quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Sobre a Cultura do Brasil

ESBOÇO SOBRE A CULTURA DO BRASIL

[Versão preliminar - apêndice do livro Teses para o Fim do Capitalismo (aqui).]

1.      Ao notarem as particularidades da formação social brasileira, pensadores e sábios tentaram encontrar a essência do Brasil por meio de sua cultura, ou seja, por um meio idealista e superestrutural. As diferenças nacionais são, no entanto, parciais e não essenciais dentro da universalidade humana. E de modo oposto, o marxismo nacional parece ter avançado pouco nesta questão, incluso as miudezas e “pequenos nadas” (Trotsky, Questões do Modo de Vida).

2.      O argentino Nahuel Moreno usou a lei do desenvolvimento desigual e combinado para demonstrar a formação do Brasil: no século XVI, surgira destinado ao capitalismo, ao mercado mundial; porém, para isso, teve de usar relações de produção de outro sistema, o escravista. Esta desigualdade combinada pode ser expressa, também, no campo da cultura: economia capitalista, relações de produção escravistas mais – e mas –  cultura medieval europeia e as primitivas africana e indígena. Uma geleia geral. Isto posto, o peso do capitalismo (infraestrutura) e do escravismo (estrutura), e a contradição interna daí derivada, do mesmo modo e acima direcionaram a cultura.

“La colonización española, portuguesa, inglesa, francesa y holandesa en América fue esencialmente capitalista. Sus objetivos fueron capitalistas y no feudales: organizar la producción y los descubrimientos para efectuar ganancias prodigiosas y para colocar mercancías en el mercado mundial. No inauguraron un sistema de producción capitalista porque no había en América um ejercito de trabajadores libres en el mercado. Es así como los colonizadores para poder explotar capitalísticamente a América se ven obligados a recurrir a relaciones de producción no capitalista: la esclavitud o una semi-esclavitud de los indígenas. Producción y descubrimientos por objetivos capitalistas; relaciones esclavas o semi-esclavas; formas y terminologías feudales (al igual que el capitalismo mediterráneo) son los tres pilares en que se asentó la colonización de América”.[1]


Esta expressão cultural se expressa nas palavras, embora Moreno tenha pouco considerado isso:

Los inmensos poderes otorgados a los donatarios tampoco significan feudalismo; esos poderes todavía existen en nuestros días. El jefe de una escuadra en alta mar, los comandantes de los ejércitos, los gobernadores en ocasiones excepcionales disponen todavía hoy de poderes casi tan grandes corno los concedidos a aquellos donatarios. Estamos, pues, seguros de que nuestras donaciones, dejando de lado el carácter hereditario de las concesiones, sólo son feudales en los términos, muchos de ellos todavía hoy en uso. Puédese alegar que en lo que concierne a las concesiones su aspecto jurídico se asemeja a las instituciones feudales. Pero esto se observa también en la actualidad. El régimen de nuestras minas se caracteriza porque el poseedor de la mina no es sino un concesionario, que así la trabaja, ejerciendo una función social”.[2]


Para demonstramos como isto se alargou até nossos dias; em entrevista ao programa Roda Viva (13/05/2013[3]), o escritor peruano Mario Vargas Llosa exemplifica a influência cultural medieva:

Repórter: E encontrou realmente [ao visitar o interior da Bahia] a idade média de Os Sertões [de Euclides da Cunha] (…)?
Achei coisas maravilhosas… que não acreditei. Achei trovadores ambulantes que cantavam romances portugueses medievais. Que falavam dos 12 pares da França num povoado chamado Uauá. Eu não podia acreditar nisso! Tocando a baguala, cantando romances portugueses medievais… Era entrar num mundo de quase fantasia, um mundo de fantasia; era pura literatura.

Temos no cangaço a versão de Robin Hood; no vaqueiro e seu facão, o cavaleiro; na religiosidade, a manutenção de símbolos e alguns valores; no cancioneiro e repetentistas, os travadores; no jeito “errado” de falar, resquícios na sintaxe e palavras do português original etc. A literatura tem explorado com mestria este aspecto singular – o movimento armorial, por exemplo, impulsionado por Ariano Suassuna – da cultura como um medievalismo rústico, sertanejo.

3.      A tese anterior – ao atualizar, talvez, Moreno – revela fenômenos particulares na colonização, como fazendas, por inúmeros motivos, isoladas, onde as relações sociais e de propriedade eram as mesmas, mas o mais-trabalho, o excedente, não se realizava no mercado e, então, era destinado ao senhor de escravos e ao espaço de vivência e trabalho. Já que se trata de um fenômeno efêmero e transitório, chamamos capitalismo latente, por um período apoiado, sustentado, nos aspectos escravistas e culturais.


Desta forma, Santana afirma sobre este fenômeno no Piauí:

"a elevada rentabilidade do açúcar, produto de lavoura exclusivamente comercial, não permitia ao lado dos canaviais a fixação da atividade criatória complementar, porquanto lhe diminuiria as áreas para agricultura. A penetração do interior adveio como consequência." (2001, p. 28)
“[…] Elemento preponderante na formação piauiense, na medida em que concorreu para a integração da área na obra de unidade nacional, apresentou sempre caráter de subsistência, limitando por isso mesmo, as fronteiras econômicas aquém e além do Piauí” (SANTANA, 2001, p. 32.).

Estes estados fora da generalidade foram comuns na colonização da América. A seguir um movimento comparável, mas diferente:


Si hay un lugar de América cuya colonización no es capitalista es el noreste de Estados Unidos, justamente lo contrario de lo que cree Puiggrós. A esta región fueron, o se quedaron, los europeos que querían tierras, clima y producción como las de Europa, pero que no pensaban comerciar com sus países natales, ya que éstos se abastecían por sí mismos de sus productos agrarios¿ Por eso fue una colonización cuyo objetivo era la tierra para implantar una pequeña producción y para abastecerse a sí mismos. Esa inmigración dio origen a un pequeño campesinado que se abastecía a sí mismo y que colocaba en el mercado el ligero sobrante que le quedaba. (…)Pero en Norteamérica hubo una diferencia que resultaría fundamental: el exceso de tierras impidió el crecimiento de una clase terrateniente feudal, aunque hubo intentos de ello. Si nos gustaran las paradojas podríamos decir, contra Puiggrós, que el sur de Estados Unidos y Latinoamérica fueron colonizados en forma capitalista pero sin dar origen a relaciones capitalistas y que el norte de Estados Unidos fue colonizado en forma feudal (campesinos que buscaban tierras y nada más que tierras para autoabastecerse) pero sin relaciones feudales.

Isto demonstra o papel da cultura na formação social. Para considerarmos o desenvolvimento desigual e combinado, precisamos apreciar as quatro partes do todo, abstrações da sociedade:

1.      Infraestrutura ou economia;
2.      Relações de produção, classes sociais, grupos humanos;
3.      Superestrutura subjetiva ou tudo referente à mente humana: valores, filosofias, moral, ideias, ciência etc.
4.      Superestrutura objetiva, ligada ao ponto anterior e ao todo: religião, escola, Estado etc.

Assim, os estados feudais da Europa foram adquirindo duplo caráter, feudal e burguês, na medida em que davam suporte à colonização e ao mercado mundial. O desenvolvimento desigual, diferenciado, das abstrações do concreto geram formações próprias, particulares; para isso, temos de notar e incluir toda a “superestrutura subjetiva” na análise, ou seja, por exemplo, o descobridor desta lei, Leon Trotsky, agregou a mistura do feudalismo com o capitalismo na sociedade russa e, com isso, incluiu na avaliação a entrada da melhor e mais avançada “ciência ocidental” na mentalidade daquele país atrasado, como o socialismo científico[4].

4.      O Brasil é um país capaz de absorver o estrangeiro e sua cultura: uma “vocação romana”. Esta formação econômica-social-cultural particular e complexa é a matéria-prima das combinações, da criatividade, potencializada pela habilidade de absorção do outro, do externo. Este instinto criativo tem se revelado mais nas artes e desporto – dois dos vários tipos de inteligência – que nas ciências e política como consequência da busca burguesa por empobrecimento intelectual da massa.

5.      Em geral, a forte cultura brasileira é fruto das classes trabalhadoras ou apenas se fortalece sob sua permissão informal. Se no começo é negada e combatida, ao se impor e se generalizar, a cultura artística, ao saltar da favela para os apartamentos, degenera em classe média.  Esta “degeneração” não é, em si, uma fraqueza (basta ver a fundação da bossa nova a partir do samba, por exemplo), mas, quando em vez, afasta o criador do interesse pela criatura. Abstraídos os introvertidos de todas as classes, a música, expressão ímpar, é para a dança – em primeiro lugar; entre a classe média, para repousar-se. De maneira mais sinuosa do que supõe uma avaliação mecânica, o perfil de classe influencia as correntes musicais e artísticas. Por isso, sendo os EUA um país mui diferente, mas igual ao Brasil em certos padrões sócio-históricos, podemos ver a relação classe trabalhadora e alta classe média nas mudanças da arte: samba, Soul, Jazz, Blues, choro, rock, funk etc., embora no início negados por meio da crítica e da violência, foram sendo reconhecidos e absorvidos pelos setores aristocráticos, que imprimiram nas expressões artísticas suas características de classe, ligado ao trabalho intelectual e baixo movimento corpóreo – exemplo do sambista Chico Buarque. Assim, multiplicam-se canções sobre “a morte do samba” ou reflexões sobre “a morte do rock”.

6.      O filósofo e sociólogo Bourdieu teorizou o carnaval como o antídoto tupiniquim contra ideais autoritárias, pois, ele supõe, toda a parte doentia e animalizada da sociedade poderia ser ali espessa, consumida. O autor desconsidera, assim, a monarquia, o semifacismo de Getúlio Vargas e a ditadura civil-militar nacional, ou seja, desconsidera informalmente a história. Como se sabe, os brasileiros fetichizam os franceses na mesma proporção em que os franceses fetichizam os brasileiros; na realidade, o contrário: somos festivos, livres, alegres, iguais e amáveis no carnaval porque os não somos no cotidiano e o “fascismo cultural” é uma norma interna, fruto do capitalismo num país atrasado e do passado escravista. A festividade é a hora de sermos aquilo que deveríamos ser e gostaríamos de, mas ainda faltante.

7.      Por causa dos altos níveis de contradição – desenvolvimento desigual e combinado – e miséria, desde a origem do país, a classe dominante aprendeu a ser violentíssima; sendo as ideias da classe dominante as ideias dominantes da sociedade, esta cultura espalha-se pelo cotidiano geral. Ao mesmo tempo, logo percebeu que a complexidade nacional exigiria raciocínio complexo e, por isso, orbita em torno de si o melhor da inteligência desprovida, em geral, de moral humanitária e corruptível pela força moral do dinheiro ou prestígio. Esta união entre brutalidade dos de cima e, junto a isso, a sabedoria dos seus políticos, intelectuais e pensadores pode gerar conflitos quanto quais as melhores soluções, mas tendeu em principal, até agora, a um encontro poderoso e articulado[5]. O poder burguês, na tentativa de manter a ordem do caos e como consequência desta, é bruto e sapiente; ora manobra e ora reprime.

8.      A base da violência verde-amarela é a manutenção da sempre forte disciplina do trabalho. Temos uma das classes trabalhadoras mais disciplinadas do mundo exato porque assim ser não deveria: o mundo tropical oferece alimentação fácil e boa, muita energia solar estimuladora dos corpos e possibilidades de alegria maiores. Se quase todos os índios morreram de tristeza ou doenças importadas, se dá pelo fim do prazer de viver, a um só tempo, com pouco e muito. Neste sentido, nosso território incentiva por si a alegria, a liberdade e a anarquia (no melhor sentido); mas esta tendência é, por todos os meios, bloqueada. Entre os suíços, para citar um exemplo contrário, o frio estimula introversão e leitura, pois este último é um compensador, mecanismo cerebral, para suportar física e psiquicamente os longos invernos (por evidente, esta influência no perfil está por fora, abaixo e interligada às questões sócio-históricas).

Para fugirmos da visão economicista, vejamos o que Marx fala sobre o clima:

“Uma vez pressuposta a produção capitalista e uma dada duração da jornada de trabalho, a grandeza do mais trabalho variará, mantendo-se inalteradas as demais circunstâncias, de acordo com as condições naturais do trabalho, sobretudo com a fertilidade do solo. Mas disso não se segue de modo nenhum, inversamente, que o solo mais fértil seja o mais adequado ao crescimento do modo de produção capitalista. Este supõe o domínio do homem sobre a natureza. “Uma natureza demasiado pródiga conduz o homem com as mãos, como uma criança em andadeiras”. Ela não faz do desenvolvimento do próprio homem uma necessidade natural. A pátria do capital não é o clima tropical, com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada. Não a fertilidade absoluta do solo, mas sua diferenciação, a diversidade de seus produtos naturais é que constitui o fundamento natural da divisão social do trabalho e incita o homem, pela variação das condições naturais em que ele vive, à diversificação de suas próprias necessidades, capacidades, meios de trabalho e modos de trabalhar. É a necessidade de controlar socialmente uma força natural, de poupá-la, de apropriar-se dela ou dominá-la em grande escala mediante obras feitas pela mão do homem o que desempenha o papel mais decisivo na história da indústria. Assim foi, por exemplo, com a regulação das águas no Egito, na Lombardia, Holanda etc. Ou na Índia, Pérsia etc., onde a irrigação, mediante canais artificiais, não só leva ao solo a água indispensável, mas também, com a lama arrastada por ela, o adubo mineral das montanhas. A canalização foi o segredo do florescimento industrial da Espanha e da Sicília sob o domínio árabe.”
“A excelência das condições naturais limita-se a fornecer a possibilidade, jamais a realidade do mais-trabalho, portanto, do mais-valor ou do mais-produto. A diversidade das condições naturais do trabalho faz com que, em países diferentes, a mesma quantidade de trabalho satisfaça a diferentes massas de necessidades que, por conseguinte, sob condições de resto análogas, o tempo de trabalho necessário seja diferente. Tais condições só atuam sobre o mais-trabalho como barreira natural, isto é, determinando o ponto em que pode ter início o trabalho para outrem. Na mesma medida em que a indústria avança, essa barreira natural retrocede. Em plena sociedade europeia ocidental, na qual o trabalhador só adquire a permissão para trabalhar para sua própria subsistência quando oferece em troca o mais-trabalho, é fácil imaginar que o fornecimento de um produto excedente seja uma qualidade inata do trabalho humano. (…)” (K. Marx; O Capital I; Boitempo, versão digital; p. 712, 713,714.)

Vejamos a subjetivação da objetividade por outro ângulo, outra indicação de pesquisa:

Uma nova pesquisa revelou que, usando big data para analisar conjuntos de dados maciços de notícias modernas e históricas, desde mídias sociais a páginas da Wikipédia, pode-se observar padrões periódicos no comportamento coletivo da população, que poderiam passar despercebidos.
(…)
Os dois conjuntos de achados, considerados em conjunto, mostraram que o comportamento coletivo das pessoas segue padrões periódicos fortes e é mais previsível do que se pensava anteriormente. No entanto, estes padrões só podem ser revelados quando se analisa as atividades de um grande número de pessoas durante muito tempo, e até recentemente, esta era uma tarefa muito difícil.
(…)
O professor Nello Cristianini, do Departamento de Engenharia Matemática, disse: “O que emerge é um vislumbre das regularidades do nosso comportamento, que estão escondidas por trás das variações do dia-a-dia em nossas vidas.
(…)
O primeiro artigo, publicado na revista PLOS ONE, analisou 87 anos de jornais dos EUA e do Reino Unido, entre 1836 e 1922. Os pesquisadores descobriram que o lazer e o trabalho das pessoas eram fortemente regulados pelo clima e pelas estações, no Reino Unido e nos EUA.
Grande parte de nossa dieta foi influenciada pelas estações, também, com tempos de pico muito previsíveis para diferentes frutas e alimentos, e até flores, nas notícias históricas. O mesmo foi encontrado para doenças, como a época de pico para o sarampo onde, em ambos os países, foi detectado com mais frequência no final de março ao início de abril. Curiosamente, um indicador forte foi fornecido pela reaparição muito periódica de groselhas, em junho, que não é mais encontrada nas notícias modernas, junto com muitas outras tradições perdidas.
Isso pode parecer óbvio, mas a equipe de pesquisas também notou que certas atividades que costumavam ser altamente regulares, como palestras no Natal, agora quase desapareceram, e foram substituídas por outras atividades periódicas, como o futebol, Ibiza, Oktoberfest. De certa forma, a TV substituiu parcialmente o clima como um fator importante de sincronização da vida das pessoas.
No segundo trabalho, que será apresentado no próximo mês, em uma oficina, na Conferência Internacional de Mineração de Dados (IADC) de 2016, os pesquisadores descobriram que as estações também podem ter fortes efeitos sobre a saúde mental. A equipe analisou o sentimento agregado no Twitter no Reino Unido, acrescido de acesso agregado à Wikipedia durante quatro anos. Eles descobriram que o sentimento negativo é super-exposto no inverno, atingindo o pico em novembro, e a ansiedade e raiva são super-expostos entre setembro e abril.
Ao mesmo tempo, uma análise das visitas da Wikipédia para páginas de saúde mental, globalmente, mas fortemente dominadas pelo tráfego no hemisfério norte, mostrou sazonalidade clara na busca de formas específicas de problemas mentais. Por exemplo, as visitas à página sobre picos de desordens afetivas sazonais ocorrem no final de dezembro e as visitas de transtorno de pânico atingem seu pico em abril, ao mesmo tempo das visitas à página sobre transtorno de estresse agudo.
Juntos, esses dois artigos mostram que o uso de múltiplas fontes de grandes dados podem permitir aos pesquisadores olhar para o comportamento coletivo e, até mesmo, para o humor e a saúde mental de grandes populações, revelando ciclos, pela primeira, vez suspeitos, mas difíceis de se observar.[6] (Grifos nossos.)

Percebe-se, também, uma parcial influência do meio ambiente, além do fator histórico da imigração, no perfil “sulista” no país.

9.      Isto – ponto anterior – se manifesta também, relativa e parcialmente, no modo artístico, na maneira de fazer arte. Enquanto a pintura europeia enfrenta a sombra com cores vivas, a nossa arte usa a sombra como artifício diante da luminosidade; a poesia europeia tende ao intimismo enquanto a nossa é mais explosiva, imensa; a prosa europeia é ativa e a nossa, ao contrário, tende a ser intimista. Esta influência, sendo real, no entanto, está longe de ser absoluta – a criatividade e a liberdade de criação precedem, além do contexto social.

[Título:] Tim Vickery: Como vim ao Brasil para fugir da tirania do inverno, me nego a reclamar do calor
(…)
Cruzei o Atlântico justamente para fugir da tirania do inverno - para adaptar as letras de uma música do grande Gil Scott-Heron, o norte da Europa tem um pouco de inverno na primavera, um pouco de inverno no verão, um pouco de inverno no outono e muito inverno no inverno todo.
É verdade. O verão por lá pode ser lindo, com aquela transição deliciosamente suave entre dia e noite. Mesmo assim, quem mora lá nunca pode escapar da tirania do inverno; quando o sol aparece, bate um desespero para aproveitar do dia, uma incapacidade de relaxar, pois nunca se sabe quando ele vem de novo.
Muito melhor as certezas do verão no Brasil, mesmo com eventuais exageros de temperatura.
Infelizmente, não dá para fugir para sempre. Demorou, mas finalmente o inverno me pegou mais uma vez com suas garras geladas.
A minha mãe machucou as costas e está precisando de ajuda. Já falei para ela que na próxima vez vai ter de sofrer acidentes somente em julho, ou seja, no verão britânico.
Mas respirei fundo e voltei para Inglaterra em plena era do gelo - a primeira vez que estou enfrentando a estação maldita desde 1993/94, e tenho que confessar que não estou reagindo bem.
Como é deprimente aquele frio que entra nos seus ossos, a muralha de pressão que o ar gelado constrói contra o rosto, a escuridão chegando logo depois que o sol pífio apareceu!
(…)
Clima faz uma grande diferença. A título de exemplo, vamos falar novamente de música.
As formas mais populares da música brasileira - samba, forró, frevo, etc. - são tocadas para animar comemorações coletivas, como acontece com boa parte da música africana, produto de um clima quente, onde se pode viver ao ar livre.
A música britânica tem outra característica. Com frequência, pega emprestado aspectos da tradição negra americana com ponto de partida. Mas é mais leve em outros sentidos, e até mais experimental, porque vai seguindo uma visão individual - ou de uma dupla, como Lennon e McCartney, trocando ideias em um quarto pequeno numa gelada e cinzenta tarde de terça-feira.
Ou seja, apesar de tudo, o frio tem o seu valor.[7]

10.  A literatura francesa é a mãe das vanguardas; a inglesa, da criatividade e imaginação; a russa, da teorização literária; a brasileira e, como parte de algo maior, latino-americana, do trabalho literário sobre a linguagem; a estadunidense, do lucro comercial com obras de entretenimento.

11.  Já está demostrado que a “via prussiana” ou “revolução passiva”, mudar para não mudar, “fazer a revolução antes que o povo a faça”[8] etc. é muito presente na política brasileira. Por igual, na cultura isto se expressa quando preferimos a crítica indireta ou “recado indireto” e ironia ao invés da opinião aberta; quando – hábito admirado por estrangeiros – “rimos de nossas próprias desgraças” ou “rir para não chorar”; quando o racismo prefere o boicote silencioso e velado ao combate aberto; quando a mentira e a percepção recíproca e, nas entrelinhas, tolerada da mentira são a mediação comum das relações sociais e pessoais. Ao contrário, por exemplo, da sinceridade excessiva e correção dos perfis russo e suíço, respectivamente.

A artista Elke Maravilha melhor expressa:

[Entrevistador] Você já voltou à Rússia?
Eu fui três vezes à Rússia. Da primeira vez, eu tinha 22 anos. Eu gosto da Rússia, acho legal. Mas não é uma paixão. Eu estive lá duas vezes no alto comunismo e uma vez depois que caiu. Eu gostei.
Eu gostei do povo porque é um povo transparente. Mesmo que ele seja mau ele não tem medo de mostrar o mau que ele é. Então, a gente sabe bem onde está pisando com ele. Ele não fica dando risada da tua cara e depois dá uma facada nas costas, não.
Se ele quiser dar uma facada ele vem direto na tua frente. Nesse ponto eu acho legal. Se estão bravos, estão bravos. São muito amorosos. Dos povos brancos é o mais amoroso e também o mais bravo. É um povo sem filtro. E é bipolar.
[Entrevistador] Seu sucesso no Brasil também se deve ao fato de você ser russa?
Acho que não. Bem, claro que, com a bipolaridade, pode ser. Porque o russo é um povo que ri muito. É um povo que dança muito, que bebe muito e eu sou assim.
Isso talvez ajude, sim. Mas tem o outro lado. O brasileiro não gosta de ouvir as verdades que o russo fala. E eu falo as verdades que o russo fala.[9]

12.  No que se refere ao prussianismo; a cultura brasileira, mais que outras, vai além das contradições entre as partes envolvidas: a oposição se revela, também, interna, para dentro. Dois exemplos: 1) o empresário ama a mulher negra com quem se casou e, na fábrica, desdenha dos currículos “pretos”; 2) ou quando o gênio Machado de Assis, crítico à escravidão e negro, alegrou-se ao embranquecer-se com o embranquecer de sua barba e ao impedir o acesso do negro simbolista Cruz e Sousa à Academia Brasileira de Letras. Um turista, mesmo um turista científico, veria – e, em geral, vê – apenas a aparência das relações, o contrário.

13.  Por ter um território continental e variado e por força dos movimentos humanos nas tragédias históricas nacionais (quilombos, coluna Prestes, bandeirantes, cangaço, soldados da borracha, fuga das secas etc.), a ideia de migração interna está sempre presente como alternativa, desejo, redenção e possível saída na mentalidade brasileira; este valor é reforçado, uma das causas, pelo passado atravessar dos mares de portugueses, europeus e africanos para cá. É a solução pela diáspora, pela mobilidade. Exemplo: no Piauí e parte do nordeste, há uma “diáspora LGBTT”, de pessoas que se mudam para o sul e sudeste do país na busca por serem aceitos, evitarem perseguição psicológica e física, ser o que são e viver a própria sexualidade. O desejo de habitar outros países, tão presente, tem o mesmo sentido cultural e histórico.

14.  A falsa ideologia do brasileiro como preguiçoso crônico é uma mentira necessária para a burguesia, mas também para que o subordinado seja capaz de disciplinar-se e suportar as coisas tal como elas são; junto a isso, revela uma necessidade, um desejo ou tendência latente e natural, mas oculta.

15.  O “jeitinho brasileiro” tem natureza de classe, se expressa de modo diferente e oposto nas classes diferentes. Quando empresários de energia aumentam, com aval do Estado, o preço da energia elétrica de maneira artificial e absurda, temos a expressão burguesa do malandro; além do “sabe com quem está falando?”. Quando, por outro lado, por reação, o trabalhador burla o contador de luz, faz “gatos”, temos a expressão de uma luta de classes invisível. No entanto, sendo a vida difícil, a malandragem adquire também caráter negativo entre assalariados, aqui e ali – a brutalidade e violência cotidianas influenciam a psique.

16.  No cotidiano, o tecido social é permeado por pequenas e informais ilegalidades. Exemplo: a família a esconder a criança no carro para burlar o posto da polícia rodoviária. Todos são “condenáveis” a priori.

17.  A lei brasileira é numerosa, descritiva e complexa, pois confia na repressão acima da cultura, moral geral, reeducação e hábitos (diferente, ao que parece, da legislação inglesa e doutras). “Ordem e progresso.” Aqui, uma lei deixa de “pegar” ao ser incapaz de mudar a vida prática e cultural; ali, “faz o que tu queres, é tudo na lei” quando a repressão deixa de se revelar, seja na educação familiar ou socioestatal – ambos baseados na violência, constrangimento, repressão e ameaça.

18.  A educação familiar é repressora e ensina “teu lugar no mundo” entre a classe trabalhadora – incluso pela falta de tempo, erudição e finanças entre estes; ao contrário, é permissiva e paciente entre os mais enriquecidos, pois os jovens têm, afirmam, “todo um futuro pela frente”.

19.  Em linguagem psicanalítica e psiquiátrica: a burguesia expressa uma personalidade social psicopática; a classe média, e os demais setores intermediários (capatazes etc.), ora equivale à personalidade obsessiva-compulsiva e ora é bipolar; os “de baixo” – escravos ou assalariados precários e o proletariado – encontram-se na personalidade histriônica, no borderline e no transtorno opositor (quilombos etc.) ou, ao contrário, síndrome de Estocolmo. No geral, aclassista, há dupla personalidade.

20.  Como qualquer classe trabalhadora do mundo, a nacional tem instinto classista-político oculto, busca mediações com a situação real e toma decisões e posições por conclusões práticas e imediatas; é muito prática. Ora abraçam a ideologia burguesa do líder individual e messianista e ora, ao mesmo tempo, são desconfiados e analíticos por improviso; as novas gerações, porém, são relativamente mais coletivistas, democráticas quanto aos líderes e desconfiadas.

21.  “O Brasil não é para amadores” revela, então, dois sentidos: um lugar onde é preciso ser esperto/manobrado e, também, onde amar, de fato, é proibido. “Não existe amor em SP.”

22.  No campo da linguagem, o duplo sentido, a sinuosidade sugestiva, as entrelinhas, a entonação, o tom agregador, o dizer a frase pela metade e a musicalidade do falar são uma “expressão prussiana” que nos difere, em boa medida, do modo de se expressar entre os portugueses, mais duro e objetivo. Por outro lado, a diferença de classe gera uma língua brasileira esquizofrênica: fala-se de um modo, escreve-se de outro.  Assim lastreado, até que ponto isto afeta o modo de pensar, trata-se de uma boa pergunta para a psicologia cognitiva.

Sobre este e alguns dos demais pontos, o seguinte relato pessoal:

“O Brasil me mudou”, diz meu companheiro, o espanhol Antonio Jiménez, ao se despedir para retornar à Espanha. E acrescenta: “Fiquei aqui dois anos e meio e volto quinze anos mais jovem”.
(…)
Não é uma pessoa que se entusiasma facilmente. Às vezes parece até chateado com a vida. “É que há tanta coisa neste país que não entendo”, me disse mais de uma vez durante esses anos de sua estada no Brasil.
Antes ele havia sido correspondente em lugares importantes como Paris e Lisboa. É um profissional exigente, especialmente consigo mesmo. Num momento de alívio, aqui, na pequena e bela cidade de Saquarema, aonde veio se despedir de mim e de minha mulher Roseana, confiou-me na orla de uma praia de areia branca e de um mar que mais parecia o Caribe do que o Atlântico:
“Estou indo e é agora que estou me dando conta que este país, em tão pouco tempo, me mudou. Eu me sinto mais leve. O Brasil me ensinou a viver”.
Mas você não me dizia, Antonio, que tinha dificuldade de entender este país? Eu estava convencido de que você estava indo aliviado para sua nova tarefa de responsabilidade na sede do jornal em Madri.
“Sim, é curioso, mas agora entendo melhor que a vida não pode ser vivida sempre sob tensão, que o trabalho não é tudo. Os brasileiros me ensinaram que se pode trabalhar, mas sem se esquecer de deixar espaços para viver momentos de felicidade”.
Diz que o Brasil o fez compreender que na Espanha e na Europa se vive “com excessiva seriedade e irritação”.
E a violência que aflige este país, com o maior número de homicídios do mundo? A violência quase da Idade da Pedra, com corpos desmembrados e decapitados nas prisões que você mesmo relatou no jornal?
Comentamos que, de fato, é uma violência às vezes truculenta e assustadora, mas que convive paradoxalmente com a índole pacífica das pessoas comuns nas relações sociais.
Comentamos que os espanhóis, mais propensos às agressões verbais na comunicação cotidiana, têm dificuldade de entender que é quase impossível ficar zangado com um brasileiro. Não te deixam espaço. Acabam te desarmando.
A sensação ao ouvi-lo é que a metamorfose que sofreu no Brasil o impede de se ver oprimido “pelo que não serve para poder viver a vida”.
(…)
E a crise? E os 12 milhões de desempregados? E o câncer da corrupção política?
Antonio balança a cabeça, olha para o chão e diz que sim, sim, mas que apesar de tudo isso, foi neste país contraditório onde “despertou o desejo de ser mais feliz do que era ao chegar”.[10]

23.  A classe dominante brasileira tenta afirmar-se perante e sobre a América Latina autoalienando-se, às diferentes classes, da percepção de sua identidade latino-americana. Incapaz de expressar isto em todos os terrenos e de modo pleno, toma o futebol e a arte como vias culturais necessárias de “dominação externa”. Ao tentar imitar Portugal, o país tenta ser estrangeiro onde não é.

24.  A luta anti-imperialista na cultura e cultura artística tem cinco aspetos: 1) afirmar a multiplicidade e altíssima criatividade interna – defendê-la, atualizá-la e divulgá-la; 2) internacionalista, absorver de modo não absoluto e resignificar para si a cultura externa e universal – evitando, assim, o nacionalismo culturalista; 3) tratar o outro como matéria-prima; 4) ergue uma autoidentificação com o subcontinente latino-americano; 5) combater a paixão por “querer ser como e imitar o atual império” sempre presente na classe dominante, setores intermediários e, com a globalização, nas classes trabalhadoras.

25.  A tese de Leon Trotsky de que inexiste algo como “cultura proletária” ou, digamos, “dos de baixo” é refutada no Brasil. Isto se dá, por um lado, porque o fundador do Exército Vermelho – que escrevia sobre arte e literatura entre um combate militar e outro – tinha uma visão semi-iluminista da arte-estética, de outro, porque a divisão de classes no Brasil tem certos aspectos de divisão de castas[11][12]. Entre escritores sensíveis ao problema social brasileiro, usam-se os conceitos “Brasil real” e “Brasil oficial” para expressar as diferenciações classistas e culturais. Outra forma de expressar a cultura de classe, para compararmos: os camponeses medievais faziam literatura oral ao redor das fogueiras, à noite, onde contavam histórias de terror aos mais jovens; os palacianos, a aristocracia feudal, partiram dessas lendas e fantasias arrepiantes para criarem os felizes contos de fadas.

26.  A aceleradíssima urbanização brasileira, em curto período histórico, empurra à urbanidade multidões cujos valores são camponeses, arcaicos, mistificadores, do século XIX etc. Ao sentirem na pele as contradições de valores, nas vantagens e desvantagens do mundo urbano, estes sentem uma constante tensão, desconforto com o meio, sensação de despertencimento e refugiam-se nas seitas religiosas. Surge daí a contradição entre seus valores e os valores e necessidades das novas gerações, de seus filhos e netos.

27.  Tom Zé caracteriza o funk carioca como, desecandeado pela Bossa Nova, metarrefrão, microtonal e plurissemiótico. Podemos ampliar: o funk é o equivalente, na música, ao movimento concretista na poesia e outras artes. O poema concreto busca a palavra unidade-energia e permanência sonora; o funk idem pela repetição de palavras e tons musicais. Um dá prioridade ao aspecto físico, da imagem, no poema; o outro, por igual por meio do corpo, do duplo sentido e da onomatopeia. Um é realismo puro; o outro adota o naturalismo, o erotismo e expressa os problemas da favela. Um rompe com o verso; o outro se afasta da musicalidade considerada. Porém, tão errado quanto achar “feio” tudo o que vem da classe trabalhadora é achar “belo” tudo o que dela vem, romantizá-la;  este estilo musical expressa incluso, em sua pobreza estética, a degeneração geral da sociedade. A um só tempo, é análogo e inverso à arte pós-moderna, vazia e burguesa, impacto pelo impacto, forma pela forma e pseudoarte, em “museus de grandes novidades”.

28.  Em todo o mundo e no Brasil tem surgido um novo romantismo baseado no semiletramento das massas, na urbanização e na decadência do capitalismo. Emulação: aquele, dos séculos XVIII e XIX, época das revoluções burguesas, tendia ao amor romântico e erotismo irrealizáveis; o atual, ao triângulo amoroso e ao erotismo vivo. Aquele e este aos mercados e à leitura fácil e fluida. Aquele, aos poemas instintivos, versos livres e atraentes; este, ao poema-trocadilho, rimas rápidas e na velocidade da internet, versos curtos, otimismos e autoajuda. Aquele, ao nacionalismo; este, ao internacionalismo. Aquele, ao fetiche pelo mundo medieval; este, também, por narrativas mistificadas. Aquele tendia à tragédia final; este, à vitória. Aquele, ao individualismo burguês; este, ao individualismo interligado ao conjunto. Aquele se expressou – terceira fase – com a crítica social e simpatia pelos excluídos; este, por ideias de revolta, revolução, antiburocráticas e antiditatoriais, instinto rebelde e sensação intuitiva de anormalidade e artificialidade do tempo presente. Este se revela na ficção científica, na distopia, como crítica social metafórica. Na prosa e séries televisivas, há preferência por histórias profundas e longas como compensadores do vazio existencial, da rotina, da solidão coletiva, da passividade comum e dos aspectos rasos nas relações e vida pessoais. O ponto negativo da integração internacional – expressa numa tendência a uma cultura universal ao lado e em conjunto das particularidades – está na “integração cultural de colônia”, dedicada à tradução da literatura de entretenimento estrangeira e desprezo pela de origem nacional.

29.  Há uma constante guerra invisível entre dinheiro e cultura. Uma das expressões disso é o baixíssimo nível das expressões culturais famosas, apesar da enorme quantidade de talentos existente; além do mais, fazer boa arte, trabalho análogo ao do artesão, exige tempo, tudo o que a economia monetária nega. Outra, o enquadramento do carnaval por meio de sua institucionalização e mercantilização, tirando da classe trabalhadora o perfil ativo e central nos eventos oficiais, empurrando os foliões, por instinto, a reorganizar os blocos de rua, gratuitos e mais anárquicos:


O carnaval – festa pagã que nasceu nas ruas e foi enquartelada em clubes e sambódramos – está de volta ás ruas (e de graça) com mais força a cada ano.
São Paulo, onde a celebração pro tempos se resumiu ao Anhembi, viu o número de blocos de rua crescer 400% em dois anos. Em 2015, 300 deles tomarão a cidade, 80 a mais que no ano passado, quando, segundo a SPTuris (empresa de turismo municipal), cada um recebeu 5.000 pessoas, em média.
No Ro, onde a festa atrai mais foliões, os 456 blocos deverão reunir 5 milhões de pessoas nas ruas, diz o Riotur (empresa municipal de turismo). Enquanto isso, o desfile da Sapucaí (cujo ingresso não sai por menos de R$ 160) costuma ter 1 milhão.
Essa multidão ai atrás de blocos como Cordão da Bola Preta, no Rio, que sozinho arrastou cerca de 1,5 milhão de pessoas no ano passado, e Agora Vai e Sargento Pimenta, em São Paulo, muitos deles com desfiles semanas antes do carnaval, que este ano começa no sábado dia 14 de fevereiro.
(…)
Salvador – que sempre loteou suas ruas separando quem tem abadá (o uniforme do bloco) da chamada “pipoca”, pela primeira vez terá um dia de pré-carnaval, no dia 8, com trios elétricos desfilando sem as cordas.
“Na pipoca você é igual. O carnaval verdadeiro é aquele em que o povo sai para se manifestar coma fantasia que quiser”, diz Edgard Oliva, 58, professor da Escola de Belas Artes da Bahia.[13]


30.  Assim, se os russos tendem a uma personalidade geral de explosão emocional, brutalidade e aventura (Lenin, Trotsky); os estadunidenses, ao empreendedorismo e cisma pelo trabalho (Trotsky, Gramsci); os franceses, à desorganização (Engels, Trotsky); os alemães, ao jeito duro e formal etc.; os brasileiros expressam uma personalidade mediadora, no que há de positivo e negativo nisso, além de uma oposição – também mediada e autofundida – entre comunhão criativa e violência. Entre outras manifestações, isto acaba por se expressar na política externa do Brasil, diplomática e mediada entre polos.

31.  A personalidade de um “povo” deve-se ao presente e ao passado históricos. Mudadas as circunstâncias, a sociabilidade, muda-se o “espírito” nacional, com algum atraso e em grande medida.

32.  A luta pelo socialismo tem na luta cultural uma tarefa secundária e auxiliar; a revolução apenas pode ser vitoriosa se, em primeiro, for ganha no terreno da economia e das relações sociais. Como se sabe, também pelo perfil histórico, o trabalhador brasileiro é progressista nas questões econômicas e conservador nas demais questões e pautas (culturais, democráticas, etc.). Sendo apoio, o trabalho sobre os hábitos e valores cotidianos pode adquirir várias formas: centros culturais populares, células ateias e agnósticas para – ao invés de limitar-se à mera, e muitas vezes sectária, crítica – divulgar nos bairros populares as ciências naturais de modo apreensível à maioria, união dos sindicatos combativos para promoção regular de atividades e festas aos finais de semana, crítica aberta e consciente da cultura, propostas práticas, colégios mantidos por sindicatos, mutirões pela alfabetização, disputa ideológica, disputa metodológica, defender a liberdade da arte etc.

33.  A revolução brasileira – caso ocorra e seja vitoriosa – incluirá uma ruptura cultural, de tradição, em dois sentidos: de um lado, romperá com o método prussiano nas suas mais diferentes formas e o revelará, de outro, o próprio processo revolucionário ao mesmo tempo muda a cultura e exige reeducação cultural e psicológica. No socialismo, na medida em que o novo regime social consolida-se interna e externamente, a luta pela reeducação geral ganhará – potencializando os aspectos em si positivos do atual modo de vida – cada vez mais centralidade.

34.  Desde o início dos anos 1980 o Brasil tornou-se outro, sendo o mesmo. A alta urbanização, a globalização, o longo período de democracia burguesa, o semiletramento geral, a internet, o perfil da nova juventude, o autoisolamento da classe média aristocrática, as igrejas evangélicas etc. têm alterado, dentro do mesmo país, o perfil nacional. Por isso, intelectuais e artistas do período anterior sentiram-se e sentem-se estrangeiros e estranhados na nova realidade; refugiaram-se em pequenos círculos, isolaram-se ou continuam seus trabalhos em públicos limitados.

35.  O desenvolvimento teórico-filosófico burguês brasileiro tem por objetivo íntimo fugir da natureza própria da realidade nacional, escapar dela e escapar-se, na medida de sua dureza. Por outro lado, surgem semi-intelectuais e intelectuais Sui Generis localizados entre o popular e o erudito, o chão e o ar; íntimo a isto e interligado, surgem também indivíduos de talento a possuir perfis páreas, no limbo, ostracistas, entremundos e desclassados (Sousândrade, Tom Zé, Cruz e Sousa, Lima Barreto etc.).

36.  Por esta razão, pelas características do país, intelectuais de esquerda e honestos, ligados à superestrutura universidade burguesa, tendem rumo à corrente gramsciana (embora, em essência e na prática, neguem o teórico) focada, em primeiro lugar, nas superestruturas, ou seja, o Estado e a cultura/pensamento – em especial. Tratam estes objetos enquanto formas autônomas, abstraídas do todo, e determinantes: invertem, de cabeça para baixo, ao “elevarem a cabeça”, o método marxista.  Em suma, trata-se um marxismo, em boa medida, dotado de desvio “prussianista” – prática, social e teoricamente.

37.  Os intelectuais marxistas europeus do pós-II Guerra eram limitados porque a sociedade onde viviam gozava, em geral, de alta qualidade de vida (Mandel, Sartre, Althusser etc.). Os pensadores assalariados partidários da classe operária no Brasil estão em constância diante do desafio de entender a miséria material e espiritual das massas, pois isso tendem a um perfil mais radicalizado e qualificado – entre estes, alguns buscam a práxis como parte vital da autoformação.

38.  Tentar compreender a formação social do Brasil apenas pela economia é semimarxismo, determinismo econômico. Uma análise completa exige estudar a sociedade completa.






Foto: https://capoeiraeantropologia.wordpress.com/


[1] Cuatro Tesis sobre la Colonización española yportuguesa en América; Nahuel Moreno; 1948.
[2] Idem.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=YUJKgDXSo-o
[4]Não esqueçamos, caros ouvintes, que o atraso histórico é uma noção relativa. Se existem países atrasados e avançados, há também uma ação recíproca entre eles. Há a opressão dos países avançados sobre os retardatários, bem como a necessidade para os países atrasados de alcançar aqueles mais adiantados, adquirir-lhes a técnica, a ciência etc. Assim surgiu um tipo combinado de desenvolvimento: as características mais atrasadas se ligam à última palavra da técnica e do pensamento mundiais. Enfim, os países historicamente atrasados são por vezes obrigados a ultrapassar os demais. A elasticidade da consciência coletiva confere a possibilidade de conseguir, em certas condições, sobre a arena social, o resultado que em psicologia individual se chama “compensação”. Pode-se afirmar, neste sentido, que a Revolução de Outubro foi para os povos da Rússia um meio heroico de superar sua própria inferioridade econômica e cultural.” (Conferência pronunciada por Leon Trotsky em 27 de novembro de 1932, em Copenhague, Dinamarca. Este texto foi publicado na Revista Marxismo Vivo nº 16.)

[5] Exemplo: a burguesia exigia de Getúlio Vargas a repressão total do movimento operário; o ditador, no entanto, preferiu fundar um novo sindicalismo legal e estatal, “pelego”. Aliás, a ditadura getulhista ocorreu por dois fatores: a) derrotar o movimento operário; b) preservar e modernizar Estado burguês diante das duras lutas irresolvíveis entre frações da classe dominante. 
[6] http://www.universoracionalista.org/megadados-nos-mostram-que-o-comportamento-coletivo-das-pessoas-segue-fortes-padroes-periodicos/
[7] *Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick. Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/blog-tim-vickery-38766194?ocid=socialflow_facebook
[8] 1) Autonomia nacional em relação à Portugal. Foi possível graças, primeiro, à fuga da Coroa Portuguesa para cá. Depois, com a declaração de independência. Por toda a América Latina existiram revoluções de libertação nacional, guerras. No território tupiniquim, no entanto – mesmo considerando a heroica batalha do Jenipapo –, deu-se mudança pelas alturas, por ação da classe dominante, sem riscos, via mecanismos formais. 2) Fim da escravidão. A onda de fugas e boicotes nas lavouras – preparadas por organizações clandestinas – foram a causa central, embora não reconhecida oficialmente. Porém, a Princesa Isabel e a o governo souberam manobrar a situação para que a mudança fosse controlada e não revolucionária. Os EUA e Haiti, para citar dois países, necessitaram do método da guerra civil. 3) A proclamação da república. Deu-se via golpe, por alto, desprovido de ação popular. 4) Fim da ditadura semifascista de Vargas. O próprio governo adotou medidas liberalizantes: a ditadura caiu por medidas de decreto dispensando qualquer revolução – o mal-estar ainda ensaiava. Deu-se, então, margem para que Getúlio fosse eleito presidente por mecanismos da democracia representativa. 5) Fim da ditadura militar. As Diretas Já foram derrotadas. Os militares negaram-se a ceder, a aceitar vias populares de mudança. Porém, com a insatisfação social acumulada, permitiram a mudança do regime de Estado por via segura, pacífica, controlada, oficial. Enquanto boa parte da América Latina e do mundo derrotaram os regimes policiais através de revoluções, o Brasil – ao contrário – mediou.
[9] http://gazetarussa.com.br/articles/2012/03/16/as_verdades_de_elke_maravilha_14319
[10] http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/10/opinion/1486758331_668734.html
[11] “Na verdade, o mal-estar dos antropólogos com a progressiva substituição dos estudos sobre relações raciais, nas quais os sujeitos e os significados culturais eram realçados, por estudos de desigualdades e de racismo, nos quais os aspectos estruturais são enfatizados, já se manifestara antes, nos anos 1980, quando Roberto DaMatta (1990), em um artigo que se tornou famoso –A fábula das três raças –, utilizando-se fartamente do estruturalismo e das categorias de Dumont, procura explicar "o racismo à brasileira" como uma construção cultural ímpar e específica. A noção de pessoa e as relações pessoais, no dizer de Roberto, substituem, no Brasil, a noção de indivíduo, para recriar, em pleno reino formal da cidadania, a hierarquia racial, ameaçada com o fim da escravatura e da sociedade de castas. A proposta teórica de DaMatta é clara: o Brasil não é uma sociedade igualitária de feição clássica, pois convive bem com hierarquias sociais e privilégios, é entrecortada por dois padrões ideológicos, ainda que não seja exatamente uma sociedade hierárquica de tipo indiano.” (Preconceito de cor e racismo no Brasil, 2004, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães Professor do Departamento de Sociologia – USP.) Considerar o escravismo uma relação de castas é um exagero teórico, mas há elementos da verdade nessa visão.
[12] Isso também se mostra na frase “a classe média quer privilégios, não direitos” enquanto necessidade de diferenciação e autoconfirmação.
[13] http://www1.folha.uol.com.br/turismo/2015/01/1581683-carnaval-de-rua-cresce-no-pais-veja-selecao-de-33-blocos-em-cinco-estados.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário