quinta-feira, 7 de setembro de 2023

O que é "crise estrutural do Estado"

 

CRISE DO ESTADO BURGUÊS

(J. P. - Pequeno capítulo do livro A crise sistêmica)

Marx e Engels avançaram da concepção de que o Estado burguês deveria ser tomado pela revolução para, desde a Comuna de Paris, mesmo desde a ditadura de Luís Bonaparte, a conclusão de que o processo revolucionário precisa destruir o aparelho burocrático e fundar outro em novas bases. A tese deste capítulo parte de tal consideração, mas afirma que o próprio sistema capitalista, antes, corrói sua instituição central, ou seja, dá parte das condições para superar a atual forma de poder. Vejamos as considerações, reconhecíveis por qualquer observador de nossa época, que nos permitem concluir a crise estrutural da superestrutura estatal.


1.    O primeiro elemento ocorre nas finanças de todos os países de alguma forma centrais para a revolução. As dívidas públicas são colossais – importante forma de capital fictício – em relação ao PIB (ver gráficos abaixo) para enfrentar as crises e para manter serviços mínimos ao funcionamento da sociedade muito urbanizada. Tal processo contínuo e crescente de endividamento opera várias mudanças, como a necessidade de aumentar os impostos sobre os de baixo e cortar direitos sociais. Antes, no alvorecer do capital, a dívida pública foi meio de impulso ao capitalismo, dívida esta que era compensada pelas altas taxas de crescimento; hoje, ao contrário, é uma forma de gerir, adiar e prolongar a decadência do sistema.


GRÁFICO 25 – JAPÃO


 

GRÁFICO 26 - EUA

 


GRÁFICO 27 – UNIÃO EUROPEIA[1]



2.    Por causa da queda da taxa de lucro e a necessidade de disputar com outros países o destino do capital, ocorre a necessidade de reduzir impostos sobre os ricos e aumentar sobre os trabalhadores e as classes médias, além de cortar direitos.


Em outro capítulo, tratamos da crise sob o lado da população, e fomos algo que naturalmente impulsionados a tratar do Estado e dos impostos. Nas crises sistêmicas do escravismo e do feudalismo ocorreram o aumento dos impostos, o aumento do setor improdutivo do aparelho estatal e, como transição feudal ao capitalismo, o incremento de dívida pública. Seria um método equivocado inferir mecanicamente que este também seria o caso da crise sistêmica do capitalismo (que, tomemos rápida nota, tem mais semelhanças no seu modus operandi com a crise do modo de vida escravista para o feudalista). Mas também nada significa, de antemão, que seja algo incomparável ou não análogo, por isso deve ser confrontado e verificado. O Estado burguês, com seu desenvolvimento alto de uma burocracia política e administrativa, dependente do aparelho, com o governo portador de certo grau relativo de autonomia em relação às classes, incluso em relação àquela ao qual representa, pode mesmo obrigar o aumento dos impostos sobre os ricos, além de sobre os trabalhadores. Se os patrões deixam de investir porque o grau de monopólio é alto e a taxa de lucro está excessivamente baixa, o aparelho de poder central pode forçar investimento tributando lucros; porém, aí, reduz o desemprego, o que pode reduzir os lucros com o aumento de salário – crise conjuntural e aprofundamento da crise sistêmica, estrutural; porém alimenta a já grande quantidade, crônica em tendência, de capital na sociedade – crise; porém, se faz uma renda básica aos mais pobres, enfraquece o chicote invisível do desemprego – crise; porém os mais ricos se reorganizarão, em nome de sua suposta liberdade de lucro, sobre a política – crises políticas; porém o lucro real cairá com maior taxação – crise estrutural alimentada. Há uma contradição imanente entre a necessária manutenção de um Estado burguês capaz, forte, e as necessidades de lucro no ocaso do capital. Os estados escravistas e feudalistas tributaram ainda mais sua classe dominante quando e enquanto caminhavam, inconscientemente, para seu fim; o Estado capitalista passará por crises num ciclo vicioso sobre qual política adotar – veja-se a diferença gritante entre Trump e Biden em tal matéria nos EUA, entre neoliberais e Ciro Gomes no Brasil. Um fortalecimento estatal já não é um fortalecimento real do sistema, e vice-versa; a crise retroalimenta-se. O dilema é irremovível sob as bases atuais do capitalismo, em sua fase tardia, exigindo uma solução nova, completa, o Estado operário.


3.    Há o surgimento e a consolidação de grandes empresas no setor militar, públicas e privadas, desde mercenários à fabricação de componentes de guerra. Neste sentido, longe de imaginar o futuro de imensos centros produtivos e serviços militares privados e estatais lucrativos, Maquiavel, o grande teórico da política e do Estado, observa:

 

De forma que, se um rei não ordenar as coisas de modo que seus infantes em tempos de paz estejam contentes em voltar para casa e viver de suas artes, sucede necessariamente que se arruíne, porque não há infantaria mais perigosa do que aquela composta por soldados que fazem a guerra por arte; porque força o rei ou a promover sempre mais guerra, ou a lhes pagar sempre, ou a viver sob o perigo de lhe tomarem o reino. Promover a guerra sempre não é possível, não se pode lhes pagar, eis então que necessariamente se corre o perigo de perder o estado.  (Maquiavel, 2013, p. 36)

 

A citação ganha profundidade imensa em nossa época, muito acima da esperada pelo grande pensador italiano. A guerra tende, cada vez mais, a se tornar um fim em si mesmo na medida em que é fonte de lucro, de consumo e de reconstruções (ação de empresas da construção civil no país destruído). A burguesia é um artesão de escombros.


Vejamos o caso mais famoso:

 

Há hoje entre 100 mil e 130 mil "soldados privados", termo preferido pelas companhias que os empregam, em ação na guerra, a maioria em atividades ligadas a segurança e defesa. O total é quase o equivalente aos 145 mil soldados norte-americanos atualmente no país.

"Estima-se que US$0,40 de cada dólar destinado ao Iraque pelo contribuinte americano pare nas mãos de uma empresa de segurança privada", disse a democrata Jan Schakowsky, da Comissão de Inteligência da Câmara dos Representantes. Desde que assumiu o controle do Congresso, em janeiro, a oposição investiga o assunto. (Dávila, 2007)

 

A matéria continua:

 

Nele, o jornalista liberal relata palestra que Prince deu em 2006 numa convenção militar na Califórnia, em que o empresário chama a Blackwater de "o Fedex dos Exércitos": "Quando você tem pressa, não usa o correio normal, mas o Fedex. Nossa meta é ser o equivalente para o aparato de segurança nacional." Procurada pela Folha, a Blackwater não quis falar.

Segundo o conservador "Wall Street Journal", Prince foi um dos maiores doadores da campanha do presidente, e sua empresa tem perto de US$ 800 milhões em contratos com o atual governo. Mas há outras, como a USIS, subdivisão do Carlyle Group, que já teve Bush pai e filho no conselho. (Idem.)

 

Para financiar a guerra, o Estado precisa, com frequência, endividar-se como foi o caso dos EUA nas suas duas guerras no Oriente Médio. Eis um fator adicional sobre a dívida pública enquanto elemento da crise estrutural da superestrutura estatal.


Nas fases anteriores do capitalismo, as empresas militares ainda eram não grandes o bastante, pois se tratava da época de livre concorrência. O gigantismo das atuais empresas impulsiona uma influência maior sobre os Estados.


4.     Ocorre a transformação de países em protetorados vide Portugal em relação à Alemanha, França e União Europeia. Perder o poder de emissão da moeda e a menor autonomia econômica pesam sobre vários Estados. Também há o fator tecnológico como, por exemplo, depender de satélites de poucos países para ter acesso aos aspectos modernos (veja-se que mísseis guiados tornam-se dependentes de aparelhos de outras nações).


5.     A privatização das empresas estatais e de serviços públicos é uma reação burguesa à queda da taxa de lucro. O neoliberalismo revela-se, assim, sinal da crise do sistema e dos limites em si nacionais do desenvolvimento. A perda de capital público reduz as fontes de renda do Estado, além de obrigá-lo a contratar serviços privados, e diminui a ação reguladora estatal sobre a sociedade.


GRÁFICO 27


Fonte: (Pikett, 2014, p. 243)

 

Nestas condições, os keynesianos reclamam alarmados, com algum instinto de época, que o Estado é atacado pelas políticas neoliberais. Por isso, em oposição um tanto desesperada, pedem novo empoderamento estatal para salvar o capitalismo, para gerar novo equilíbrio social. Tais economistas e políticos olham para o passado, ao melhor estilo da pequena burguesia, querem inverter o tempo histórico. Neles, há a intuição de que o aparelho estatal é deteriorado, mas deixam de ver a tendência como tendência, ou seja, o devir é percebido apenas enquanto más escolhas governamentais. O limite classista de suas visões os impedem de tirar todas as conclusões necessárias.


6.    Empresas parasitam o aparelho estatal ao oferecer serviços, o que inclui a corrupção.


7.    O capital especulativo ganhou autonomia com o desenvolvimento tecnológico. O investimento feito em um país pode ser retirado para outro com poucos comandos de computador. A impossibilidade de um governo mundial unificado que controle o capital torna o problema irresolvível sob bases capitalistas.


8.    A altíssima urbanização facilita e potencializa as revoluções. Ademais, exige mais do Estado.


São razões que acenam para o projeto da construção de um Estado superior, socialista. Em resumo, a lógica do capital alcança o patamar em que corrói sua própria ferramenta de poder. A crise orgânica realiza-se com a crise revolucionária, que possibilita a mudança qualitativa da sociedade. É preciso distinguir aqui, como no conjunto desta obra, em sua unidade, os aspectos conjunturais dos estruturais: apenas em situações específicas, em conjunturas especiais, o Estado burguês pode ser superado; já em nível estrutural a superestrutura passa por um processo mais ou menos oculto, perceptível pela teoria, de aprofundamento das condições de sua superação. A crise estrutural do Estado dá condições para a sua plena crise de conjuntura, que muda a estrutura da sociedade.


Em resumo, cada era do capital, em geral, impõe uma consequência, ainda que com atraso, sobre o Estado: a era do capital mercantil dá duplo caráter ao Estado feudal, que adquire traços burgueses – a polêmica, a oposição, sobre se o Estado feudal em seu fim era apenas feudalista ou tinha duplo caráter, também capitalista, é resolvido pela observação de que no caráter duplo um polo é o determinante, neste caso, o polo do feudalismo; a era do capital industrial funda o comitê geral dos negócios da burguesa, o Estado burguês; o imperialismo, expressão da terceira era, financeira e monopolista, tende ao controle mais direto da classe dominante sobre a sua superestrutura; a quarta era é marcada, enfim, pela crise estrutural da principal ferramenta classista.

 

O CONJUNTURAL


Por falta de uma teoria correta e completa o bastante, os partidos marxistas são incapazes de conectar o fato singular ao geral, no caso, a crise final do capitalismo. Quando tentam, borram-se todos, tateiam no escuro, fazem associações forçadas ou instintivas apenas. Vejamos dois casos de altíssimo destaque, que mostram a conexão conjuntura e estrutura, teoria e prática, fato e verdade. Biden, presidente dos EUA, fez uma luta de morte contra o congresso para aumentar a dívida pública, o teto da dívida estatal do país, para mais gastar. Mas os congressistas obrigaram, em troca, a cortar gastos sociais e estatais… Ele quis dívida para ajudar o capital ameaçado, e fez algo certo do seu ponto de vista – sacrificar mais o Estado e o povo em nome do capital. Após o presidente anterior cortar impostos sobre os ricos, ele até os aumentou de novo, mas não nos patamares de cobrança anteriores normais. No Brasil, a bomba prestes ao socialismo, forçou-se, pela direita, um teto de gastos rigoroso contra o pleno emprego, contra o investimento estatal, em defesa da dívida pública e pelo sucateamento dos serviços públicos. O novo governo de esquerda – de esquerda! – fez melhor ou pior, dependendo da classe de quem lê este parágrafo: um arcabolço fiscal, ou seja, o mesmo teto de gastos com um nome mais enigmático e somente mudanças de detalhes. A burguesia está cercando em batalha seu próprio aparelho geral como quem certa e isola uma fortificação militar!



[1] Fonte dos três últimos gráficos: (DÍVIDA PÚBLICA % PIB - LISTA DE PAÍSES)