sábado, 23 de outubro de 2021

Qual a causa da queda do investimento? Crítica a Michael Roberts.

 Qual a causa da queda do investimento? Crítica a Michael Roberts.

 

O texto a seguir é um fragmento do meu livro inédito “A crise sistêmica”. Nele, abaixo, estará clara uma concepção dialética de causalidade na economia, explicando o problema posto no título desta postagem.

*** 

Observemos, por sua vez, o efeito da queda da taxa sobre a produção:

 

“Se cai a taxa de lucro, o capital se torna tenso, o que transparece no propósito de cada capitalista de reduzir, com melhores métodos etc., o valor individual de suas mercadorias abaixo do valor médio social, e assim fazer um lucro extra, na base do preço estabelecido pelo mercado; ocorrerá ainda especulação geralmente favorecida pelas tentativas apaixonadas de experimentar novos métodos de produção, novos investimentos de capital, novas aventuras, a fim de obter um lucro extra qualquer, que não dependa da média geral e a ultrapasse.” (Marx, O Capital III, Civil. Brasileira, p. 338, grifo nosso.)

 

 Assim, a superestrutura financeira é o meio para reação contra a queda da taxa ao prover uma massa de recursos para investimentos. Uma superprodução crônica é gestada no interior do capitalismo, isto é, surge no seio do capital, por meio de suas leis inerentes, a base da produção socialista. Ao mesmo tempo, a queda dessa taxa de lucro na produção leva à queda da taxa de juros, pois este tira seu lucro em parte do lucro daquele; surge a tendência à morte da taxa de juros em todo o mundo, como as taxas negativas operadas por governos imperialistas (Botelho, 2019). Juros baixos, por sua vez, servem de estímulos para investimentos em ações, formando bolhas de capital fictício. Por outro, em inúmeros setores a queda da taxa de lucro desestimula novos investimentos – principalmente onde há monopólio e em países de maior custo de produção – e leva, por isso, a investimentos de curto prazo e garantidos no mercado financeiro, também estimulando a inflação da forma fictícia de capital (Roberts M. , Produtividade, investimento e lucratividade, 2019). A pressão pela renovação técnica citada acima mantém-se, mas mediada e reduzida pela superprodução crônica latente (o capitalismo já não desenvolve com o fervor de antes as forças de produção). Assim, a mesma lei social que pressiona pela deflação dos preços das mercadorias leva à hiperinflação do capital fictício. Eis a contradição – pois, em última instância, este tira seu lucro, seu valor, daquelas, que são frutos do trabalho manual.

Reforçamos o capítulo anterior. Cada vez mais, uma renovação técnica da produção aumenta os custos com maquinário e com matéria-prima (pois maior produtividade exige mais insumos). Por outro lado, empregam-se poucos trabalhadores com custo unitário do trabalho baixo, ainda que os salários individuais sejam altos (a tendência, em geral, é de queda na remuneração). Essa combinação faz com que não compense substituir operários por máquinas já que o custo de produzir mercadorias seria maior, não menor. O custo por razão da substituição seria maior, em muitos casos, do que o custo com funcionários. Daí, também, a redução do investimento na produção voltado à renovação tecnológica e novas empresas. A atual significativa queda da taxa de lucro é insuficiente, embora essencial, para explicar o fenômeno do baixo investimento. A própria inflação artificial, por meio da moeda fiduciária, de nossa época, desestimula investimentos, pois 1) derruba os salários reais; 2)inflaciona o preço das mercadorias – é um imposto inflacionário sobre os pobres para os ricos. Antes, em geral, o aumento dos preços causava o aumento da quantidade de dinheiro em circulação; agora, ao contrário, em geral, o aumento da quantidade de dinheiro aumenta os preços. Para sentirmos o peso qualitativo do acréscimo de moeda na inflação, desde o fim do lastro em ouro, dispomos o gráfico a seguir:

 

GRÁFICO 4


Fonte: (Shaaikh apud Prado, A ameaça de estagflação, 2021)

 

Ademais, vejamos. Marx demonstra no livro III d’O Capital que a queda da taxa de lucro estimula, faz, a concorrência, logo impulsionando investimento (ainda que atrasado pela crise – mas Marx também afirma que a crise também tem como consequência, ainda que, complementamos, num “segundo momento”, novo investimento para substituir as máquinas). Por outro lado, os oligopólios atuais têm muito mais condições de fazer investimentos do que na livre concorrência anterior com empresas menores, ainda que seja alto investimento apenas em termos absolutos[1]. A tese de Roberts não se sustenta bem, ao menos não sozinha, pois é apenas um pé da cadeira. E, acrescentamos, o investimento nos países mais ou menos maduros para o socialismo, focos teóricos de Roberts, cai também porque o investimento transfere-se para países atrasados, onde é mais fácil explorar e há mercado consumidor novo e potencial.

É famosa a passagem d’O Capital I em que Marx demonstra o começo do valor como capital, como valor que se autovaloriza na produção, quando o candidato a capitalista tem uma quantidade mínima exigida de valor na forma de dinheiro para começar o negócio, para explorar força de trabalho, pagando por matérias-primas, instalações e trabalhadores. O mínimo exigido para iniciar um empreendimento é um mínimo dado historicamente (Lukács, 2018) – e ele cresce com o passar do tempo, com o desenvolvimento do capitalismo. Hoje, o montante de valor na forma de dinheiro exigido pelo capital para investir é imenso, dificultando abrir uma empresa, concentrando, assim, o mercado em poucas mãos. Isso tem sua importância: o Estado socialista, ao concentrar recursos e empresas para si, terá condições de impulsionar a produção, de investir; como sintoma deste elemento, desde o século XX, o peso do Estado burguês no investimento deu um salto porque era preciso muitos recursos, e lucro apenas algumas décadas ou anos, para fazer certos empreendimentos – ou os capitalistas não tinham meios que bastassem ou não queriam correr o risco. Temos, então, mais um fator para a redução do investimento: o alto valor mínimo a se investir hoje e com um risco, por isso, alto.

No próximo capítulo, veremos que há épocas, como a nossa, onde as crises são mais duras e/ou mais longas e os crescimentos são mais curtos e/ou frágeis; para nosso comentário, devemos incluir a fase transição, anterior, onde as crises são mais duras, mas com algum crescimento, uma estagnação ou quase estagnação. Pois bem; isso significa que, no médio e longo prazos, o investimento caia. Embora a saída das crises inclua a adoção de novo maquinário, por exemplo, o que dá condições para mais e novas crises, uma realidade por muito tempo tensa econômica, social e politicamente empurra para redução do investimento.

Vejamos outro fator central para o investimento em queda. No livro III d’O Capital, Marx elaborou a hipótese de que, com a alta queda da taxa de lucro, a massa altíssima de lucro poderia, no futuro, mais do que compensar a queda dessa mesma taxa, logo o investimento desabaria – tal previsão não se confirmou, ao menos ainda, em absoluto, mas tem verdade relativa hoje, tendencial, pois a existência de bilionários e grandes milionários, com seus oligopólios e monopólios, tem duro efeito contraestimulante ao investimento. É um caso, um exemplo, como nos demais pontos, em que a permanência de relações de produção, com suas relações superestruturais e jurídicas, impede ou atrasa o desenvolvimento das forças de produção.

Como as empresas são grandes demais para quebrarem, como suas falências seria um risco ao próprio sistema, os governos – incluso defendendo a própria governabilidade – atuam para mantê-las em parte artificialmente, logo há um excesso de capital, o que desestimula investir (Prado, A ameaça de estagflação, 2021).

Outro motivo para a queda do investimento observa-se ao olharmos as mercadorias. O primeiro papel do capitalismo foi mecanizar a produção de artigos feitos artesanalmente, aumentando a escala. Mas logo ele teve de usar os avanços da ciência para criar uma quantidade enorme de novos produtos, de inéditas mercadorias. Isso aconteceu claramente no século XX, mas esgotou-se na história recente (por outro lado, inventar algo novo é cada vez menos artesanal e individual, exigindo mais recursos e esforços). Aglutinam-se valores de uso, diminui-se o tamanho do produto quando possível, troca-se a matéria do valor de uso, etc.; mas criar uma quantidade nova de tipos de mercadorias, de novas necessidades sociais, não ocorre como antes (o que estimula, em contratendência, aglutinação, etc.). Isso também limita o investimento.

A queda da taxa de lucro aos atuais níveis é a base do conhecido como neoliberalismo. A privatização de empresas estatais, por exemplo, produziu um pseudoinvestimento capaz de aumentar a massa de lucro da burguesia (desestímulo ao investimento real). A liberalização financeira foi a saída final, a contragosto dos próprios governos de início, para lidar com a crise sistêmica. Criando massa maior de desempregados, o poder burguês quis recuperar a lucratividade, aumentar o mais-valor com redução dos salários, direitos e aumentando a intensidade e, quando possível, a extensividade da jornada de trabalho. Para isso, pesa a entrada da Ásia com produtos mais baratos também por baixos direitos sociais pressionando a “austeridade”, a retirada de direitos no ocidente se quer concorrer no mercado mundial.

Listamos todos os elementos centrais para a tendência de queda do investimento. Tais elementos, tomados em isolado, são tendências com contratendências; a mesma causa comum, o alto desenvolvimento do capitalismo, produz efeitos opostos. A verdade desta queda está na combinação dos elementos, que faz imperar as tendências; assim, por exemplo, a inflação artificial, em si, tanto desestimula quanto estimula investir, porém a primeira, tendência, impõe-se porque está combinada com a exigência prévia de altíssimos recursos mínimos para investir.


Bibliografia

Botelho, M. L. (29 de 11 de 2019). Um mundo afogado em capital: a queda global da taxa de juros e a nova rodada da crise estrutural do capitalismo. Acesso em 01 de 03 de 2020, disponível em Blog da Boitempo: https://blogdaboitempo.com.br/2019/11/29/um-mundo-afogado-em-capital-a-queda-global-da-taxa-de-juros-e-a-nova-rodada-da-crise-estrutural-do-capitalismo/

Lukács, G. (2018). Prolegômenos e para ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas.

Prado, E. (17 de 10 de 2021). A ameaça de estagflação. Acesso em 19 de 10 de 2021, disponível em Economia e Complexidade: https://eleuterioprado.blog/2021/10/17/a-ameaca-da-estagflacao/?fbclid=IwAR3MFHWbzymEMmHc2ItcO5fk_AYVdxWFnQb1tjK1t1H96B7739xGSs6Iusk

Roberts, M. (08 de 07 de 2019). Produtividade, investimento e lucratividade. Acesso em 14 de 02 de 2020, disponível em Economia e complexidade: https://eleuterioprado.blog/2019/07/08/produtividade-investimento-e-lucratividade/

 



[1] Se os oligopólios, como quase monopólios, desestimulam, de um lado, o investimento, por outro, o estimulam porque a concorrência é agora mais dura e mais capaz, entre gigantes. A causa tem efeitos opostos.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Preço de monopólio: tendência e contratendências

O texto abaixo foi escrito para uso pessoal, como esboço. É uma pré-pesquisa, antes de qualquer debruçamento nas elaborações sobre o tema na história do pensamento econômico. Portanto, por haver aí algum plágio inconsciente. Como veremos, tenta-se superar a tese pobre de que o preço seria indicativo direto do grau de monopólio.


PREÇO DE MONOPÓLIO: TENDÊNCIA E CONTRATENDÊNCIAS

 

Lenin e Trotsky, tal como outros, perceberam a crise sistêmica rumo ao seu fim enquanto falhas e desvios na legalidade, nas leis, do modo de produção capitalista. São, então, sintomas ou manifestações.

Muitos marxistas perceberam o preço de monopólio enquanto desregulação do centro de gravidade do valor e do preço de produção sobre os preços reais, de mercado. Nisto há certo consenso. Mas, logo: o que regula os preços de monopólio? O valor, ainda que de modo mais indireto. Talvez caiba aos marxistas a tarefa longa e difícil de serem detalhistas nos fatores estudados, elencando as interinfluências, tal qual Marx fez sobre alguns temas.

A questão fica mais simples se observarmos do seguinte modo: o monopólio tende, em si, a elevar indefinidamente o preço de mercado de suas mercadorias – inflação constante, crescente; por isso, temos de ver, tomando a teoria do valor por base teórica, quais fatores impedem e constrangem tal medida. Quais as contratendências em geral causadas pela própria tendência? Como a causalidade tem efeitos opostos?

Façamos um esforço. Para isso, abstraiamos os resultados do capitalismo concorrencial ainda presente e tratemos a legalidade monopólio-preço de monopólio. Tanto quanto possível, o trato mais direto, puro e abstrato serve de recurso metodológico para interligar, em seguida, com o conjunto das leis fenomenológicas, no nível aperencial ou da circulação de mercadorias (não confundamos com circulação do capital).

Partamos aos próximos parágrafos, listemos.

1)      Há concorrência de monopólio – entre oligopólios – impedindo a elevação excessiva de preços. Por si, isto impede a elevação, e pode mesmo reduzir. Se uma empresa controla o mercado de um país e eleva demasiadamente seu preço, isto gera problemas econômicos e políticos tendendo a rupturas, ou seja, a facilitar abertura do mercado à concorrência externa.

 

2)      Um preço demasiado elevado gera luta de classes e, isto incluso, luta de classes dentro da burguesia. Certa matéria-prima sob monopólio não pode aumentar seu preço ao ponto de destruir a galinha dos ovos de ouro, as empresas compradoras do produto para transformá-lo. Só pode fazê-lo relativamente, o que reduz a própria demanda – pressão para queda dos preços. Quando isto é feito parcialmente ocorre luta de classes interssetorial, porque há transferência de mais-valor em forma de lucro de um setor para outro, e entre classes antagônicas (a burguesia pode tentar transferir o custo acrescido com capital constante com redução de salários ou a matéria-prima em questão afeta o poder de compra real dos salários, etc.). O aumento artificial do preço da gasolina no Brasil, seguindo paridade com os preços internacionais, tem gerado duras lutas, inda que atrasadas (aqui, vale destacar, a esquerda radical é de tal forma débil que sequer chamou ou chama por uma redução do preço do combustível, como de 6,20 reais o litro para 3,50).

 

3)      Por maior que de fato seja, nenhum monopólio planifica a totalidade da economia, algo puramente socialista, estando, pois, dependente das variações conjunturais do capitalismo, afetando oferta e demanda. Isto força alterações no preço de monopólio, para baixo e para cima.

 

4)      A monopolização, ao planificar produção e preço, pode supor preços diferenciados para ambientes de comércio diferenciados. Por exemplo: a empresa Coca-Cola oferece um preço de, supomos, 1,50 reais para seu produto num mercadinho e 3,00 reais para o mesmo produto num bar ao lado, pois percebe possibilidades de demanda diferentes. Este cálculo, em parte arbitrário, toma a experiência prática e pode regular-se de modo inexato por ela. Isto também pode acontecer na venda em diferentes países.

 

5)      O preço de monopólio elevado eleva as tensões gerais da concorrência entre diferentes setores, afetando a geopolítica, gerando manobras enquanto tentativas de superar o constrangimento do preço elevado. Um exemplo particular do processo geral: certa nação pode bloquear o monopólio de outro país por meio de altas tarifas de importação ao mesmo tempo em que o Estado financia o surgimento de uma empresa monopolista de seu próprio país já que os preços altos estimulam investimento.

 

6)      Se há concorrência entre monopólio e empresas menores, o monopólio pode reduzir seu preço, mesmo afetando enormemente seus lucros, para forçar fusões e falências. Porém, se a empresa, em circunstâncias parecidas, opera a preços visivelmente abusivos e constrangedores, estimula a formação de outras empresas ou crescimento delas, pois a demanda se transfere para estas caso ponham preços compensadores. Isto, porém, exigiria grande erro de medida da parte da empresa dominante.

 

Por isso, supomos um planejamento às avessas, um planejamento de lucro, um plano central pelo mais-valor extra. Há inúmeros constrangimentos a um preço em demasia elevado; por mais que a obitação dos preços em relação aos valores seja de fato parcialmente desregulado, ela ocorre enquanto sintoma de um sistema tendendo a ser superado.

 

7)      A empresa a exercer o monopólio consegue, dentro dos limites postos, limitar sua produção; mas sua oferta máxima não pode acompanhar, de imediato, a demanda ainda mais elevada. Eis uma vantagem, a elevar os preços de mercado, que também pode transformar-se em desvantagem. Agreguemos o fator cultural: a empresa alemã Wolksvagem pôde instalar-se nos EUA porque a demanda por carros não poderia ser atendia em médio prazo pela Ford; e nisto pesa o perfil daquela população, onde seria natural o trabalhador ter um automóvel. O monopólio, ao desestimular investimento, cria uma armadilha para si.

 

8)      Há uma percepção mais abstrata. O preço elevado de monopólio tende a impedir a demanda, reduzindo-a; mas este preço elevado continua, pois mais que compensa a perda parcial de demanda. Há um ponto, porém, ao continuar a elevação dos preços, em que a demanda começa a se reduzir continuamente, afetando o lucro, (ou estimulando os fatores acima expostos, mas estamos abstraindo deles); neste caso, encontrou-se um preço limite, um tanto abaixo daquele a gerar crise. Porém, este não é estável nem natural, estando subordinado à totalidade dos fatores.

 

9)      A mercadoria do monopólio pode ser parcialmente ou totalmente substituída por semelhantes, por renovações, por cópias ou por falsificações. Exemplo da Microsoft, pois seus preços elevadíssimos produziram a cópia ilegal, além do programa alternativo e gratuito Linux (como o Ubuntu).

 

A questão está em perceber o “preço de monopólio” enquanto também não estático e não determinado em absoluto pela empresa monopolista. Nas análises concretas, observamos os fatores que permitem ou impedem a elevação e a queda. Exemplo: o preço da gasolina no Brasil subiu sob justificativa de que a demanda mundial estava elevada e, logo, deveria existir correção dos preços; mas a queda do preço do barril de petróleo abaixo do preço de produção no mercado mundial faz o preço da gasolina… subir. Não só pela privatização da Petrobrás, exigindo funcionar ainda mais sob a lógica do lucro, a elevação dos preços internos permite não falir a empresa diante da crise global no setor. Isto, por outro lado, constrangeu os demais setores internos e tendeu à elevação dos preços finais (custos de transporte, etc.). Se há menor inflação no Brasil ou deflação, dar-se por queda do consumo, da produção, elevadíssimo desemprego, etc. constrangendo os preços.

Extraímos duas questões metodológicas: não avaliamos a questão desde a megaempresa individual mas pela totalidade e consideramos fatores extraeconômicos. A economia “pura” de nada nos serve.

Ao expor a diferença da composição orgânica dos capitais concorrentes, Marx demonstrou, Livro III, a formação do preço de produção desde a taxa média de lucro afastando este do valor produzido em separado nas empresas, acima ou abaixo deste valor; desta variação, pôde demonstrar o valor de mercado enquanto um valor médio, não estável, em torno do qual as condições de oferta e demanda fazem o preços de mercado, preços reais, orbitarem. A relação entre central e orbitante, semelhante em comparação a uma estrela orbitada por planetas com suas luas, passa do valor orbitado para o preço de produção, por sua vez orbitado pelo valor de mercado e, em seguida, preço de mercado.

            O preço de monopólio faz parecer que a tendência real é elevação monopolística constante dos preços de mercado gerando as próprias contratendências.[1] Isto está certo, embora também errado, dentro dos limites do sistema. Porém, o monopólio aponta, em essência, o fim do preço no planejamento geral socialista, preparado pela atual fase do sistema. É uma resistência, um modo inverso, ao fim da manifestação empírica do valor, o valor de troca preço.

 



[1] Estamos abstraindo na análise os elementos do parágrafo anterior, a citação resumida de longos capítulos d’O Capital III.





quarta-feira, 26 de maio de 2021

A categoria marxista "momento"

 

COMPREENDER AS VARIAÇÕES DA LUTA DE CLASSES: CATEGORIA “MOMENTO”

 

A decadência atual do capitalismo, apresentado nas teses anteriores, impede reformas estáveis e duradouras. Problemas conjunturais tornam-se estruturais; há um divórcio cada vez maior entre “crescimento econômico” e desenvolvimento da sociedade. Em síntese: a realidade e a luta de classes são mais fluídas e instáveis, alterando parcial e continuadamente, desigual e mutável, a relação de forças entre as classes sociais. Isso faz com que a ondulação da luta de classes, hoje, seja muito mais móvel.

A relação entre momentos de avanço e de recuo da luta de classes – já existente antes – em uma determinada situação ganha nesta época novas, maiores e mais instáveis dimensões. Aqui, apresentamos um conceito, momento, subdividido em dois:

1. Momento de refluxo, recuo, defensivo ou regressivo;

2. Momento de ascenso, avanço, progressivo ou ofensivo.

O pano de fundo é a chamada crise sistêmica do capital, debatida nesta obra. Tal conceito deve ser observado dentro das “situações”: em situações não revolucionárias,   por exemplo, teremos  “momentos ofensivos” e “momentos defensivos”.

 Apesar de os temos serem autoexplicativos, merecem atenção na medida em que mostram erros entre marxistas. Dentro de uma situação “não revolucionária” nacional, por exemplo, pode haver momentos em que as classes oprimidas agem na ofensiva. Ou seja: mesmo desprovido de “crise estrutural da democracia burguesa”, da economia ou do regime pode haver um processo de avanço progressivo nas lutas. Isso acontece sem alterar a caracterização geral da situação que é, neste exemplo específico, “não revolucionária”.

Uma vitória parcial, uma forte repressão, um erro do movimento, o cansaço e esgotamento ao não obter resultado podem readequar e promover, de forma mais ou menos longa, uma mudança de um momento de fluxo para um de refluxo; e vice versa. Um “gatilho” pode acionar também momentos opostos; no geral, o “gatilho para a ofensividade” é a explosão de energia da insatisfação social acumulada passivamente. Ao mesmo tempo, temos de dimensionar os movimentos de uma classe ou setor de classe em relação às outras; se, por exemplo, as classes médias, dirigidas ou não pela burguesia, se movem, protestam pela direita, paralisando os trabalhadores, então temos um momento defensivo dentro de uma mesma situação.

Em situações pré-revolucionárias pode acontecer, com mais frequência, um recuo passageiro da classe trabalhadora. Por medo, por desorganização, por uma frente popular, por uma derrota parcial ou por ser convencida; ela pode ficar paralisada por algum tempo dentro de uma mesma situação geral, o que inaugura um “momento de refluxo”, por exemplo.

Especialmente em situações “não revolucionárias” a soma de crescimento econômico e estabilidade social pode levar aos de baixo a sensação de que podem obter vitórias, reformas e conquistas e que devem arrancá-las – as greves multiplicam-se. Isso parte de uma importante contradição entre crescimento econômico somado às precariedades em diferentes pontos da vida da classe trabalhadora (violência, machismo, baixo salários, serviços públicos ruins, etc.). Já em situações “pré-revolucionárias” pode haver “momentos defensivos” por medo do desemprego, desconfiança com suas direções, desmoralização, frente populares, derrotas parciais fortes, etc. especialmente no início desses processos.

O marxismo oferece as ferramentas para calibrar a análise da relação social de forças; esses elementos podem, em sua maioria, ser aplicados e adaptados a outras situações da luta de classes. Para além de sua atual fluidez, a necessidade de explorar esse conceito deve-se à observação de ser aí onde os marxistas tendem à maior confusão, mais impressionismo, menos clareza do que se passa. Momentos de (re)fluxo são da realidade social, não são algo novo. A real novidade, merecedora de maior atenção, é que a constância da variação entre o fluxo e o refluxo dentro de uma mesma situação é, hoje, bem mais presente pela evolução da decadência do capitalismo. Ter, portanto, a clareza desse fenômeno permite às organizações marxistas maior preparação.

Assim:

1)   Época: desenvolvimento das forças produtivas em confluência ou em contradição com as relações de produção – época de reforma e reação ou época de revolução;

2)   Etapa: estado da relação de forças na superestrutura objetiva – em principal, Estado e regime –, agregando-se, em complemento, a superestrutura subjetiva e demais fatores sociais;

3)   Situação: análise de conjuntura avalia todos os aspectos: economia, classes, superestruras subjetiva e objetiva;

4)   Momento: relaciona-se com a luta de classes e superestrutura subjetiva, agregando a objetiva.

 

Tratemos do exemplo mais popular. A revolução permanente na Rússia, de fevereiro a outubro, sustentou uma situação revolucionária. Neste processo, a burguesia e os trabalhadores, com interesses antagônicos de fundo, variaram sobre quem estava na ofensiva ou na defensiva. A revolução de fevereiro colocou a classe operária na ofensiva; o fracasso das jornadas de julho a colocou na defensiva; a tentativa de golpe de Kornilov a colocou na ofensiva. A situação revolucionária resolveu-se com a ofensiva de outubro.

Assim como uma determinada situação pode marcar uma mudança de etapa, um novo momento pode marcar a mudança de situação. Exemplo: uma situação de pleno emprego, antessala da crise, pode gerar muita luta de classes por pautas parciais dentro de uma situação não revolucionária e imediatamente antes de uma situação reacionária, recuo das lutas por desemprego alto (entra-se num momento defensivo), ou pré-revolucionária, avanço das lutas como reação à quebra econômica.


João Paulo, Teresina-PI.

Extra.

Tal categoria foi descoberta por mim faz já alguns anos. Desde divulgações parciais dela neste blog e em textos originais de meu livro, A crise sistêmica, de onde retirei tal artigo, a relação categorial tem sido usada sem se fazer justiça sobre sua origem. Para fins práticos, como a análise política, não é em si necessário, claro, fazer menção a quem a "criou", porém também é importante evitar algo como plágio sobre a questão. Por isso o registro deste capítulo da obra aqui, publicamente.







terça-feira, 13 de abril de 2021

O erro de Marx quanto ao salário por peça

 

SOBRE O ERRO DE MARX QUANTO AO “SALÁRIO POR PEÇA” N’O CAPITAL

 

Neste esboço, debatemos a defesa de Marx sobre a prioridade capitalista do salário por peça. Como sabemos, o diagnóstico está errado, pois o salário por tempo, não por peça, predomina no capitalismo consolidado. Com o trabalho por aplicativo, o salário por peça ganha algum destaque, porém permanece marginal na indústria de conjunto. Aqui, usaremos a própria letra de Marx para apontar o motivo de seu erro. Comecemos por sua afirmação:

 

Da exposição precedente resulta que o salário por peça é a forma de salário mais adequada ao modo de produção capitalista. (Marx, O capital I, Boitempo, 2013, p. 627.)

 

Está clara aí a posição do velho alemão. Vejamos elementos da “exposição precedente” que parecem sustentar suas afirmações:

 

Como a qualidade e a intensidade do trabalhado são, aqui, controladas pela própria forma-salário, esta torna supérflua grande parte da supervisão do trabalho. (Idem, p. 624.)

 

Porém, a supervisão do trabalho – capatazes, etc. – é um custo improdutivo pequeno em si mesmo na indústria moderna. O salário por tempo não causa um desperdício de recursos especial.

Ele continua:

 

Dado o salário por peça, é natural que o interesse pessoal do trabalhador seja o de empregar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau normal de intensidade. (Idem, p. 624.)

 

Um ponto para o salário por peça! Tem mais:

 

É igualmente do interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois assim aumenta seu salário diário ou semanal. (Idem, p. 625.)

 

Se possível, o salário por tempo também estimula ampliar a jornada de trabalho. Mas o argumento anterior a este, a citação antecedente, ainda não foi refutado por nós. Vejamos o elogio e a ambiguidade de Marx:

 

Mas o maior espaço de ação que o salário por peça proporciona à individualidade tende a desenvolver, por um lado, tal individualidade e, com ela, o sentimento de liberdade, a independência e o autocontrole dos trabalhadores; por outro lado, sua concorrência uns contra os outros. O salário por peça tem, assim, uma tendência a aumentar os salários individuais acima do nível médio e, ao mesmo tempo, a baixar esse nível. Mas onde um determinado salário por peça já se encontra a muito tempo consolidado de maneira tradicional – o que cria enormes dificuldades para sua rebaixa –, os patrões também recorreram, EXCEPCIONALMENTE, ao procedimento  de transformar forçadamente o salário por peça em salário por tempo. (Idem, p. 626, destaques nossos.)

 

Onde Marx coloca a palavra “excepcionalmente”, aconteceu como nada sutil regra… O salário por tempo se impôs. Qual, então, o motivo? Eis, conclui-se: a luta de classes estimulada pela citada “tradição”!

Marx diz que o salário por peça é o método para explorar mais (idem, p 627). Mas quase diz que isso valeu somente durante a manufatura, mas nada garantia que seria o mesmo na grande indústria, no sistema de maquinaria.

Mostremos mais uma citação do próprio Marx, no mesmo capítulo, onde fica cristalina a luta de classes gerada pelo salário por peça:

 

Essa variação do salário por peça, ainda que puramente nominal, provoca lutas constantes entre o capitalista e os trabalhadores. Ou porque o capitalista aproveita o pretexto para reduzir efetivamente o preço do trabalho, ou porque o incremento da força produtiva do trabalho é acompanhado de uma maior intensidade deste último. Ou, então, porque o trabalhador leva a sério a APARÊNCIA DO SALÁRIO POR PEÇA, COMO SE LHE FOSSE PAGO SEU PRODUTO, e não sua força de trabalho, e se rebela, portanto, contra o rebaixamento do salário, que não corresponde ao rebaixamento do preço de venda da mercadoria. (Idem, p. 629, destaque nosso.)

 

Concluímos pela comparação das citações que o salário por tempo é melhor ao capitalismo porque melhor produz uma aparência que esconde o real estado das coisas. O salário por tempo gera menos problemas classistas, menos luta de classes aberta. Marx conclui o capítulo sobre o salário por peça de modo, no mínimo, esclarecedor:

 

“os trabalhadores vigiam cuidadosamente o preço da matéria-prima e dos bens fabricados e são, assim, capazes de calcular com precisão os lucros de seus patrões.”

O capital, com razão, descarta tal sentença como um erro crasso acerca da natureza do trabalho assalariado. Ele roga contra a pretensão de impor obstáculos ao progresso da indústria e declara rotundamente que a produtividade do trabalhador é algo que não concerne de modo algum ao trabalhador. (Idem, p. 629.)

 

É preciso, portanto, uma forma de salário que menos estimule desconcertantes vigilâncias por parte do operariado…

Por fim, Marx quase ofereceu o fato de que o salário por tempo tem prioridade em relação ao salário por peça nesta citação com a qual concluímos este esboço:

 

O salário por peça, portanto, não é mais do que uma forma modificada do salário por tempo. (Idem, p. 623.)

 

Até gênios erram.

 

 


 

 

segunda-feira, 29 de março de 2021

Uma conceituação dialética das classes sociais

 

UMA CONCEITUAÇÃO DIALÉTICA DAS CLASSES SOCIAIS

 

Como é sabido, Marx encerra seus escritos d’O Capital exato quando, finalmente, iria oferecer sua conclusão sobre as classes sociais. O manuscrito é, então, interrompido. A questão ficou suspensa no ar, flutuando, a alimentar os moinhos de vento das mais variadas interpretações próprias dentro do marxismo.

Segundo consta, nosso teórico alemão afirmou existir três grandes classes: os assalariados, os capitalistas e os proprietários de terra. Eis a tríade maldita. Porém teóricos como Trotsky afirmaram haver, em verdade, três outras classes principais: o proletariado, a classe média (ou pequena burguesia) e a classe capitalista. A letra literal de Marx, claro, tem mais peso, mais “valor”, tendo preferência entre os marxistas “ortodoxos”. É compreensível. De qualquer modo, resta elaborar com método dialético sobre o tema, tentando “adivinhar” qual seria o texto final do fundador do socialismo científico. Lembremos que nem sequer Engels ousou terminar o capítulo 52 do livro III, As classes.

Após o necessário rodeio introdutório, este esboço visa oferecer uma interpretação própria baseada na dialética, seu método científico e sua lógica (mas não, é evidente, em seu modo próprio de exposição das ideias, pois exigiria trabalho mais amplo).

Em primeiro lugar, deixemos cristalino que por proletariado ou por operariado, nomes diferentes do mesmo objeto, da mesma classe, incluímos, aqui, todos os produtores de valor e de mais-valor, além de também somente, por outro ângulo, produtores de valores de uso alienáveis, com produção escalável e medível pelo tempo, ou seja: assalariados das fábricas, das minas, dos campos, dos transportes e da construção civil, além de trabalhadores mais “artesanais” como os padeiros. Todos eles adicionam valor às mercadorias.

A maioria dos assalariados não operários bem cabe no conceito de assalariados médios, parte da classe média. A forma-salário é, por isso mesmo, uma forma: faz parecer que todos os setores são iguais porque recebem um salário, escondendo a diferença de conteúdo que está para além da superfície da sociedade – que algumas atividades sociais produzem valor e outras não o produzem.

Feito tais esclarecimentos, entremos mais diretamente na intenção deste texto.

Na Ciência da Lógica, Doutrina do Conceito, Hegel faz exposição dialética das categorias universal (ou geral), particular e singular (ou individual). Como dialético, afirmou que as categorias não estão isoladas e fixadas no entendimento; na verdade, na razão, elas estão misturadas, em contato, onde uma é expressão da outra e na outra, e vice-versa. No Livro I d’O capital, ao tratar da divisão do trabalho na sociedade, Marx recupera tal formulação, deixando claro que as reivindica (diferente de sua crítica parcial ao conceito de particular feita durante sua juventude). Pois bem; penso que a questão das classes expressa, também, a mesma relação. Vejamos, no capitalismo:

 

Classe no universal, no geral: proletariado, classe média, burguesia, proprietários de terra, lupemproletariado.

Classe no particular: a classe metalúrgica, a classe gráfica, a classe tecelã, a classe de padeiros, a classe vidreira, a classe petroleira, etc. – expressão particular do geral, do proletariado; jornalistas, advogados, professores, economistas, médicos, pequenos empresários, pequenos donos de terra, etc. – expressão do geral no particular entre a classe média; banqueiros, industriais, patronal comercial, burguesia da metalurgia, burguesia do setor automobilístico, etc. – expressão do geral, o capitalista, no particular; etc.; etc.;

Classe no singular: aquele operário metalúrgico, aquele operário gráfico; aquele professor assalariado, aquele médico assalariado; Aquele burguês dono de empresa de cosmético; aquele proprietário fundiário de bosques; aquela prostituta (lupemproletariado), etc.

 

É uma visão nova de fato. Até onde sei, nenhum outro marxista tomou a questão das classes desde o universal, o particular e o singular. Aí, a dialética cumpre seu papel. De qualquer modo, o pensamento ainda flutua. Tal observação corresponde ao pretendido por Marx? A resposta a esta indagação deve ser oferecida com outra pergunta: a elaboração acima está em si e, centralmente, na realidade correta ou errada? Justificando este esboço, penso que é a resposta justa ao tema, sim, corresponde ao real.

Porém, o momento de virada: nem tudo é classe social. Os políticos, os dirigentes sindicais, os profissionais de partidos, os gerentes e os executivos das empresas – são o quê? São também apenas assalariados? Penso que devemos colocá-los na posição de burocracia, são os burocratas das diferentes classes da sociedade. É o ponto fora da curva ou a curva fora do ponto, que seja. Reforçamos: nem tudo é classe social. Há camadas de homens e mulheres que são desclassados, que são destacados pela própria necessidade de funcionamento social.

Por fim, outra variação. O conceito nunca se cabe completamente dentro de si próprio. Com o atual nível de queda da taxa de lucratividade, um burguês industrial pode bem investir parte de seu lucro em dívidas públicas, transitando entre dois tipos da classe dominante, o que torna até sua mentalidade duplicada, com um pé em cada setor. Um operário pode, em nossa época, ter um pequeno comércio em sua casa para complementar a renda, ou ter um sítio pequeno, ou algumas ações raquíticas na empresa onde trabalha; assim também duplicando sua “visão de mundo”, um pé no proletariado e outro na classe média. Em tempos de desemprego crônico, diz Trotsky, o grande número dos sem emprego e sem esperança de contrato de trabalho – o exército industrial de reserva – quase forma uma nova classe em nossa época, uma subclasse dos desempregados. Essas são expressões deformadas, dentro dos limites categoriais do capitalismo, da tendência ao fim das classes sociais.






sexta-feira, 5 de março de 2021

O valor como substância – e outras reflexões

 

O VALOR COMO SUBSTÂNCIA – E OUTRAS REFLEXÕES

 

Por muito tempo, a categoria valor foi confundida com a categoria preço. Apenas teóricos posteriores absorveram a noção de valor como algo qualitativo, além do mais, que não é o preço, embora também o seja… Um raciocínio que, vale observar, causa espanto entre aqueles fora da tradição e do pensamento dialéticos. O valor é material enquanto o preço é ideal.

Os teóricos da crítica do valor e, especialmente, Postone recuperaram ao seu modo o caráter de substância do valor. Mas tal concepção tem validade segundo a letra da obra de Marx? A resposta é sim. Vejamos um caso:

 

Além disso, quando ele enfim se processa, portanto, quando a mercadoria não é invendável, sua mudança de forma ocorre sempre, ainda que, nessa mudança de forma, possa ocorrer um acréscimo ou uma diminuição anormal de substância – de grandeza de valor. (Marx, 2013, p. 182, grifo meu.)

 

O valor para Marx poderia ser subjetivo ou metáfora, uma ficção útil? Vejamos em outra ciência. Ainda hoje, os físicos insistem que o conceito de energia é apenas para uso prático, que ela, a energia, não existe no mundo real… O alemão, ao contrário, dá estatuto ontológico, material, à categoria mais essencial da economia:

 

O valor do ferro, do linho, do trigo etc., Apesar de invisível, existe nessas próprias coisas... (Idem, p 170.)

 

Tal citação aparentemente é contraditória com uma famosa afirmação de Marx na mesma obra, no primeiro capítulo: nenhum físico ou químico encontrou valor nas mercadorias por mais que a mexesse e a remexesse. É uma substância social que deriva de relações sociais, deriva do trabalho.

Leiamos outro trecho que deixa clara a posição de Marx:

 

"Aqui ele [o valor] se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras formas." (Idem p. 230, grifo meu.)

 

O grande marxista brasileiro Eleutério Prado erra ao tratar a categoria substância em outro significado. Ele parte da relação substância e acidente na dialética, onde aquele, a substância, se expressa neste, nos acidentes. A substância seria suporte dos acidentes, mas, o economista observa, o valor não é suporte do valor de uso – ao contrário: o valor de uso é suporte do valor. Porém a confusão logo se desfaz. O problema aí é que ele trata de outro universo categorial, embora também dialético. A substância valor é o que permeia suas formas, passa por elas, transfere-se de uma forma a outra (com a troca e com o trabalho).

Aqui, observa-se com clareza como a profunda educação filosófica de Marx o permitiu aproveitar as décadas de dedicação teórica ao estudo da economia política. Em tempo de “doutores” formais cuja prática da ciência é algo apenas “casual” para conseguir algum emprego, vale comparar com o grande conhecimento do sujeito alemão.

 

UMA HIPÓTESE DE TRABALHO

Se o valor existe mas é empiricamente invisível, o que, de fato, é ele? Além de substância social, podemos conformar mais uma resposta. A mercadoria ou o capital é o ser – enquanto o valor é o nada. O nada está dentro do ser, são unidade e diferença em devir, em vir a ser, em movimento. O processo de valor que se autovaloriza, ou seja, capital, encontra-se como outro aspecto:

 

O devir dentro da essência, seu movimento reflexionante, é, por conseguinte, o movimento do nada para o nada e, através disso, de retorno a si mesmo. (…) O ser é apenas como o movimento do nada para o nada, assim ele é a essência… (…) Essa pura e absoluta reflexão, que é o movimento do nada para o nada, determina ulteriormente a si mesma. (Hegel, 2017, p. 43, grifo meu.)

 

Quando um crítico diz que o valor não é nada ao afirmar sua inexistência, de certa forma tem razão ao mesmo tempo em que erra completamente. O valor é nada que, no entanto, em nossa sociedade, é tudo – logo é o seu oposto, o ser.

Capital é a forma de ser do valor, do nada. Marx destina uma seção inteira a um único capítulo chamado “A transformação do dinheiro em capital”, que, visto pela essência, é transformação do valor em capital, em valor-capital.

Que exista mercadoria sem valor (terra virgem, etc.) e capital fictício, também sem valor, apenas mostra que a substância ou o nada impera, domando a natureza do ser como mercadoria ou como capital.

Ainda sobre ser e nada, destacamos que a citação de Hegel anterior é presente na Doutrina da Essência, livro II da trilogia em Ciência da Lógica. Porém o ser-nada inicia a primeira obra, A Doutrina do Ser. Por que fazemos tal observação? Ora, o nada é deduzido do puro ser, do ser sem determinações. Como, por outro lado, é extraído o valor do valor de uso? O leitor já deve imaginar: pela exclusão de todas as características das mercadorias:

 

Abstraindo do valor de uso dos corpos-mercadorias, resta nelas uma única propriedade: a de serem produtos do trabalho. Mas mesmo o produto do trabalho já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos de seu valor de uso, abstraímos também dos componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. O produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou qualquer coisa útil. Todas as qualidades sensíveis foram apagadas. E também já não é mais o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho desaparece o caráter útil dos trabalhos nele representados e, portanto, também as diferentes formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns dos outros, sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato. (Marx, 2013, 116.)

 

E Mais:

 

Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Não restou deles a não ser a mesma objetividade fantasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendida. O que essas coisas ainda representam é apenas que em sua produção foi despendida força de trabalho humano, foi acumulado trabalho humano. Como cristalizações dessa substância social comum a todas elas, são elas valores — valores mercantis. (Idem.)

 

De agora em diante, o ser e o nada estão em comunhão com o valor e o capital. Não por acaso, valor e valor de uso (mercadoria) iniciam O Capital assim como ser e nada iniciam a Ciência da Lógica.


A ORGANIZAÇÃO D’O CAPITAL

Muitas são as formas de ver as três obras de O Capital. Penso, no entanto, que falta observar uma em específico. O capital I trata da formação do capital como fundamento de uma sociedade nova, por isso foca na produção, não nas formas pré-capitalistas do capital. Vai avançando pela formação da mercadoria e do dinheiro para a circulação simples, e aí, para a produção de capital em seu amadurecimento histórico-lógico. No livro II, já temos um capital industrial maduro, robusto, saudável – nesse aspecto são expostas as categorias e as ideias. No livro III, trata-se do capital produtivo mais maduro, em vias de seu fim – daí tratar das crises, das mudanças que estão a ocorrer no capitalismo de sua época e a exposição da queda tendencial da taxa de lucro. Aqui, trata-se do envelhecimento do sistema. É análogo ao ciclo de amadurecimento de um corpo, de um ser vivo. Mas este é apenas um dos ângulos para observar tal trindade.


Bibliografia

Hegel. (2017). Ciência da Lógica - a Doutrina da Essência. Bragança Paulista: Vozes.

Marx, K. (2013). O capital I. São Paulo: Boitempo.

 

 



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Por que a MMT não funciona

 

Por que a MMT não funciona

 

No desenvolvimento do capitalismo no século XX e início deste século, inflou-se uma base social que deve ser considerada pela teoria das classes: o setor médio do assalariado servidor público, uma parte da pequena burguesia, entre o operário e o burguês.  Com a ampliação numérica do número de membros deste grupo social e certa precarização do seu trabalho, houve uma esquerdização destes, expresso, por exemplo, na adoção dos métodos proletários de luta, como a greve. É natural, portanto, que surjam teorias que representem este setor. Assim, teóricos afins defendem o fortalecimento do estado burguês, os serviços públicos, contra as privatizações e pela adoção da política econômica keynesiana. Recentemente, a assim autoproclamada Teoria Monetária Moderna (MMT) busca destacar-se em meio ao reformismo político de esquerda.  Dada a moda teórica recente de tal concepção, vamos aqui discordar de algumas de suas conclusões indo ao núcleo de sua natureza.


A pergunta universal do nosso artigo é se Marx estava correto ao afirmar que o capitalismo tem contradições inerentes ou, ao contrário, podemos encontrar algum nível de estabilidade interna por dentro do sistema vigente; ou seja: se o reformismo e o centrismo (que está entre a reforma e a revolução) ou o marxismo tem razão.


A MMT afirma: 1) é o Estado a fonte do dinheiro; 2) os impostos sevem apenas para retirar excesso de moeda e nunca para fins de financiamento estatal; 3) então, o Estado pode criar dinheiro “do nada” ao ponto de produzir permanente pleno emprego. Vamos aos elementos que impedem a proposta de realizar-se.

 

[…]

 

2. O pleno emprego


Este é o ponto mais decisivo da compreensão e o mais importante deste comentário. Observemos como o equilíbrio entre as classes é inviável, o que torna o uso prático da “moderna” teoria monetária um desejo utópico por um capitalismo mais humano.


Para a MMT, o máximo do dinheiro “criado do nada” sem inflação é alcançar o pleno emprego dos fatores de produção cuja medida central é empregar toda a força de trabalho nacional. Aqui o reformismo fica mais evidente ao deixar de compreender que ao capital é inerentemente insuportável por muito tempo uma situação de emprego pleno. Vejamos os motivos.

 

1. O pleno emprego, como força de lei objetiva – já que o medo de desemprego quase que desaparece –, leva necessariamente à onda de greves cada vez mais duras e confiantes, às paralizações longas, aos ganhos reais de salário; enfim, ao aumento do custo unitário do trabalho, ou seja, uma parte do que seria lucro empresarial torna-se salário e custo com direitos sociais. Os trabalhadores tomam, assim, a ofensiva até mesmo na política (Kalecki, 2020). Isto é um problema ao capital e de modo algum pode ser indefinidamente suportado.


Observamos tal fenômeno ocorrer até 2015 no Brasil, antes do aumento vertiginoso da taxa de desemprego como política econômica burguesa. A partir da premissa equivocada de que a crise de 2008 seria apenas um abalo conjuntural, o governo do PT, esperando a normalização internacional, tomou medidas anticíclicas como a redução dos juros, investimentos estatais, aumento real do salário mínimo, etc. Observemos os dados de 2013. A quantidade de greves explodiu:

 

GRÁFICO 7


Fonte: (Dieese, 2020)

 

O número de horas paradas também:


GRÁFICO 8



Fonte: (Dieese, 2020)

 

Sabe-se que em 2014 e, em parte, 2015 as lutas dos trabalhadores e setores populares continuaram intensas. Como razão, o baixo desemprego correspondeu ao aumento das lutas:

 

GRÁFICO 9

Fonte: (IBGE, 2020)

 

Veja-se que o governo petista adiou, não impediu, a forma destrutiva da crise por anos, com ações anticíclicas que fundamentaram um conflito distributivo de longa duração, revertido apenas com a entrada de vez do desemprego, com o fim do pleno emprego:

GRÁFICO 10



Fonte: (IBGE, 2020)

 

2. O pleno emprego tem como base o aumento do número de empresas concorrendo pelas parcelas do valor global. O que isso significa? Com maior oferta, os preços tendem a cair (e o patrão já está perdendo lucro com o ponto 1, a força dos trabalhadores confiantes com o baixo desemprego). Eis outro problema, por isso a quebra econômica é bom para algumas empresas e ao capital em conjunto.

 

3. No aquecimento da economia, as empresas crescem e podem pagar suas dívidas, o que reduz os juros. Mas o consumo aumentado e os investimentos a todo vapor, leva a uma demanda maior por dinheiro, o que por sua vez aumenta os juros – por mais um meio, o burguês "produtivo" é sugado cada vez mais, dessa vez pelos bancos.

 

4. Com o aquecimento da economia, as empresas de monopólio sugam parte do valor global, que reduz a apreensão de valor em outras empresas, com preços artificialmente altos. Mas há aqui ainda, aqui, outro caso típico. Pleno emprego dos fatores de produção, cuja medida é o uso de quase toda a força de trabalho disponível, é diferente de equilíbrio; enquanto a maioria dos setores está obrigada a rebaixar os preços, algumas empresas possuem oferta menor que a demanda, o que obriga aí à elevação dos preços, a sugar valor para si, aumentando os custos para outros (matéria prima, etc), e leva algum tempo para que surjam novas empresas que aumentem a oferta.

 

Enfim: o pleno emprego é crise ou, adotando o raciocínio dialético, o primeiro sinal da crise por meio de seu oposto. O governo será pressionado a adotar a política econômica correspondente como foi o caso do governo Dilma II (um golpe de Estado apoiado pela maior parte da burguesia impôs a política econômica que o governo tinha dificuldade de assumir, pois havia perdido base social com as medidas do ministro da fazenda Levy). A crise é uma necessidade do capital.


Se queremos o pleno emprego, temos de aprender a “política econômica” marxista, o programa de transição. No lugar da utopia de fazer o Estado forçar o pleno emprego por emissão de moeda e gasto público, exijamos algo classista, o que mobiliza as massas quando o desespero as alcança: escala móvel de tempo de trabalho, ou seja, redução da jornada de trabalho, com o mesmo salário, na proporção que produza desemprego zero; isto é dividir todo o trabalho disposto na sociedade entre toda a força de trabalho disposta. Mas é mais fácil o capitalismo cair do que tal proposta ser aceita, e esta é exatamente sua grande força: empurra para uma luta “reformista” pelo o fim do sistema. É uma política superior à noção de Keynes, muito. Há uma taxa social, não natural, de desemprego exigido pela própria lógica do sistema capitalista, portanto quebrar uma de suas leis leva à revolução social. Para isso, o caminho não é o voto em partidos “progressivos”, mas elevar o nível de organização dos trabalhadores.

 

Bibliografia

Kalecki, M. (30 de 09 de 2020). Aspectos políticos do pleno emprego. Acesso em 30 de 09 de 2020, disponível em Jacobin Brasil: https://jacobin.com.br/2020/09/aspectos-politicos-do-pleno-emprego/?fbclid=IwAR3651oRmfTPYBfHt8YqKP0TuspcFS2YJNMLx9hPzCEME2L04oMKISIW094