ESBOÇO SOBRE A
CULTURA DO BRASIL
[Versão preliminar - apêndice do livro Teses para o Fim do Capitalismo (aqui).]
1. Ao notarem as particularidades da
formação social brasileira, pensadores e sábios tentaram encontrar a essência
do Brasil por meio de sua cultura, ou seja, por um meio idealista e
superestrutural. As diferenças nacionais são, no entanto, parciais e não
essenciais dentro da universalidade humana. E de modo oposto, o marxismo
nacional parece ter avançado pouco nesta questão, incluso as miudezas e
“pequenos nadas” (Trotsky, Questões do Modo de Vida).
2. O argentino Nahuel Moreno usou a
lei do desenvolvimento desigual e combinado para demonstrar a formação do
Brasil: no século XVI, surgira destinado ao capitalismo, ao mercado mundial;
porém, para isso, teve de usar relações de produção de outro sistema, o escravista.
Esta desigualdade combinada pode ser
expressa, também, no campo da cultura: economia capitalista, relações de
produção escravistas mais – e mas –
cultura medieval europeia e as primitivas africana e indígena. Uma
geleia geral. Isto posto, o peso do capitalismo (infraestrutura) e do
escravismo (estrutura), e a contradição interna daí derivada, do mesmo modo e
acima direcionaram a cultura.
“La
colonización española, portuguesa, inglesa, francesa y holandesa en América fue
esencialmente capitalista. Sus objetivos fueron capitalistas y no feudales:
organizar la producción y los descubrimientos para efectuar ganancias
prodigiosas y para colocar mercancías en el mercado mundial. No inauguraron un
sistema de producción capitalista porque no había en América um ejercito de
trabajadores libres en el mercado. Es así como los colonizadores para poder
explotar capitalísticamente a América se ven obligados a recurrir a relaciones
de producción no capitalista: la esclavitud o una semi-esclavitud de los indígenas.
Producción y descubrimientos por objetivos capitalistas; relaciones esclavas o
semi-esclavas; formas y terminologías feudales (al igual que el capitalismo
mediterráneo) son los tres pilares en que se asentó la colonización de
América”.[1]
Esta
expressão cultural se expressa nas palavras, embora Moreno tenha pouco
considerado isso:
Los
inmensos poderes otorgados a los donatarios tampoco significan feudalismo; esos
poderes todavía existen en nuestros días. El jefe de una escuadra en alta mar,
los comandantes de los ejércitos, los gobernadores en ocasiones excepcionales
disponen todavía hoy de poderes casi tan grandes corno los concedidos a
aquellos donatarios. Estamos, pues, seguros de que nuestras donaciones, dejando
de lado el carácter hereditario de las concesiones, sólo son feudales en los
términos, muchos de ellos todavía hoy en uso. Puédese alegar que en lo que
concierne a las concesiones su aspecto jurídico se asemeja a las instituciones
feudales. Pero esto se observa también en la actualidad. El régimen de nuestras
minas se caracteriza porque el poseedor de la mina no es sino un concesionario,
que así la trabaja, ejerciendo una función social”.[2]
Para
demonstramos como isto se alargou até nossos dias; em entrevista ao programa
Roda Viva (13/05/2013[3]),
o escritor peruano Mario Vargas Llosa exemplifica a influência cultural
medieva:
Repórter:
E encontrou realmente [ao visitar o interior da Bahia] a idade média de Os
Sertões [de Euclides da Cunha] (…)?
Achei
coisas maravilhosas… que não acreditei. Achei trovadores ambulantes que
cantavam romances portugueses medievais. Que falavam dos 12 pares da França num
povoado chamado Uauá. Eu não podia acreditar nisso! Tocando a baguala, cantando
romances portugueses medievais… Era entrar num mundo de quase fantasia, um
mundo de fantasia; era pura literatura.
Temos
no cangaço a versão de Robin Hood; no vaqueiro e seu facão, o cavaleiro; na
religiosidade, a manutenção de símbolos e alguns valores; no cancioneiro e
repetentistas, os travadores; no jeito “errado” de falar, resquícios na sintaxe
e palavras do português original etc. A literatura tem explorado com mestria
este aspecto singular – o movimento armorial, por exemplo, impulsionado por
Ariano Suassuna – da cultura como um medievalismo rústico, sertanejo.
3. A tese anterior – ao atualizar,
talvez, Moreno – revela fenômenos particulares na colonização, como fazendas,
por inúmeros motivos, isoladas, onde as relações sociais e de propriedade eram
as mesmas, mas o mais-trabalho, o excedente, não se realizava no mercado e,
então, era destinado ao senhor de escravos e ao espaço de vivência e trabalho.
Já que se trata de um fenômeno efêmero e transitório, chamamos capitalismo
latente, por um período apoiado, sustentado, nos aspectos escravistas e
culturais.
Desta
forma, Santana afirma sobre este fenômeno no Piauí:
"a
elevada rentabilidade do açúcar, produto de lavoura exclusivamente comercial,
não permitia ao lado dos canaviais a fixação da atividade criatória
complementar, porquanto lhe diminuiria as áreas para agricultura. A penetração
do interior adveio como consequência." (2001, p. 28)
“[…]
Elemento preponderante na formação piauiense, na medida em que concorreu para a
integração da área na obra de unidade nacional, apresentou sempre caráter de
subsistência, limitando por isso mesmo, as fronteiras econômicas aquém e além
do Piauí” (SANTANA, 2001, p. 32.).
Estes
estados fora da generalidade foram comuns na colonização da América. A seguir
um movimento comparável, mas diferente:
Si
hay un lugar de América cuya colonización no es capitalista es el noreste de
Estados Unidos, justamente lo contrario de lo que cree Puiggrós. A esta región
fueron, o se quedaron, los europeos que querían tierras, clima y producción
como las de Europa, pero que no pensaban comerciar com sus países natales, ya
que éstos se abastecían por sí mismos de sus productos agrarios¿ Por eso fue
una colonización cuyo objetivo era la tierra para implantar una pequeña
producción y para abastecerse a sí mismos. Esa inmigración dio origen a un
pequeño campesinado que se abastecía a sí mismo y que colocaba en el mercado el
ligero sobrante que le quedaba. (…)Pero en Norteamérica hubo una diferencia que
resultaría fundamental: el exceso de tierras impidió el crecimiento de una
clase terrateniente feudal, aunque hubo intentos de ello. Si nos gustaran las
paradojas podríamos decir, contra Puiggrós, que el sur de Estados Unidos y
Latinoamérica fueron colonizados en forma capitalista pero sin dar origen a
relaciones capitalistas y que el norte de Estados Unidos fue colonizado en
forma feudal (campesinos que buscaban tierras y nada más que tierras para
autoabastecerse) pero sin relaciones feudales.
Isto
demonstra o papel da cultura na formação social. Para considerarmos o
desenvolvimento desigual e combinado, precisamos apreciar as quatro partes do
todo, abstrações da sociedade:
1.
Infraestrutura
ou economia;
2.
Relações
de produção, classes sociais, grupos humanos;
3.
Superestrutura
subjetiva ou tudo referente à mente humana: valores, filosofias, moral, ideias,
ciência etc.
4.
Superestrutura
objetiva, ligada ao ponto anterior e ao todo: religião, escola, Estado etc.
Assim, os estados feudais da
Europa foram adquirindo duplo caráter, feudal e burguês, na medida em que davam
suporte à colonização e ao mercado mundial. O desenvolvimento desigual,
diferenciado, das abstrações do concreto geram formações próprias,
particulares; para isso, temos de notar e incluir toda a “superestrutura
subjetiva” na análise, ou seja, por exemplo, o descobridor desta lei, Leon
Trotsky, agregou a mistura do feudalismo com o capitalismo na sociedade russa
e, com isso, incluiu na avaliação a entrada da melhor e mais avançada “ciência
ocidental” na mentalidade daquele país atrasado, como o socialismo científico[4].
4. O Brasil é um país capaz de
absorver o estrangeiro e sua cultura: uma “vocação romana”. Esta formação
econômica-social-cultural particular e complexa é a matéria-prima das
combinações, da criatividade, potencializada pela habilidade de absorção do
outro, do externo. Este instinto criativo tem se revelado mais nas artes e
desporto – dois dos vários tipos de inteligência – que nas ciências e política
como consequência da busca burguesa por empobrecimento intelectual da massa.
5. Em geral, a forte cultura
brasileira é fruto das classes trabalhadoras ou apenas se fortalece sob sua
permissão informal. Se no começo é negada e combatida, ao se impor e se
generalizar, a cultura artística, ao saltar da favela para os apartamentos,
degenera em classe média. Esta “degeneração”
não é, em si, uma fraqueza (basta ver a fundação da bossa nova a partir do
samba, por exemplo), mas, quando em vez, afasta o criador do interesse pela
criatura. Abstraídos os introvertidos de todas as classes, a música, expressão
ímpar, é para a dança – em primeiro lugar; entre a classe média, para
repousar-se. De maneira mais sinuosa do que supõe uma avaliação mecânica, o
perfil de classe influencia as correntes musicais e artísticas. Por isso, sendo
os EUA um país mui diferente, mas igual ao Brasil em certos padrões
sócio-históricos, podemos ver a relação classe trabalhadora e alta classe média
nas mudanças da arte: samba, Soul, Jazz, Blues, choro, rock, funk etc., embora
no início negados por meio da crítica e da violência, foram sendo reconhecidos
e absorvidos pelos setores aristocráticos, que imprimiram nas expressões
artísticas suas características de classe, ligado ao trabalho intelectual e
baixo movimento corpóreo – exemplo do sambista Chico Buarque. Assim,
multiplicam-se canções sobre “a morte do samba” ou reflexões sobre “a morte do
rock”.
6. O filósofo e sociólogo Bourdieu
teorizou o carnaval como o antídoto tupiniquim contra ideais autoritárias,
pois, ele supõe, toda a parte doentia e animalizada da sociedade poderia ser
ali espessa, consumida. O autor desconsidera, assim, a monarquia, o semifacismo
de Getúlio Vargas e a ditadura civil-militar nacional, ou seja, desconsidera
informalmente a história. Como se sabe, os brasileiros fetichizam os franceses
na mesma proporção em que os franceses fetichizam os brasileiros; na realidade,
o contrário: somos festivos, livres, alegres, iguais e amáveis no carnaval
porque os não somos no cotidiano e o “fascismo cultural” é uma norma interna,
fruto do capitalismo num país atrasado e do passado escravista. A festividade é
a hora de sermos aquilo que deveríamos ser e gostaríamos de, mas ainda
faltante.
7. Por causa dos altos níveis de
contradição – desenvolvimento desigual e combinado – e miséria, desde a origem
do país, a classe dominante aprendeu a ser violentíssima; sendo as ideias da
classe dominante as ideias dominantes da sociedade, esta cultura espalha-se
pelo cotidiano geral. Ao mesmo tempo, logo percebeu que a complexidade nacional
exigiria raciocínio complexo e, por isso, orbita em torno de si o melhor da
inteligência desprovida, em geral, de moral humanitária e corruptível pela
força moral do dinheiro ou prestígio. Esta união entre brutalidade dos de cima
e, junto a isso, a sabedoria dos seus políticos, intelectuais e pensadores pode
gerar conflitos quanto quais as melhores soluções, mas tendeu em principal, até
agora, a um encontro poderoso e articulado[5]. O
poder burguês, na tentativa de manter a ordem do caos e como consequência
desta, é bruto e sapiente; ora manobra e ora reprime.
8. A base da violência verde-amarela
é a manutenção da sempre forte disciplina do trabalho. Temos uma das classes
trabalhadoras mais disciplinadas do mundo exato porque assim ser não deveria: o
mundo tropical oferece alimentação fácil e boa, muita energia solar
estimuladora dos corpos e possibilidades de alegria maiores. Se quase todos os
índios morreram de tristeza ou doenças importadas, se dá pelo fim do prazer de
viver, a um só tempo, com pouco e muito. Neste sentido, nosso território
incentiva por si a alegria, a liberdade e a anarquia (no melhor sentido); mas
esta tendência é, por todos os meios, bloqueada. Entre os suíços, para citar um
exemplo contrário, o frio estimula introversão e leitura, pois este último é um
compensador, mecanismo cerebral, para suportar física e psiquicamente os longos
invernos (por evidente, esta influência no perfil está por fora, abaixo e
interligada às questões sócio-históricas).
Para fugirmos da visão
economicista, vejamos o que Marx fala sobre o clima:
“Uma
vez pressuposta a produção capitalista e uma dada duração da jornada de
trabalho, a grandeza do mais trabalho variará, mantendo-se inalteradas as
demais circunstâncias, de acordo com as condições naturais do trabalho,
sobretudo com a fertilidade do solo. Mas disso não se segue de modo nenhum,
inversamente, que o solo mais fértil seja o mais adequado ao crescimento do
modo de produção capitalista. Este supõe o domínio do homem sobre a natureza.
“Uma natureza demasiado pródiga conduz o homem com as mãos, como uma criança em
andadeiras”. Ela não faz do desenvolvimento do próprio homem uma necessidade
natural. A pátria do capital não é o clima tropical, com sua vegetação
exuberante, mas a zona temperada. Não a fertilidade absoluta do solo, mas sua
diferenciação, a diversidade de seus produtos naturais é que constitui o fundamento
natural da divisão social do trabalho e incita o homem, pela variação das
condições naturais em que ele vive, à diversificação de suas próprias
necessidades, capacidades, meios de trabalho e modos de trabalhar. É a
necessidade de controlar socialmente uma força natural, de poupá-la, de
apropriar-se dela ou dominá-la em grande escala mediante obras feitas pela mão
do homem o que desempenha o papel mais decisivo na história da indústria. Assim
foi, por exemplo, com a regulação das águas no Egito, na Lombardia, Holanda
etc. Ou na Índia, Pérsia etc., onde a irrigação, mediante canais artificiais,
não só leva ao solo a água indispensável, mas também, com a lama arrastada por
ela, o adubo mineral das montanhas. A canalização foi o segredo do
florescimento industrial da Espanha e da Sicília sob o domínio árabe.”
“A
excelência das condições naturais limita-se a fornecer a possibilidade, jamais
a realidade do mais-trabalho, portanto, do mais-valor ou do mais-produto. A
diversidade das condições naturais do trabalho faz com que, em países
diferentes, a mesma quantidade de trabalho satisfaça a diferentes massas de
necessidades que, por conseguinte, sob condições de resto análogas, o tempo de
trabalho necessário seja diferente. Tais condições só atuam sobre o mais-trabalho
como barreira natural, isto é, determinando o ponto em que pode ter início o
trabalho para outrem. Na mesma medida em que a indústria avança, essa barreira
natural retrocede. Em plena sociedade europeia ocidental, na qual o trabalhador
só adquire a permissão para trabalhar para sua própria subsistência quando
oferece em troca o mais-trabalho, é fácil imaginar que o fornecimento de um
produto excedente seja uma qualidade inata do trabalho humano. (…)” (K. Marx; O
Capital I; Boitempo, versão digital; p. 712, 713,714.)
Vejamos
a subjetivação da objetividade por outro ângulo, outra indicação de pesquisa:
Uma
nova pesquisa revelou que, usando big data para analisar conjuntos de dados
maciços de notícias modernas e históricas, desde mídias sociais a páginas da
Wikipédia, pode-se observar padrões periódicos no comportamento coletivo da
população, que poderiam passar despercebidos.
(…)
Os
dois conjuntos de achados, considerados em conjunto, mostraram que o
comportamento coletivo das pessoas segue padrões periódicos fortes e é mais
previsível do que se pensava anteriormente. No entanto, estes padrões só podem
ser revelados quando se analisa as atividades de um grande número de pessoas
durante muito tempo, e até recentemente, esta era uma tarefa muito difícil.
(…)
O
professor Nello Cristianini, do Departamento de Engenharia Matemática, disse:
“O que emerge é um vislumbre das regularidades do nosso comportamento, que
estão escondidas por trás das variações do dia-a-dia em nossas vidas.
(…)
O
primeiro artigo, publicado na revista PLOS ONE, analisou 87 anos de jornais dos
EUA e do Reino Unido, entre 1836 e 1922. Os pesquisadores descobriram que o
lazer e o trabalho das pessoas eram fortemente regulados pelo clima e pelas
estações, no Reino Unido e nos EUA.
Grande
parte de nossa dieta foi influenciada pelas estações, também, com tempos de
pico muito previsíveis para diferentes frutas e alimentos, e até flores, nas
notícias históricas. O mesmo foi encontrado para doenças, como a época de pico
para o sarampo onde, em ambos os países, foi detectado com mais frequência no
final de março ao início de abril. Curiosamente, um indicador forte foi
fornecido pela reaparição muito periódica de groselhas, em junho, que não é
mais encontrada nas notícias modernas, junto com muitas outras tradições
perdidas.
Isso
pode parecer óbvio, mas a equipe de pesquisas também notou que certas
atividades que costumavam ser altamente regulares, como palestras no Natal,
agora quase desapareceram, e foram substituídas por outras atividades periódicas,
como o futebol, Ibiza, Oktoberfest. De certa forma, a TV substituiu
parcialmente o clima como um fator importante de sincronização da vida das
pessoas.
No
segundo trabalho, que será apresentado no próximo mês, em uma oficina, na
Conferência Internacional de Mineração de Dados (IADC) de 2016, os pesquisadores descobriram que as
estações também podem ter fortes efeitos sobre a saúde mental. A equipe
analisou o sentimento agregado no Twitter no Reino Unido, acrescido de acesso
agregado à Wikipedia durante quatro anos. Eles
descobriram que o sentimento negativo é super-exposto no inverno, atingindo o
pico em novembro, e a ansiedade e raiva são super-expostos entre setembro e
abril.
Ao
mesmo tempo, uma análise das visitas da Wikipédia para páginas de saúde mental,
globalmente, mas fortemente dominadas pelo tráfego no hemisfério norte, mostrou
sazonalidade clara na busca de formas específicas de problemas mentais. Por
exemplo, as visitas à página sobre picos de desordens afetivas sazonais ocorrem
no final de dezembro e as visitas de transtorno de pânico atingem seu pico em
abril, ao mesmo tempo das visitas à página sobre transtorno de estresse agudo.
Juntos,
esses dois artigos mostram que o uso de múltiplas fontes de grandes dados podem
permitir aos pesquisadores olhar para o comportamento coletivo e, até mesmo,
para o humor e a saúde mental de grandes populações, revelando ciclos, pela
primeira, vez suspeitos, mas difíceis de se observar.[6]
(Grifos nossos.)
Percebe-se,
também, uma parcial influência do meio ambiente, além do fator histórico da
imigração, no perfil “sulista” no país.
9. Isto – ponto anterior – se
manifesta também, relativa e parcialmente, no modo artístico, na maneira de
fazer arte. Enquanto a pintura europeia enfrenta a sombra com cores vivas, a
nossa arte usa a sombra como artifício diante da luminosidade; a poesia
europeia tende ao intimismo enquanto a nossa é mais explosiva, imensa; a prosa
europeia é ativa e a nossa, ao contrário, tende a ser intimista. Esta
influência, sendo real, no entanto, está longe de ser absoluta – a criatividade
e a liberdade de criação precedem, além do contexto social.
[Título:]
Tim Vickery: Como vim ao Brasil para fugir da tirania do inverno, me nego a
reclamar do calor
(…)
Cruzei
o Atlântico justamente para fugir da tirania do inverno - para adaptar as
letras de uma música do grande Gil Scott-Heron, o norte da Europa tem um pouco
de inverno na primavera, um pouco de inverno no verão, um pouco de inverno no
outono e muito inverno no inverno todo.
É
verdade. O verão por lá pode ser lindo, com aquela transição deliciosamente
suave entre dia e noite. Mesmo assim, quem mora lá nunca pode escapar da
tirania do inverno; quando o sol aparece, bate um desespero para aproveitar do
dia, uma incapacidade de relaxar, pois nunca se sabe quando ele vem de novo.
Muito
melhor as certezas do verão no Brasil, mesmo com eventuais exageros de
temperatura.
Infelizmente,
não dá para fugir para sempre. Demorou, mas finalmente o inverno me pegou mais
uma vez com suas garras geladas.
A
minha mãe machucou as costas e está precisando de ajuda. Já falei para ela que
na próxima vez vai ter de sofrer acidentes somente em julho, ou seja, no verão
britânico.
Mas
respirei fundo e voltei para Inglaterra em plena era do gelo - a primeira vez
que estou enfrentando a estação maldita desde 1993/94, e tenho que confessar
que não estou reagindo bem.
Como
é deprimente aquele frio que entra nos seus ossos, a muralha de pressão que o
ar gelado constrói contra o rosto, a escuridão chegando logo depois que o sol
pífio apareceu!
(…)
Clima
faz uma grande diferença. A título de exemplo, vamos falar novamente de música.
As
formas mais populares da música brasileira - samba, forró, frevo, etc. - são
tocadas para animar comemorações coletivas, como acontece com boa parte da
música africana, produto de um clima quente, onde se pode viver ao ar livre.
A
música britânica tem outra característica. Com frequência, pega emprestado
aspectos da tradição negra americana com ponto de partida. Mas é mais leve em
outros sentidos, e até mais experimental, porque vai seguindo uma visão
individual - ou de uma dupla, como Lennon e McCartney, trocando ideias em um
quarto pequeno numa gelada e cinzenta tarde de terça-feira.
Ou
seja, apesar de tudo, o frio tem o seu valor.[7]
10. A literatura francesa é a mãe das
vanguardas; a inglesa, da criatividade e imaginação; a russa, da teorização
literária; a brasileira e, como parte de algo maior, latino-americana, do
trabalho literário sobre a linguagem; a estadunidense, do lucro comercial com
obras de entretenimento.
11. Já está demostrado que a “via
prussiana” ou “revolução passiva”, mudar para não mudar, “fazer a revolução
antes que o povo a faça”[8]
etc. é muito presente na política brasileira. Por igual, na cultura isto se
expressa quando preferimos a crítica indireta ou “recado indireto” e ironia ao
invés da opinião aberta; quando – hábito admirado por estrangeiros – “rimos de
nossas próprias desgraças” ou “rir para não chorar”; quando o racismo prefere o
boicote silencioso e velado ao combate aberto; quando a mentira e a percepção
recíproca e, nas entrelinhas, tolerada da mentira são a mediação comum das
relações sociais e pessoais. Ao contrário, por exemplo, da sinceridade
excessiva e correção dos perfis russo e suíço, respectivamente.
A
artista Elke Maravilha melhor expressa:
[Entrevistador]
Você já voltou à Rússia?
Eu
fui três vezes à Rússia. Da primeira vez, eu tinha 22 anos. Eu gosto da Rússia,
acho legal. Mas não é uma paixão. Eu estive lá duas vezes no alto comunismo e
uma vez depois que caiu. Eu gostei.
Eu
gostei do povo porque é um povo transparente. Mesmo que ele seja mau ele não
tem medo de mostrar o mau que ele é. Então, a gente sabe bem onde está pisando
com ele. Ele não fica dando risada da tua cara e depois dá uma facada nas
costas, não.
Se
ele quiser dar uma facada ele vem direto na tua frente. Nesse ponto eu acho
legal. Se estão bravos, estão bravos. São muito amorosos. Dos povos brancos é o
mais amoroso e também o mais bravo. É um povo sem filtro. E é bipolar.
[Entrevistador]
Seu sucesso no Brasil também se deve ao fato de você ser russa?
Acho
que não. Bem, claro que, com a bipolaridade, pode ser. Porque o russo é um povo
que ri muito. É um povo que dança muito, que bebe muito e eu sou assim.
Isso
talvez ajude, sim. Mas tem o outro lado. O brasileiro não gosta de ouvir as
verdades que o russo fala. E eu falo as verdades que o russo fala.[9]
12. No que se refere ao prussianismo;
a cultura brasileira, mais que outras, vai além das contradições entre as
partes envolvidas: a oposição se revela, também, interna, para dentro. Dois
exemplos: 1) o empresário ama a mulher negra com quem se casou e, na fábrica,
desdenha dos currículos “pretos”; 2) ou quando o gênio Machado de Assis,
crítico à escravidão e negro, alegrou-se ao embranquecer-se com o embranquecer
de sua barba e ao impedir o acesso do negro simbolista Cruz e Sousa à Academia
Brasileira de Letras. Um turista, mesmo um turista científico, veria – e, em
geral, vê – apenas a aparência das relações, o contrário.
13. Por ter um território continental
e variado e por força dos movimentos humanos nas tragédias históricas nacionais
(quilombos, coluna Prestes, bandeirantes, cangaço, soldados da borracha, fuga
das secas etc.), a ideia de migração interna está sempre presente como
alternativa, desejo, redenção e possível saída na mentalidade brasileira; este
valor é reforçado, uma das causas, pelo passado atravessar dos mares de
portugueses, europeus e africanos para cá. É a solução pela diáspora, pela
mobilidade. Exemplo: no Piauí e parte do nordeste, há uma “diáspora LGBTT”, de
pessoas que se mudam para o sul e sudeste do país na busca por serem aceitos,
evitarem perseguição psicológica e física, ser o que são e viver a própria
sexualidade. O desejo de habitar outros países, tão presente, tem o mesmo
sentido cultural e histórico.
14. A falsa ideologia do brasileiro
como preguiçoso crônico é uma mentira necessária para a burguesia, mas também
para que o subordinado seja capaz de disciplinar-se e suportar as coisas tal
como elas são; junto a isso, revela uma necessidade, um desejo ou tendência
latente e natural, mas oculta.
15. O “jeitinho brasileiro” tem
natureza de classe, se expressa de modo diferente e oposto nas classes
diferentes. Quando empresários de energia aumentam, com aval do Estado, o preço
da energia elétrica de maneira artificial e absurda, temos a expressão burguesa
do malandro; além do “sabe com quem está falando?”. Quando, por outro lado, por
reação, o trabalhador burla o contador de luz, faz “gatos”, temos a expressão
de uma luta de classes invisível. No entanto, sendo a vida difícil, a
malandragem adquire também caráter negativo entre assalariados, aqui e ali – a
brutalidade e violência cotidianas influenciam a psique.
16. No cotidiano, o tecido social é
permeado por pequenas e informais ilegalidades. Exemplo: a família a esconder a
criança no carro para burlar o posto da polícia rodoviária. Todos são
“condenáveis” a priori.
17. A lei brasileira é numerosa,
descritiva e complexa, pois confia na repressão acima da cultura, moral geral,
reeducação e hábitos (diferente, ao que parece, da legislação inglesa e
doutras). “Ordem e progresso.” Aqui, uma lei deixa de “pegar” ao ser incapaz de
mudar a vida prática e cultural; ali, “faz o que tu queres, é tudo na lei”
quando a repressão deixa de se revelar, seja na educação familiar ou
socioestatal – ambos baseados na violência, constrangimento, repressão e
ameaça.
18. A educação familiar é repressora
e ensina “teu lugar no mundo” entre a classe trabalhadora – incluso pela falta
de tempo, erudição e finanças entre estes; ao contrário, é permissiva e
paciente entre os mais enriquecidos, pois os jovens têm, afirmam, “todo um
futuro pela frente”.
19. Em linguagem psicanalítica e
psiquiátrica: a burguesia expressa uma personalidade social psicopática; a
classe média, e os demais setores intermediários (capatazes etc.), ora equivale
à personalidade obsessiva-compulsiva e ora é bipolar; os “de baixo” – escravos
ou assalariados precários e o proletariado – encontram-se na personalidade
histriônica, no borderline e no transtorno opositor (quilombos etc.) ou, ao
contrário, síndrome de Estocolmo. No geral, aclassista, há dupla personalidade.
20. Como qualquer classe trabalhadora
do mundo, a nacional tem instinto classista-político oculto, busca mediações
com a situação real e toma decisões e posições por conclusões práticas e
imediatas; é muito prática. Ora abraçam a ideologia burguesa do líder
individual e messianista e ora, ao mesmo tempo, são desconfiados e analíticos
por improviso; as novas gerações, porém, são relativamente mais coletivistas,
democráticas quanto aos líderes e desconfiadas.
21. “O Brasil não é para amadores”
revela, então, dois sentidos: um lugar onde é preciso ser esperto/manobrado e,
também, onde amar, de fato, é proibido. “Não existe amor em SP.”
22. No campo da linguagem, o duplo
sentido, a sinuosidade sugestiva, as entrelinhas, a entonação, o tom agregador,
o dizer a frase pela metade e a musicalidade do falar são uma “expressão
prussiana” que nos difere, em boa medida, do modo de se expressar entre os
portugueses, mais duro e objetivo. Por outro lado, a diferença de classe gera
uma língua brasileira esquizofrênica: fala-se de um modo, escreve-se de
outro. Assim lastreado, até que ponto
isto afeta o modo de pensar, trata-se de uma boa pergunta para a psicologia
cognitiva.
Sobre
este e alguns dos demais pontos, o seguinte relato pessoal:
“O
Brasil me mudou”, diz meu companheiro, o espanhol Antonio Jiménez, ao se
despedir para retornar à Espanha. E acrescenta: “Fiquei aqui dois anos e meio e
volto quinze anos mais jovem”.
(…)
Não
é uma pessoa que se entusiasma facilmente. Às vezes parece até chateado com a
vida. “É que há tanta coisa neste país que não entendo”, me disse mais de uma
vez durante esses anos de sua estada no Brasil.
Antes
ele havia sido correspondente em lugares importantes como Paris e Lisboa. É um
profissional exigente, especialmente consigo mesmo. Num momento de alívio,
aqui, na pequena e bela cidade de Saquarema, aonde veio se despedir de mim e de
minha mulher Roseana, confiou-me na orla de uma praia de areia branca e de um
mar que mais parecia o Caribe do que o Atlântico:
“Estou
indo e é agora que estou me dando conta que este país, em tão pouco tempo, me
mudou. Eu me sinto mais leve. O Brasil me ensinou a viver”.
Mas
você não me dizia, Antonio, que tinha dificuldade de entender este país? Eu
estava convencido de que você estava indo aliviado para sua nova tarefa de
responsabilidade na sede do jornal em Madri.
“Sim,
é curioso, mas agora entendo melhor que a vida não pode ser vivida sempre sob
tensão, que o trabalho não é tudo. Os brasileiros me ensinaram que se pode
trabalhar, mas sem se esquecer de deixar espaços para viver momentos de
felicidade”.
Diz
que o Brasil o fez compreender que na Espanha e na Europa se vive “com
excessiva seriedade e irritação”.
E
a violência que aflige este país, com o maior número de homicídios do mundo? A
violência quase da Idade da Pedra, com corpos desmembrados e decapitados nas
prisões que você mesmo relatou no jornal?
Comentamos
que, de fato, é uma violência às vezes truculenta e assustadora, mas que
convive paradoxalmente com a índole pacífica das pessoas comuns nas relações
sociais.
Comentamos
que os espanhóis, mais propensos às agressões verbais na comunicação cotidiana,
têm dificuldade de entender que é quase impossível ficar zangado com um
brasileiro. Não te deixam espaço. Acabam te desarmando.
A
sensação ao ouvi-lo é que a metamorfose que sofreu no Brasil o impede de se ver
oprimido “pelo que não serve para poder viver a vida”.
(…)
E
a crise? E os 12 milhões de desempregados? E o câncer da corrupção política?
Antonio
balança a cabeça, olha para o chão e diz que sim, sim, mas que apesar de tudo
isso, foi neste país contraditório onde “despertou o desejo de ser mais feliz
do que era ao chegar”.[10]
23. A classe dominante brasileira tenta
afirmar-se perante e sobre a América Latina autoalienando-se, às diferentes
classes, da percepção de sua identidade latino-americana. Incapaz de expressar
isto em todos os terrenos e de modo pleno, toma o futebol e a arte como vias
culturais necessárias de “dominação externa”. Ao tentar imitar Portugal, o país
tenta ser estrangeiro onde não é.
24. A luta anti-imperialista na
cultura e cultura artística tem cinco aspetos: 1) afirmar a multiplicidade e
altíssima criatividade interna – defendê-la, atualizá-la e divulgá-la; 2)
internacionalista, absorver de modo não absoluto e resignificar para si a
cultura externa e universal – evitando, assim, o nacionalismo culturalista; 3)
tratar o outro como matéria-prima; 4) ergue uma autoidentificação com o
subcontinente latino-americano; 5) combater a paixão por “querer ser como e
imitar o atual império” sempre presente na classe dominante, setores
intermediários e, com a globalização, nas classes trabalhadoras.
25. A tese de Leon Trotsky de que
inexiste algo como “cultura proletária” ou, digamos, “dos de baixo” é refutada
no Brasil. Isto se dá, por um lado, porque o fundador do Exército Vermelho –
que escrevia sobre arte e literatura entre um combate militar e outro – tinha
uma visão semi-iluminista da arte-estética, de outro, porque a divisão de
classes no Brasil tem certos aspectos de divisão de castas[11][12].
Entre escritores sensíveis ao problema social brasileiro, usam-se os conceitos
“Brasil real” e “Brasil oficial” para expressar as diferenciações classistas e
culturais. Outra forma de expressar a cultura de classe, para compararmos: os
camponeses medievais faziam literatura oral ao redor das fogueiras, à noite,
onde contavam histórias de terror aos mais jovens; os palacianos, a
aristocracia feudal, partiram dessas lendas e fantasias arrepiantes para
criarem os felizes contos de fadas.
26. A aceleradíssima urbanização
brasileira, em curto período histórico, empurra à urbanidade multidões cujos
valores são camponeses, arcaicos, mistificadores, do século XIX etc. Ao
sentirem na pele as contradições de valores, nas vantagens e desvantagens do
mundo urbano, estes sentem uma constante tensão, desconforto com o meio,
sensação de despertencimento e refugiam-se nas seitas religiosas. Surge daí a
contradição entre seus valores e os valores e necessidades das novas gerações,
de seus filhos e netos.
27. Tom Zé caracteriza o funk carioca
como, desecandeado pela Bossa Nova, metarrefrão, microtonal e plurissemiótico.
Podemos ampliar: o funk é o equivalente, na música, ao movimento concretista na
poesia e outras artes. O poema concreto busca a palavra unidade-energia e
permanência sonora; o funk idem pela repetição de palavras e tons musicais. Um
dá prioridade ao aspecto físico, da imagem, no poema; o outro, por igual por
meio do corpo, do duplo sentido e da onomatopeia. Um é realismo puro; o outro
adota o naturalismo, o erotismo e expressa os problemas da favela. Um rompe com
o verso; o outro se afasta da musicalidade considerada. Porém, tão errado
quanto achar “feio” tudo o que vem da classe trabalhadora é achar “belo” tudo o
que dela vem, romantizá-la; este estilo
musical expressa incluso, em sua pobreza estética, a degeneração geral da
sociedade. A um só tempo, é análogo e inverso à arte pós-moderna, vazia e
burguesa, impacto pelo impacto, forma pela forma e pseudoarte, em “museus de
grandes novidades”.
28. Em todo o mundo e no Brasil tem
surgido um novo romantismo baseado no semiletramento das massas, na urbanização
e na decadência do capitalismo. Emulação: aquele, dos séculos XVIII e XIX,
época das revoluções burguesas, tendia ao amor romântico e erotismo
irrealizáveis; o atual, ao triângulo amoroso e ao erotismo vivo. Aquele e este
aos mercados e à leitura fácil e fluida. Aquele, aos poemas instintivos, versos
livres e atraentes; este, ao poema-trocadilho, rimas rápidas e na velocidade da
internet, versos curtos, otimismos e autoajuda. Aquele, ao nacionalismo; este,
ao internacionalismo. Aquele, ao fetiche pelo mundo medieval; este, também, por
narrativas mistificadas. Aquele tendia à tragédia final; este, à vitória.
Aquele, ao individualismo burguês; este, ao individualismo interligado ao
conjunto. Aquele se expressou – terceira fase – com a crítica social e simpatia
pelos excluídos; este, por ideias de revolta, revolução, antiburocráticas e antiditatoriais,
instinto rebelde e sensação intuitiva de anormalidade e artificialidade do
tempo presente. Este se revela na ficção científica, na distopia, como crítica
social metafórica. Na prosa e séries televisivas, há preferência por histórias
profundas e longas como compensadores do vazio existencial, da rotina, da
solidão coletiva, da passividade comum e dos aspectos rasos nas relações e vida
pessoais. O ponto negativo da integração internacional – expressa numa
tendência a uma cultura universal ao lado e em conjunto das particularidades –
está na “integração cultural de colônia”, dedicada à tradução da literatura de
entretenimento estrangeira e desprezo pela de origem nacional.
29. Há uma constante guerra invisível
entre dinheiro e cultura. Uma das expressões disso é o baixíssimo nível das
expressões culturais famosas, apesar da enorme quantidade de talentos
existente; além do mais, fazer boa arte, trabalho análogo ao do artesão, exige
tempo, tudo o que a economia monetária nega. Outra, o enquadramento do carnaval
por meio de sua institucionalização e mercantilização, tirando da classe
trabalhadora o perfil ativo e central nos eventos oficiais, empurrando os
foliões, por instinto, a reorganizar os blocos de rua, gratuitos e mais
anárquicos:
O carnaval – festa pagã que
nasceu nas ruas e foi enquartelada em clubes e sambódramos – está de volta ás
ruas (e de graça) com mais força a cada ano.
São Paulo, onde a celebração pro
tempos se resumiu ao Anhembi, viu o número de blocos de rua crescer 400% em
dois anos. Em 2015, 300 deles tomarão a cidade, 80 a mais que no ano passado,
quando, segundo a SPTuris (empresa de turismo municipal), cada um recebeu 5.000
pessoas, em média.
No Ro, onde a festa atrai mais
foliões, os 456 blocos deverão reunir 5 milhões de pessoas nas ruas, diz o
Riotur (empresa municipal de turismo). Enquanto isso, o desfile da Sapucaí
(cujo ingresso não sai por menos de R$ 160) costuma ter 1 milhão.
Essa multidão ai atrás de blocos
como Cordão da Bola Preta, no Rio, que sozinho arrastou cerca de 1,5 milhão de
pessoas no ano passado, e Agora Vai e Sargento Pimenta, em São Paulo, muitos
deles com desfiles semanas antes do carnaval, que este ano começa no sábado dia
14 de fevereiro.
(…)
Salvador – que sempre loteou suas
ruas separando quem tem abadá (o uniforme do bloco) da chamada “pipoca”, pela
primeira vez terá um dia de pré-carnaval, no dia 8, com trios elétricos
desfilando sem as cordas.
“Na pipoca você é igual. O
carnaval verdadeiro é aquele em que o povo sai para se manifestar coma fantasia
que quiser”, diz Edgard Oliva, 58, professor da Escola de Belas Artes da Bahia.[13]
30. Assim, se os russos tendem a uma
personalidade geral de explosão emocional, brutalidade e aventura (Lenin,
Trotsky); os estadunidenses, ao empreendedorismo e cisma pelo trabalho
(Trotsky, Gramsci); os franceses, à desorganização (Engels, Trotsky); os
alemães, ao jeito duro e formal etc.; os brasileiros expressam uma
personalidade mediadora, no que há de positivo e negativo nisso, além de uma
oposição – também mediada e autofundida – entre comunhão criativa e violência.
Entre outras manifestações, isto acaba por se expressar na política externa do
Brasil, diplomática e mediada entre polos.
31. A personalidade de um “povo”
deve-se ao presente e ao passado históricos. Mudadas as circunstâncias, a
sociabilidade, muda-se o “espírito” nacional, com algum atraso e em grande
medida.
32. A luta pelo socialismo tem na
luta cultural uma tarefa secundária e auxiliar; a revolução apenas pode ser
vitoriosa se, em primeiro, for ganha no terreno da economia e das relações
sociais. Como se sabe, também pelo perfil histórico, o trabalhador brasileiro é
progressista nas questões econômicas e conservador nas demais questões e pautas
(culturais, democráticas, etc.). Sendo apoio, o trabalho sobre os hábitos e
valores cotidianos pode adquirir várias formas: centros culturais populares,
células ateias e agnósticas para – ao invés de limitar-se à mera, e muitas
vezes sectária, crítica – divulgar nos bairros populares as ciências naturais
de modo apreensível à maioria, união dos sindicatos combativos para promoção
regular de atividades e festas aos finais de semana, crítica aberta e
consciente da cultura, propostas práticas, colégios mantidos por sindicatos,
mutirões pela alfabetização, disputa ideológica, disputa metodológica, defender
a liberdade da arte etc.
33. A revolução brasileira – caso
ocorra e seja vitoriosa – incluirá uma ruptura cultural, de tradição, em dois
sentidos: de um lado, romperá com o método prussiano nas suas mais diferentes
formas e o revelará, de outro, o próprio processo revolucionário ao mesmo tempo
muda a cultura e exige reeducação cultural e psicológica. No socialismo, na
medida em que o novo regime social consolida-se interna e externamente, a luta
pela reeducação geral ganhará – potencializando os aspectos em si positivos do
atual modo de vida – cada vez mais centralidade.
34. Desde o início dos anos 1980 o
Brasil tornou-se outro, sendo o mesmo. A alta urbanização, a globalização, o
longo período de democracia burguesa, o semiletramento geral, a internet, o
perfil da nova juventude, o autoisolamento da classe média aristocrática, as
igrejas evangélicas etc. têm alterado, dentro do mesmo país, o perfil nacional.
Por isso, intelectuais e artistas do período anterior sentiram-se e sentem-se
estrangeiros e estranhados na nova realidade; refugiaram-se em pequenos
círculos, isolaram-se ou continuam seus trabalhos em públicos limitados.
35. O desenvolvimento
teórico-filosófico burguês brasileiro tem por objetivo íntimo fugir da natureza
própria da realidade nacional, escapar dela e escapar-se, na medida de sua
dureza. Por outro lado, surgem semi-intelectuais e intelectuais Sui Generis localizados entre o popular
e o erudito, o chão e o ar; íntimo a isto e interligado, surgem também
indivíduos de talento a possuir perfis páreas, no limbo, ostracistas,
entremundos e desclassados (Sousândrade, Tom Zé, Cruz e Sousa, Lima Barreto
etc.).
36. Por esta razão, pelas
características do país, intelectuais de esquerda e honestos, ligados à
superestrutura universidade burguesa, tendem rumo à corrente gramsciana
(embora, em essência e na prática, neguem o teórico) focada, em primeiro lugar,
nas superestruturas, ou seja, o Estado e a cultura/pensamento – em especial.
Tratam estes objetos enquanto formas autônomas, abstraídas do todo, e
determinantes: invertem, de cabeça para baixo, ao “elevarem a cabeça”, o método
marxista. Em suma, trata-se um marxismo,
em boa medida, dotado de desvio “prussianista” – prática, social e
teoricamente.
37. Os intelectuais marxistas
europeus do pós-II Guerra eram limitados porque a sociedade onde viviam gozava,
em geral, de alta qualidade de vida (Mandel, Sartre, Althusser etc.). Os pensadores
assalariados partidários da classe operária no Brasil estão em constância
diante do desafio de entender a miséria material e espiritual das massas, pois
isso tendem a um perfil mais radicalizado e qualificado – entre estes, alguns
buscam a práxis como parte vital da autoformação.
38. Tentar compreender a formação
social do Brasil apenas pela economia é semimarxismo, determinismo econômico.
Uma análise completa exige estudar a sociedade completa.
Foto: https://capoeiraeantropologia.wordpress.com/
[1]
Cuatro Tesis sobre la Colonización española yportuguesa en América; Nahuel
Moreno; 1948.
[2]
Idem.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=YUJKgDXSo-o
[4]
“Não esqueçamos, caros
ouvintes, que o atraso histórico é uma noção relativa. Se existem países
atrasados e avançados, há também uma ação recíproca entre eles. Há a opressão
dos países avançados sobre os retardatários, bem como a necessidade para os
países atrasados de alcançar aqueles mais adiantados, adquirir-lhes a técnica,
a ciência etc. Assim surgiu um tipo combinado de desenvolvimento: as
características mais atrasadas se ligam à última palavra da técnica e do
pensamento mundiais. Enfim, os países historicamente atrasados são por vezes
obrigados a ultrapassar os demais. A elasticidade da consciência coletiva
confere a possibilidade de conseguir, em certas condições, sobre a arena
social, o resultado que em psicologia individual se chama “compensação”.
Pode-se afirmar, neste sentido, que a Revolução de Outubro foi para os povos da
Rússia um meio heroico de superar sua própria inferioridade econômica e
cultural.” (Conferência pronunciada por Leon Trotsky em 27 de novembro de 1932,
em Copenhague, Dinamarca. Este texto foi publicado na Revista Marxismo Vivo nº
16.)
[5]
Exemplo: a burguesia exigia de Getúlio Vargas a repressão total do movimento
operário; o ditador, no entanto, preferiu fundar um novo sindicalismo legal e
estatal, “pelego”. Aliás, a ditadura getulhista ocorreu por dois fatores: a)
derrotar o movimento operário; b) preservar e modernizar Estado burguês diante
das duras lutas irresolvíveis entre frações da classe dominante.
[6] http://www.universoracionalista.org/megadados-nos-mostram-que-o-comportamento-coletivo-das-pessoas-segue-fortes-padroes-periodicos/
[7] *Tim
Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela
Universidade de Warwick. Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/blog-tim-vickery-38766194?ocid=socialflow_facebook
[8]
1) Autonomia nacional em relação à Portugal. Foi possível graças, primeiro, à
fuga da Coroa Portuguesa para cá. Depois, com a declaração de independência.
Por toda a América Latina existiram revoluções de libertação nacional, guerras.
No território tupiniquim, no entanto – mesmo considerando a heroica batalha do
Jenipapo –, deu-se mudança pelas alturas, por ação da classe dominante, sem
riscos, via mecanismos formais. 2) Fim da escravidão. A onda de fugas e
boicotes nas lavouras – preparadas por organizações clandestinas – foram a
causa central, embora não reconhecida oficialmente. Porém, a Princesa Isabel e
a o governo souberam manobrar a situação para que a mudança fosse controlada e
não revolucionária. Os EUA e Haiti, para citar dois países, necessitaram do
método da guerra civil. 3) A proclamação da república. Deu-se via golpe, por
alto, desprovido de ação popular. 4) Fim da ditadura semifascista de Vargas. O
próprio governo adotou medidas liberalizantes: a ditadura caiu por medidas de
decreto dispensando qualquer revolução – o mal-estar ainda ensaiava. Deu-se,
então, margem para que Getúlio fosse eleito presidente por mecanismos da
democracia representativa. 5) Fim da ditadura militar. As Diretas Já foram
derrotadas. Os militares negaram-se a ceder, a aceitar vias populares de
mudança. Porém, com a insatisfação social acumulada, permitiram a mudança do
regime de Estado por via segura, pacífica, controlada, oficial. Enquanto boa
parte da América Latina e do mundo derrotaram os regimes policiais através de
revoluções, o Brasil – ao contrário – mediou.
[9] http://gazetarussa.com.br/articles/2012/03/16/as_verdades_de_elke_maravilha_14319
[10] http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/10/opinion/1486758331_668734.html
[11]
“Na verdade, o mal-estar dos antropólogos com a progressiva substituição dos
estudos sobre relações raciais, nas quais os sujeitos e os significados
culturais eram realçados, por estudos de desigualdades e de racismo, nos quais
os aspectos estruturais são enfatizados, já se manifestara antes, nos anos
1980, quando Roberto DaMatta (1990), em um artigo que se tornou famoso –A
fábula das três raças –, utilizando-se fartamente do estruturalismo e das
categorias de Dumont, procura explicar "o racismo à brasileira" como
uma construção cultural ímpar e específica. A noção de pessoa e as relações
pessoais, no dizer de Roberto, substituem, no Brasil, a noção de indivíduo,
para recriar, em pleno reino formal da cidadania, a hierarquia racial, ameaçada
com o fim da escravatura e da sociedade de castas. A proposta teórica de
DaMatta é clara: o Brasil não é uma sociedade igualitária de feição clássica, pois
convive bem com hierarquias sociais e privilégios, é entrecortada por dois
padrões ideológicos, ainda que não seja exatamente uma sociedade hierárquica de
tipo indiano.” (Preconceito de cor e racismo no Brasil, 2004, Antonio Sérgio
Alfredo Guimarães Professor do Departamento de Sociologia – USP.) Considerar o
escravismo uma relação de castas é um exagero teórico, mas há elementos da
verdade nessa visão.
[12]
Isso também se mostra na frase “a classe média quer privilégios, não direitos”
enquanto necessidade de diferenciação e autoconfirmação.
[13] http://www1.folha.uol.com.br/turismo/2015/01/1581683-carnaval-de-rua-cresce-no-pais-veja-selecao-de-33-blocos-em-cinco-estados.shtml
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