sábado, 30 de julho de 2016

Uma visão marxista do dinheiro mundial

UMA VISÃO MARXISTA DO DINHEIRO MUNDIAL



Em outro esboço neste blog, “Três capitais, três eras, três ciclos”, afirmamos:

“A mudança de lastro (chamemos assim), ou seja, de centralidade-guia em cada uma de suas fases, do desenvolvimento capitalista, parece oferecer-nos respostas a inúmeras perguntas; uma delas: a atual potência do capital-dinheiro revela-se base e origem oculta, na essência, do fim da equivalência dólar-ouro.”

Cabe-nos aqui aprofundar esta percepção a partir deste abstraimento. A fase nomeada comercial do capitalismo (século XVI ao XVIII) tendia a realizar-se, mercantilização absoluta, somente no ciclo ou era seguinte; a fase industrial (século XVIII ao final do XIX) desenvolveu-se e também tendia a realizar sua própria tarefa com o auxílio da próxima era, a do capital financeiro (final do século XIX até os nossos dias). Este último ciclo foi que consolidou as tendências das duas anteriores, consolidou a hipertrofia da indústria e do comércio mundiais. Em nosso entender, o final da década de 1970 foi o ápice da última fase do capital que, diante de sua barreia interna, impossibilitado de deslocar-se para um próximo ciclo, limitou-se a desenvolver os três capitais em alta potência (o que explica o desenvolvimento dos capitais especulativo e parasitário); este momento histórico é como um avião supersônico que, ao aumentar continuamente sua velocidade, atravessa a barreira do som, gerando um estrondo[i] -- um "salto para si" que simboliza o ciclo de era do capital portador de juros, o último desse sistema econômico-social.

A partir disso, com esta exposição geral, do altíssimo desenvolvimento capitalista, dialogaremos agora sobre o dinheiro. Debateremos, em sequência: a) a relação mercadoria-dinheiro; 2) o lastro em nosso ciclo-era; 3) o dinheiro mundial; 4) os elementos conjunturais do tema; 5) o socialismo; 6) um resumo da crise do aparato de repressão; 7) conclusão.

Em diante, as citações de Karl Marx são extraídas de O Capital, livro I, edição da Boitempo, 2013.

FORMA-CONTEÚDO

A característica física do dinheiro mundial segue o mesmo caminho do dinheiro nacional, mas em um ritmo mais lento. A afirmação anterior será a tese defendida neste artigo. Quando a equivalente geral nacional supera o escambo e a mercadoria-moeda (um produto, como sal ou aguardente) e passa a adotar o ouro em especifico, o comércio internacional ainda adota o primeiro suporte, o escambo. Assim, a lei mantém-se enquanto tendência: quando o dinheiro nacional começa a expressar-se por meio do papel-moeda lastreado em ouro (séx. XVIII, XIX), o dinheiro mundial segue atrasado, ou seja, é o próprio ouro enquanto dinheiro mundial; quando a moeda nacional deixa de lastrear-se em ouro, a sua versão internacional – a libra inglesa, primeiro; o dólar, depois e até 1971 –, ao contrário e correndo atrás, continua ainda lastreada em ouro, em equivalência. Depois, o padrão dólar-ouro é rompido, mas continua a correr atrás da moeda nacional, pois a última começa um passo novo: a digitalização por meio, em especial, dos cartões de crédito.

O dinheiro tende à desmaterialização, embora esta tendência seja irrealizável de fato (explicamos este processo nota de fim a seguir: [ii]); ao mesmo tempo, o dinheiro mundial segue o mesmo caminho do nacional, mas em atraso. A que se deve isto? A questão que se nos apresenta é: porque destas duas leis? Ora, o capítulo I d’O Capital I demonstra o Valor e a construção da “mercadoria das mercadorias” por um caminho: a relação conteúdo-forma: quanto mais tipos, mais fluxo e mais troca de mercadorias (conteúdo) existentes – ou seja, quanto mais complexo e ativo o movimento delas – cada vez faz mais necessário destacar um elemento específico do conteúdo, elevá-lo, para que sirva de equivalente geral (forma). Assim surge o sal como meio de troca; depois, ouro; depois, o dinheiro-papel. O conteúdo – percebe a dialética –, neste caso, o mundo das mercadorias, possui características inerentes, quais sejam, tendência ao movimento, à instabilidade, à mudança, ao novo, à não-conservação. Por outro lado, fruto da contradição interna do conteúdo, a forma também possui singularidades: tende a conservar, à estabilidade, à constância. Como o conteúdo, a forma tem duplo caráter: progressivo na media em que conserva conquistas, consolida etapas; regressivo na medida em que tende ao conservadorismo, à estabilidade, a entrar em importante contradição com as necessidades novas do conteúdo. Portanto, pode haver contradição ente o conteúdo e a forma, que é superada – cedo ou tarde – a favor conteúdo, fazendo surgir uma forma nova.

Por isso, o ouro foi necessário como equivalente geral, expressão do valor, por suas características físicas em uma etapa específica de complexidade, do fluxo de mercadorias. Mas pela mesma razão – as características físicas – tornou-se uma forma atrasada, lenta, para poder seguir o conteúdo, a evolução do capitalismo, ou seja, o cada vez mais intensivo e extensivo mercado. Esta é a explicação geral para a lei da tendência à desmaterialização do dinheiro. O valor-capital domina cada poro do mundo, progressivamente, como se assim, dominador protagonista, cada vez mais fácil fosse expressar seu quase-ser na forma-equivalente geral.

Karl Marx, embora não tenha percebido isto com clareza, presenteia-nos ele mesmo com a tese:


“Título de ouro e substância de ouro, conteúdo nominal e conteúdo real iniciam seu processo de separação. (…) Se o próprio curso do dinheiro separa o conteúdo real da moeda de seu conteúdo nominal, sua existência metálica de sua existência funcional, ele traz consigo, de modo latente, a possibilidade de substituir o dinheiro metálico por moedas de outro material ou por símbolos. A dificuldades de cunhagem de moedas muito pequenas de ouro ou prata e a circunstância de que metais inferiores foram originalmente usados como medida de valor no lugar dos metais de maior valor – prata em vez de ouro, cobre em vez de prata – e desse modo, circulam até ser destronados pelos metais mais preciosos, esclarecem historicamente o papel das moedas de prata e cobre como substituta das moedas de ouro. Tais metais substituem ouro naquelas esferas da circulação das mercadorias em que a moeda circula com mais rapidez e, por isso, inutiliza-se de modo mais rápido, isto é, onde as compras e as vendas se dão continuamente de modo mais rápido, isto é, onde as compras e as vendas se dão continuamente numa escala muito pequena.” (p. 199, grifo nosso.)


E completa:


Para impedir que estes metais satélites tomem definitivamente (! – exclamação nossa) o lugar do ouro, determinam-se por lei as proporções muito ínfimas em que eles podem ser usados no lugar desse metal.” (Idem, grifo nosso.)


Percebemos que o Estado intervinha contra a tendência ao desprendimento do equivalente geral do ouro. O ritmo poderia – e conjunturalmente deveria – ser mediado pela equivalência, porém, mais dia ou menos dia, o dinheiro estava destinado a abrir mão do lastro em metal precioso; a causa é a fluidez das mercadorias e, por consequência, do equivalente geral.

Quem sabe valha pousarmos um pouco mais sobre o assunto; por outro modo de abstração, entre o ouro como dinheiro e o papel-moeda sem lastro tivemos uma secular transição por meio do dinheiro lastreado em ouro. Na prática e pela extensa duração, fora muito mais que uma mera forma transitória, pois o lastro era necessário para o nível de complexidade da circulação mercantil naquele e daquele momento histórico, sendo, se vermos a dialética dialeticamente, “cada vez menos necessário” a equivalência do ponto de vista do conteúdo-mercadoria (breve nota: a forma-mercadoria é conteúdo na medida em que o equivalente geral se ergue, é conteúdo quando referente ao dinheiro).

O suporte e a forma-equivalente geral precisam, portanto, ser matéria capaz de acompanhar a velocidade e o fluxo das mercadorias no tempo e… no espaço. Essa é uma das razões da necessidade de expressar o valor cada vez mais tendencialmente desmaterializado – embora esta lei nunca se realize em plena forma-pura – durante o desenvolvimento do reino das mercadorias cada vez maior e cada vez mais intenso, onipotente e onipresente. O capital procura, portanto, um suporte para expressar valor que negue em si o duplo caráter da mercadoria (ou seja, ter valor de uso e valor) e passe a expressar apenas o valor das mercadorias sem, no entanto, ter um valor de uso próprio (ao contrário do ouro ou prata); deve expressar a supremacia do valor sobre o valor de uso; seu valor de uso é unicamente expressar valor e valor de troca.

Sigamos a velocidade capitalista; as revoluções na produção produzem mais mercadorias, mais tipos e vende-se em maior quantidade de espaços, distâncias e em menor tempo; logo, o dinheiro deverá expressar esta agitação festiva do conteúdo. Estas mudanças incluem a mercadoria dinheiro. Quando as revoluções do valor fazem surgir novas tecnologias – máquina a vapor, eletricidade, a digitalização, a automação, etc. – as técnicas novas fazem surgir, portanto, mercadorias novas e, principalmente, quantidade nova de mercadorias no comércio. Logo, as inovações técnicas renovadoras das mercadorias têm de renovar, também, a mercadoria-mor, o equivalente geral, o dinheiro; mais uma vez, o dinheiro – mesmo considerando o suporte – expressa a própria realidade em sua forma física, isto é, expressa o desenvolver das forças de produção em forma corpórea.

Todavia, ainda possui lastro.

LASTRO HOJE

O dinheiro em geral, seja qual for sua forma física, ainda possui lastro, que não é mais a mercadoria-ouro, mas o conjunto das mercadorias*. Assim, o dinheiro recebido representa idealmente o possível acesso a outras mercadorias, e mede-se assim; o valor expresso no dinheiro é determinado por sua capacidade de prover acesso a valores de uso[iii], pois “todo linho no mercado vale como se fosse um artigo único, sendo cada peça apenas uma parte alíquota desse todo. E, de fato, também o valor de cada braça individual é apenas a materialidade da mesma quantidade socialmente determinada de trabalho humano de mesmo tipo” (Marx, p. 181). Ou seja, mede-se o lastro[iv] por sua proporção com essa substância geral, com o conjunto do valor por meio da possibilidade de acesso a outros valores de uso – o valor expresso no dinheiro é relativo ao valor geral, na manifestação fenomênica M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria).

Um importante e simbólico representante do capital e da burguesia, Adolf Hitler, demonstrou intuir o lastro-valor ou lastro-mercadoria nesta citação a ele atribuída:

“Nós não éramos imbecis ao ponto de tentar fazer uma moeda [lastreada em] ouro, do qual nada possuímos, mas para cada marco que era emitido nós exigíamos um marco de valor de trabalho feito ou de bens produzidos… nós ríamos das ocasiões em que nossos financistas nacionais apregoavam que o valor de uma moeda é regulado pelo ouro e pelos títulos do tesouro jazendo nos cofres do Banco Central.”[v]

O dinheiro virtual – matéria expressadora do atual intenso fluxo mercantil globalizado – é lastreado no… papel-moeda. Quando se paga no cartão de crédito supõe-se que esse pagamento é substituível por papel pintado, que os bits são transformáveis em dinheiro tão logo o suporte-cartão entre em contato com o banco, com o caixa-eletrônico. De acordo com o debatido, o dinheiro virtualizado também tende a perder seu lastro, tende a desprender-se do dinheiro-papel. Neste sentido aponta a matéria a seguir, sobre a moeda da Suécia (junto a países como a Suíça, é um histórico laboratório experimental da burguesia):


“Dinheiro [em papel] pode sair de circulação na Suécia até 2030”
“O fim do dinheiro de papel já é uma morte anunciada na Suécia: até 2030, as cédulas e moedas deverão virtualmente desaparecer no país, que lidera a tendência global em direção à chamada “sociedade sem dinheiro”. A projeção é do Banco Central Sueco.”
“É o prenuncio de uma nova era, dizem especialistas. A previsão é de que, no futuro, as economias modernas serão dominadas pelo uso do cartão e da moeda eletrônica em escala mundial.”
“Na Suécia a transformação é visível (…)”
Novos dados do Banco Central indicam que as transações em dinheiro representam, atualmente, apenas 2% do valor de todos os pagamentos realizados na Suécia – contra a média de 7% no restante da Europa.”
(…)
“’A Suécia continua à frente do resto da Europa em relação à redução do uso do dinheiro do papel. E principalmente dos Estados Unidos, onde cerca de 47% dos pagamentos ainda são feitos em dinheiro”, acrescenta Nilervail, que destaca os avanços dos vizinhos nórdicos, Noruega e Dinamarca, na mesma direção.”
(…)
“Até nos quiosque de flores do bairro de Odenplan, no centro da capital, um aviso foi colado: “Preferência para pagamentos em cartão”. Feirantes e ambulantes também se adaptam à tendência e trabalham equipados com leitores portáteis de cartões.’”[vi] (Grifo nosso.)


Para que inexistam dúvidas:


Os principais bancos da Suécia vêm simplesmente parando de lidar com cédulas e moedas: cerca de 75% de suas agências já operam sem dinheiro – com a única exceção do Svenska Handelsbanken.[vii] (Grifo nosso.)


Como repetição histórica, sabe-se que o dinheiro em ouro era constantemente roubado, e por isso passou a ser guardado e substituído por um papel que o representava; assim hoje, a atividade econômica “roubo” estimula e acelera o processo de desmaterialização do dinheiro, como aponta também a matéria:


“Ladrões de banco vão se tornado, assim, personagens do passado. O número de roubos em agências bancárias vem atingindo o índice mais baixo dos últimos 30 anos, segundo a Associação de Bancos Sueca.”
(…)
“Em 1661, as primeiras cédulas de papel da Europa foram introduzidas pelo Stockholms Banco, o embrião do Banco Central da Suécia. Agora, ironicamente, os suecos vão se tornando os primeiros do mundo a desprezar o dinheiro vivo.”[viii]


No entanto, as formas-suportes passadas do dinheiro não podem ser superadas em absoluto – guardam alguma utilidade, alguma função. Quando o capitalismo emperra e sofre por gastrite da superprodução, da crise, o ouro e prata passam a ter um papel um pouco mais relevante (transferência de investimentos em ações para estas commoditys, comércios específicos, custeio em conflitos miliares derivados – aliás – da crise, etc.); mas nunca passará de um papel auxiliar, pois não representam em absoluto as necessidades do valor e da intensa circulação de mercadorias. É como quando, ao trocar de marcha para o necessário avanço do carro, o motorista ver-se forçado a desacelerar um pouco, mas apenas para preparar um avanço novo; a lei da tendência à desmaterialização do dinheiro é irrealizável, mas irresistível – quando o capitalismo adoece por seu próprio câncer, ver-se obrigado a praticar alguns hábitos já superados, da infância, mas apenas enquanto novos aparelhos não resolvem seus problemas. Não apenas o ouro mas também o escambo e outras mediações superadas pela história apresentam-se mais fortes em momentos de crise, mas apenas comprovam seus papéis secundários, velhos demais para representarem Romeu e Julieta. Enfim, em linguagem dialética, o superior traz consigo elementos do inferior, o salto de qualidade carrega dentro de si algumas características da qualidade superada.

Enquanto expressão, quanto ao dinheiro digitalizado e aos cartões de crédito (para além de forma ímpar para a maior importância atual do meio de pagamento relativo ao meio de circulação), como explicamos em outro texto – Três capitais, três eras, três ciclos –, “o equivalente geral dinheiro caminha-se para a “moeda única”: cartão de crédito como suporte central e – expressão-do-valor/valor-de-uso! – bytes.” Porém, sendo a moeda única mundial irrealizável, esta tendência ao suporte único deve-se a outra tendência, a do conteúdo-mercadoria, também expressa no texto citado:

“Em nossa época, a relação valor-de-uso e valor tem produzido um novo fenômeno: ao dominar o duplo caráter da mercadoria, o valor consegue uma façanha nova, qual seja: os valores-de-uso tendem a desprender-se do suporte. Ilustremos: quantos objetos das décadas de 1980 e 1990 cabem hoje em um único e pequeno aparelho? Quantas utilidades, por meio de aplicativos, pode haver em um celular? Mesmo simples produtos naturais como fruta transformável em suco pode ser substituído por um pó químico que simula o sabor e o cheiro do produto – valor-de-uso – original.”
(…)
“Sob a óptica dialética concreto-abstrato-concreto e concentração-centralização-central-orbitante; 1) no princípio da relação mercantil, o produto-mercadoria era simples e concentrado; 2) com o capitalismo amadurecido, surgiu cada vez mais novas, variadas e especializadas formas de mercadoria disponíveis, vendáveis; 3) fase imperialista, desenvolvimento e produção de mercadorias atinge o auge – intensiva e extensivamente – e, por isso, agora tende à fusão, fim da relação “alienada”, dos valores-de-uso e, por causa e consequência, da extração de valor. E qual será o resultado final deste processo? Ao destruir o comércio, o socialismo apresentará caminhos novos aos produtos; no momento, esta não é uma preocupação nossa.”

(Disponibilizamos uma nota de fim breve sobre a relação concreto-abstrato-concreto[ix].)

O dinheiro, como principal mercadoria, expressa naturalmente este processo; expressa em sua característica física. Os cartões de crédito surgem na década de 1950 e ganham força em 1970, nos EUA, correspondendo – como veremos – a uma influência dialética sobre equivalente geral mundial, que perderá de vez o lastro em ouro[x].

Como relação social e fruto de uma relação social, o valor torna-se, continua-se crisálida e cristalizado nas formas atuais de equivalente durante a troca, a compra-venda; porque surge em relações de produção mercantis, porque este é o reino das mercadorias, porque gera-se e afirma-se em relações sociais específicas e atuantes, porque ainda há – e ainda mais há – a humanização das coisas e a coisificação dos homens. O ouro é um objeto; os modos humanos de sociedade são, por outro lado, estes sim, modos que dão sentido aos objetos, mesmo quando estes últimos tornam-se encarnados por uma alma-substância estranha, por um Deus do Tempo, por um Kronos abstrato e materialista[xi].

Assim igual, o desprendimento do equivalente do lastro em ouro, ou seja, da produção nas minas, da extração de ouro, é um sintoma do atual ciclo de era do capital: o desenvolvimento da indústria e do comércio guiado pelo capital bancário, pelo capital financeiro, pela fase imperialista, pela inflação dos capitais fictício e parasitário, pelo crescimento do meio de pagamento (grosso modo, o pagar parcelado) e pela essência capital-dinheiro; é uma inversão de motor central, do guia. Dependente do capital-produtivo mesmo quando ver-se fictício, a fim de não só dominar a indústria mas também desenvolvê-la, a essência capital-dinheiro demonstra sua autonomia relativa[xii] e em aparência por meio do fim da conversibilidade; por isso, precisa de um pouco mais do que muita liberdade para cumprir sua missão, seu desejo, sua tara, seu valor que se valoriza e seu dinheiro em busca de mais dinheiro.

Do mesmo modo, percebemos: dinheiro = ouro representa e é típico do mercantilismo, do capitalismo mercantil (século XVI ao XVIII); dinheiro = moeda com lastro em ouro ou prata deriva do ciclo de era industrial do capitalismo, da revolução industrial (século XVIII ao final o XIX); dinheiro = lastro no conjunto das mercadorias representa a atual fase, o capitalismo imperialista, financeiro. Basta-nos observar alguns fatos: o lastro em ouro fora rompido nas moedas nacionais com a I Guerra Mundial, que é o anjo anunciador da fase imperialista; desde então, o lastro foi descartado e as tentativas de retorná-lo foram teórico e empiricamente abandonados. No mesmo sentido, por dificuldade em manter quantias de metais em circulação (guerras, escassez do metal, alta circulação de mercadorias), em meados do século XVIII, Estados e bancos utilizaram moedas em papel ou em metal não-nobre para representar quantias em estoque possíveis de acumular – antes, estas formas conversíveis eram embrionárias[xiii].

Percebe-se; a fase ou o ciclo de era, e tudo quanto esta abstração conceitual representa, determina o modo como o dinheiro encarna-se no mundo; claro também está que não é uma determinação mecânica, mas é uma determinação ainda sim; a desigualdade evolutiva e certos zigue-zagues acidentais apenas demonstram o quanto cada um desses três momentos históricos do capital acaba impondo-se, fazendo valer a sua vontade.

Aqui está, na questão do lastro atual, o problema-síntese do capital fictício.

DINHEIRO MUNDIAL

Por ter um fluxo de mercadorias menor e mais homogêneo em comparação ao nacional, o comércio internacional segue o caminho do outro (escambo, ouro, dinheiro lastreado[xiv], dinheiro não lastreado, etc.), mas o faz atrasado, ou seja, expressa a intensidade de seu próprio conteúdo, o fluxo internacional de mercadorias.

O dinheiro mundial também é lastreado pelo conjunto das mercadorias ou, mais exatamente, pelo conjunto do valor. O fato de o dinheiro mundial ser o dólar[xv] expressa um fator histórico: os EUA produzem e consomem parte significativa das mercadorias de todo o mundo; natural, por conseguinte, que o lastro-valor agarre-se a esta moeda – o domínio militar garantidor desta ordem é consequência. O controle da Alemanha sobre o Euro possui o mesmo motivo. A industrialização e urbanização da China (Imperialismo Sui Generis), pela mesma razão, coloca em decadência esta realidade[xvi]. Mais uma vez, percebemos como o equivalente geral expressa a realidade em sua forma física. O melhor exemplo do lastro é a mercadoria mais importante e cobiçada do mundo, o petróleo, na medida em que o império americano há muito garante na diplomacia e na ameaça a compra internacional de ouro negro apenas por meio de sua moeda, processo batizado “petrodólares”. 

Outro modo de demonstrar o lastro do dólar percebe-se quando os EUA emitem moeda para "compensar" seu deficit na balança comercial, mantendo o nível de consumo interno. Assim, ao emitir de maneira "artificial" a moeda, o Banco Central força, de fato, o lastro-mercadoria; essa manobra gera inflação nos países exportadores para aquela, ou seja, a desvalorização da moeda nacional, um acréscimo relativo de fragilidade no lastro. Surge, por isso, da contradição inter-moedas, uma série de contradições sociais e políticas.

No futuro, o dinheiro mundial virtualizado perderá seu lastro em papel-moeda; porém, apenas se a normalidade anormal do capital permanecer. Há a possibilidade de uma revolução internacionalista tornar as leis do capitalismo lembranças e História; também há outra hipótese: se estamos no período de decadência do modelo imperialista, então o dinheiro mundial em bits poderá ser lastreado em mais de uma moeda a depender das circunstâncias da produção-comércio e dos próximos conflitos interestados e seus resultados (não necessariamente um conflito mundial, embora exista esta possibilidade). O dinheiro mundial, seguindo o caminho já trilhado pelo dinheiro nacional, expressa e expressará ainda mais não apenas o capitalismo, mas também sua própria decadência; a crise sistêmica coloca em crise suas próprias leis e elementos sistêmicos. O dinheiro é uma expressão fetichista da realidade onde circula-se; se o ouro e a prata, ambos, serviam ao comércio mundial no século XIX, possível, a depender da luta de classes, incluso a interburguesa, que o dinheiro virtualizado mundial lastrei-se em mais de uma moeda nacional ou de blocos.

Os grandes fatos positivos da História acontecem primeiro como ensaio, fato em si; depois, como fato propriamente ou fato para si[xvii]. O dólar como dinheiro mundial expressa a necessidade de uma economia mundial integrada, desprovida de fronteiras nacionais; mas expressa isso de modo deformado pelo capital, pela dominação do homem pelo homem, de países sobre países, do império. Alfa e ômega, consequência que age como causa, razão desumana, o dinheiro pode e deve ser superado por meio de uma revolução mundial.

ELEMENTOS CONJUNTURAIS DA CRISE SISTÊMICA

Cada uma com mais de um bilhão de habitantes, a maioria no campo, Índia e China são as últimas fronteiras do capital. Esta crise sistêmica pode ser mais longa e, por isso, mais agonizante se o processo de urbanização – em uma quantidade enorme de pequenas e médias urbanidades – fazer surgir uma nova geração de assalariados, ou seja, de consumidores para a indústria e os bancos naqueles países. Ao que parece, a crise arrasta-se desde a década de 1970 e tem por base a dificuldade de valorização do valor por um meio todo especial: a automação, a robótica, a microeletrônica e o desemprego estrutural; há – baseada na concorrência monopolista, na crônica superprodução e na tendência à queda da taxa de lucro – transferência de capitais dos países ricos para os pobres. A China, como exemplo-síntese, agrada aos investidores pela matéria-prima disponível, funcionários mal pagos, incrível mercado consumidor em potencial, ditadura não velada e desdém para com os custos ambientais. Como causa, a decadência interna da fase imperialista representa a decadência do capital, que necessita ir para estes países a fim de sobreviver. 

Líderes chineses chegaram a propor a própria moeda como substituto do dólar ou um maior peso da China nesta necessidade ou, mesmo, como propôs Soros, protagonismo Chinês em uma solução em moeda substituta do dólar em um possível novo Bretton-Woods. Por quê? Porque, como o dinheiro é lastreado no conjunto das mercadorias, o dólar é o dinheiro mundial na medida em que os EUA produziam e consumiam a maior parte das mercadorias mundiais; hoje, porém, a China tende a produzir e consumir parte significativa das mercadorias e, logo, tende a ter protagonismo no lastro e, por conseguinte, na futura solução da questão.

Neste sentido, uma III Guerra Mundial é uma hipótese provável, embora um permanente conflito sem confronto possa também ser uma mediação possível ou, às partes, desejável. No caso Chinês, seu projeto pode desmoronar por falta de tempo em caso de revolução em seu país ou em alguns países imperialistas. Por outro lado, não é o império americano que está em decadência, mas a lógica do império e o próprio capitalismo mundial; o imperialismo-mor apenas expressa isso como o ponto mais alto de uma torre trêmula, a ponto de desabar. Estamos ainda na fase imperialista, mas no período de decadência, não de ascensão, dessa fase[xviii].

Nesse momento da história a fórmula de Gramsci sofre uma inversão: o pessimismo da vontade como polo oposto ao otimismo da razão. Do ponto de vista teórico, alcançamos o momento ápice da substituição de sistema econômico-social, mas uma sociedade decadente coloca em decadência o humor em geral. Em sua fase de declínio, o império romano romantizou o suicídio e aderiu à filosofia do apocalipse; como a humanidade desesperançada e depressiva, hoje, sacudirá o mundo?

SOCIALISMO

O socialismo será a superação do paradigma-fábrica. Em outros esboços falamos sobre a necessidade de um sistema mundial de saúde, sobre o espaço pós-capitalista como fusão superante do melhor da urbanidade com o melhor do campo, sobre a tendência das características dos produtos; agora adentraremos na questão da produção em si. Os marxistas do século XXI precisam recuperar a paixão e a curiosidade por entender a ciência e a técnica. Em última instância, o futuro depende disso, em especial após resolvermos as pendências imediatas da luta de classes; um marxismo focado apenas nas dinâmicas dialéticas das classes e dos Estados é um marxismo amputado, desprovido de um dos braços.

No socialismo, A era do maquinário-ciclope, do maquinário-titã será vista não como a glória do progresso, e sim como passado e suas excentricidades curiosas. Em todos os modos de produção a casse dominante afirmava-se a si própria por dominar o trabalho intelectual contra o trabalho manual da ferramenta falante; se alcançarmos o igualitarismo, toda a humanidade será a “classe” dominante, pois divisões serão inexistes, pois todos os indivíduos serão senhores do trabalho intelectual, que será a forma de trabalho dominante em geral. Quem, por isso, “pegará no pesado”? As máquinas, o maquinário automatizado, os robôs e outras invenções da sociedade pós-industrial. Em nossa época, isso se mostra em modo embrionário, larval nas impressoras 3D:


“Desde peças de avião até sapatos, passando por automóveis, agora tudo pode ser impresso. É uma revolução que terá efeito sore toda a cadeia industrial, desde a concepção até o pós-venda.”
“’Esta técnica de fabricação não necessita de ferramentas. A matéria é molda de por um feixe de laser ou de elétrons comandados digitalmente. Basta ter material e um projeto. O processo de fabricação é superflexível, e a máquina pode ser instalada em qualquer lugar’, justifica Jean-Camille Uring, membro do diretório da fabricante de máquinas industriais 3D.”[xix]


Como a seguir a matéria retrata, mais impressionantes são os sintomas – ainda sintomas – representados na construção civil:


“As impressoras 3D começaram pequenas, mas hoje é possível construir casas inteiras com elas. Uma empresa chinesa acaba de construir uma casa de 400 metros quadros em apenas 45 dias. O melhor de tudo é que ela aguenta terremotos de até 8.0 na escala Richter.”
“A empresa Hua Shang Tengda pode não ter sido a primeira a construir uma casa com impresso 3D, mas foi a primeira a construi-la toda de uma só vez, sem dividir a tarefa e partes.”
“(Impressora 3D faz dez casas por dia)”
“Primeiro a companhia construiu a estrutura da casa, incluindo os canos para água e esgoto. Depois, usou uma impressora gigante que foi criada especialmente para esse projeto, depois de anos de estudo. O processo todo foi controlado pelo computador.”
“O software usado tem quatro sistemas: um para formular ingredientes, outro para misturar o concreto, outro para transmissão e o último para imprimir a estrutura.”
“A casa foi feita com vinte toneladas de concreto, que é resistente e barato. Os engenheiros afirmaram que cimento também poderia ter sido utilizado no processo.”
“’Essa tecnologia vai trazer benefícios sociais imensuráveis. Por causa da velocidade, baixo custo e materiais simples e ambientalmente amigáveis, ela pode melhorar a qualidade de vida das pessoas’, diz a empresa.”
“A Hua Shang Tengda quer ver sua tecnologia aplicada a construções de todos os tipos, de casas na zona rural até prédios altos em países em desenvolvimento. Eles acreditam que a tecnologia pode originar uma revolução na indústria da construção.”[xx]


Isto representa uma possibilidade de revolução produtiva e na construção civil. No caso da China, este maquinário permitiria acelerar o poderoso processo de urbanização naquele país, como planeja o PCC. Porém, evitemos fetiches: é um embrião e uma possibilidade, e um dos tantos meios de produção, distribuição e comunicação a serem desenvolvidos. A técnica fala-nos o seu desejo, uma nova sociedade para poder desenvolver-se plenamente e sem contradições, mas apenas a organização para fins revolucionários pode cumprir esta tarefa – a técnica amadureceu plenamente para a próxima etapa humana. Temos um desenvolvimento tecnológico agressivo em duplo sentido: de um lado, o avanço técnico incrível permite iniciar a transição ao socialismo com segurança muito superior ao do início do século XX; e de outro, apresenta no capitalismo um caráter destrutivo, de desenvolvimento das forças destrutivas, um avanço técnico regressor do homem e da natureza.

Assim, a fábrica está para o capitalismo como o feudo está para o feudalismo. A próxima revolução produtiva – do socialismo – parece apontar os objetivos seguintes: a) os produtos dispensarão o excesso de parafernália interna para funcionarem como devem; b) unir-se-á vários valores de uso em poucos suportes; c) pouca e poucos tipos de matéria-prima na produção; d) velocidade de criação; e) capacidade automatizada de corrigir falhas e promover consertos, além de reciclagem; f) produzir materiais com autosustentação energética – utilizando algum elemento abundante no ar, por exemplo, como o hidrogênio; g) facilidade de objetivar no produto a criatividade, as particularidades e os desejos dos indivíduos.

Como Leon Trotsky antecipara, guiados pela questão técnica, intuirmos o socialismo como uma evolução de três etapas – e não duas tal como Marx supôs (socialismo inferior e socialismo superior ou comunismo) –:

1.      Sociedade de transição ao socialismo;
A revolução mundial terá um inicio destrutivo, pois se tratará de guerras civis por todo o mundo; ao mesmo tempo, erguer-se-á a partir das bases econômicas e culturais herdadas do capitalismo. Assim, essa fase de transição terá como tarefa consolidar a nova sociedade em nível planetário rumo ao avanço estável. Aqui, elementos do sistema anterior estarão temporariamente em presença, definhantes; o Estado operário revolucionário e a quantidade de organizações, por exemplo, aumentar-se-ão. Já que corresponde uma luta interfronteiras, tratar-se de um processo que pode durar anos ou décadas, mas não séculos.
2.      Socialismo, de transição ao comunismo;
Aqui, todos os elementos e “leis” desta sociedade estarão consolidados; embora ainda persista o Estado, este definha. Neste momento, o trabalho intelectual torna o trabalho manual auxiliar/lúdico e imagens de museus, junto ao dinheiro e bancos e fábricas; são processos que devem ser iniciados ainda na fase de transição. Apresentar-se-á como a consolidação do primeiro ciclo transitório, da evolução estável.
3.      Comunismo.
Algo como um comitê geral, “nacional” e mundial, existirá apenas para poucas e claras questões: algumas formais, outras para distribuição, outras para melhor integração internacionalista, científica e social; pois o nível de autonomia do indivíduo, das localidades e mesmo dos produtos será altíssimo, sem necessidade de gestão centralizada planejada-democrática ou controle na quase totalidade dos assuntos. Exemplo: a maioria dos produtos será energeticamente autossuficiente, bastando poucos e simples movimentos para que se recarreguem; as impressoras 3D e outros meios de produção do futuro, muito melhores que os atuais, precisarão de pouca e abundante matéria-prima para fabricar os produtos de que o indivíduo e a comunidade necessitarão. O altíssimo nível cultural e a valorização geral da ciência-filosofia e das artes e desporto, elevará a integração humana e o progresso técnico. Algo como uma “complexidade simples” ou “sofisticação simples” será rotina, embora não tenhamos condições de detalhar este possível futuro mais do que em seus aspectos mais gerais. Neste momento, os conflitos serão não-essenciais, acidentais, parciais, secundários e não-destrutivos.

O capitalismo também teve sua tríade-eras inescapável[xxi]:
1.      Do século XVI ao XVIII, o “capitalismo mercantil” teve de conviver com o feudalismo;
2.      Do século XVIII ao final do XIX o capitalismo maduro, industrial;
3.      Do final do século XIX aos nossos dias, quando há a hipertrofia de sua existência.

Há, todavia, duas outras possibilidades para o homo sapiens sapiens: 1) a barbárie, um sistema de dominação oligárquico baseado, entre outros aspectos, na tecnologia voltada ao controle humano; 2) a extinção de nossa espécie. A continuidade do capitalismo, pós-crise orgânica-estrutural-de era, aparece como a hipótese mais improvável em médio prazo, apesar de não parecer assim.

CRISE ESTRUTURAL DO APARATO DE REPRESSÃO

Este seria tema para outro esboço ao blog, porém, ao que me parece, será devidamente tratado apenas no futuro livro. Por esta razão, disponho uma primeira amostra sobre o núcleo central do Estado (burguês), as forças de repressão:

1.      Substituição do trabalho vivo por trabalho morto.
Assim como nas fábricas (automação, robótica), o maquinário tem ganhado peso significativo nos exército burguês. Isto gera, em realidade, uma série de problemas insolúveis:
A)    Custos altos de construção e manutenção dos aparatos (tanques, aviões, navios, etc.);
B)    Máquinas caras e pesadas, de alta tecnologia, podem tonar-se inválidas, inúteis, por explosivos e armamentos artesanais ou de baixo custo;
C)    A formação de gente capacitada demora – trabalho complexo –, e as baixas, as mortes desses especialistas, podem ter um peso prático significativo.

A Guerra entre URSS e Afeganistão parece-nos um bom exemplo, pois o primeiro investiu em uma numerosa invasão de tanques (trabalho morto) fracassada diante da resistência guerrilheira (burguesa) da Al-Kaeda e dos camponeses.

2.      O fator humano.
A infantaria é a essência do exército. Porém, na guerra e na fábrica o homem é uma ferramenta falha, difícil de adestrar:
A)    Os exércitos oficiais, principalmente os imperialistas, procuram oferecer aos subordinados alguma qualidade de vida (a mais próxima possível da dos seus países ricos); estes, desacostumados com a dificuldade e com o stress, tornam-se um problema em si nos momentos mais difíceis do conflito. Outra em vez, ocorrem motins internos. Guerrilhas, movimentos revolucionários e mesmo exércitos de países atrasados possuem um material humano acostumado com a escassez, com o stress, com o risco, com o limite;
B)    Ao mesmo tempo, os exércitos oficiais, dos Estados, têm dificuldade de dar aos seus a causa, o sentido da luta, a percepção de “nobreza no ato”. Do outro lado, exércitos religiosos (ISIS, etc.) ou subversivos e revolucionários possuem este fator ideológico-disciplinador apurado;
C)    Os de baixo, os filhos dos assalariados, são a geração mais letrada, mais culta da história humana. Como se sabe, a inteligência somada à moral pode ser um empecilho quando se deveria – apenas! – apertar o gatilho e obedecer;
D)    A tentativa de distanciar o operador do combate – aviões não-tripulados (drones) no Iraque manuseados por gente nos EUA – não impediu o impacto psíquico sobre o soldado. Muitos pediram demissão ou a troca de cargos, já que se sentiam angustiados com as consequências de seus atos. Nem todos são sádicos; ainda mais se, não estando na zona de guerra, sofrem com a opinião pública de seu país. Em verdade, estar em combate, em suas tensões, facilita a mudança moral do soldado.

3.      Hierarquia e velocidade.
A)    A gestão do tempo e das consequências ganha importância maior. Assim sendo, o exército burguês tem uma dura desvantagem ao adotar uma hierarquia de comando vertical, complexa, cheia de subdivisões e centralizada. Isto tonra as forças armadas lentas para ordenar, receber e executar ordens. Hierarquias como a do Exército vermelho de Leon Trotsky, onde cada divisão respondia apenas a um oficial, possuíam decisão, ação-reação, e mobilidade superiores. Assim também se organizam os fascistas – definição de caráter científico – do ISIS, além de permitirem autonomia de ação de suas células;
B)    Os oficiais e o alto comando das forças armadas são formados por gente “bem-de-vida”, acostumados ao trabalho intelectual, à vida de poucos círculos sociais. Os grupos militares subversivos, por outro lado, costumam ter no comando gente prática, conhecedora dos aspectos prático da vida, com ligação orgânica com sua base social, que entende a vida comum e a psicologia coletiva e estão acostumados a ter pouco. Esta diferença do material humano – acentuada neste momento histórico –, que é uma diferença de classe, determina perfis decisórios;
C)    Em nossa época, os exércitos burgueses procuram profissionalizar seus membros em todos os níveis de hierarquia; o recrutamento militar obrigatório é um hábito mantido em poucos países, como no Brasil. Isto tem algumas consequências: afasta seus membros da vida real e da noção de como ela é para a maioria, a rotatividade de moradia dos oficiais faz com que sofram solidão ou depressão ou problemas semelhantes por não construírem identidade e dá-lhe uma qualidade formal e financeira de vida que os “desadestram” para situações de colapso;
D)    A demora de um conflito aumenta progressivamente, como nunca antes, as despesas dos exércitos burgueses oficiais por conta do que temos debatido – maquinário e baixas, além do fator político.

4.      Os problemas latentes.
A)    Por os pontos acima levantados, o ISIS pode fundar a “guerrilha ofensiva”; aproveita a lentidão do comando e do maquinário oficiais para substituir a tática “atacar-recuar” por “atacar-desarticular” usando o mesmo princípio da guerrilha: armas leves, mobilidade, hierarquia simples, autonomia das ações, sabotagem, propaganda e guerra psicológica; porém, com caráter ofensivo e não o defensivo do fraco em relação ao forte. Golias é tão robusto e grande e alto que mal pode mover-se, lento e fácil de ferir, e – distantes estão os olhos e o cérebro – pensa um pouco mais devagar. Os exércitos burgueses estatais incharam-se para o enfrentamento inter-Estados, mas os coloca em dificuldades para a luta entre classes;
B)    A altíssima urbanização – concentração alta de assalariados precários e desempregados – torna a rebelião, a revolta e a revolução mais explosivas e potencialmente mais fortes;
C)    As milícias na polícia e nos exércitos, as máfias, as empresas de combate privadas (mercenários), os salários baixos e a vida em si difícil para o chão da hierarquia – em especial, na polícia – colocam a possibilidade de rachaduras internas nestes aparelhos;
D)    A urbanidade elevada fez surgir uma ampla categoria de assalariados armados nos setores públicos e privados, porém precários;
E)     Por outro lado, a tradição, o conhecimento da arte da guerra e o poderosíssimo aparato de espionagem – de drones do tamanho de uma mosca, passando pela internet, até satélites-espiões – dão uma vantagem burguesa qualitativa neste ponto. A “guerra de quarta geração” (disputa ideológica, manipulação informativa, ataque indireto ou “terceirizado”, ameaças por meio de manobras militares, propaganda, vigília por meio da informática, guerras virtuais, etc.) está incluída, mas dá-se um peso imaginativo demasiado sobre na medida em que, em real, corresponde às guerras reais ou em estado de latência – é um recurso auxiliar e importante em uma época de meios de informação/entretenimento poderosos;
F)     O preço dos armamentos e munições, a exigência de especialização para o uso de certas armas, a dificuldade de achar armas e calibres homogêneos para uso em massa: estas dificuldades não são menores. Portanto, não é verdade que o proletariado “está com a faca e o queijo na mão”; revoluções sociais geram guerras civis, que são partos dolorosos. O resultado do futuro ainda não está definido.**




CONCLUSÃO
           
Este é possivelmente o último dos esboços ao blog Canhoto. A pesquisa até aqui me levou a caminhos inesperados; tornou-se um processo extensivo de contribuição, muito mais profundo do que eu imaginava. Agora, talvez o projeto torne-se intensivo, focado no desenvolvimento interno das teses apresentadas; mesmo assim, há a possibilidade de a pesquisa apontar caminhos novos, surpresas empolgantes.

A proposta teórica talvez dure alguns longos anos até a conclusão real. Fica, por isso, o convite à leitura dos primeiros textos propositivos neste espaço e também um chamado à pesquisa. Se algum marxista ou acadêmico desejar fazer um trabalho consistente sobre estes textos, contará com meu apoio e com minha disposição de auxílio, bastando apenas fazer a devida referência à origem das teses.

Como temos proposto, convido-o a ler as contribuições nas notas de fim.

João Paulo da Síria.




[i] Há quem confunda centralidade da produção com centralidade-guia. Embora use palavras iguais para o mesmo tema, são significados diferentes, pontos separados, para um mesmo significante. A produção de mercadorias é o centro, permite o mercado e gera o mais-valor. Isto considerado, as circunstâncias conjunturais do desenvolvimento capitalista, seu arranjo interno, gera aquilo a que chamamos centralidade ou centralidade-guia, que é o setor mais dinâmico, mais ativo, em pleno desenvolvimento e inflação relativo à tríade-capital (bancário, produtivo, comercial), puxando os outros dois elementos “para frente”, para o desenvolvimento totalizante do sistema focado na produção de mercadorias e mais-valor. Karl Max esclarece que “O uso dos mesmos termini technici (termos técnicos) em sentidos diferentes é inconveniente, porém impossível de ser evitado em qualquer ciência. Compare, por exemplo, as áreas mais elevadas com as mais baixas da matemática.” (p. 293, nota de rodapé 29.)
[ii] Reinado A. Carcanholo desenvolve com maestria a “tendência à desmaterialização do dinheiro”. Disponibilizamos trechos de seu artigo-réplica “Sobre a Natureza do Dinheiro em Marx”:
(…)
“Esse processo progressivo de domínio do valor sobre o valor-de-uso, no interior da unidade contraditória chamada mercadoria, constitui o que chamamos “desmaterialização progressista da riqueza capitalista”. Isso, por uma razão muito simples. O valor-de-uso é o conteúdo material das mercadorias e fica determinado pelas características (conteúdo e forma) materiais de cada uma delas. O valor é sua dimensão social. O domínio deste sobre aquele implica a desmaterialização do conceito riqueza capitalista, desmaterialização da mercadoria.
(…) Mas, por que a mercadoria jamais pode lograr a destruição do valor-de-uso, por mais que se aproxime disso? Isso é impossível, pois a destruição do valor-de-uso implica a destruição do próprio ser humano e, assim, do próprio valor, por ser ele uma relação social entre seres humanos.
(…) É justamente no dinheiro, e posteriormente no capital, em que se manifesta de maneira mais aguda e evidente o processo de desmaterialização, (…) o dinheiro apresenta-se desprovido completamente desprovido de todo valor-de-uso. (…) Mas, desde muito antes, desde a sua gênese, nos princípios da forma de equivalente, já se apresenta o processo de desmaterialização. Por exemplo, já na forma geral do valor, Marx afirma que o valor da mercadoria distingue-se não só do seu próprio valor-de-uso, mas de todo valor-de-uso, inclusive naquele próprio da mercadoria, ao aceitar o equivalente em troca da sua, não está interessado no valor-de-uso deste.”
A desmaterialização continua no dinheiro (ouro), mas ainda a materialidade-ouro continua ali. O processo fica muito mais evidente quando mais avançado, no dinheiro de curso forçoso e no dinheiro de crédito (que são as formas que conhecemos atualmente e que são estudadas por mais no livro III d’O Capital).
(…)
Por mais Impressionante que seja a desmaterialização já alcançada do dinheiro, ela ainda não chegou ao fim. Ela prossegue seu curso e, com certeza, a desmaterialização total, embora ansiosamente buscada pela lógica do capital, jamais poderá ser alcançada.
(…)
[nota 4] As agudas crises financeiras dos nossos dias são a manifestação mais cabal dessa contradição do sistema: o desejo incontido do capital pela desmaterialização e sua impossibilidade completa.”
[iii] Sua própria forma física, expressante do valor como relação social, diz “de onde venho, para o que sirvo e o que desejo”.
[iv] Neste sentido, “moeda fiduciária”, a exceção do capital fictício, é uma expressão teórica inválida. O “lastro no conjunto das mercadorias” é uma necessidade objetiva, e não mera farsa governamental.
 [v] A. Hitler, citado em “Hitler’s Monetary System”, www.rense.com, citando C. C. Veith em “Citadels of Chaos” (Meador, 1949). Agradecimento a Frederico Carvalho, do grupo Marxonomia, por encontrar esta citação.
[vi] Fonte: BBC Brasil.
[vii] Idem o iii.
[viii] Idem ao iii.
[ix] Na Idade Média a Europa desconhecia fronteiras, nações, nacionalidades, etc. Os habitantes desse continente viam-se como “o mundo cristão”, tinham em comum a história, o Latim, a Igreja Romana, o sistema feudal. De fato, era uma massa única, homogênea e de particularidades internas pouco definidas; a isso chamaremos concreto ou concreto simples. Imediatamente após, a burguesia inicia sua tarefa de formar países, Estados-nacionais, exércitos, fronteiras definidas, nacionalismo, identidade, impostos unificados, e etc. – aqui, a Europa continua Europa, entretanto suas partes separam-se em uma “relação alienada” ou “relação, porém alienada” e isto foi vital para desenvolvimento das partes e do todo; chamaremos abstrato. Este processo desenvolveu as partes, os países do mundo europeu a tal ponto que amadureceram e agora (!) pedem a fusão, a integração, a união, a superação dos limites nacionais; este é o concreto complexo em latência – ou seja, o desenvolvimento econômico-social avisa-nos que deseja voltar ao começo, ao negado, ao antes do abstrato, ao concreto, só que de modo diferente, superior, superante. Isso aponta a revolução socialista europeia e os Estados Unidos Socialistas da Europa (concreto complexo); o Euro e a União Europeia são mediações, deformantes, propostas pelo capital e pelo imperialismo a esta necessidade objetiva.
Em “Três capitais, três eras, três ciclos”, exemplificamos: “(…) partimos de uma realidade dada, observável, total, concreta para – a partir daí – estudar e compreender as partes constituintes deste objeto estudado; logo após, unimos-lhes, conectando-os, percebendo suas interinfluências e interrelações; ou seja, voltamos ao concreto, mas em uma dimensão superior. Isto nada mais é que seguir o fluxo da própria dinâmica da matéria; um exemplo: todas as ciências eram, em estado inferior, resumidas na filosofia; depois, foi necessário separá-las e desenvolvê-las individualmente; agora, a tendência é reuni-las na físico-química, na psicologia (ciências sociais somadas à biologia), no marxismo (fusão de todas as ciências humanas em uma única ciência social, incluindo certa influência da biologia, etc.).” A desintegração deriva da necessidade de integração.
[x] A tendência, enquanto lei, a perder o lastro apresenta-se, em um primeiro momento, nas mais variadas experiências, numa proporção cada vez menor de equivalência entre a quantidade de dinheiro real em circulação e a quantidade de metal em estoque.
[xi] Uma reflexão breve. As teorias marxistas da alienação, do valor e a dialética marxista causam uma espécie de impacto do absurdo; isso ocorre porque são contribuições que enfrentam a intuição simplória, revelam processo ocultos mas dominantes, contrariam o status quo em si e são contrários ao adestramento positivista da mente. O mesmo choque de realidade, subjetividade, intuição e conceitual ocorre com as teorias de Einstein, na física, e nas de Freud, sobre a psique. Por isso, mais que natural as novas propostas teóricas essencialmente válidas causarem a inesperável energia do "bizarro" ou, às vezes, do desconforto, tal qual uma pintura surreal ou cubista.
[xii] Como apontou Lenin, “Imperialismo – fase superior do capitalismo”, há a fusão, maior integração, entre os capitais bancários e produtivos (e comercial) formando o capital financeiro, onde os primeiros tornam-se dominadores naturais. Ao mesmo tempo, o capital fictício desenvolveu-se nas últimas décadas sem relação direta com a produção de valor; esta autonomia relativa tem um exemplo absurdo nas dívidas públicas estruturais.
[xiii] Elementos de um ciclo de era do capital começam a desenvolver-se de modo embrionário e acidental no ciclo de era anterior; natural, portanto, que isso se expresse de algum modo no equivalente geral.
[xiv] O início da fase imperialista, final o século XIX, marca a substituição do ouro e da prata pela Libra inglesa lastrada em ouro. Este processo encerra-se com a consolidação do imperialismo, a I grande guerra, e desde então o dinheiro mundial tornou-se um problema instável – derivado por outro problema: qual imperialismo comandará o mundo… -; assim, no final da II Guerra Mundial esta lei tendencial macroeconômica pode se relocalizar primeiro com o dólar lastreado em ouro e, depois, com Nixon, com o dólar desprovido deste lastro. Porque há fronteiras nacionais, heterogeneidade, por sofrer mais com as dolorosas contradições do capitalismo, o equivalente mundial encontra mais barreiras no seu caminho.
[xv] A condição ímpar de ser uma moeda nacional-mundial produz vantagens e, para além, uma dinâmica toda especial para esta lei, a do acompanhamento mundial em atraso das formas pátrias; existe a influência mútua das duas dimensões espaciais para a manifestação da lei tendencial à desmaterialização. Por isso – importe reforçar –, a relação dinheiro nacional-mundial, as causas e ritmos evolutivos desiguais, são tendências, leis tendenciais, que tendem à.
[xvi] Como abstração transitória para fins teóricos, chamo países como China e Rússia “imperialismo sui generis”: países cuja superestrutura, em especial o aparelho de Estado, não disputam em defesa de seus próprios capitais exatamente, e sim disputam o destino dos capitais e do capital como um todo, querem-lhes para si independente do país de onde venham; pois já há certa necessidade do capital de, por sua decadência, transferir-se a estes países. Assim, desenvolvendo-se, formam-se as condições de criar grandes empresas originais desses mesmos países “fora da norma” que, em nosso período de alta oligopolização, tentam achar espaços novos formando, também, grandes empresas na área de serviços. Porém, a expressão “imperialismo sui generis” precisa ainda ser observada para verificação científica de que seu sentido corresponde, ou não, à realidade viva. Assim, ao menos momentaneamente, no decorrer da pesquisa, escanteio as teses-fórmulas “sub-imperialismo”, “potencialmente imperialista”, “semicolônias (muito) privilegiadas”, pois que estes países já vivenciaram algum salto de qualidade na relação mundial de Estados e na questão econômica em si, que precisa ser melhor medido, precisado.
[xvii] A revolução russa de 1905 foi o “ensaio geral” da de 1917; as revoluções do século XX foram o “ensaio geral” das do XXI.
[xviii] Os marxistas, em geral, salvo importantes exceções, necessitam dar a este aspecto atual da fase imperialista uma consideração maior.
[xix] Site UOL Notícias.
[xx] Site hypescience.com
[xxi] Percebemos que o tempo das fases pós-capitalistas tende ir da curta à longa duração – transição, socialismo, comunismo. O capitalismo, ao contrário, vai tendencialmente de ciclos de eras longas à curtas – comercial, industrial, imperialismo; como dizemos no texto “Três capitais, três eras, três ciclos”: “Em um ponto de vista imensamente artificial – advertimos –, abstraindo fenômenos como a luta de classes ou a ciência; este modelo, centro de gravidade do capital, altera-se a cada um ou dois séculos, mais ou menos, com o fluxo temporal encurtado a cada deslocamento.” A causa é que cada ciclo de era evolui-se aproveitando os progressos anteriores, facilitando o alcançar de seu ápice.


* Teoria de Hilferding, quem desenvolve este tema com profundidade. Aqui, partimos do fator geral para desenvolvermos o tema.

** Entre outros, essas teses estão pavimentadas neste artigo: http://www.defesanet.com.br/terror/noticia/20847/ESTADO-ISLAMICO---ASPECTOS-OPERACIONAIS--Revolucao-Tatica-ou-Infantaria-Leve-na-Era-Global/