grau de tensão interna saudável, que pese contra a dependência de um quadro em particular ou de um grupo.

Os birôs político e organizativo do comitê central devem ter um tempo máximo de permanência nas mãos de certo dirigente e tempo mínimo de sua ausência no cargo. Assim evitamos a excessiva especialização ou a formação unilateral de insubstituíveis.

A luta fracional deve garantir 20% dos cargos à fração derrotada que tenha alcançado pelo menos 30% dos votos congressuais com os membros escolhidos pela fração vencedora. Pode-se garantir no máximo 30% dos cargos a mais de uma fração derrotada. Assim, se uma fração consegue 40% dos votos e ganha a maioria, fica com 70% dos cargos; se outras duas frações conseguiram cada uma 30%, somando 60%, terão direito cada qual a 15% dos membros eleitos.

Esta postura, que pode ser informal, uma boa diplomacia da fração majoritária, melhor uso tem se é formalizada como mecanismo da legalidade do partido.

 

A PROLETARIZAÇÃO

Em debate com o SWP americano, Trotsky orientou que os muitos jovens daquele partido fossem girados para apoio ao movimento operário. Tal proposta pode ter a forma permanente de células de proletarização nos partidos: uma parte da juventude e dos assalariados não operários das organizações formarem organismos de base cujas tarefas centrais são marcar presença constante em determinadas fábricas, ajudar as oposições sindicais proletárias, trabalhar voluntariamente nos sindicatos fabris, etc. Tão logo uma organização consolide uma certa quantidade de membros da classe média em seu seio, o que é em si fonte de contradição, deve-se fundar tais grupos para potencializar o trabalho na principal classe da sociedade. Algo semelhante pode ser feito em trabalhos sobre setores populares muito precários como o movimento de ocupação urbana. Um grupo revolucionário deve ser formado por proletários não aristocráticos e assalariados precários em sua maioria e especialmente na direção, por isso tal giro faz-se necessário.

 

OS PROFISSIONAIS

Os profissionais do partido devem ter tarefas bastante claras e seus salários deve ser próximo ao da média salarial do país. O critério da renda faz diferença, pois apenas morando e vivendo como um trabalhador não aristocrático o militante pode sentir as mesmas dores de sua classe e ter a necessidade de revolucionar o mundo. Um salário avantajado desregula por diferentes meios seu caráter militante. O fato de dedicar-se a um emprego que dá imenso mais prazer, apesar das dificuldades, do que o emprego comum, o fato de estar em um “serviço” não alienado, deve ser um bom estímulo para aceitar ganhar menos do que sua capacidade no “mercado de trabalho”. Como deve ser quase lei interna que os profissionalizados tenham origem no movimento operário, deixa de ser um problema a questão salarial, diferente de se tentar dar tal posição a alguém de origem na classe média bem paga. Naqueles partidos onde esta regra é evitada, deve-se fazer uma transição como congelar e reduzir aos poucos a renda desses quadros, o que fará sobrar finanças para mais profissionais da revolução.

É muito comum que os membros de classe média destaquem-se nos partidos ditos operários. Um funcionário público, por exemplo, pode ter estabilidade empregatícia, maior tempo livre, menos desgaste no trabalho, mais cultura e mais recursos. Logo torna-se um quadro dirigente, contaminando com seu perfil a organização e sua direção. A profissionalização prioritária de membros advindos dos meios proletários visa dar condições para seu pleno desenvolvimento e a formação de verdadeiros partidos da classe revolucionária.

Evitemos também o debate fácil sobre o tema. Nesse limite, alguns defendem que a profissionalização deve ser cancelada após alguns anos para evitar carreirismos. A questão é que quadros capazes demoram a se formar, por isso, se voltam aos trabalhos não partidários depois de anos de dedicação militante, nós na prática perdemos e desperdiçamos potencial militante. Ademais, após longos anos trabalhando para o partido e para a revolução, dificilmente encontrarão emprego regular. Devemos manter financeiramente, mas com salários baixos e sob controle dos organismos partidários, uma camada de profissionais que acumularam capacidades práticas e teóricas. O carreirismo é devidamente evitado com o assalariamento limitado.

 

O PARTIDO LENINISTA COMO O MEIO

É um erro considerar, como faz Moreno, a construção do partido como estratégia, pois é o meio para um fim. Esta diferença, que parece desnecessária ou trivial à primeira vista, ganha importância prática quando observada mais de perto.

Façamos antes um debate lógico, mais abstrato. O meio é o meio específico de um fim e este é também daquele, fim específico do meio – para um fim, nem todo meio é válido (Trotsky, 16. Interdependência Dialética Entre Fins e Meios, 2002). Há unidade de fim e meio (Hegel). Eis uma primeira consideração da relação entre as duas categorias. Ademais, o fim não está somente em algo como apenas no final mas vai-se realizando no processo; ir-se realizando rumo a si mesmo é o mais próximo que temos de uma teleologia objetiva – unidade de fim e meio, desenvolvimento que dispensa a necessidade de uma consciência maior, um Espírito ou um Deus[12].

Há ainda outra consideração: o meio pode, por assim dizer, degenerar em fim em si mesmo. O dinheiro, por exemplo, avança de puro mediador, meio de troca, para o centro da atividade. Algo semelhante pode ocorrer nos partidos: a autoconstrução passa de meio da estratégia para ser algo em si próprio, em um falso hiperleninismo. Eis um perigo real. Um exemplo deixará mais cristalino: no lugar de elaborar política de modo objetivo, para avançar alguns passos ao socialismo, a organização partidária pode agitar propostas erradas, segundo a conjuntura, que atraiam de modo artificial a vanguarda porque são as mais radicais, porque se diferenciam das demais correntes, etc.

 

 A QUESTÃO DO DIRIGENTE

Percebemos um padrão sobre a direção geral das Internacionais: os dirigentes mais respeitados atuavam como força objetiva no retardo da quebra ou degeneração de suas organizações. A II Internacional avança sua adaptação ao regime democrático burguês após a morte de Engels; o partido bolchevique e a III Internacional saltam suas degenerações com a morte de Lenin; a IV internacional quebra-se com a morte de Trotsky; a LIT e o partido MAIS na Argentina, que havia alcançado influência de massas, quebram-se depois da morte de Nahuel Moreno.

Como afirmamos anteriormente, as mudanças qualitativas da realidade mudam com atraso o perfil das organizações. Mas a superestrutura subjetiva, como grandes líderes revolucionários, tornam-se forças que também interferem no ritmo das mudanças.

A formação de grandes líderes leva décadas e muitos se afastam da militância, são presos ou morrem. Uma “seleção natural” vai consolidando alguns militantes raros, de grande estatura. Apenas a democracia partidária, com uma sólida formação prática e teórica, permite reorganizar as tarefas e errar menos diante da falta repentina de algum “insubstituível”. A mera consciência do problema do dirigente central ajuda a pensar precauções, como preparar uma nova coluna de quadros de modo antecipado, organizar rupturas diante de degenerações qualitativas, etc.

 

O COMPROMISSO MILITANTE

Deve ser estatutário que, para ser membro do partido, é obrigatório o compromisso de apoiar apenas o governo baseado na democracia socialista, que surja da destruição revolucionária do antigo estado. Nenhum governo “progressivo”, “nacional”, “anti-imperialista”, “popular”, “esquerdista” ou “socialista” por meio da suposta renovação do estado burguês deve ser apoiado, mesmo que criticamente, por qualquer membro partidário, interna ou publicamente. Esta é uma das condições vitais para ser considerado parte da organização revolucionária, deve ser do acordo mínimo de militância.

 

A QUESTÃO SINDICAL

Pequenas organizações podem degenerar em seitas, em clubes, em casas de intelectuais. Mas há também o risco mais subterrâneo de transformar-se em partidos sindicais.

É debate comum no meio militante que a ação eleitoral é algo tático, ainda que tenha de ser lavado muito a sério. Esquece-se, no entanto, que a atuação nos sindicatos é também do nível da tática militante. Os sindicatos produzem uma pressão enorme sobre as organizações como duplo peso: de um lado, dá base para a radicalidade e, de outro, prende a militância aos limites da reforma, aos limites burgueses, nas lutas parciais. Surge aí a condição para a formação de partidos centristas, que estão entre a reforma e a revolução, entre o reformismo e o bolchevismo.

O sindicalismo vermelho ou radical esquece que os sindicatos são organizações defensivas e burocratizadas, por isso serão superestruturas secundárias durante situações revolucionárias na maioria dos casos, senão em todos. Dificilmente, por conservadorismo organizacional, os revolucionários serão maioria nos aparelhos sindicais quando chegar a hora mais perigosa e decisiva. O foco perante revoluções girará para ganhar maioria nos soviets, comitês fábrica, assembleias de bairros, isto é, nos embriões de poder operário e popular.

Pequenos partidos revolucionários devem ter alguma influência sobre a vanguarda, ter trabalhos poucos e concentrados em determinadas fábricas, categorias e bairros operários. O mais importante é adquirir alguma influência social em bastiões, que possam irradiar-se em momentos oportunos de grandes lutas de classes. Ganhar sindicatos deve ser uma consequência destes trabalhos e posterior meio de ampliar a influência, não o grande fim.

 

SOCIALISMO DO FUNCIONALISMO PÚBLICO

No Manifesto Comunista, Marx e Engels tratam de diferentes tendências “socialistas” como o socialismo burguês e o socialismo pequeno burguês. O desenvolvimento da urbanidade e a política keynesiana no pós-II Guerra fizeram surgir uma imensa massa de funcionários cujo patrão é o estado. Este setor esquerdizou-se com sua ampliação numérica e a precarização das suas condições de trabalho. Assim surge o socialismo do funcionalismo público.

A base programática de tal setor é a defesa de um estado forte, empoderado, e o desejo ao retorno do paradigma keynesiano na política econômica (ainda que use terminologia marxista). Algumas de suas defesas são progressivas; apoiam e focam pautas democráticas, levantam o “fora governo” quando este aparece como dirigente indesejável, criticam o pagamento da dívida pública, centram críticas aos bancos e defendem uma ampla estatização (que nada tem a ver diretamente com socialismo, que é pela gestão operária das empresas, mas é positivo na medida em que destrói a ideia de que é sagrada a propriedade privada capitalista). Tal programa forma partidos pseudocomunistas, reformistas radicais e o centrismo ultraesquerdista. 

Em determinadas circunstâncias, a base social descrita[13] pode ser ganha para projetos reacionários ou mesmo fascistas que encarnam a ideia de um aparelho estatal fortalecido. São, portanto, um setor médio sob disputa, entre o operário e o burguês.

 

AS ELEIÇÕES

A eleição é a oportunidade de falar para muitos, de fazer agitação política. No entanto, é comum que partidos vermelhos sejam irresponsáveis no trato dessa tática. Por desvio sindicalista ou por baixo peso social, é recorrente a presença dos comunistas na eleição ser, no lugar de meio para ganhar audiência e simpatia, a fonte de uma visão popular negativa como taxados de seitas, deslocados da realidade ou folclóricos. A presença eleitoral acaba surtindo o efeito oposto ao almejado. O erro tem pelo menos uma origem: não parecer reformista e eleitoreiro perante a vanguarda radical; assim é produzido material de campanha para os ativistas ou para agrado da própria corrente, para sentir-se revolucionário.

Numa eleição, devemos aparecer como aqueles que mais levam a política a sério, aqueles que apresentam propostas práticas segundo o realismo da conjuntura. Mas o repetido desleixo estético, a linguagem do militantês, expressões desequilibradas, o uso desnecessário do humor, a defesa de propostas mais radicais possíveis etc. atrapalham o caminho ou isolam ainda mais a organização (ao ponto de perder a noção do quanto é marginal e ser considerado caricatural para a maioria). A rejeição indiferente das massas ocorre em grande medida por erro de apresentação dos partidos comunistas.

 

SOBRE A FORMAÇÃO DE QUADROS

Em várias empresas, como nos call centers, uma gerência mais ou menos permanente tem a noção geral do trabalho enquanto jovens da mais baixa patente são levados até ao esgotamento após meses de labor, então são demitidos e substituídos por novos trabalhadores. Algo semelhante ocorre em alguns partidos vermelhos. Uma velha guarda tem a visão geral, dirigem os postos de comando, e jovens disciplinados são usados até “quebrarem”, então são substituídos por uma nova leva de militantes juvenis. É assim que quadros mais velhos mantém suas influências, poderes e prestígios. O tarefismo e o praticismo imperam, exige-se mais do que pode ser dado de modo equilibrado pela militância; assim, de modo artificial, o partido parece mais forte do que de fato é (no movimento, nas finanças, etc.), mas guarda dentro de si uma constante estagnação, quando não crises internas.

De um lado, deve-se focar as poucas forças em poucas tarefas, setores e organismos (participar de poucos, de preferência apenas um etc.) e, de outro, deve haver uma verdadeira fixação constante pela formação de quadros capazes de levar para frente tarefas práticas e teóricas. Nada impede, por exemplo, um manual bastante completo, recheado com exemplos práticos, sobre gestão sindical. Aqui vale comparar com as igrejas neopetencostais, pois elas formam seus “líderes de células” com muito material gratuito, claro e de qualidade sobre oratória, organização, etc. Nos partidos de esquerda, na relação dirigentes e dirigidos ou entre militantes e vanguarda sem partido, existe uma tendência ao desejo de ser insubstituível, que se tenha dependência por certos quadros (que sem eles muitos trabalhos militantes definham). É possível que militantes “espertos demais” – pensam de forma autônoma, sabem elaborar política, discordam com propriedade – sejam informalmente excluídos, boicotados ou expulsos.

 

RELAÇÃO PARASITÁRIA

Os comunistas podem ser membros de um partido reformista por um curto período. Moreno alerta que o tempo de presença em outra organização deve ser algo em torno de três anos, mas a realidade pode forçar o adiamento da ruptura. Sobre, o argumento do argentino é certeiro: passar muitos anos dentro de uma organização de esquerda do sistema produz pressões ao perfil da corrente revolucionária e vícios que podem se tornar incuráveis (centrismo, etc.).

Ocorre que há correntes ditas revolucionárias que acabam se adaptando, focam em orbitar outro partido. Deixam de preparar as condições de crescer e, em seguida, compor um organismo independente. Passam a parasitar a organização reformista. Localizam-se à esquerda da direção majoritária, mas sem uma estratégia de tensionamento que produza uma positiva ruptura.

Na prática, embora escondam até de si, abandonam a ousadia de formar um poderoso partido de tipo bolchevique e conformam-se em ser uma pequena corrente “revolucionária” longe de maiores pretensões.

A tática do “entrismo”, compor por alguns anos outra organização, tem por objetivo ganhar principalmente jovens radicalizados para, no segundo momento, já como partido independente, focar com mais força no movimento operário. Mas o meio acaba se tornando um fim, degenera-se.

 

O JORNAL DE VANGUARDA

O desenvolvimento da TV, algo muito recente na história, e, depois, da internet tiraram do jornal impresso grande parte do espaço que tinha na sociedade. Antes, mesmo com a concorrência do rádio, a esquerda conseguia ter um grande público para sua impressa. Hoje, o jornal é, por enquanto, uma ferramenta para uso dos militantes e da vanguarda em todo o mundo, em parte reflexo das mudanças citadas. Quais alterações na realidade obrigam mudanças na comunicação partidária? O critério de ter no começo bons jornais no lugar de muitos deve ser traduzido em propostas e concepções de conjunto.

Em primeiro lugar, a informação é de fácil acesso, mas não a verdade. A impressa socialista precisa explicar a notícia no lugar de oferecê-la, por isso necessita mostrar os nexos interno da realidade naquela ação em aparência isolada do governo, etc. O leitor tem carência de lógica e fundamento, de saber o nexo causal dos fatos, que a realidade faça sentido.

Em segundo, os textos teóricos devem ser claros e, ao mesmo tempo, profundos o bastante. Os artigos de formação devem ter o tamanho necessário para o aprendizado, mais do quer dar “alguma noção” nevoenta sobre o assunto. Certos livretos introdutórios podem ser lançados em forma de jornais especiais.

Em terceiro, o tema da arte deve estar presente da forma popular e educativa. Poemas, imagem de quadros ou esculturas e contos centrais da história podem ser acompanhados de texto que explica o contexto histórico daquela obra. A educação estética é necessária junto à divulgação das produções.

Em quarto, a impressa na internet e, sempre que possível com ajuda de especialistas, o jornal devem explicar as conquistas históricas da ciência e divulgar, de maneira crítica, as vanguardas atuais do trabalho científico. À medida que um partido comunista cresce, tende a atrair alguns intelectuais e sábios que podem ajudar em tal tarefa em suas especialidades.

Em quinto, a parte política central da imprensa deve evitar as propostas mais radicais ou de transição quando a conjuntura ainda é imprópria. É preciso separar o que é defesa programática geral para a vanguarda daquilo que é feito para que os militantes agitem como exigências no movimento prático. O jornal deve guiar a ação e torna-se defeituoso quando sua leitura deixa de guiar os debates políticos onde se decide a ação. Se a impressa central é incapaz de ser um guia, uma base para a prática, então deixa de cumprir sua função.

Em sexto, a prática da militância deve ir a balanço no jornal. Por exemplo: uma greve exemplar deve ser relatada para servir de bom exemplo e educação para os demais militantes. Um importante processo que foi derrotado pela burocracia sindical também deve ir a balanço público sobre o que os revolucionários fariam se estivessem na direção daquele sindicato. Uma ação internacionalista destacável pode servir de inspiração para os demais membros da organização.

Em sétimo, deve-se apresentar o ponto de vista comunista daquilo que está na impressa, mas deve-se, também, leva temas e assuntos boicotados pela mídia burguesa.

Mesmo um jornal de massas pode ter uma regularidade semanal ou quinzenal, em vez de diário, ao focar na qualidade das notícias e do material.

 

O CLUBISMO

Nahuel Moreno foi um dos que observaram que os partidos tendem a degenerar em clubes. Como o mundo é o cenário da brutalidade, quer-se evitar o problema vivendo dentro da organização. Quanto é uma tendência forte, degenera o organismo militante em uma seita apenas com aparência revolucionária. É difícil encontrar um remédio para o problema. Ter a clareza de que é uma tendência comum ajuda na precaução ao empurrar os organismos partidários para a ação efetiva, evitar excesso de atividades internas artificiais, etc.

 

O PARTIDO EM GRANDES PAÍSES

Em países continentais – Brasil, China, EUA, Rússia, Índia –, as regionais ganham importância para a dinâmica política dos partidos. É preciso que as direções de cada estado (ou província ,etc.) elevem-se à posição de direções “nacionais” daquela região. Assim como um partido internacional oferece certa autonomia aos partidos nacionais para que aprendam e elevem-se, algo semelhante deve ser feito em grandes países. A política geral para a nação deve ser separada dos encaminhamentos que variam de local a local; uma política para eleição municipal, por exemplo, pode seguir certa tática em uma cidade do sul e outra completamente diferente em outra no nordeste.

As direções regionais terão de fato que obter caráter de direção nacional – com eleição de Comitê Central, etc. – com o acúmulo de experiência e influência social, isto é, deverão ter a qualidade militante que um partido nacional exige. Isto era impensável no partido Bolchevique porque, além de pequeno quando ilegal durante o poder czarista, havia apenas duas grandes cidades na Rússia no início do século XX; a urbanidade era também menor, relativo aos nossos dias, nos países avançados.

 

A ASSIM CHAMADA CRISE DE DIREÇÃO REVOLUCIONÁRIA

No Manifesto Comunista do século XX, o Programa de Transição, Trotsky afirma que a crise da humanidade pode ser sintetizada pela crise da direção revolucionária do proletariado. Quase 100 anos depois do início de tal “crise”, sua permanência deve ser vista por nós como normalidade, como regra.

Vários partidos trotskystas usam tal frase, que há uma crise de direção, como certo mantra explicativo. Mas o normal é que os partidos revolucionários, por serem o que são, sejam minoria, às vezes, por décadas no movimento de massas e nas eleições. Apenas durante situações revolucionárias ou, com muitos acertos, nas pré-revolucionárias, um partido antissistema pode ser de fato ouvido, ter muitos militantes, ser ou quase ser maioria. É preciso uma dura crise econômica, social e política para que a maior parte dos assalariados, em especial a classe operária, veja os radicais como a real alternativa para a solução de seus problemas. Se um partido dito comunista tem enorme peso social numa situação não revolucionária, reacionária ou contrarrevolucionária há que se pergunta se de fato é uma organização subversiva (caso dos PCs e PSs na Europa antes da fase neoliberal, organizações centristas e reformistas).

O comum são as organizações de fato vermelhas serem pequenas por muito tempo, no máximo com certa influência sobre a vanguarda. A figura do burocrata sindical e partidário ou do militante honesto e equivocado nos seus rumos impera por muitos anos, talvez por décadas. Portanto, a janela de oportunidade dos partidos leninistas é aberta em poucos períodos, no amadurecer de momentos decisivos; até lá, devem aprender a ser minoria, tanto odiar quanto perceber a própria marginalidade e construir as condições para fundar um partido marxista de massas. Porém ser minoritário é diferente de ser marginal; um partido de vanguarda sólido ou com influência minoritária nas massas pode ser consolidado nas mais variadas conjunturas evitando a degeneração das correntes em seitas políticas.

 

O TEATRALISMO MILITANTE[14]

Em especial nos momentos de recuo das lutas, surge um hábito que corrói no subterrâneo um partido leninista: a ação artificial, fictícia. Ocupa-se em demasia os militantes com palestras ou “debates” que são desnecessários, não avançam a compreensão geral da realidade, apenas marcam datas tradicionais e são obrigatórios à militância.

A constância de ações artificiais leva inconscientemente ao afastamento de militantes dos partidos e da prática política. O exemplo ajuda a compreender o fenômeno. Panfletar em frente a uma fábrica pode ser um ato de fundo inútil; se o panfleto tem uma mensagem deslocada da conjuntura concreta, se não há acompanhamento constante daquela empresa, se inexiste um projeto por detrás daquela panfletagem, então a atitude “revolucionária” torna-se de fato limitada quando não nula. Protestos de vanguarda podem ter a mesmo sentido enganoso, tornando-se pseudoprotestos.

O teatralismo tende a ser erro gerado por longo refluxo das lutas – situações não revolucionárias, reacionárias, contrarrevolucionárias –, porém pode “fazer escola” e permanecer mesmo em momentos de maior luta de classes como um vício de rotina. Em geral, a existência em parte artificial da organização política revela em tais atos.

Um trabalho constante com finalidade clara, um curso profundo sobre um tema imprescindível, etc. são necessidades para consolidar militantes. É uma necessidade tanto do movimento revolucionário quanto da psique da sua vanguarda. Mover a militância por marcha forçada de atividades tira o sentido da mais importante tarefa que alguém pode assumir em nossa época e é uma forma de alienação.

 

A MORAL MILITANTE

O partido revolucionário deve ser um local respirável, diferente do ambiente de trabalho. É preciso uma relação de camaradagem que permita a presença “desarmada” dos militantes, onde o temor de manobras e jogos seja quase inexistente. Pode acontecer uma “facilitação do caminho” por meio de todo tipo de agrados, reposicionamento de militantes, artifícios psicológicos, etc. Esse tipo de postura deve ser severamente evitado.

Peguemos exemplos práticos. A direção pode por si escolher quem será os novos dirigentes preparando militantes específicos; quando chega a hora de votar a nova direção, os militantes apenas reafirmam, em um teatro de democracia partidária, a composição dirigente escolhida pelos quadros antecipadamente; o correto seria a base decidir desde o começo quem seria preparado para os cargos ou renovação geracional. O que parece uma questão administrativa pura revela-se uma questão também moral. Outro exemplo: dirigentes podem fazer constantes autocríticas, o que é correto, para manobrar, para manter-se nos seus postos e evitar maior dureza da base sobre a direção.

Temas como a sinceridade, o respeito, a disciplina são tratados nos debates de moral; o que pode faltar são as sinuosidades, as invisibilidades difíceis de acusar e provar. Em geral, se os membros de um partido adotam uma moralidade porca, muitas vezes disfarçada, é porque mudanças de fundo já ocorreram na organização e se expressam na prática.

A moral, tomada de modo dialético, passa longe de ser uma receita de conduta, mas há um fim que a norteia nas variadas, até opostas, decisões: destruir a alienação. A ação militante deve ter por base diminuir, ainda que por mediações, o grau de alienação dos membros partidários, da classe trabalhadora e da sociedade. Todos os militantes devem ter claro que esta é a tarefa central a partir da qual elaboramos táticas e tomamos medidas desalienantes. Bons resultados em si baseados em meios alienantes escondem na aparência uma derrota essencial.

O marxismo é, entre outras coisas, uma concepção moral. A exploração é um conceito sociológico, objetivo, mas também é um problema de moral, um tipo de imoralidade, alienação, domínio do homem sobre o homem, um roubo, ainda que inevitável em certas épocas e circunstâncias.

É moral, por exemplo, a concepção de que só é verdadeiramente marxista quem apoia, mesmo que criticamente, apenas, e somente apenas, governos baseados em outro Estado, socialista, com democracia de tipo soviética, direta e participativa. Quem apoia governos “progressistas”, apenas “anti-imperialistas”, burocráticos “vermelhos”, “socialistas” que não destroem o Estado burguês está numa posição imoral – não é marxista, mas centrista, está entre a reformar e a revolução.

Para a causa do fim da alienação social, é moral a disciplina militante, mesmo que moderada e temperada pela conjuntura, e imoral o desleixo; é moral a liberdade de defender posições dentro do partido, imoral impedir artificialmente a polêmica; é moral mentir ao patrão para ganhar uma luta sindical, imoral mentir aos trabalhadores para ganhar uma votação em assembleia. A moral, como parte do meio para o fim da alienação, tem um recorte de classe.

A moral comunista nunca é elaborada por fora, pelo mero pensar correto. É uma necessidade objetiva da luta, nunca um valor em si mesmo ou um imperativo categórico. Para isso, os militantes devem estar sob circunstâncias em que precisem de tais posturas diante da vida. Mas isso não diminui a consideração formal e a decisão na hora de seguir a moralidade, pois somos o tempo todo, inconsciente e conscientemente, objetiva e subjetivamente, educados pelo capitalismo para certa moral contra a qual devemos fazer uma contrapressão consciente, constante e imperfeita.

Os comunistas na direção de um sindicato, por exemplo, fazem uma festa para a categoria, para a base, porque o capital falha em garantir o lazer, dificulta-o em nome do lucro, logo tomamos a medida desalienante de fazer um encontro festivo, por exemplo. O combate contra a alienação dá sentido real claro aos militantes sobre a natureza de suas ações, como e por qual motivo agir.

 

A FORMAÇÃO TEÓRICA

É uma obviedade que a formação militante deve incluir uma sólida coluna teórica, mas o desprezo pela teoria costuma ser uma constante inconsciente ou semiconsciente nos partidos. Para fins de exemplo, uma equipe de dirigentes deve ser formada por gente que alia estudo e prática, que supere a oposição que remete à divisão, alienação, entre trabalho manual e intelectual; precisa ser critério de balanço dos militantes se são responsáveis ou irresponsáveis para com o estudo. Em grupos de direção intermediários, pode ser interessante agregar aquele membro pouco especial em outras tarefas, mas que tem um domínio acima da média da teoria e do raciocínio dialético (outro problema surge se militantes de tal perfil tornam-se importante minoria, maioria ou dominem os órgãos dirigentes).

De tal modo costuma-se estar aquém do mínimo exigido aos quadros que poucos levam em conta que uma formação sólida de dirigentes médios deve incluir um básico domínio da ciência militar. O centrismo estalinista foi, repetidas vezes, mais ciente da necessidade de dominar aspectos práticos da segurança e aspectos teóricos da arte de combate; isso se dá em parte pela substituição da posição de classe por uma interpretação geopolítica, lutas classistas por luta entre Estados, da realidade[15] e em parte pela ligação com as ditaduras nos Estados operários burocratizados no século XX (que ofereciam treinamento, etc.). No trotskismo, raro ver-se a publicação dos escritos militares completos de Trotsky, um dos maiores dirigentes militares da história, e, apesar da origem da corrente no fundador do Exército Vermelho, o tema da formação teórica militar é marginal, senão inexistente.

É preciso evitar que um militante mais afeito ao assunto ou uma equipe passe a centralizar o estudo militar. Como em todo partido revolucionário com algum peso social, há infiltrados na organização ou monitoramento estatal e bastaria uma repressão sobre militantes selecionados para quebrar a “coluna militar” do partido. Por isso a solução é diluir tal responsabilidade de estudo entre todos os quadros consolidados; será necessidade também da própria revolução. Todos os dirigentes devem ter aprendizado obrigatório na arte da guerra.

***

Deve-se evitar que um partido torne-se rotineiro grupo de debates intelectuais e, ao mesmo tempo, também precisa ser a fonte de novos grandes pensadores, atrair e formar as melhores mentes. A organização deve dar importantes e vitais aportes às ciências humanas (se possível, igualmente nas ciências naturais) por meio de pesquisas profundas e necessárias à própria compreensão da realidade, que é o cenário da prática militante. Intelectuais orgânicos, acadêmicos, integrantes quadros devem ter a responsabilidade de investigar o que interessa à plena compreensão do mundo. É necessário fazer um contraponto à degeneração científica (pós-modernismo, positivismo, pesquisas fictícias, etc.) das universidades.[16]

 

MILITÂNCIA E CINISMO

Na grande obra “O Homem que amava os cachorros” de Leonardo Padura, a narrativa demonstra o processo de transformação de um revolucionário em um cínico, embora negue isso a si próprio, caso do assassino de Trotsky, Ramón Mercader. No caso da personagem, percebeu que seus dirigentes eram oportunistas, mas, se rompesse com eles, passaria, no mínimo, por sérias dificuldades – então preferia uma “alucinação negativa” ao desconsiderar para si tal conclusão.  Esse foi o caso de grandes dirigentes do partido Bolchevique quando este degenerou sob liderança de Stalin. Apesar de suas críticas duras e corretas, vários quadros recuaram, até pedindo perdão por seus “erros”, para evitar o isolamento social e político, para manter sua renda, para não morrer, para evitar o exílio. Não é incomum, ainda hoje, o cinismo tomar conta dos militantes de origem socialista. O antigo e degenerado PCB, tinha a cultura de isolar, senão punir, certos ex-militantes, fazendo estes sofrerem pesadamente no ostracismo ou mesmo recuarem pedindo “perdão”, por meio da proibição de sequer falar com aquele membro expulso. Isso faz parte da tradição estalinista. Quem, por outro lado passou pelo peso de fatos como isolamento, fará de tudo para se adaptar, no lugar de aceitar um novo ostracismo advindo de posições corretas; quem bebeu o primeiro café com açúcar, nuca mais aceitou seu gosto puro amargo. Ocorre o mesmo que as seitas religiosas com táticas de manipulação para dar vida a um militante cínico, teatralmente comunista, como o pastor degenerado decora toda a bíblia e vive um personagem público.

 

A NECESSÁRIA OUSADIA

A queda do socialismo real teve um impacto poderoso sobre a subjetividade dos velhos e novos revolucionários. Os antigos militantes eram ousados, tinham altíssimo espírito de sacrifício, pensavam enormemente, era muito mais natural uma disciplina férrea. Não tem sido assim com as gerações atuais. A rotina sindical, o teatralismo do radicalismo, etc. tomam conta da militância. Acreditam na possibilidade e na necessidade socialista, porém não tanto nem tão rápido… Assim, faltam-nos grandes líderes como se o tempo dos heróis, das conspirações, das perseguições, etc. fossem coisa de um passado recente findado, de uma barbárie que foi superada pela civilização (pela democracia, etc.). Até a produção teórica decai em elaborações apenas parciais, não qualitativas.

Para resolver isso, ajuda tomar consciência de tal psicologismo e treinar-se para a ousadia, para a grandeza, para um tipo de megalomania racional. É necessário pensar, agir e sonhar grandemente. Mas isso somente será resolvido de todo com grandes exemplos de revoluções vitoriosas e a própria pressão das circunstâncias (ditaduras, etc.).

 

A HORA DO TROTSKYSMO?

Muitos trotskystas pensaram que a queda do chamado socialismo real e as revoluções antirregime no Leste Europeu abriram caminho para o trotskysmo. Uma derrota prevista por Trotsky, a restauração do capitalismo, pesou e pesa de modo negativo entre as massas, mas dá certa razão histórica entre a vanguarda. A situação seria diferente se as lutas antiburocráticas, que derrubaram o aparato estalinista, desemborcassem em novos Estados operários revolucionários, com democracia socialista. Não foi o caso. A pergunta é, então, se pelo menos se abriu a época dos verdadeiros leninistas.

As revoluções socialistas da segunda metade do século XX foram camponesas enquanto o trotskysmo tem seu programa ligado ao movimento operário. Hoje, porém, as revoluções podem ter liderança operária, em principal as primeiras, mas tendem também a ter peso popular urbano. Isso significa que ou os trotskistas atualizam seus programas ou perderão a oportunidade histórica. Se lhes faltar uma compreensão correta de nossa época, a prática será limitada.

Surgiram em quase todos os países com alguma real importância pequenos partidos que se reivindicam trotskistas. Mas há um problema acumulado em silêncio: desde a década de 1990, houve um recuo das lutas e da força ideológica do socialismo, então os partidos passaram por períodos mais ou menos reacionários que levaram as organizações à rotina, ao defensismo, ao abandono da teoria[17] e à marginalidade. Isso cobra um preço. Quando as crises mundiais começam a balançar o sistema, os partidários oficiais do comunismo encontram-se educados em outro espírito e adquiriram inúmeros vícios. A ave acostumada a voos rasos é incapaz de alcançar grandes alturas. Os partidos vermelhos, portanto, deverão estar dispostos a duras reformas internas e, talvez em muitos casos, suportar rupturas.  Neste sentido, o terreno, as conjunturas, e a crise sistêmica pressionarão de modo positivo pela autorrenovação do bolchevismo.

Para fins de duro debate programático, campanhas internacionais conjuntas, tarefas unitárias em alguns países (como, por exemplo, a formação de um partido trabalhista e popular nos EUA); os principais partidos internacionais trotskystas – LIT, TMI, ASI –, que adotam o centralismo democrático e se diferenciam da degenerada SU, podem formar uma federação de internacionais, uma frente única revolucionária internacional a partir de certo programa mínimo revolucionário. Tal unidade deve deixar claro que não é a IV Internacional reconstruída, que é respeitada a independência das diferentes correntes, com a autoconstrução enquanto meta legítima, e que uma unificação só poderá surgir após a tomada revolucionária do poder em algum país.

 

 J.P.






Bibliografia

Arcary, V. (11 de 08 de 2021). 11 de agosto de 1992: o impeachment de Fernando Collor. Acesso em 14 de 08 de 2021, disponível em Brasil 247: https://www.brasil247.com/blog/11-de-agosto-de-1992-o-impeachment-de-fernando-collor?fbclid=IwAR0ou3gwI1OYOrm6hjCcODvmvDNdZHrnRwoigTfkTwHHNzJgQ4Lksd7RUn8

Hernández, M. (22 de 12 de 2015). “1975 versus 2015”: Um passado e um presente para refletir. Acesso em 11 de 02 de 2020, disponível em Teoria e Revolução: http://teoriaerevolucao.pstu.org.br/1975-versus-2015-um-passado-e-um-presente-para-refletir/

Lenin, V. (01 de 04 de 2020). Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Acesso em 2021 de 08 de 12, disponível em MIA - Arquivo Marxista na Internet: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm

LIT-QI. (19 de 08 de 2016). Resolução política sobre América Latina do XII Congresso da LIT-QI. Acesso em 19 de 09 de 2020, disponível em LITCI: https://litci.org/pt/declaracao-lit-qi/resolucao-politica-sobre-america-latina-do-xii-congresso-da-lit-qi/

Marx, K., & Engels, F. (2010). Luta de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo.

Moreno, N. (05 de 2001). ¿Partido mandelista o partido leninista? Acesso em 11 de 02 de 2020, disponível em Marxists: https://www.marxists.org/espanol/moreno/pmopl/index.htm

Moreno, N. (11 de 2001). TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro partido y de nuestra internacional. Acesso em 11 de 02 de 2020, disponível em Marxists: https://www.marxists.org/espanol/moreno/actual/apt_4.htm#t38

Trotsky, L. (23 de 11 de 2002). 16. Interdependência Dialética Entre Fins e Meios. Acesso em 03 de 07 de 2020, disponível em Mia - arquivo marxista na internet: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/moral/cap02.htm#cap16

Trotsky, L. (2010). Stalin, o grande organizador de derrotas. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann. 



[1] Valério Arcary demonstra em palestra que os organismos internos do PT, os de base em especial, tinham baixíssima presença de trabalhadores, sendo hegemonizados por jovens militantes (Arcary, De Jango a Lula, 2012).

[2] Como no Brasil grandes mudanças aconteceram pelo alto, pela superestrutura – fim da condição de colônia pela vinda da família real, independência, fim da escravidão por decreto, início da república por golpe, modernização por governo ditatorial de Getúlio, queda da ditadura militar por acordos e gradualmente –, isso afeta a mentalidade dos dirigentes partidários, que caem no superestruturalismo. A questão central, por exemplo, é ganhar o sindicato no tudo ou nada, quando o foco deveria ser ganhar a consciência da base no local de trabalho.

[3] Formalmente, um “mandelismo”, como criticado por Moreno em sua obra O Partido e a Revolução.

[4] Eduardo Almeida, hoje, infelizmente, apesar de seu balanço real, dirigente da LIT, afirma: “Com o impeachment, não houve nenhuma mudança em relação ao regime democrático burguês. Se houvesse realmente um golpe, teria havido uma mudança para um regime repressor, para uma ditadura. Mas isso não ocorreu.” (Almeida, 2021) Não saber diferenciar um golpe reacionário de um contrarrevolucionário, não saber medir – eis a qualidade dos quadros do PSTU. A LIT colocou-se, corretamente, no caminho aposto ao “critério” de Eduardo almeida, contra os golpes na Bolívia, Paraguai e Honduras, no nosso subcontinente, mesmo sem mudança total de regime, sem novo “regime repressor” – porém não soube ler internacionalmente a realidade, o fato de que a crise de 2008 abriu uma nova tendência, expressa também em golpes parciais, reacionários.

[5] Almeida continua: “A maioria da burguesia, que se deu muito bem com o PT por 14 anos, rompeu com Dilma e apoiou o impeachment. O PT já não tinha bases para conseguir implementar os novos planos de reformas que a burguesia queria. Assim, a burguesia aprovou impeachment e colocou o vice-presidente de Dilma, Michel Temer, no poder.”  (Idem) Ora, se o golpe visava acelerar e até permitir ataques contra os trabalhadores, logo deveríamos ser contra ele… O autor citado responde: “Naquele momento, o PSTU, corretamente, não saiu em defesa do governo burguês de Dilma, nem apoiou a manobra para empossar Temer, defendendo ‘Fora Todos Eles!’.” Veja-se o grau artificial de impressionismo! A palavra de ordem “Fora todos eles!” serviu apenas para evitar assumir qualquer responsabilidade real na luta de classes, uma consigna inútil para aquela conjuntura, uma proposta – bastante duvidosa até para a revolução – apenas (insistimos, apenas) para situações revolucionárias, nem mais nem menos, apresentada de modo ultraesquerdista numa situação em que ela não cabia e em que ela não mobilizaria a classe trabalhadora. É preciso destacar que aí há um vestígio da política errada LIT, o “nem-nem”. Em vez de elaborar uma proposta real, positiva, a direção da internacional muitas vezes cai em “nem isto nem aquilo”, “nem Assad nem imperialismo”, “nem golpe nem roubo eleitoral”, etc. Isso é uma forma pobre, “fácil” e equivocada de elaborar política, deve ser abandonada, pois nada propõe de fato (e há que se propor de acordo com as circunstâncias, sem políticas mais radicais do que a conjuntura como forma de fugir da responsabilidade). Outro erro da LIT, semelhante: a metáfora do “queimou um fusível”; é uma retórica sofística, pois deixa entender que há uma quantidade limitada de fusíveis, até a hora final finalmente… Mas o capital, com seus poderosos meios, pode sempre produzir novas lideranças artificiais; por isso, a queda de um governante no Egito pode bem ser golpe dos militares, não uma vitória, assim como a queda da Dilma não é, também, “queimar um fusível”.

[6] Aí é possível ver como a classe dominante age enquanto máfia, escondendo o que está de fato em jogo. Após o golpe, o vice, Temer, assumiu o governo, sem cair junto à Dilma por “impedimento”; então, para garantir que ele fizesse todos os ataques possíveis contra a classe trabalhadora, a justiça impediu que ele fosse capaz de se reeleger, ou seja, que não buscasse apoio popular. A possibilidade de reeleição, porque o governo quer manter-se, atrasa os ataques sociais; isso foi evitado no governo golpista por ação burguesa por detrás do palco político.

[7] Os operários também dão grande importância ao uso das palavras, mas é algo típico da classe média, cujo trabalho dá grande peso ao discurso ou há baixa ação prática no cotidiano, diferente de entre o proletariado. O caráter de classe dos membros do PSTU, pertencentes aos setores médios, leva a chamar “um quadro de destaque” e “um grande talento” aqueles bons oradores.

[8]             Apesar de seus erros na aplicação e teorização do centralismo democrático, Moreno soube perceber que a grande diferença dos reais comunistas para com resto da esquerda é a defesa intransigente da democracia operária nos sindicatos, nos partidos operários e nos Estados operários.

[9] Para que se evite pensar o problema do regime interno como causa única e mãe de todas as soluções, destacamos, em nossa avaliação, uma das razões: os partidos da LIT são formados por estudantes e setores médios (funcionários públicos, etc.), crescendo dentro de tais camadas sociais, gerando permanente desencaixe entre programa e perfil social dos seus membros.

Um regime correto, ao menos formalmente, nunca impediu por si, sozinho, a degeneração de partidos.

[10]           Parte desse debate inclui a presença de militantes que trabalham para os sindicatos ou o partido e mandatos parlamentares. Não há espaço para debatermos este ponto como se deveria. Parte da degeneração de organizações, esses funcionários dos aparatos têm seu nível de vida e emprego – e mesmo seu prestígio pessoal – dependente se o partido no qual militam dirige ou não aquele sindicato, onde trabalha, se o parlamentar revolucionário (no terreno do inimigo) se reelege ou não etc. Vemos que é um setor, por mais honesta sua intenção, tendente a degenerar-se e degenerar uma organização comunista em centrismo ou reformismo. Vetar que tenha direitos a cargos dirigentes e de direção política e também acima das direções intermediárias, além de três anos de aspirância (com deveres, mas sem direitos, como a de voto interno) são contrapressões mínimas necessárias.  Retomaremos brevemente este assunto no próximo capítulo.

[11] Para este subcapítulo, por analogia, fiquemos com a observação Dialética de Hegel em sua grande Lógica: "Assim também estados obtém um caráter qualitativamente diverso pela sua diferença de grandeza, se se assume que o restante fica igual. Leis e constituição se tornam algo outro, se a extensão do Estado e o valor numérico dos cidadãos se ampliam. O Estado tem uma medida de sua grandeza, [e uma vez que é] levado para além dela, ele inevitavelmente se destrói sob a mesma constituição que constituiria sua sorte e sua força em uma extensão apenas diferente." (Hegel G. W., 2016, pp. 399, 400) Logo, o aumento de membros, por exemplo, exige adaptações nas regras de um partido, anulando a fixidez de Moreno sobre o regime partidário, explicando em parte as crises dos partidos morenistas quando crescem.

[12] Façamos breve debate lateral. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx afirma: "O comunismo é a forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não constitui em si mesmo o objetivo da evolução humana – a forma da sociedade humana." (Marx, Manuscritos econômicos filosóficos, 2011, p. 148) Assim encerra subcapítulo A Propriedade Privada e o Comunismo.  Damos outra resposta. A humanidade, corrijamos o mestre, por longa autotransição, desdobra-se do em si ao para si. O processo histórico de humanização da humanidade ocorre, portanto, de modo contraditório, pela separação e oposição dos homens, pela desumanização. Se por meio do trabalho o homem modifica a natureza e a si; se, por tal modo o desenvolvimento, sua capacidade de transformar e dominar a natureza torna-se necessidade incontornável e irresistível; se todo sistema econômico-social alcança pontos nodais ao se desenvolver desafiando saltos qualitativos; se as necessidades humanas são “cumulativas e irresistíveis” (Marx); se, enfim, a produtividade crescente do trabalho perpassa toda nossa história; então o homem encaminha-se, a humanidade encaminha-se inconsciente (teleologia inconsciente) e, depois, em certo grau de desenvolvimento, quando o igualitarismo começa a estar latente, conscientemente para o comunismo. Por outro lado, não é uma teleologia determinista, dada, inevitável, pois fatores não sociais podem impedir – uma catástrofe de fato natural sobre a qual o homem não pode reagir, etc. –; o ponto nodal para o comunismo, sabe-se hoje, por ser o ponto de altíssimo desenvolvimento, mas destrutivo, pode antes nos destruir.

[13] O operário da empresa estatal pendula entre a concepção proletária e a do funcionalismo.

[14] A primeira a observar tal fenômeno foi, se bem recordamos, Maria Rita Kehl. Infelizmente, não reencontramos a entrevista aonde ela defende tal ideia. Tal registro visa evitar acusação de plágio.

[15] O erro oposto, desconsiderar o peso da geopolítica na análise, também ocorre.

[16] Tal consideração foi feita, em primeiro, pelo marxista Santiago Marimbondo de modo informal.

[17] Cumpre destacar que a teoria permite também aprender com o exemplo alheio, dispensando ter de passar por longuíssimas experiências para acertar. A prática completa o ensinamento, mas aprender com o outro, com a história do movimento socialista, dispensa começar tudo quase do zero; é o sinal mínimo de sabedoria necessária.