CRISE DO ESTADO BURGUÊS
(J. P. - Pequeno capítulo do livro A crise sistêmica)
Marx e Engels avançaram da concepção de
que o Estado burguês deveria ser tomado pela revolução para, desde a Comuna de
Paris, mesmo desde a ditadura de Luís Bonaparte, a conclusão de que o processo
revolucionário precisa destruir o aparelho burocrático e fundar outro em novas
bases. A tese deste capítulo parte de tal consideração, mas afirma que o
próprio sistema capitalista, antes, corrói sua instituição central, ou seja, dá
parte das condições para superar a atual forma de poder. Vejamos as
considerações, reconhecíveis por qualquer observador de nossa época, que nos permitem
concluir a crise estrutural da superestrutura estatal.
1.
O
primeiro elemento ocorre nas finanças de todos os países de alguma forma
centrais para a revolução. As dívidas públicas são colossais – importante forma
de capital fictício – em relação ao PIB (ver gráficos abaixo) para enfrentar as
crises e para manter serviços mínimos ao funcionamento da sociedade muito
urbanizada. Tal processo contínuo e crescente de endividamento opera várias
mudanças, como a necessidade de aumentar os impostos sobre os de baixo e cortar
direitos sociais. Antes, no alvorecer do capital, a dívida pública foi meio de
impulso ao capitalismo, dívida esta que era compensada pelas altas taxas de
crescimento; hoje, ao contrário, é uma forma de gerir, adiar e prolongar a
decadência do sistema.
GRÁFICO 25 – JAPÃO
GRÁFICO 26 - EUA
GRÁFICO
27 – UNIÃO EUROPEIA[1]
2.
Por
causa da queda da taxa de lucro e a necessidade de disputar com outros países o
destino do capital, ocorre a necessidade de reduzir impostos sobre os ricos e
aumentar sobre os trabalhadores e as classes médias, além de cortar direitos.
Em outro capítulo, tratamos da crise sob
o lado da população, e fomos algo que naturalmente impulsionados a tratar do
Estado e dos impostos. Nas crises sistêmicas do escravismo e do feudalismo
ocorreram o aumento dos impostos, o aumento do setor improdutivo do aparelho
estatal e, como transição feudal ao capitalismo, o incremento de dívida
pública. Seria um método equivocado inferir mecanicamente que este também seria
o caso da crise sistêmica do capitalismo (que, tomemos rápida nota, tem mais
semelhanças no seu modus operandi com
a crise do modo de vida escravista para o feudalista). Mas também nada
significa, de antemão, que seja algo incomparável ou não análogo, por isso deve
ser confrontado e verificado. O Estado burguês, com seu desenvolvimento alto de
uma burocracia política e administrativa, dependente do aparelho, com o governo
portador de certo grau relativo de autonomia em relação às classes, incluso em
relação àquela ao qual representa, pode mesmo obrigar o aumento dos impostos
sobre os ricos, além de sobre os trabalhadores. Se os patrões deixam de
investir porque o grau de monopólio é alto e a taxa de lucro está
excessivamente baixa, o aparelho de poder central pode forçar investimento
tributando lucros; porém, aí, reduz o desemprego, o que pode reduzir os lucros
com o aumento de salário – crise conjuntural e aprofundamento da crise
sistêmica, estrutural; porém alimenta a já grande quantidade, crônica em
tendência, de capital na sociedade – crise; porém, se faz uma renda básica aos
mais pobres, enfraquece o chicote invisível do desemprego – crise; porém os
mais ricos se reorganizarão, em nome de sua suposta liberdade de lucro, sobre a
política – crises políticas; porém o lucro real cairá com maior taxação – crise
estrutural alimentada. Há uma contradição imanente entre a necessária
manutenção de um Estado burguês capaz, forte, e as necessidades de lucro no
ocaso do capital. Os estados escravistas e feudalistas tributaram ainda mais
sua classe dominante quando e enquanto caminhavam, inconscientemente, para seu
fim; o Estado capitalista passará por crises num ciclo vicioso sobre qual
política adotar – veja-se a diferença gritante entre Trump e Biden em tal
matéria nos EUA, entre neoliberais e Ciro Gomes no Brasil. Um fortalecimento
estatal já não é um fortalecimento real do sistema, e vice-versa; a crise
retroalimenta-se. O dilema é irremovível sob as bases atuais do capitalismo, em
sua fase tardia, exigindo uma solução nova, completa, o Estado operário.
3.
Há o
surgimento e a consolidação de grandes empresas no setor militar, públicas e
privadas, desde mercenários à fabricação de componentes de guerra. Neste sentido,
longe de imaginar o futuro de imensos centros produtivos e serviços militares
privados e estatais lucrativos, Maquiavel, o grande teórico da política e do
Estado, observa:
De
forma que, se um rei não ordenar as coisas de modo que seus infantes em tempos
de paz estejam contentes em voltar para casa e viver de suas artes, sucede
necessariamente que se arruíne, porque não há infantaria mais perigosa do que
aquela composta por soldados que fazem a guerra por arte; porque força o rei ou
a promover sempre mais guerra, ou a lhes pagar sempre, ou a viver sob o perigo
de lhe tomarem o reino. Promover a guerra sempre não é possível, não se pode
lhes pagar, eis então que necessariamente se corre o perigo de perder o
estado.
A citação ganha profundidade imensa em
nossa época, muito acima da esperada pelo grande pensador italiano. A guerra
tende, cada vez mais, a se tornar um fim em si mesmo na medida em que é fonte
de lucro, de consumo e de reconstruções (ação de empresas da construção civil
no país destruído). A burguesia é um artesão de escombros.
Vejamos
o caso mais famoso:
Há
hoje entre 100 mil e 130 mil "soldados privados", termo preferido
pelas companhias que os empregam, em ação na guerra, a maioria em atividades
ligadas a segurança e defesa. O total é quase o equivalente aos 145 mil
soldados norte-americanos atualmente no país.
"Estima-se
que US$0,40 de cada dólar destinado ao Iraque pelo contribuinte americano pare
nas mãos de uma empresa de segurança privada", disse a democrata Jan
Schakowsky, da Comissão de Inteligência da Câmara dos Representantes. Desde que
assumiu o controle do Congresso, em janeiro, a oposição investiga o assunto.
A
matéria continua:
Nele,
o jornalista liberal relata palestra que Prince deu em 2006 numa convenção
militar na Califórnia, em que o empresário chama a Blackwater de "o Fedex
dos Exércitos": "Quando você tem pressa, não usa o correio normal,
mas o Fedex. Nossa meta é ser o equivalente para o aparato de segurança
nacional." Procurada pela Folha, a Blackwater não quis falar.
Segundo
o conservador "Wall Street Journal", Prince foi um dos maiores
doadores da campanha do presidente, e sua empresa tem perto de US$ 800 milhões
em contratos com o atual governo. Mas há outras, como a USIS, subdivisão do
Carlyle Group, que já teve Bush pai e filho no conselho. (Idem.)
Para financiar a guerra, o Estado
precisa, com frequência, endividar-se como foi o caso dos EUA nas suas duas
guerras no Oriente Médio. Eis um fator adicional sobre a dívida pública enquanto
elemento da crise estrutural da superestrutura estatal.
Nas fases anteriores do capitalismo, as
empresas militares ainda eram não grandes o bastante, pois se tratava da época
de livre concorrência. O gigantismo das atuais empresas impulsiona uma influência
maior sobre os Estados.
4.
Ocorre a transformação de países em
protetorados vide Portugal em relação à Alemanha, França e União Europeia. Perder
o poder de emissão da moeda e a menor autonomia econômica pesam sobre vários Estados.
Também há o fator tecnológico como, por exemplo, depender de satélites de
poucos países para ter acesso aos aspectos modernos (veja-se que mísseis
guiados tornam-se dependentes de aparelhos de outras nações).
5.
A privatização das empresas estatais e de
serviços públicos é uma reação burguesa à queda da taxa de lucro. O
neoliberalismo revela-se, assim, sinal da crise do sistema e dos limites em si
nacionais do desenvolvimento. A perda de capital público reduz as fontes de
renda do Estado, além de obrigá-lo a contratar serviços privados, e diminui a
ação reguladora estatal sobre a sociedade.
GRÁFICO 27
Fonte:
Nestas condições, os keynesianos
reclamam alarmados, com algum instinto de época, que o Estado é atacado pelas
políticas neoliberais. Por isso, em oposição um tanto desesperada, pedem novo
empoderamento estatal para salvar o capitalismo, para gerar novo equilíbrio
social. Tais economistas e políticos olham para o passado, ao melhor estilo da
pequena burguesia, querem inverter o tempo histórico. Neles, há a intuição de
que o aparelho estatal é deteriorado, mas deixam de ver a tendência como
tendência, ou seja, o devir é percebido apenas enquanto más escolhas
governamentais. O limite classista de suas visões os impedem de tirar todas as
conclusões necessárias.
6.
Empresas
parasitam o aparelho estatal ao oferecer serviços, o que inclui a corrupção.
7.
O
capital especulativo ganhou autonomia com o desenvolvimento tecnológico. O
investimento feito em um país pode ser retirado para outro com poucos comandos
de computador. A impossibilidade de um governo mundial unificado que controle o
capital torna o problema irresolvível sob bases capitalistas.
8.
A
altíssima urbanização facilita e potencializa as revoluções. Ademais, exige
mais do Estado.
São razões que acenam para o projeto da construção
de um Estado superior, socialista. Em resumo, a lógica do capital alcança o
patamar em que corrói sua própria ferramenta de poder. A crise orgânica
realiza-se com a crise revolucionária, que possibilita a mudança qualitativa da
sociedade. É preciso distinguir aqui, como no conjunto desta obra, em sua
unidade, os aspectos conjunturais dos estruturais: apenas em situações
específicas, em conjunturas especiais, o Estado burguês pode ser superado; já
em nível estrutural a superestrutura passa por um processo mais ou menos oculto,
perceptível pela teoria, de aprofundamento das condições de sua superação. A crise
estrutural do Estado dá condições para a sua plena crise de conjuntura, que
muda a estrutura da sociedade.
Em resumo, cada era do capital, em
geral, impõe uma consequência, ainda que com atraso, sobre o Estado: a era do
capital mercantil dá duplo caráter ao Estado feudal, que adquire traços
burgueses – a polêmica, a oposição, sobre se o Estado feudal em seu fim era
apenas feudalista ou tinha duplo caráter, também capitalista, é resolvido pela
observação de que no caráter duplo um polo é o determinante, neste caso, o polo
do feudalismo; a era do capital industrial funda o comitê geral dos negócios da
burguesa, o Estado burguês; o imperialismo, expressão da terceira era, financeira
e monopolista, tende ao controle mais direto da classe dominante sobre a sua
superestrutura; a quarta era é marcada, enfim, pela crise estrutural da
principal ferramenta classista.
O
CONJUNTURAL
Por falta de uma teoria correta e
completa o bastante, os partidos marxistas são incapazes de conectar o fato
singular ao geral, no caso, a crise final do capitalismo. Quando tentam,
borram-se todos, tateiam no escuro, fazem associações forçadas ou instintivas
apenas. Vejamos dois casos de altíssimo destaque, que mostram a conexão
conjuntura e estrutura, teoria e prática, fato e verdade. Biden, presidente dos
EUA, fez uma luta de morte contra o congresso para aumentar a dívida pública, o
teto da dívida estatal do país, para mais gastar. Mas os congressistas
obrigaram, em troca, a cortar gastos sociais e estatais… Ele quis dívida para
ajudar o capital ameaçado, e fez algo certo do seu ponto de vista – sacrificar
mais o Estado e o povo em nome do capital. Após o presidente anterior cortar
impostos sobre os ricos, ele até os aumentou de novo, mas não nos patamares de
cobrança anteriores normais. No Brasil, a bomba prestes ao socialismo, forçou-se,
pela direita, um teto de gastos rigoroso contra o pleno emprego, contra o
investimento estatal, em defesa da dívida pública e pelo sucateamento dos
serviços públicos. O novo governo de esquerda – de esquerda! – fez melhor ou
pior, dependendo da classe de quem lê este parágrafo: um arcabolço fiscal, ou
seja, o mesmo teto de gastos com um nome mais enigmático e somente mudanças de
detalhes. A burguesia está cercando em batalha seu próprio aparelho geral como
quem certa e isola uma fortificação militar!